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O conhecimento como especificidade da escola republicana

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL - UNIJUÍ

PROGRAMA DE MESTRADO E DOUTORADO EM EDUCAÇÃO NAS CIÊNCIAS

LUANA RODRIGUES DOS SANTOS

O CONHECIMENTO COMO ESPECIFICIDADE DA ESCOLA

REPUBLICANA

IJUÍ, RS, BRASIL 2019

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LUANA RODRIGUES DOS SANTOS

O CONHECIMENTO COMO ESPECIFICIDADE DA ESCOLA

REPUBLICANA

Dissertação apresentada ao curso de Pós-Graduação Stricto Sensu – Mestrado em Educação nas Ciências –, da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ), como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Educação nas Ciências.

Orientador: Professor Dr. Paulo Evaldo Fensterseifer

IJUÍ, RS, BRASIL 2019

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S237c

Santos, Luana Rodrigues dos.

O conhecimento como especificidade da escola republicana / Luana Rodrigues dos Santos. – Ijuí, 2019.

81 f. ; 30 cm.

Dissertação (mestrado) – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Campus Ijuí). Educação nas Ciências.

“Orientador: Paulo Evaldo Fensterseifer”.

1. Educação republicana. 2. Instrução. 3. Conhecimento. 4. Escola. I. Fensterseifer, Paulo Evaldo. II. Título.

CDU: 37.013

Catalogação na Publicação

Eunice Passos Flores Schwaste CRB10/2276

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AGRADECIMENTOS

Atrevo-me a alguns agradecimentos mesmo ciente da precariedade e limitação dos mesmos. Ao professor, Dr. Paulo Evaldo Fensterseifer, por apontar caminhos para essa pesquisa, bem como por representar um modelo de intelectual e humano.

À Unijuí e CAPES pela oportunidade e fomento, respectivamente.

Aos professores deste programa de pós-graduação, em especial aos da linha de pesquisa número dois, pelo aprendizado e convivência prazerosa neste processo.

Aos meus pais, irmã e cunhado que passaram a compreender o poder do conhecimento e a importância dessa produção para mim.

Ao meu avô, Joaquim, que não se cansa de dizer que tem três netas formadas na Universidade que construiu enquanto pedreiro.

Aos colegas no percurso deste mestrado. Em especial ao Diego Verri pela leveza e humor com que me ajudou a conduzir este escrito e ao Vitor Piovesan pelas trocas incontáveis de reflexões e as correções de formato desta produção, ambas impagáveis. Dois amigos que levo para a vida.

À Aline Zampieri, por se importar.

Aos demais amigos e colegas de trabalho que contribuíram compreendendo minhas ausências ou cobrindo minhas faltas.

Ao Rudi, pela bondade quase ingênua, pelo companheirismo, diálogo, pela paciência e racionalidade que muitas vezes me falta.

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É indispensável trabalhar, pois um mundo de criaturas passivas seria também triste e sem beleza. Precisamos, entretanto, dar um sentido humano às nossas construções. E, quando o amor ao dinheiro, ao sucesso nos estiver deixando cegos, saibamos fazer pausas para olhar os lírios do campo e as aves do céu.

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RESUMO

Conceber a educação como imprescindível ao acolhimento das novas gerações ao mundo preexistente pressupõe buscar um sentido e uma característica irrenunciável a esse processo. Com esse objetivo procurou-se argumentar e explicar por que o aspecto distintivo da escola é a transmissão de saberes construídos ao longo do tempo, dando origem a uma tradição. A teoria condorcetiana baseia-se no princípio de que a escola republicana deve ser responsável pela diminuição das desigualdades, ao menos no tocante ao conhecimento, e que neste espaço não devem existir fatores externos determinantes para o aprendizado, como cor, gênero, raça ou classe social. Deste modo, parte-se em direção a uma argumentação que contemple o sentido da educação escolar e deste modo conceba o conhecimento como indissociável na obtenção deste significado. Os balizadores desta produção são autores que em épocas diferentes fizeram sua contribuição sobre o que compreendiam ser inerente à tarefa escolar. Na primeira parte da escrita apresentam-se as principais teses de Condorcet, nas quais evidencia-se o caráter universal, laico e gratuito de educação defendida por ele, bem como o destaque dado pelo autor aos saberes científicos. Dando prosseguimento, já num segundo capítulo, a preocupação está, ainda que de forma breve, em explicar qual é o tipo e a natureza do conhecimento que deve se fazer presente na escola. Em sequência apresentam-se os escritos de Arendt no tocante à sua abordagem sobre a crise na educação, trazendo entendimentos sobre os temas da autoridade, mundo comum e da diminuição prejudicial das fronteiras entre as esferas pública e privada. Masschelein e Simons tomam a palavra para defender uma escola capaz de oferecer tempo livre e tornar o saber público pela profanação e suspensão. Em Savater, encontra-se a demonstração de que o professor é o representante do conhecimento e por que ele não deve abrir mão deste lugar. O terceiro capítulo estabelece uma teia de relações entre os autores já mencionados e Michel Young. Esta parte da escrita tem uma característica mais direta pelo modo como Young se coloca em sua teoria de defesa de uma escola que ensine o “conhecimento poderoso” e que tenha clareza na distinção entre saberes específicos do contexto do aluno e de fora dele. O esforço deste trabalho é que a escola, enquanto artifício, afirme razões para sua existência, e que estas razões tornem-se públicas produzindo engajamento, principalmente entre aqueles que se ocupam com a educação, pois do contrário estaremos diante da perda da legitimidade seguida do iminente desaparecimento dessa instituição secular.

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ABSTRACT

Conceiving the education as essential for the reception of new generations in the preexisting world presupposes seeking a meaning and an inalienable characteristic in this process. Based on this objective we tried to argue and explain why the distinctive aspect of the school is the transmission of knowledge built over time, giving rise to a tradition. The Condorcet theory based on the principle that the republican school should be responsible for reducing inequalities, at least in relation to knowledge, and in this space, there should be no external determining factors for learning such as color, gender, race or social class. Therefore, towards an argument that contemplates the meaning of formal education in order to conceive the knowledge as inseparable in the attainment of this meaning. The proponents of this production are authors who at different times made their contribution on what they understood to be inherent in the school task. In the first part of this writing, it presented the main theses of Condorcet, in which we could evidence the character universal, areligious and free education defended by him, as well as the emphasis given by the author to the scientific knowledge. Following it, the second chapter, the main concern is, even if it is briefly, in explaining which kind and nature of knowledge should be present in school. In sequence, we presented the Arendt's writings concerning her approach to the crisis in education, bringing insights about authority, the common world, and the damaging narrowing of the borders between the public and private spheres. Masschelein and Simons take the floor to defend a school that is capable to offer free time and making the public knowledge by desecration and suspension. In Savater lies the demonstration that the teacher is the knowledge representative and why he should not give up of its role. It established in the third chapter a relations’ web between the authors already mentioned and Michel Young, at this part the writing has a more direct characteristic by the way in which Young puts its defense theory of a school that teaches the "powerful knowledge", and that clarity in the distinction between specific knowledge to the context of the student and outside it. The effort of this work is that the school, as artifice, affirming the reasons for its existence, and that these reasons become public producing engagement, especially among those who are concerning with education, otherwise we will face the loss of legitimacy followed by the imminent disappearance of this secular institution.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 9

1. ORGANIZAÇÃO E FUNDAMENTOS DA ESCOLA REPUBLICANA À LUZ DA TEORIA CONDORCETIANA ... 16

1.1 A incipiente República e Educação Republicana ... 16

1.2 O relatório ... 18

1.3 Cinco memórias sobre a instrução pública − a matriz filosófica do relatório ... 21

2. PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEAS PARA PENSAR O CONHECIMENTO E A EDUCAÇÃO NA ESCOLA REPUBLICANA ... 33

2.1 A natureza do conhecimento a ser veiculado na escola ... 33

2.2 A perspectiva Arendtiana ... 36

2.3 A perspectiva dos autores Masschelein e Simons ... 45

2.4 A perspectiva de Fernando Savater ... 51

3. DA TRADIÇÃO CONDORCETIANA A MICHEL YOUNG ... 60

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 76

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INTRODUÇÃO

Quando imersos por certo tempo numa questão sentimos dificuldades de voltar ao momento em que ela nos surgiu como problema. A impressão é que desde sempre estivemos envolvidos com o assunto, porém é imensamente salutar voltar à origem, ao início do questionamento e da reflexão que hoje passamos a fazer, a saber, a centralidade do conhecimento na Escola Republicana. Em outras palavras: a imprescindibilidade do conhecimento na instituição escolar, sua valorização e protagonismo.

