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PROSA. Editora Literária Prosa, N.º 9. César e a Vestal. Capítulo XX (64-63 a.c.) Maria Galito

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PROSA

Editora Literária

Prosa, N.º 9

César e a Vestal

Capítulo XX

(64-63 a.C.)

Maria Galito

2017

(2)

César e a Vestal 448 Maria Galito

Capítulo XX

690-691 AUC

Sol Indiges.

Nas calendas do décimo mês1, Aurélia celebrou a Pietas sem prestamistas à sua porta. Embora César continuasse a dever a mesma soma de 1300 talentos, negociara com Crasso um acordo, que estava a ser ultimado em parceria com Pompeu (através de mensagens a galope e de embaixadores, o que exigia muita paciência!). Permitia-lhe ganhar tempo e dar alento à mãe. Era uma vitória apenas temporária. Mas importante. César não conseguia apaziguar Cícero e Catilina. O facto de Fábia, a nova vestal máxima de Roma, não ter temperamento pacifista (como o meu!), dificultava o processo. Ela exigia vingança, nem que fosse verbal, pelo que lhe acontecera na guerra civil e, mais tarde, no quaestio. Alimentava conspirações, que ela tecia nos bastidores, com a irmã e que rebentaram (pelo que Fidélis me contou!) na noite de Bona Dea2.

O encontro das matronas foi organizado pela mulher de Luciano, o ainda cônsul sénior, filho de Lúcio, sobrinho de Vopisco, primo de César e cunhado de um ex-cônsul muito insultado por Cícero durante a campanha eleitoral. Portanto, não era o contexto ideal para Terência e Fábia se armarem aos cágados!

Mas a mulher e a cunhada de Cícero, já sabendo que o orador assumiria o poder máximo em Roma, daí a menos do que um mês, resolveram afirmar os seus direitos. Sacaram dos seus triunfos, para conseguirem alcançar os seus propósitos e foi uma guerra campal! Voaram joias e estolas. Atiraram-se pratos, copos e travessas de prata às paredes. Muitas mulheres saíram de lá feridas!

Ainda assim, Licínia aguentou o fogo, que não se apagou. A mulher e a amante de Catilina, por ironia do destino, uniram-se contra Terência e Fábia, o que dividiu irremediavelmente as hostes.

 Que posição tomou Aurélia nesta matéria? – Perguntei a Fidélis, que se entretinha a comer as broas que Ilírica lhe servia, que tanto podiam ser de amêndoa, de mel ou de castanhas. Ela parecia gostava de todas, pois andava sempre cheia de fome desde que engravidara!

 Ela não compareceu. Disse que estava doente. A mãe de César era uma mulher esperta.  E tu, de que lado ficaste?

 Eu já estava junto ao altar doméstico, a conversar com as vestais Licinia e Arruntia, antes do ritual de Bona Dea, quando a briga começou. Era tal a

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balbúrdia, que deixei-me estar sossegada, onde estava. – Admitiu, com algum desprendimento. – Eu estou grávida, devo precaver-me. – Acrescentou, agarrando-se ao ventre.

Fidélis não era muito inteligente, mas era prudente e safava-se!  Ah sim? O que te disseram elas?

 Duas das vestais pediram exoneração dos seus cargos. Popília e Perpena vão sair do templo, no início do próximo ano e o pontífice máximo anda a selecionar novas sacerdotisas, para as substituir. – Explicou Fidélis de boca cheia.

A novidade era relevante.

 Sendo assim, a ceia de Bona Dea foi altamente competitiva por causa de Fábia, Semprónia e a mulher de Catilina, que sentem ciúmes umas das outras. Mas também porque algumas matronas querem que as filhas sejam escolhidas para o templo de Vesta (por razões políticas) ou não querem (por razões afetivas) mas sentem-se pressionadas a fazê-lo. – Conclui pensativamente. – Portanto, há aqui várias dinâmicas em jogo.

Fidélis encolheu os ombros:

 O meu marido diz para não me meter em confusões.  É um bom conselho. – Sorri. – E tu, como estás?

