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A natureza do conhecimento a ser veiculado na escola

2. PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEAS PARA PENSAR O CONHECIMENTO E

2.1 A natureza do conhecimento a ser veiculado na escola

O objetivo que traçamos aqui é o de descrever, ressalvar e distinguir o tipo de conhecimento que deve ser veiculado nas Escolas Republicanas, bem como o modo pelo qual estes saberes adquiriram status para compor a gama de “conteúdos” circulantes nos espaços educacionais formais e que, por consequência, devem compor seus currículos.

Como afirmamos no capítulo anterior, fundamentado pela teoria condorcetiana, a Escola Republicana ocupar-se-á prioritariamente com o ensino de verdades. E no caso do ensino da moral, será uma moral pautada na razão. Deste modo, há que se pensar o que compreendemos por verdade, como ela se construiu e adquiriu legitimidade.

Entendemos a verdade como um processo consensual, concepção ligada à teoria habermasiana. Sendo assim, essa pretensão de verdade é construída dentro de contextos específicos e está sujeita a críticas e a novas explicações. Isto faz com que seja relevante saber de que forma este compêndio de saberes se consolidou, de modo a povoar nossos currículos republicanos.

34 Boufleuer (1997) percorre um caminho muito interessante em sua tese nos ajudando a conceber, à luz de Jürgen Habermas, de que forma os conhecimentos foram sistematizados e aceitos amplamente pelas diversas comunidades de saber, garantindo processualmente o espaço na educação escolar. Para Boufleuer (1997) o tema do conhecimento pode ser concebido à luz da teoria da ação comunicativa habermasiana.

A relação sujeito-objeto é superada quando passamos a pensar o conhecimento sob o paradigma da linguagem. A explicação está na mudança de objetivo destes dois momentos paradigmáticos que a teoria do conhecimento percorreu. Se no primeiro paradigma – da filosofia da consciência – buscava-se saber como o homem conhecia e dominava objetos, neste outro momento/paradigma — da filosofia da linguagem — o interesse está em saber como este mesmo homem pode estabelecer acordos com outros sobre coisas do e no mundo.

Neste novo modo de pensar, o conhecimento não é revelação nem um agir sobre alguma realidade. Seu estabelecimento ocorre por relações intersubjetivas que acontecem em diferentes grupos e que resultam em acordos sobre determinado objeto. Esses acordos têm como forma de sustentação a força dos argumentos produzidos intersubjetivamente. Dito de outro modo, é pela linguagem que chegamos ao entendimento coletivo de algo. É ela que proporciona argumentar acerca da validade de algo no mundo, seja no nível objetivo, subjetivo ou social.

Segundo Marques (1993, p. 88), o momento constitutivo do conhecimento é a “intersubjetividade autorreflexiva de uma comunidade de pesquisadores como sujeitos da reflexão e da argumentação discursiva”. Significa que o foco não é somente a metodologia, pois esta tomada exclusivamente ocultaria as formas como o sujeito toma parte nos processos de entendimento. Assim, caracteriza-se o conhecimento como sendo “um processo intersubjetivo em que os participantes da interação coordenam suas ações à base de atos de fala que levantam pretensões de validade fundamentadas na argumentação” (p. 86).

O estabelecimento de consensos e entendimentos sobre o mundo pede também que se compreenda de qual mundo estamos falando. Primeiro, se tratamos de mundo inevitavelmente estamos nos remetendo ao humano, ao mundo humano, visto que somente nós somos capazes de ter e fazer mundo. Interessa-nos saber, então, de quais processos esse espaço comum é resultado.

O homem não surge feito ou pré-programado de vez. Ele se constrói em meio a várias possibilidades em aberto, postula Marques (1995). Ancorado nessa perspectiva, Boufleuer (2018) afirma que nós humanos não somos pré-determinados, isto é, há um horizonte de

35 possibilidades que não nos está inscrito ou definido previamente. Diferente dos animais, o humano pode escolher sem estar atrelado a algo, haja vista sua condição de abertura, de superação instintiva.