Parece obviedade a até um tanto pleonástico, num primeiro olhar, propor-se a discorrer sobre educação/escola dando ênfase ao conhecimento, pois tal instituição deveria ser sinônimo de conhecimento, o imaginário coletivo deveria caminhar nessa direção. Afinal, por que crianças são colocadas na escola? Qual é sua finalidade última ou primeira? Sem dúvida, ao fazer tal questionamento grande parte dos interlocutores deveriam reagir respondendo: “para aprender”, no entanto, suspeitamos que essa resposta já não esteja operando como o esperado. Mesmo assim, imaginemos que de fato todos concebessem a escola como lugar de aprendizado, do saber, do aprender. É neste sentido que buscamos a motivação da pesquisa, pois retoricamente questionamos: “aprender o quê?”.

Tanto ao adentrar o espaço escolar quanto ao perceber os discursos sobre este lugar, nota-se que o conhecimento já não é tão inerente à escola quanto se pensava. O que ganha destaque hoje na educação escolar é tudo aquilo que não é essencialmente “escolar”1

. Uma supervalorização do lúdico, da espontaneidade e das novas tecnologias é dada em detrimento do conhecimento da tradição. Uma verdadeira era do prazer a qualquer custo se instala, isto é, a escola além de satisfazer os desejos individuais - tendência contemporânea - deve fazê-lo sem sofrimento algum, ao modo de uma brincadeira, na qual todos devem se divertir ou, então, intervir quando a brincadeira não mais agradar.

Para balizar a defesa à centralidade do conhecimento na Escola Republicana nos valeremos de algumas escolhas teóricas. Dentre elas ocupam maior espaço as contribuições de Condorcet, Hannah Arendt, Jan Masschelein, Maarten Simons e Michel Young que, em épocas e contextos diferentes, fizeram suas reflexões acerca do que entendiam ser indispensável à tarefa da educação. Ao seu modo, cada autor faz uma espécie de defesa do

1Observa-se, por exemplo, a ênfase dada pela mídia às diversas atividades que fogem à especificidade da escola, que vão desde concursos/competições das mais diversas até ações de caridade.

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10 conhecimento. Alguns de forma mais explícita e incisiva, outros de modo mais moderado, mencionando-o como algo inerente à educação que se pretenda republicana.

Com a finalidade de dar um maior sentido à essencialidade do saber elaborado nas instituições educativas, faz-se imperativo saber a que tipo de escola estamos nos referindo e que modelo de educação nos propomos a defender. É frequente ouvirmos construções que se referem à educação como possibilidade de emancipação, promotora da cidadania e democracia. Só recentemente, como resposta a certas questões já naturalizadas – a laicidade, por exemplo – é que ouvimos emergir a ideia de Escola Republicana. Talvez por essa incipiência é que ainda não conseguimos compartilhar sentidos sobre o que a define. Contudo, é essa educação que pode existir numa República, é ela que nos comprometemos a defender. É na Escola Republicana que se dá a experiência que motiva esta escrita, aquela é constitutiva do sujeito. A partir dessa vivência encontra-se a possibilidade de ser testemunho de algo, é neste espaço que a pesquisa toma suas formas iniciais. Em outras palavras, é a prática docente que coloca a maioria das questões e reflexões delineadas neste escrito. Estas experiências e testemunhos irão aparecer articuladas ao texto de alguma forma, sejam em breves notas ou em marcações mais explícitas no texto.

O processo de escrita nos coloca inúmeros desafios, bem como objetivos que nos fazem aceitar sermos provocados. O primeiro deles é ser motivado a expressar em caracteres algo que de alguma forma e por algum motivo nos tomou e, além disso, tamanho é o envolvimento e empenho no assunto que se deseja convencer outros a compartilharem nossa ideia, a corroborarem com ela. Logo, resta apontar algo de relevante nesse intento que demanda tamanha dedicação.

Propor um retorno à especificidade daquilo que é escolar, que neste caso pensamos ser o conhecimento, assume relevância em diversos domínios. O primeiro se refere ao individual, pois a compreensão e orientação de como movimentar-se no campo educacional é fundamental para um trabalho docente. O segundo e terceiro referem-se à contribuição ao campo educacional e político, que em nosso entendimento estão intimamente ligados, uma vez que educamos com vistas a inserção no espaço público. Sendo assim, o resultado de uma reflexão por parte dos professores sobre o que faz da escola ser uma escola passa pela assimilação de que o conhecimento deve estar no topo da pirâmide de prioridades a serem cumpridas e desenvolvidas pela instituição escolar.

O efeito de um processo de ensino com base no conhecimento é positivo para uma sociedade com intenções republicanas. Uma educação nesses moldes, sem dúvida, promove o

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11 esclarecimento e a capacidade de pensar e, assim, desconfiar de soluções fáceis, bem como daqueles que as propõem. O indivíduo que passa por esse percurso, por exemplo, é capaz não só de escolher melhor seus representantes, mas de melhorar sua vida cotidiana, evitando ser enganado e mais, é capaz de compreender que o ato de enganar não condiz com a postura de um cidadão da República. Com a promoção do esclarecimento e da capacidade de pensar, ainda, permite-se a consciência de que atitudes corruptas não são boas e não contribuem para uma sociedade justa. Sem demora, deduz-se que o conhecimento é promotor de tais esclarecimentos, e que o efeito de sua presença efetiva na orientação dos currículos é imensamente benéfico. É preciso, portanto, confiar e apostar no poder do esclarecimento embasado em fontes confiáveis e verificáveis.

No intuito de defender e expor as razões que nos levam a defender o conhecimento como a especificidade da escola, elegemos alguns pensadores, já mencionados, que nos ajudarão neste percurso. Significa dizer que toda nossa interpretação será balizada por estas escolhas, que podemos definir como de caráter teórico-filosófico acerca da educação escolar. Trata-se de uma pesquisa de natureza hermenêutica e que, como tal, implica em uma reconstrução aberta e uma interpretação contextualizada, é uma construção interpretativa que se dá na relação com outros interlocutores.

A hermenêutica busca uma reflexão e uma compreensão sobre aquilo que vemos, lemos, vivenciamos, criando uma cultura imersa em diferentes tradições e experiências. Implica também na forma como realizamos o movimento para nos (re)conhecer a partir das experiências no mundo, ou seja, na medida em que interpretamos algo, relacionamos diretamente com a visão de mundo que temos, advindas de nossas experiências anteriores (CONTE e SIDI, 2017, p. 1945).

Os eleitos para o movimento de interpretação com vistas à legitimação de nossa hipótese são todos pensadores quese dedicaram a pensar a educação no seu tempo. De nossa parte, o que tentaremos fazer é demonstrar os cruzamentos possíveis entre eles, sejam eles simétricos ou não. O escopo da escrita está em alcançar o que cada um dos autores traz como especificidade e essencialidade da escola. E como a escolha destes balizadores é intencional, abordaremos como o conhecimento aparece e se apresenta para cada autor, bem como o lugar que ele deve ocupar na educação escolar.