 Enjoada. – Confessou e levou a mão à garganta. – Penso até que estou enfartada. – Queixou-se.

Eu tive de reagir rapidamente. Peguei numa vasilha cheia de nozes, esvaziei-a e estendia-a à convidestendia-adestendia-a que, estendia-assim, pôde vomitestendia-ar pestendia-arestendia-a dentro do recipiente de bestendia-arro, sem me sujestendia-ar os mosaicos do chão.

Fui buscar um abanico, para refrescar Fidélis, que precisava descansar, pois estava muito pálida. Ela não podia regressar ao Palatino, naquele estado. Ofereci-lhe um dos cubículos para estender as pernas ou dormir e enviei mensagem ao marido, a explicar a situação. Só depois fui para o jardim, tratar dos canteiros. Eu gostava de fazer jardinagem e ainda tinha umas duas horas de sol, de acordo com o relógio de pedra que tinha mandado construir em pedra, com um pino em ferro e um mostrador com números romanos. A casa sofrera uma grande transformação desde que César deixara de a frequentar. Eu mandara substituir parte do telhado e recompor os mosaicos mais antigos. Investira nas cozinhas, tanto ao nível dos utensílios, como da estrutura, das arrecadações e do fogo de lenha. O exterior do edifício fora integralmente repintado. O portão da entrada também fora substituído, por um mais bonito.

Ilírica, a meu pedido ou na minha companhia, fazia distribuição de comida, na zona, pois havia focos de miséria que podiam ser colmatados com um pouco de generosidade e disponibilidade para ajudar. Era também uma forma de eu ocupar o tempo, de me sentir útil e de dar valência à muita experiência que eu adquirira enquanto vestal e dinamizadora de missões solidárias pela cidade.

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César e a Vestal 450 Maria Galito

O lar que eu construíra era meu. Ajustava-se à minha personalidade! Também era regularmente visitado pelos meus sobrinhos. Aliás, Paulo galopou em minha direção, como um raio, assim que recebeu a missiva sobre o estado de saúde da mulher:

 Fidélis perdeu o bebé? – Perguntou do portão.

Paulo ainda tinha, na mão, o papiro que eu lhe enviara e ele não lera convenientemente, pois tenho a certeza que lhe escrevi: Não te preocupes, Paulo, a tua mulher está apenas

indisposta, mas não deve meter-se à estrada, antes de descansar.

 Que bom ver-te, sobrinho lindo! – Saudei, abrindo-lhe os braços. – A tua esposa só comeu broas a mais. O bebé está ótimo. Podes ir vê-la. Ela está a dormir no cubículo com o mosaico das flores.

Paulo suspirou de alívio. Ele só ficava calmo na minha presença.  Ainda bem. Fiquei aflito.

Sorri-lhe. Ele beijou-me o rosto.  Estás inquieto com mais alguma coisa?

 Não. Mas vim de um encontro com amigos, onde falámos de política e, enfim, daqui a menos de um mês ingresso no senado e tenho de entrar em grande! Arqueei a sobrancelha:

 Discretamente talvez seja melhor.

Conselho que lhe atravessou a cabeça de orelha a orelha.

 Eu tenho de dar glória aos Emílios e devo contribuir para que o ramo Paulo volte a ser consular, tia!

Fui compreensiva com ele.

 Está bem. Vem comigo. Vamos conversar. Eu já terminei a minha jardinagem por hoje. Faço questão de devotar-te toda a minha atenção.

A minha ideia era entrar em casa, levá-lo até Fidélis e sentá-lo, oferecer-lhe um caldo quente e encetar o diálogo quando ele estivesse mais confortável. Mas Paulo nem me deixou dar dois passos antes de começar a desabafar:

 Estou tão contente que a tia Emília se tenha livrado de César.

Baixei os olhos. Eu morria de saudades dele. A separação custava-me horrores!  O que interessa é que vais iniciar a carreira política e, se os deuses quiserem,

entrarás no senado com o pé direito. – E passei as mãos pelos seus cabelos. Paulo já era adulto mas, para mim, era como um filho e, para sempre, um lobito. Lépido apareceu mais tarde, com o cabelo alvoraçado, pois o irmão dera-lhe a entender que havia problemas com Fidélis. Tive de sossegá-lo, enquanto Paulo fazia companhia à mulher, no cubículo em que ela repousava.