O mundo humano resulta, portanto, dessa capacidade de transcender a determinação instintiva, de produzir modos de ser e de interagir “por sobre e em tensão” às inclinações biológicas. Um mundo que se constituiu exatamente porque essa relação com os outros e com as coisas deixou de ser meramente reflexa, de simples reação instintiva aos seus estímulos, tornando-se, por isso, intencional e deliberativa (BOUFLEUER, 2018, p. 5).

Transcender os instintos primitivos ou o comportamento reflexo só foi possível pela linguagem, entendida como elemento fundante das relações entre o homem e a realidade. É por estar inserido neste mundo de representações que o homem pode sair da previsibilidade criando outras formas de ser e agir, dando origem, finalmente, ao mundo humano.

Deste modo, afinados com o paradigma da linguagem, trataremos o conhecimento sob esse prisma, isto é, a concepção de que a emergência do humano ocorre simultaneamente ao desenvolvimento da capacidade comunicativa. É pela linguagem que o homem significa, delibera, cria e estabelece acordos. É esse aparato simbólico (linguagem) que torna o sujeito uma espécie cultural e social capaz de mundo.

Reiteramos, agora de modo mais consistente, a afirmação de que o conhecimento é resultado de processos de entendimento e passível de ser submetido a processos argumentativos. Se assim o compreendemos é possível começarmos a tratar da natureza dos saberes a serem ensinados na escola, pois é nela que o sujeito vai reconstruir e apropriar-se dos “conhecimentos socialmente compartilhados para recriá-los em novas aprendizagens” (MARQUES, 1995, p. 38).

Se nos remetermos ao principal objetivo e sentido da Escola Republicana — a transmissão de conhecimento — e, a partir disso, o despertar de um sentimento de pertencimento a esse mundo que nos é comum, podemos, fincados neste propósito, afirmar que não será pela fé, crença ou classe social que alcançaremos esse intento. A via mais razoável para isso é a tentativa de uma “convicção subjetiva” (BOUFLEUER, 2018, p. 10) possível através do compartilhamento e assentimento de crenças14 e do exercício da compreensão.

14

O sentido do termo crenças aqui não é metafísico. Refere-se à possibilidade de fazermos “apostas compartilhadas”.

36 Quando falamos em compartilhamento é necessário que se compreenda que essas partilhas ocorrem de modo responsável, ou seja, são elencados saberes que foram produzidos e validados em espaços argumentativos tidos como comunidades de saber. Uma ilustração mental possível é a centralização do objeto e ao seu redor a comunidade de especialistas que elabora razões, verdades pretensamente válidas para o mesmo.

Uma questão importante se coloca ao imaginarmos o estabelecimento de entendimentos a respeito de um objeto, a saber, como se chega a certificações e acordos quando o objeto que temos – ou a ausência dele – foge aos padrões da ciência “tradicional” com características empíricas, sujeita a intervenções e a controle. A resposta à questão está no fato de que o campo do conhecimento tem seu reconhecimento a partir do entendimento compartilhado, e, deste modo, há uma abertura para discussões e entendimentos em que o objeto não está claramente determinado, bem como o controle sobre ele.

Esta abertura permite que se abram discussões sobre:

[...] temas de conhecimento que mesmo não podendo serem tratados ao modo de saberes verificáveis, nos moldes da ciência positiva, se transformam em conhecimento escolar pertinente à medida que são objeto de um conhecimento de possível entendimento, construído com base em bons argumentos, o que inclui, por exemplo, as questões de gênero, da vida política e da distribuição dos bens culturais, da moralidade dos costumes, etc. (BOUFLEUER, 2018, p. 12).

A alegação de Boufleuer não denota insuficiência da perspectiva condorcetiana, uma vez que a mesma alude a aspectos morais e de convívio social. Cabe destacar que Condorcet se pauta pelo que podemos denominar “paradigma moderno”, centrado na relação sujeito- objeto, do qual derivam, pelo exacerbamento objetivista, a postura positivista. No entanto, compreendendo o conhecimento a partir das intersubjetividades podemos redimensionar o que o Marquês propunha. Continua cabendo à Escola Republicana o ensino somente de verdades. Mas o que muda é a compreensão da ideia de verdade, sua forma de legitimação, pois nos encontramos filiados ao paradigma da linguagem, abandonando a ideia de uma relação sujeito-objeto para o conhecimento.

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