Iniciaremos nossa reflexão - e com isso a explanação de nossa interpretação - de forma cronológica. Sendo assim, a apresentação do ideal da Escola Republicana e de sua estrutura fica por conta do filósofo das luzes Marquês de Condorcet. Seguindo nesta ordem, passamos em seguida para uma breve explicação sobre a natureza do conhecimento a que nos

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12 propusemos a defender, bem como o modo de construção desse conhecimento. Para esse intento nos valemos principalmente das contribuições de José P. Boufleuer a partir de sua leitura habermasiana e as conceituações de Mario Osorio Marques em relação à construção de um paradigma linguístico-intersubjetivo para o conhecimento. Seguimos com Hannah Arendt e sua breve análise sobre A crise na educação (1957 − primeira publicação), ensaio este que inspirou inúmeras outras produções, e que, dentre outros temas, aborda o processo de desaparecimento da tradição. Jan Masschelein e Maarten Simons, escritores belgas, dão conta de fazer uma defesa da escola, trazendo argumentos sobre a singularidade desta instituição. Por último, ainda no segundo capítulo, trazemos as contribuições de Fernando Savater que, dentre outras contribuições, nos explicita e faz refletir sobre o papel que ocupa a docência na dinâmica educacional. Na busca de estabelecer possíveis cruzamentos entre esses autores elegemos Michel Young, a partir do qual buscamos uma espécie de síntese de nossa pesquisa. Isto porque entendemos ser este o teórico que traduz e expõe a defesa do conhecimento de forma mais incisiva, argumentando que somente uma escola que oferece “conhecimento poderoso” permitirá que os aprendizes interpretem, “controlem” e compartilhem o mundo de forma concreta.

Considerando esse percurso teórico, estruturamos a nossa dissertação de modo que no primeiro capítulo nos ocupamos em definir a Escola Republicana com base nas contribuições do filósofo francês Condorcet (1743-1794). Este autor não só define os ideais basilares desse tipo de educação como faz uma defesa do conhecimento, ponto nevrálgico da pesquisa, afirmando que a desigualdade de instrução do povo seria uma das principais fontes de tirania, visto que aqueles que possuem os saberes exercem poder sobre aqueles que não os possuem, configurando uma espécie de heteronomia consentida.

As contribuições de Condorcet para a literatura educacional são sem dúvida atemporais, pois tanto foram significativas para a época em que foram redigidas (apesar de seu relatório ter sido rejeitado pela assembleia) quanto para o contexto atual. A forma como pensa o sistema educacional e sua estrutura no livro Cinco Memórias sobre a instrução pública (2008) é ambivalente, pois se por um lado é extremamente complexa e bem elaborada, por outro é simples e autoexplicativa. Condorcet traça um caminho com os aspectos a serem observados desde a instrução mais elementar até a mais complexa, do primário ao superior.

O filósofo francês faz distinções e elabora conceitos centrais, dentre eles a diferença entre educação e instrução, isto é, entre aquilo que é próprio da esfera privada e o que é

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13 característico da esfera pública, respectivamente definidas em sua obra como família e escola. Também defende a Escola Republicana laica, gratuita e universal, indicando os perigos se o contrário se estabelecer. Por fim, entende o conhecimento como indispensável nos estabelecimentos escolares, uma vez que só ele possibilitaria aos sujeitos pensarem por si próprios, estabelecerem julgamentos baseados na razão e intervirem de forma efetiva na sociedade quando convocados ou quando necessário.

O segundo capítulo, em continuidade aos princípios da escola republicana indicados por Condorcet, reforça os argumentos quanto à relevância do conhecimento em instituições escolares. A peculiaridade deste capítulo está, portanto, numa espécie de atualização dos escritos de Condorcet, especialmente no que se refere à premissa de que somente o conhecimento pode libertar o sujeito da dependência e da perigosa arbitrariedade daqueles que o detém. A legitimação dessa afirmação edifica-se principalmente a partir das contribuições de Hannah Arendt, Fernando Savater, Jan Masschelein e Maarten Simons, bem como de comentadores desses autores.

Dedicamos uma pequena parte do segundo capítulo para a explicação de como compreendemos a estrutura do conhecimento que deve compor o currículo. Partimos da ideia de um saber construído intersubjetivamente e que tem a linguagem como principal via de manifestação. Sendo assim, o conhecimento é sempre proposto e traduzido pela linguagem, e sua legitimação depende também de acordos e entendimentos possíveis por ações linguísticas de diferentes grupos de especialistas e, por fim, pela sociedade.

Arendt dedica-se a imprimir um sentido público para a educação, mesmo diante de objetivos contemporâneos tão diversos para a tarefa educacional. A forte tendência de tecnicização da pedagogia, o atendimento aos desejos individuais e a formação de capital humano para o trabalho movem-se contrariamente ao que seria para Arendt (2016) objetivo primeiro da educação: iniciar os novos num mundo comum, acolhê-los neste ambiente que lhes é estranho. Enfim, entende a autora que a escola deve se responsabilizar por transmitir o saber elaborado, que no currículo escolar chamamos de matéria, esta legitimada pela tradição na qual se insere.

A abordagem dos autores Jan Masschelein e Maarten Simons (2017a) assume um objetivo muito claro: a defesa da escola. Os autores tentam munir-se de argumentos dos mais variados para justificar a existência e a continuidade da escola, assim como o benefício público trazido por esta instituição. A terminologia “tempo-livre” percorre toda sua argumentação, justificando que a escola é o único lugar que oferecerá essa espécie de

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14 momento de suspensão para o estudo, este isento de um fim imediato ou produtivo. O ambiente escolar para os autores parece ser o único ainda existente em que os sujeitos estão em nível de igualdade, já que nesse espaço estão dissociados dos laços familiares e do lugar social, além de disporem do mesmo “tempo-livre” para conhecerem o mundo, apresentado de maneira única e envolvente pelos saberes que a escola, de forma particular, ensina.

Ajustando-se com Arendt, Savater reconhece a existência de uma tradição que liga o ensino ao tempo. Nessa perspectiva chama a atenção para aquele que, na escola, faz a conexão entre a memória coletiva e a possibilidade do novo: o professor. Legitima o docente ao exercício de ensinar porque, segundo ele (2012, p. 40), “a primeira coisa para educar os outros é ter vivido antes deles [...] ter vivido antes o conhecimento que se deseja transmitir”. O autor salienta que todos somos capazes de ensinar alguma coisa, mas é particularmente a educação escolar que se ocupa de especialidades que não são, costumeiramente, aprendidas fora dela, no âmbito familiar, por exemplo.

O terceiro capítulo tem como enredo essencial os escritos de Michel Young e sua defesa por um currículo centrado em disciplinas. O objetivo deste capítulo é evidenciar, de forma mais incisiva, o entendimento de que o conhecimento deve ser o núcleo, o mote, a engrenagem que movimenta e justifica a educação escolar. De outra parte, é objetivo deste capítulo apontar os prejuízos de uma educação que já não prioriza o saber elaborado em nome de uma valorização das perspectivas do aluno, numa espécie de generosidade para com os sentidos e experiência que já possui. Young (2011, p. 615) é categórico ao afirmar que “as escolas são os lugares onde o mundo é tratado como um ‘objeto de pensamento’ e não como um ‘lugar de experiência’”.

Também no terceiro capítulo apresentam-se elementos dos capítulos anteriores para, de forma mais “livre”, serem tecidos comentários, bem como para ser estabelecido um diálogo entre os teóricos que foram mobilizados durante a pesquisa, estabelecendo uma espécie de intertextualidade entre as diversas teorias. Tal diálogo tem como objetivo articular o que cada autor traz e, assim, reforçar nossa tese de defesa do conhecimento como especificidade da escola. Com isso acreditamos salvaguardar essa instituição diante das ameaças que vêm sofrendo e dos projetos que advogam o seu desaparecimento e/ou prescindibilidade. E isso se faz urgente à medida que o sentido da escola não é evidente, necessitando constantemente ser justificado.