 Vocês os dois têm de ter mais calma, se não andam num rodopio desnecessário. – Aconselhei maternalmente.

Lépido parecia ventilar:

 A culpa é de Paulo, que é trapalhão de tão perfecionista que almeja ser! Sorri-lhe com ternura:

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César e a Vestal 451 Maria Galito

 Qual é a tua desculpa, para estares nesse estado?

 Soube hoje que Luciano, quando terminar o mandato de cônsul sénior, vai aliar-se a César.

 Eles já são primos. – Constatei, como se tal oficialização fosse desnecessária.  Sim, mas os dois vão formar um duúnviro, com o objetivo de acusar Rabírio de

perduellio.

 Alta traição? – Espantei-me.

César andava a meter-se outra vez em sarilhos?

 Eu sei que Rabírio é um dos senadores mais velhos da Cúria Hostília e que, muita gente quer poupá-lo à humilhação de ser levado a tribunal em idade provecta, mas ele merece ser levado a julgamento. Foi ele quem subiu ao telhado do senado para atirar pedras ao meu avô materno!

Fiquei em estado de choque.  O teu irmão já sabe disto?  Não, vou contar-lhe agora.

Paulo foi convocado à nossa presença. Enquanto ele não vinha, puxei pela cabeça. Qual era a estratégia de César? A falecida Metela sempre culpara Mário pela morte de Saturnino, por o ter deixado indefeso dentro da Cúria Hostília. Dalmático e Numídico tinham sido, em tempos, acusados de dar ordem de abate ao pai de Apuleia, para o calar. Mas Mário, Numídico e Dalmático, no máximo, teriam sido autores morais do crime. O autor material, pelos vistos, fora Rabírio, a quem César queria levar a julgamento. Porquê agora? Saturnino fora assassinado por alturas da Saturnália. Talvez por isso, o acordo estabelecera-se a poucos dias das festas de Saturno, embora só começasse a fazer efeito no consulado de Cícero e de Híbrida. De qualquer forma, o ataque reportava ao ano de nascimento de César (e meu!), ou seja, há quase quatro décadas!

 O que quer César com isto? – Estranhou Paulo, ao ser colocado ao corrente da situação. Estava visivelmente atrapalhado, pois não sabia o que pensar do assunto.  Ele disponibilizou-se a levar o assassino do nosso avô a tribunal? Não estás

contente, Paulo? – Perguntou-lhe o irmão.

Na minha cabeça fez-se luz! Aquela história toda era para agradar a Lépido e a Paulo. César tinha o duplo objetivo de recompensar a lealdade do mais novo e de apelar ao apoio político do mais velho, até então aliado de Cícero. Um terceiro propósito podia estar em marcha e que talvez tivesse a ver connosco, se a ideia fosse convencer Paulo a não conspirar contra ele e a aprovar-nos enquanto casal. Seria isso? Ou estaria enganada?

 A morte do nosso avô nunca foi vingada. – Reconheceu Paulo.

 Agora poderá vir a ser, graças a César. A ideia foi dele! Quem mais pensaria em tal coisa, passados tantos anos? – Argumentou Lépido.

Paulo começava a vacilar e a ceder à lógica do irmão:  Pois, realmente…

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 César precisa da nossa ajuda, para reunir factos, evidências e documentos. – Alertou Lépido.

Paulo ainda hesitou:

 Não sei se Cícero vai gostar que eu me alie, assim, a César… Lépido atirou-se ao ar:

 Cícero vai assumir o poder de cônsul sénior daqui a menos de um mês. Está no seu pãozinho pingado! Duvido que ele queira saber do que tu fazes ou deixas de fazer.

Curiosamente, o argumento pegou. Paulo sentia-se desamparado:  Ele hoje não me ligou nada, na nossa reunião de amigos…

Lépido acusou o advogado de oportunismo:

 Grande novidade! Cícero só recorre a ti quando e enquanto lhe dá jeito, e tu és paspalhão para lhe dar crédito. Já César, não tem razões para te ajudar, mas fá-lo, apesar de tu estares sempre aos encontrões a ele.