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15 É bastante complexo e até tentador aventurar-se no campo educacional sem cair na “armadilha” de tentar responder à pergunta Para que servem as escolas?2

Armadilha porque diante da vasta literatura que busca responder tal questão não existe unanimidade. Esse fato, sem dúvida, causa preocupação, pois entendemos que essa tarefa coletiva necessita um mínimo de balizamento para garantir a efetividade de seus propósitos, e se não há uma justificativa compartilhada para a existência desse artifício chamado escola, sem dúvida ela corre o risco de desaparecer - ao menos nos termos em que foi proposta originalmente. Tenta-se, neste estudo, manter certa distância da formulação de uma resposta como esta, no entanto, o movimento de pesquisa é o de afirmar que, independentemente da tendência, categoria, teoria educacional a que nos filiamos, não se pode prescindir daquilo que é essencial e singular da atividade educacional republicana: o conhecimento, bem como a natureza desse conhecimento.

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1. ORGANIZAÇÃO E FUNDAMENTOS DA ESCOLA REPUBLICANA À LUZ DA TEORIA CONDORCETIANA

O presente capítulo objetiva trazer à tona os conceitos mais caros da teoria condorcetiana. Tais compreensões têm sua fonte no relatório enviado por Condorcet à Assembleia Legislativa como proposta de uma organização escolar nacional, bem como no livro Cinco memórias sobre a instrução pública (2008) - anterior ao relatório e inspiração para o mesmo. Salientamos que o distanciamento temporal dos escritos condorcetianos em relação à contemporaneidade não afetam em definitivo a profundidade, racionalidade, clareza e atualidade da sua proposta no tocante ao que a mesma apresenta como fundamental.

1.1 A incipiente República e Educação Republicana

A República, conceito romano, res pública, coisa pública, pressupõe o bem comum, ainda que em detrimento ao interesse de um ou de poucos, priorizando o coletivo, que, paradoxalmente, pode também não ser a maioria. Ribeiro elucida a afirmação da seguinte forma:

O bem comum não coincide com o bem de muitos, nem mesmo com o bem de todos. E isso porque o essencial, na república, não é quantos são beneficiados, e sim o tipo de bem que se procura. Bem comum é um bem público, que não se confunde com o bem privado (RIBEIRO, 2008, p. 19).

O regime republicano pressupõe o eventual sacrifício da vontade pessoal, das vantagens em nome do bem comum. A questão que se coloca então é como garantir a continuidade desse regime do bem comum. Segundo Ribeiro (2008), é o próprio público que deve o controlar, não contentando-se em ser somente o beneficiário deste sistema, e sim o responsável, personagem atuante no mesmo.

A Revolução Francesa, no século XVIII, despertou preocupações com a educação, que naquele momento se colocaria como universal, preocupações que tinham um sentido político, pois buscavam atender os ideais postos pela República que se instaurava, alicerçados, segundo Garcia e Fensterseifer (2009, p. 7) “nos princípios de isonomia, de igualdade de direitos promulgados e amparados por um governo das leis e de uma ampla participação nos diversos assuntos de interesse comum”.

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17 Fazia-se necessário converter todo o povo em cidadãos de fato e de direito, não bastava a instauração da República, a sua manutenção dependeria do juízo racional dos cidadãos que deveriam ser formados pelo projeto republicano. Conforme Kant (2012, p. 65):

Uma revolução poderá talvez realizar a queda do despotismo pessoal ou da opressão ávida de lucros ou domínios, porém nunca produzirá a verdadeira reforma do modo de pensar. Apenas novos preconceitos, assim como os velhos, servirão como cintas para conduzir a grande massa destituída de pensamento.

No mesmo sentido, Coutel (2004) reitera que fundar a cidadania e com isso instituir o cidadão era necessário, pois o bem público e a verdade só teriam a ganhar, dado que estes seriam buscados entre muitos - no coletivo - de modo a se fortalecerem continuamente. Cada cidadão deve estar convencido da presumível bondade das leis, e assim sentir a obrigação de obedecê-las e por conhecê-las em profundidade também estar apto a modificá-las, como um telos que pode ser revisto.

Via-se então na educação a possiblidade de implementação dos ideais republicanos supracitados, idealizados por pensadores e políticos da época. Restava organizar um sistema educacional que contemplasse tais aspirações. Segundo Maamari (2009) o esforço da educação republicana seria o de esclarecer os cidadãos, de modo que pudessem responder e decidir seus destinos baseados exclusivamente na sua própria razão. A autora entende que a garantia da república seria a educação, pois ela proporcionaria, através do conhecimento, a compreensão das vantagens da República, bem como a possibilidade de uma cidadania instruída, essencial para a democracia.

Como no mundo humano poucas coisas se dão de forma natural, seria – naquele tempo – necessário esclarecer a sociedade e instruí-la para a República. A instrução passa a adquirir papel central nesse processo, pois ela deve convencer e preparar as novas gerações para agir de acordo com os ideais republicanos. Ancorado nesse propósito, Condorcet elaborou o Relatório e projeto de decreto sobre a organização geral da instrução pública nacional (1792), bem como, um pouco antes do decreto, estabeleceu a organização, estrutura e fins da educação republicana no livro Cinco memórias sobre a instrução pública (1791).

Marie Jean Antoine Nicolas de Caritat (1743-1794), mais conhecido pelo seu título familiar, Marquês de Condorcet, inegavelmente, contribuiu para o modelo de ensino público que temos hoje. Iniciou suas atividades científicas na área da matemática, mas rapidamente foi atraído pelas ciências humanas, sem deixar as ciências exatas de lado. Em 1791, época de auge dos acontecimentos da Revolução Francesa, foi eleito deputado em Paris e designado

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18 membro do comitê de instrução pública, momento em que redigiu o que para ele seria a forma mais adequada de organização da instrução escolar pública e seus fins.

Apesar de pouco3 citado na literatura educacional, oferece vasta teoria e contribuições para a reflexão pedagógica atual. Entre as colaborações mais significativas do filósofo estão as obras citadas, destinadas a organizar e traçar objetivos para a instrução pública nacional. Condorcet cunhou conceitos e desenvolveu ideias impensadas para a sua época, tanto no campo educacional como no social e moral4. Conceitos que hoje se articulam e se apresentam como novos ou sem uma origem exata, mas que tiveram seu início na obra condorcetiana. Para exemplificar podemos falar em educação permanente ou continuada, educação popular e/ou de jovens e adultos, igualdade de gênero, ideias que parecem muito “recentes”, mas que já apareciam de forma significativa na obra do autor.

1.2 O relatório

O desenrolar dos acontecimentos da Revolução Francesa (1789) fez com que emergisse a preocupação com a educação nacional. Era necessário formar e reformar o povo para as mudanças propostas pelos ideais da revolução. Esse novo pensamento, ou novo homem capaz de alcançar tais ideais revolucionários, como os princípios de Igualdade, Liberdade e Fraternidade, só seria possível com a organização de um sistema de instrução nacional. A estrutura desse novo sistema que se inaugurava com a Revolução Francesa exigia algumas habilidades que até então não estavam ao alcance de todos, como a capacidade de reflexão crítica.

Pode-se dizer que o objetivo dos revolucionários era formar cidadãos, pois estes já acostumados a obedecer como súditos as ordens do rei necessitariam de uma nova mentalidade5 para o contexto que se ensaiava, dado que “é difícil [...] para um homem em particular se desvencilhar da menoridade que para ele se tornou quase uma natureza” (KANT, 2012, p. 64). Essa nova mentalidade respaldaria os ideais da revolução. Não bastava que existissem leis, era necessário que todos as conhecessem e com uma instrução adequada adquirissem a capacidade de modificá-las quando se fizesse necessário.