Paulo baixou os olhos. Começava a sentir-se culpado. Mas ainda ripostou:  César faz isso por ti, não é por mim.

 Mas tu é que vais entrar para o senado daqui a uns dias, não sou eu. Paulo endireitou-se na cátedra, subitamente mais animado:

 Tens a certeza que César quer levar a julgamento o assassino do nosso avô?  Tenho, Paulo. Está tudo combinado.

Paulo ergueu-se nas pernas, para gesticular com o braço direito enquanto falava:  Bom, sendo assim, podem contar comigo! – Exclamou, arrebatado. – A honra da

nossa família está em primeiro lugar e eu, que em breve serei senador, terei todo o gosto em fazer desta causa o tema do meu primeiro discurso na Cúria Hostília! Lépido também se levantou e abraçou-se ao irmão:

 Paulo, sempre soube que eras um valente! – Clamou e assim os irmãos ficaram amigos outra vez.

Na tarde seguinte, Delos galopava pela minha propriedade a dentro, para anunciar a chegada de César, que tinha toda a intenção de me fazer uma visita. Eu ainda hesitei em recebê-lo, mas não muito!

César veio ter comigo ao jardim a passo largo. Recebi-o tal como estava (que remédio!). Sem a devida antecedência para vestir roupa bonita ou elaborar o penteado, o máximo que consegui fazer foi assoprar um cabelo da testa, que teimava em tapar-me a vista, pois ele logo apareceu, com aquela energia fulgurante que lhe era característica!

 César, eu não sabia que vinhas. – Foi a saudação que lhe fiz, pois estava encabulada, naqueles preparos!

Eu balbuciava, porque ele estava lindo e eu não aguentava tanta fartura!  Aposto que estavas cheia de saudades minhas! – Exclamou ele, cheio de vigor.  Eu? Sim, mas tínhamos combinado…

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César e a Vestal 453 Maria Galito

 Os teus sobrinhos oficialmente adoram-me, agora que eu decidi levar o assassino do avô deles a tribunal.

 Lépido sim. Paulo mais ou menos. Mas ficaram sensibilizados com a tua atitude. É um tema delicado e importante para os meus sobrinhos, portanto, é simpático da tua parte ajudá-los, sobretudo agora que Paulo vai entrar para o senado. Mordi o lábio. Ele estava tão próximo, que era intimidante. Que homem atraente!  Pediste-me para organizar a vida e para vir ter contigo logo depois. Aqui estou.

Não cedi imediatamente. Rebolei o corpo, primeiro.

 Parabéns pelo acordo financeiro com Crasso. A tua mãe deve estar contente.  Sim, está. Obrigado, Emília.

 Mas ainda falta Pompeia. Ele coçou a cabeça.

 Eu sei. Estou a pensar numa forma de resolver o assunto. – Admitiu, respirando enquanto refletia. – Não consigo fazer tudo ao mesmo tempo e tu foste a primeira a aconselhar-me a ir por partes.

 Sim, eu sei. – Reconheci, com um suspiro.

 A ideia é superar etapas e eu vim à procura da minha recompensa por ter ultrapassado as primeiras.

Que desplante! Rebolei os olhos.

 Ah sim? E estavas a pensar no quê exatamente? – Perguntei-lhe, ocupando-me do cabelo. – Tenho nozes, castanhas, broas de mel…

Ele era um homem, não era um miúdo. Olhou-me com intensidade e disse:  Eu sei que ainda não estão reunidas as condições para eu voltar a morar contigo,

mas tenho saudades tuas e estou farto de fingir que não penso em ti todas as noites. – Desabafou, com gravidade na voz.

Arrepiei-me, da cabeça aos pés, com a voz, o sibilado e o toque das suas mãos.  Eu gostei da visita.

Ele envolveu-me pela cintura e colocou-me a questão ao ouvido:  Queres que fique contigo hoje, Emília?