3 Essa observação se fundamenta ao fazermos uma pesquisa nas principais plataformas de produções acadêmicas. Os trabalhos que fazem alusão a Condorcet ocupam ainda pouco espaço nesses locais/ambientes. 4

Ver livro Instrução Pública e Formação Moral de Sidney Reinaldo da Silva (2004).

5 Essa nova mentalidade respaldaria a ideia de maioridade compatível com uma cidadania em vias de emancipação.

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19 Ocupando a posição de deputado e membro do comitê de instrução pública, Condorcet apresenta à Assembleia Legislativa um projeto de organização da educação nacional, com o objetivo de promover a instrução que colocaria o povo na condição de cidadão, porém, este não pode ser discutido em nome de outras questões mais urgentes da revolução. Seu relatório foi remetido à Convenção, da qual Condorcet também era membro e parte da comissão de Instrução Pública. O mesmo foi rejeitado na posterior Convenção por ser considerado “muito científico” (CAMBI, 1999). Apesar da negativa ao relatório, ele inspira projetos posteriores e contribui para a formulação e institucionalização da educação pública instaurada séculos depois.

O Rapport de Condorcet foi apresentado em abril de 1792. Conforme ele, a instrução pública teria a primazia do bem-estar coletivo, com vistas ao esclarecimento de modo que todo cidadão pudesse conhecer e exercer seus direitos, bem como cumprir seus deveres de forma racional, baseado no entendimento da norma e não de forma alienada e mecânica. Significa que a preocupação era desenvolver as capacidades individuais e assim estabelecer uma igualdade de fato. Segundo Boto (2003), a instrução pública descrita no plano do Marquês apontava na direção de uma partilha de conhecimentos, os quais proporcionariam o esclarecimento individual que resultaria em esclarecimento e felicidade coletiva. Condorcet entendia que a prosperidade do sistema republicano estaria nas luzes, sem elas o povo estaria inevitavelmente exposto à ignorância e a todo despotismo possível daqueles que foram privilegiados pela oportunidade de desenvolvimento de suas faculdades intelectuais.

É também no relatório apresentado à Assembleia que aparecem os conceitos mais caros do autor, conceitos que hoje norteiam e ecoam nas instituições de ensino públicas: a igualdade, universalidade, gratuidade, laicidade e independência da instrução. Era dever do Estado garantir a instrução, ele é quem deveria fornecer os subsídios para tal tarefa, que terminaria por garantir uma “igualdade de fato, e tornar real a igualdade política reconhecida pela lei: esse deve ser o primeiro objetivo de uma instrução nacional e, sob esse ponto de vista, ela é, para o poder público, um dever de justiça” (CONDORCET, 2004, p. 2).

O acesso à educação, segundo propunha o relatório de Condorcet, alcançaria a todos, sem exceção, nenhuma pessoa seria impedida de se instruir em função de sua classe social, sexo ou idade: “nosso primeiro cuidado deveria ser o de tornar, de um lado a educação tão igual quanto universal; de outro, tão completa quanto as circunstâncias pudessem permitir” (CONDORCET, 2004, p. 235-236). O sistema de instrução vislumbrado por Condorcet comtemplava a integralidade da população, pois de nada adiantaria somente uma parcela do

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20 povo manter-se esclarecido, isso seria um prejuízo para a pretensa República, visto que causaria a dependência, temida por Condorcet. Àqueles que foram privados da instrução estariam dependentes daqueles que a possuem. Retoma esse assunto no relatório da seguinte maneira:

Assim, a instrução deve ser universal, quer dizer, se estender a todos os cidadãos. Ela deve ser repartida com toda a igualdade que permitam os limites necessários da despesa, a distribuição dos homens sobre o território e o tempo mais ou menos longo que as crianças podem consagrar a ela (CONDORCET, 2004, p. 237).

Não basta que o povo esteja assegurado pela lei se não detém o conhecimento dela, por isso todos devem ser levados a se instruir.

Nós não quisemos que um único homem, no Império, pudesse dizer de agora em diante: a lei me assegurava uma total igualdade de direitos, mas me negava os meios de conhecê-los. Devo depender só da lei, mas minha ignorância me torna dependente de tudo o que me cerca. Ensinaram-me na infância que eu tinha necessidade de saber, mas, obrigado a trabalhar para viver, essas primeiras noções logo se apagaram e delas só me resta a dor de sentir, em minha ignorância, não a vontade da natureza, mas a injustiça da sociedade (CONDORCET, 2004, p. 236).

Para Condorcet a instrução dever ser gratuita em todos os graus, pois caso contrário serão favorecidos aqueles das classes mais abastadas, já que estas estão em condições de proporcionar aos seus filhos, em função da condição financeira, todos os graus de instrução que podem ser oferecidos. Apesar dessa recomendação importante do filósofo, ressalta-se em Fajardo (1990):

Porém essa gratuidade, considerada totalmente utópica, não carregava nem a universalidade nem a obrigatoriedade do ensino. Como dissemos no início, estas questões mostram Condorcet muito realista, qualificando muito os desejos e possibilidades (FAJARDO, 1990, p. 27, tradução nossa)6.

Sobre a laicidade, o Rapport menciona que nas escolas mantidas pelo Estado somente verdades poderiam ser ensinadas. Essas verdades referem-se às ciências, pois em seguida, no documento, Condorcet explica quais seriam as disciplinas e conteúdos ministrados em cada ano, deixando de lado qualquer tipo de religião ou culto à pátria. O que faz com que o ensino esteja livre de qualquer tipo de dogma, bem como independente de intervenções políticas que

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Pero dicha gratuidade, considerada como totalmente utópica, no llevaba aparejada ni la universalidade ni la oligatoriedad de la enseñanza. Como decíamos al principio, em estos temas se muestra Condorcet muy realista, matizando mucho los deseos y las possibilidades (FAJARDO, 1990, p. 27).

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21 ocorram por interesses particulares. Para o autor do informe “nenhum poder público deve ter nem a autoridade nem mesmo o crédito de impedir o desenvolvimento das novas verdades, o ensino das teorias contrárias a sua política particular ou a seus interesses momentâneos” (CONDORCET, 2004, p. 237)

Mesmo posicionando-se contra intervenções externas, demonstrando-se assim a favor da liberdade de cátedra, o texto do relatório não descuida da fiscalização dos estabelecimentos de ensino que deveria acontecer por meio da Assembleia dos representantes do povo. Esse seria o poder menos corruptível e menos suscetível à sedução pelos interesses particulares.

Para o desenvolvimento da moral, da razão e da reflexão, Condorcet entende que a instrução deve lançar mão somente de verdades - afirmação que também dá respaldo à laicidade da escola pública. Essas verdades dizem respeito às ciências que se estruturaram ao longo do tempo, pelos esforços daqueles que se dedicaram a elas. Sendo assim, é justo que todos os cidadãos possam acessá-las e desenvolvê-las se apresentarem talentos para semelhantes atividades.

Condorcet (1990) descreve que no ensino secundário seriam oferecidos inicialmente o mínimo de instrumentos científicos nas instituições, mas acreditava que com o tempo eles aumentariam e despertariam o gosto dos estudantes pelo desenvolvimento das ciências, o que contribuiria também para o progresso próprio.

O relatório, por mais sucinto que fosse, cuidou de contemplar uma quantidade significativa dos aspectos da educação pública nos vários graus em que é estruturado, atendendo de aspectos quantitativos aos pedagógicos, visto que explicita o número de escolas e a escolha dos conteúdos a serem ministrados. No projeto de decreto, Condorcet é minucioso em cada artigo, colocando também questões estruturais, geográficas e pedagógicas.

1.3 Cinco memórias sobre a instrução pública − a matriz filosófica do relatório

O relatório apresentado à Assembleia em 1792 por Condorcet é a síntese das Cinco memórias sobre a instrução pública, inicialmente publicadas em partes num jornal denominado Biblioteca do homem público, no ano de 1791. Foram as Memórias que serviram de pano de fundo para a elaboração do relatório e decreto sobre a instrução pública, com o que elas são a matriz filosófica do relatório. O que se pretende nessa etapa da escrita é destacar as concepções mais marcantes desta obra de Condorcet − valendo-se não só da obra como também das contribuições dos comentadores − que no relatório foram anunciados, mas

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22 que neste escrito o autor explora com mais minúcia, dentre eles os fins da educação republicana, a estrutura deste tipo de educação, as concepções de laicidade, instrução e educação e o espaço do conhecimento nas instituições públicas. Por fim, pretende-se apresentar o que seria para Condorcet uma escola republicana plena e a fundamentação deste modelo de educação ao qual nos referiremos na pesquisa, e que ainda carecemos na contemporaneidade.

As primeiras linhas das Memórias já anunciam a responsabilidade do Estado com a instrução pública. É dever do Estado estabelecer a igualdade de direitos efetiva, e somente por meio da instrução ela seria possível. É irrelevante a existência de um direito ou norma se este for desconhecido por aqueles que dela podem usufruir. Esta era uma das principais preocupações de Condorcet, pois se aqueles que são os alvos da lei não a conhecessem, estariam irremediavelmente subordinados àqueles que, por terem tido oportunidades mais felizes, conhecem e dominam todos seus direitos.

O movimento de esclarecimento, apropriação de conhecimentos elaborados e normas sociais e legais tem por finalidade última evitar o quanto possível qualquer tipo de dependência causada pela diferença entre os espíritos. Não se trata de homogeneizar intelectualmente todos os cidadãos, tarefa que seria impossível dado que as capacidades naturais e as oportunidades dispõem-se de modo particular para cada um. Trata-se sim de que cada pessoa seja suficientemente instruída para pensar e agir por si mesma, à luz de sua própria razão. Desta forma, qualquer tipo de sujeição ou superioridade seria afastada, visto que todos teriam as capacidades mínimas para decidir, sem ter que assim recorrer à tutela de outro.

[...] esse grau de ignorância no qual o homem, tornando-se presa do charlatão que quer seduzi-lo e não podendo defender por si mesmo seus interesses, é obrigado a entregar-se cegamente a guias que não pode julgar nem escolher, e o estado de dependência servil, que é a sua consequência, subsiste ainda e, quase todos os povos em relação à maioria, para a qual, desse modo, a liberdade e a igualdade só podem ser palavras que ouve, e não direitos dos quais se saiba usufruir (CONDORCET, 2008, p. 20).

A subordinação instaurada pela desigualdade de conhecimentos facilmente poderia culminar em formas de dominação, repudiadas pelo filósofo das luzes. Para este último somente a instrução seria capaz de prevenir tais regimes. Tal tarefa, segundo Brutti (2014, p. 77), “implica, entre outras tantas, instruir o cidadão nos elementos das ciências e das artes e quanto aos benefícios do regime republicano, se comparados aos outros já experimentados

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23 pelos diversos povos no percurso da história humana”. Em outras palavras, uma instrução mais efetiva, evitaria o exercício dos governos tiranos.

Condorcet associa a instrução com a formação moral, pois ela deveria também desenvolver as “faculdades” morais dos cidadãos. Esse desenvolvimento resultaria em indivíduos mais sensíveis, benevolentes, racionais e certamente mais preocupados com o bem comum. Conforme assinala Silva (2004, p. 3) “ela tornaria a pessoa capaz de se preocupar não apenas consigo mesmo, com o interesse de sua família e de sua nação, mas também com o destino de toda a humanidade”. É importante reiterar que os ensinamentos morais não deveriam estar vinculados a qualquer tipo de religião ou qualquer dogmatismo. Tal ideário remonta aos princípios republicanos, conforme os quais o governo deve guiar-se em direção ao bem-estar comum.

Sendo assim, a instrução diminui a desigualdade que nasce da diferença dos

sentimentos morais7, pois segundo Condorcet (2008, p. 20) “quando a lei torna os homens

iguais, a única distinção que os divide em várias classes é a que vem de sua educação”. Essa distinção não seria intelectual, mas aquela que nasce dos costumes, dos sentimentos, do convívio com diversos mundos, aos quais teria acesso somente uma camada da sociedade. É o que Bourdieu (1982) denomina de capital cultural8, isto é, elementos sociossimbólicos, como certos gostos por músicas, filmes ou a vivência de certas experiências que determinam ou constroem a identidade coletiva de determinada classe.

A redução das desigualdades, sejam elas morais, intelectuais ou culturais, pode se efetivar na instrução pública porque esta aproxima as diferentes classes, é o lugar e o momento em que todos os indivíduos estão em nível de igualdade, dado que na escola pública republicana não deverá haver qualquer tipo de diferenciação, hierarquia ou privilégios. É importante ressalvar que isso não significa o apagamento das diferenças construídas em outros espaços, o que a Escola Republicana faz é “simular” uma situação de igualdade no que tange as possibilidades de conhecimento. Sobre isso Condorcet (2008, p. 20) assevera: “O

7 Subtítulo da obra Cinco memórias sobre a instrução pública (2008).

8 A teoria de Pierre Bourdieu − usando como referência o livro A reprodução (1982) escrito em parceria com Jean Claude Passeron − crítica à estrutura escolar francesa como sendo um sistema de reprodução da ideologia dominante, que quando efetivado em sala de aula recebe o nome de violência simbólica. No tocante ao capital cultural o autor afirma que o legado econômico da família é transformado em capital cultural pela escola. As crianças passam a ser julgadas e avaliadas pelo que já trazem de casa, significa que aquele que teve menor acesso a alguns conhecimentos e certas habilidades estará em desvantagem em relação àquele que os possui. Tese que recusamos em parte, visto que defendemos a escola como uma das únicas formas de aproximar as diferentes classes, bem como colocá-las em nível de igualdade, ao menos neste espaço.

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24 filho do rico não será da mesma classe que o filho do pobre, se nenhuma instituição pública aproximá-los pela instrução”.

Partindo do pressuposto que o ser-humano é naturalmente sensível, ainda que tal capacidade emocional não seja definida por qualquer base ou conteúdo, mas sim pela construção da mesma a partir da inserção na cultura, o desenvolvimento da moral consiste em possibilidade de desenvolver de modo artificial tal sensibilidade. Silva (2004) assente que as experiências morais se desenvolveriam na escola de forma induzida: “trata-se de dar a definição somente depois de ser criar uma circunstância pedagógica favorável” (2004, p. 103). Trata-se de conduzir a sensibilidade predisposta no aluno, uma espécie de laboratório moral.

Condorcet sustenta o imperativo, conforme já mencionamos, de que o ensino da moral na escola não deve estar associado ao ensino da religião, o que nos leva diretamente ao conceito de laicidade e a diferenciação essencial entre instrução e educação na obra do autor. A primeira diz respeito a não intervenção religiosa ou política no âmbito educacional e as duas últimas, por sua vez, referem-se aos limites e a diferenciação do público e do privado, respectivamente, no ensino oferecido pela República.

Maamari (2014) elucida a origem etimológica do termo laicidade. Segundo ela, o termo provém da palavra grega laos que significa povo, explicando que este sentido seria mais abrangente dado que então a laicidade seria o regime em que não haveria nenhum tipo de discriminação em função das orientações de qualquer cidadão. Concebe-se assim, que o Estado laico ofereceria a proteção à liberdade de consciência a todos, e não somente à parcela da população considerada hegemônica. O conceito de laicidade, apesar de não ter sido usado por Condorcet, é pressuposto a partir da divisão proposta entre educação e instrução a ser elucidada na sequência da escrita.

Remontando a antiguidade, Condorcet (2008) rememora que neste tempo a educação era comum a todos os cidadãos da República, ela encarregava-se de todo o horizonte educacional, afastando a possibilidade do indivíduo ser educado pela família ou por si mesmo. Isso porque se entendia que somente dessa forma seriam conservadas as virtudes republicanas que frequentemente desapareciam de algumas sociedades.

A impossibilidade de uma educação nestes moldes está na diferença entre os trabalhos. Alguns ofícios, os mais pesados, são exercidos pela maioria do povo, iniciando em inúmeros casos antes que possa se firmar qualquer tipo de educação. O restante da população, a quem os recursos permitem, dedicam-se aos estudos e a profissões mais felizes, rentáveis e

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25 prazerosas. Nesse cenário, assente Condorcet (2008, p. 43): “É, pois, impossível submeter a uma educação rigorosamente igual a homens cuja destinação é tão diferente”.

Uma educação igualitária seria prejudicial para os dois grupos mencionados anteriormente, conforme explica o filósofo:

Se ela for estabelecida para aqueles que têm menos tempo para consagrar à instrução, a sociedade será forçada a sacrificar todas as vantagens que pode esperar do progresso das luzes. Se, ao contrário, se quiser fazê-la para aqueles que podem sacrificar sua juventude inteira para instruir-se, encontraríamos obstáculos insuperáveis, ou então seria preciso renunciar aos benefícios de uma instituição que abarcasse a generalidade dos cidadãos (CONDORCET, 2008, p. 43).

Diante dessa situação – entre firmar ou não uma educação que abarcasse um horizonte bastante amplo – é que o Marquês sugere é a diferenciação9 entre educação e instrução. A distinção feita pelo Marquês ocupa-se em estabelecer alguns limites entre as duas. O que se quer dizer que a educação até então abrangia um universo muito expressivo, não se limitando unicamente ao ensino das verdades positivas, compreendendo também opiniões políticas, morais e religiosas. Extensões que Condorcet entendia que deveriam manter-se afastadas do ensino público.

Trata-se de excluir a educação do domínio público, legar às famílias a tarefa de educar, materializando uma liberdade real de opinião, crença ou política. As famílias poderiam transmitir, como um legado, suas visões e compreensões de mundo. Caso o ensino público se ocupasse com toda a extensão da educação, a autonomia de opiniões seria ilusória, uma vez que a razão do povo estaria submetida a de outro, neste caso a de seus mestres. O poder público não tem autorização para uniformizar as concepções do povo. Semelhante atitude seria eficaz na formação de um exército ou de tiranos, mas não de uma nação que se concebe como uma fraternidade, defende Condorcet (2008).

A preocupação que pode se manifestar é a de que se a família for encarregada da educação os recém-chegados não estariam, inevitavelmente, expostos a preconceitos e inverdades? Sobre isso, Condorcet demonstra certa tranquilidade e confiança sobre a educação restringir-se a família, ao privado:

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Brutti (2014) comenta que Condorcet chegou a tratar educação e instrução como sinônimos, sempre na concepção da última, isto é, educação como ensino de teses verificáveis.

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26 Dir-se-á talvez que ele também não será livre se receber essas opiniões de sua família, contudo, nesse caso, essas opiniões não serão as mesmas para todos os cidadãos; cada um perceberá logo que sua crença não é universal; será levado a desconfiar dela; essa crença não terá mais, a seus olhos, o caráter de uma verdade de consenso, e seu erro, se persistir, será somente um erro voluntário (CONDORCET, p. 45, 2008)

Para além do benefício da percepção de que suas crenças e opiniões não são universais ao se deparar com outras no ensino escolar, o jovem educando, caso receba uma educação doméstica pautada em preconceitos, rapidamente estará livre destes por meio de uma sábia instrução, pautada pelas luzes, bem como pelo convívio com diversos pontos de vista. Diferente seria se tais preconceitos fossem disseminados pelo poder público, isso sim para Condorcet seria uma verdadeira tirania.

A instrução, por seu turno, tratará de se ocupar com a transmissão e aperfeiçoamento das verdades positivas, esta não difundiria doutrinas absolutas nem teses inverificáveis. Pelo contrário, tudo na instrução deve ser passível de comprovação, do livre exame da geração atual e das que ainda virão. Segundo Silva (2004, p. 44) a instrução deve deter-se ao “conhecimento positivo e certo, a verdade de fato e de cálculo”. Preceitos que garantiriam a autonomia e o desenvolvimento das faculdades intelectuais de modo a promover a independência do cidadão. A educação racional (instrução) abre caminho para a dúvida, indagação, para a necessidade de comprovação do que se ensina.

Com essa explicação introdutória sobre as principais diferenças entre instruir e educar, pode-se falar em defesa da laicidade no ensino público. Caso o poder público resolvesse se envolver também com a educação, além de estar intervindo nos direitos dos pais, ele acabaria por promover uma ou algumas poucas religiões que se mostrassem mais notórias, ou ainda, a escola seria apenas uma continuidade do lar, sendo nocivo à maioria dos estudantes que não recebessem tal tipo de educação, bem como prejudicaria a progressão nos estudos, pois tal postura manteria os alunos sempre no ponto de partida. Para corrigir tal erro e promover uma educação igualitária Condorcet (2008) diz que o governo seria obrigado a oferecer tantas educações quantas fossem as diferentes religiões ou pior do que isso, obrigaria o cidadão a escolher uma entre as diversas crenças oferecidas na educação.

A laicidade, deste modo, é a garantia para a liberdade de crença, ela assegura que as diversas religiões possam existir, isto é, promover um ensino laico é salvaguardar a pluralidade de crenças, pois, caso a educação adote uma doutrina em detrimento de outra, a que ficou à margem correrá o risco de desaparecer ou de ser considerada inferior àquela

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27 escolhida pela república. Segundo Maamari (2009) é por não poder julgar a verdade de uma religião que o Estado não pode institucionalizá-la, seria algo totalmente arbitrário.

Coutel (2004) argumenta ainda que não há cidadania sem o princípio do laicismo, porque é este último que propicia a difusão da razão:

Sem o princípio da laicidade, não existe uma instituição cívica de cidadania, porque sem ela o espaço público poderia ser acumulado por grupos de pressão ou por comunidades particulares. O princípio laico guia constantemente a racionalidade política em direção à universalidade (COUTEL, 2004, p. 36, tradução nossa)10.

Tendo a laicidade como um dos princípios da escola republicana é equivocado associar nestes estabelecimentos o ensino da moral à religião. Ensinamentos morais, para Condorcet, podem ser abrangidos pela instrução, desde que livre de opiniões, isto é, independente de religiões, partidos políticos ou outros interesses. A moral a ser desenvolvida pela instrução é uma moral racional que resulte de fato na autonomia do indivíduo, o ensino da moral visa uma consciência independente, isto é, fazer uso do seu entendimento sem a tutoria de outrem.

A moral a ser desenvolvida na instrução seria a moral racional. O indivíduo é capaz de fazer juízos e agir moralmente com base na razão, e não influenciado por emoções − que pudessem perturbar em definitivo qualquer julgamento − e pela imaginação, dentre outras influências que possam de alguma forma deturpar a reflexão moral. Para que o ensino da moral esteja livre de tais influências ele deve estar associado ao desenvolvimento intelectual, este último proporcionaria a autonomia moral, tornando a pessoa independente. Silva (2004, p. 23) conceitua sobre o que seria uma moral autônoma: “independência diante das tendências internas, das paixões e do autoengano, mas também diante dos demais indivíduos, no que se refere ao engano mútuo, à dependência intelectual, e à incapacidade de defender os próprios interesses e direitos”.

A formação moral pode desenvolver-se em diversos lugares, a igreja talvez seja o lugar hegemônico para tal, no entanto, “é na escola que ela passa pelo crivo da instrução” (SILVA, 2004, p. 38). Significa dizer que a instrução oferece instrumentos e alarga a capacidade de análise dos sentimentos morais, das opiniões que neles se fundam e nos princípios de justiça baseados nestes sentimentos, já que “ser justo e virtuoso consiste em

10 Sin este principio de laicismo, no hay una institución cívica de la ciudadanía, pues sin él el espacio público podría ser acaparado por grupos de presión o por comunidades particulares. El principio de laicismo orienta sin cesar la racionalidad política hacia la universalidad (COUTEL, 2004, p. 36).

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28 seguir o melhor raciocínio possível e acessível ao nosso entendimento, no momento da decisão” (SILVA, 2004, p. 18).

Não se quer dizer que a escola ensinará virtudes ou se encarregará de lições morais, mas sim trata-se de uma possibilidade de desenvolvimento moral por meio do conhecimento. O exercício da razão, a compreensão das leis, o desenvolvimento de capacidades cognitivas por meio de verdades verificáveis proporcionará a formação integral do indivíduo, sendo ele não só espectador do mundo, mas sim um cidadão efetivo com capacidades como a de reformar as leis – conhecer sua constituição, de reagir diante das injustiças e pronunciar-se no tocante tanto às demandas que lhe afetam diretamente como naquelas que atingem outros membros da República, indiferentemente se estes sejam maioria ou minoria.

Uma Constituição expressamente adotada pelos cidadãos, e contendo meios regulares de ser corrigida, alterada, é o único meio de submeter a uma ordem regular e durável uma sociedade cujos membros, esclarecidos sobre seus direitos e ciosos por conservá-los, vêm recuperá-los e temem perdê-los novamente (CONDORCET, 2013, p. 121).

É perceptível nestas palavras de Condorcet que as leis, em específico as contidas na constituição, não são vistas como algo estanque, mas sim como passíveis de mudança na busca de uma perfectibilidade11 possível. Não é necessário que todos se tornem legisladores de profissão, mas que possam entender as leis como um caminho que indique a direção e o objetivo em que devem reunir seus esforços, buscando um objetivo comum.

A continuidade da instrução, mesmo depois de terminá-la formalmente, é uma das preocupações de Condorcet, visto que ele entende que de nada adiantaria uma instrução bem cuidada nos primeiros anos de vida se esta não for conservada e aperfeiçoada – pode-se pensar aqui no conhecimento constante e atualizado das leis, visto que em Condorcet elas devem ser reformáveis. Sabe-se que o distanciamento dos conhecimentos, o não exercício constante da reflexão em função de trabalhos mecânicos, o afastamento de instituições que oferecem possibilidades de progresso intelectual, inevitavelmente, são fatores cruciais para o desaparecimento do constructo intelectual e moral proporcionado pela instrução na época escolar. Nas Cinco Memórias, Condorcet expressa a questão da seguinte forma: “Não basta,

11 Segundo Brutti (2007, p. 16) a perfectibilidade seria a “possibilidade de alterar caminhos, de não se sujeitar aos ensinamentos que outros propagam sem justificar, de decidir por si mesmo suas trajetórias”. Significa dizer que o homem pode sempre se aperfeiçoar. Conceito elaborado pelo presente autor a partir dos escritos de Jean-Jacques Rousseau.

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29 pois, que a instrução forme homens, é preciso que ela conserve e aperfeiçoe aqueles que formou, que os esclareça, preserve-os do erro, impeça-os de recair na ignorância” (2004, p. 33).

A necessidade de trabalhar e, consequentemente, o afastamento dos estudos em função disso fariam que as primeiras noções adquiridas na instrução mais elementar desaparecessem. A continuidade da instrução garantiria a manutenção destes saberes, a preservação da recordação, motivando inclusive, segundo Condorcet (1990) no relatório, a arte de instruir-se por si próprio, habituando-se a essa autonomia. Para o seguimento da instrução, o filósofo sugere conferências semanais, com alguns conhecimentos novos e outros que deveriam ser repetidos a cada ano dada a sua relevância. Com essa ação o que for mais importante da instrução será retido, bem como aquilo que sofrer mudanças com o tempo − as leis, por exemplo − será incorporado.

Condorcet define pelo menos cinco graus de instrução pública nas Memórias. Todos deveriam ser oferecidos gratuitamente pelo Estado, mas, prevendo tanto a impossibilidade do governo instituir e contemplar a população com tal estrutura, quanto os obstáculos que a camada mais pobre teria para alcançar todos os níveis em função da dedicação precoce ao trabalho, o filósofo dedica-se a contemplar na primeira memória − “Da instrução comum para as crianças” − os aspectos e noções mais elementares que possibilitassem aos habitantes conhecerem seus direitos e deveres, exercer funções públicas e agirem de modo a evitar recorrerem à razão alheia.

Nesse primeiro grau de instrução a duração do tempo de estudos seria de quatro anos, iniciando por volta dos nove anos e tendo seu término aos treze. É sistemática a organização que Condorcet imagina para esses primeiros anos, preocupando-se essencialmente em abarcar nesses períodos o ensino da moral e das ciências, de um modo progressivo, pois para cada ano se estabelece um plano de estudos coincidente com a idade do aluno e com sua capacidade de compreensão, possibilitando o avanço progressivo de cada indivíduo de acordo com sua aptidão intelectual.

Pode-se exemplificar essa gradação formulada pelo filósofo usando sua proposta para o ensino da moral12, que não deveria ser imposta como verdade absoluta e sim desenvolvida pelo próprio aluno conforme fosse adquirindo autonomia. Na denominada primeira série, a moral se apresentaria por meio de histórias que despertassem os primeiros sentimentos, sem

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30 impor nenhum tipo de comportamento, soaria mais como uma reflexão que prepararia para as posteriores concepções morais. Na segunda série o cuidado será o de analisar primeiro os conceitos para depois nomeá-los em palavras, o que permitiria partilhar um sentido comum das ideias. Na terceira série

[...] as crianças já têm ideias morais que de algum modo elas mesmas formaram. As histórias que lhes serão então destinadas, e nas quais podemos fazer entrar palavras que a análise já associou a ideias justas, devem ter como finalidade dar maior extensão e precisão a essas ideias e aumentar o seu número. Elas devem, enfim, conduzir os alunos a compreender os preceitos da moral, ou antes, a inventá-los por si mesmos (CONDORCET, 2008, p. 90).

Somente na quarta série os princípios morais serão apresentados de modo direto, em forma de um código moral que deverá ser suficiente para conduzir toda a vida. É assim, gradativamente, que Condorcet conduz e constrói a estrutura de ensino tanto da moral como das demais ciências, como as aritméticas e as naturais. Cada ano o passo dado nas áreas do conhecimento é maior, de modo a compreender aquilo que cada saber tem de mais elementar.

O conceito e atribuição do saber elementar percorre a obra Cinco Memórias. Esse conhecimento mais basilar logo nos primeiros anos de instrução é o que garantiria satisfazer as necessidades mínimas humanas em sociedade. Esse tipo de conhecimento também é responsável pelo desenvolvimento da autonomia em todas suas perspectivas: moral, política e intelectual. Em Silva (2004) encontramos que o conceito de saber elementar está conectado diretamente com as verdades que constituem o início de cada etapa do saber sistemático. Conforme o mesmo autor, essa é a noção de “elementos da filosofia” proposta por D’Alembert. A mesma perspectiva de saber elementar é encontrada em Condorcet, no entanto, o filósofo envolve, além da dimensão epistemológica, dimensões técnicas, morais e políticas.

Definir o que seriam os conteúdos compreendidos por esse saber parece um pouco complexo, dada a provável impossibilidade de se estabelecer um limite entre o que é necessário ao indivíduo para que fique longe da ignorância e a extensão significativa de conhecimentos acumulados pelos progressos humanos. O que se quer dizer é que a instrução dos primeiros quatro anos busca formar cidadãos e não necessariamente sábios − o que não exclui a possiblidade do último para os que se destacarem −, um povo com capacidade de raciocínio e reflexão estaria preparado para aprender por si mesmo e alcançar a autonomia de fato.

Referências

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