O coração batia-me como um tambor.

 Bom, são horas de servir a ceia e podes fazer-me companhia, se quiseres. César penetrou-me com o olhar e sorriu-me.

 Diz que me adoras, Emília. – E rodopiou-me no ar, deixando-me rir.

A vida corria-lhe bem. Como ele estava cheio de fome, não comemos nada nessa tarde e nem sei se dormimos alguma coisa! César, quando estava com a energia toda, era insaciável!

Ele dormiu em minha casa nos dias subsequentes. Mantinha-se vigilante e espreitava a propriedade, para garantir a minha segurança. Trazia-me presentes, portanto, as roupas e a maquilhagem, que eu lhe devolvera, regressaram à base. Eu aplicava os perfumes e os cremes que ele me oferecia e lhe despertavam os sentidos. Ele também fazia questão de mandar-me encher a despensa, sempre que faltava alguma coisa. César era um providenciador!

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No dia em que se celebrava o Sol Indiges3 decidi visitar a cidade. O céu estava azul e o clima ameno, ou até agradável. Eu tinha sangue quente e estava bem-disposta. Por isso, decidi enfrentar a calçada aos tombos e atravessei a ponte sobre o rio, com regozijo. Testemunhei o frenesim das pessoas, dei conta das novas decorações e entrei nas muralhas sérvias a tomar atenção a tudo o que se passava em volta. O que eu gostava de Roma!

A minha ideia era subir ao Palatino para visitar a grávida Fidélis. Mas, por acaso do destino, encontrei-a a caminho de uma vigília sagrada. Identifiquei-a na multidão porque não havia assim tantas liteiras a circular na cidade, muito menos com cortinas bordadas a ouro com a figura da Basílica Emília e a cabeça de Fidélis espetada, a espreitar umas febras grelhadas, que tinham um cheiro delicioso e ela não resistia à comida!

 Tia Emília! – Acenou-me freneticamente, como se ela não se visse à distância.  O que estás a qui a fazer, Fidélis? – Perguntei-lhe.

 Vou a caminho do templo de Apolo Medicus. Quer vir comigo?

Apolo Medicus era um deus com dons curativos e o seu templo era o único santuário do deus sol em Roma. Fora restaurado pelo meu bisavô e era local de passagem para os Emílios Lépidos, pois era uma referência familiar.

Aproximámo-nos do templo, por uma rua estreita e apinhada de gente! Havia centenas de pessoas a empurrarem-se, onde circulavam andores e se agitavam fitas, ao som de belos cânticos! Eu não tinha vontade de ver Catão. Mas o sacerdote de Apolo estava tão concentrado nos rituais, que eu não o vi. Nem sei se ele compareceu à cerimónia! Fidélis aproximou-se do incenso, mostrou a barriga à estátua do deus sol e orou a Apolo para que lhe desse muita saúde. Enquanto isso, deixei-me ficar dentro da liteira, de cortina aberta, a assistir ao culto com olhos de curiosidade.

A multidão era um cobertor de lã e até parecia estar calor. Eu sentia-me confortável e, como Fidélis se demorava nos cânticos e nas mezinhas, deitei-me na liteira. Embalada pela liturgia, acabei por adormecer.

Para meu espanto, acordei com os gritos de um homem que cuspia a garganta pela boca, de tão alarmado! Levantei-me sarapantada e dei de caras com uma barba negra, aos caracóis.

 Não se assuste. A víbora já se foi embora. – Assegurou-me ele, com bons modos.  Uma cobra? Onde? – Perguntei, sobressaltada.

Procurei pelo bicho rastejante nas pedras da calçada.

 Passou-lhe por cima, deslizou pelo seu ventre e foi-se embora. – Notificou. Ele era baixo e magro, e aspergiu-me com uma mistela líquida de cheiro esquisito.  A cobra mordeu-me? Não sinto nada. – E confirmei-o, apalpando-me.

 Se lhe tivesse mordido, a senhora já tinha morrido. Sabe o que isso significa?  Sim! A cobra saracoteou-se pela minha barriga, por me pensar parte da calçada.

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 A cobra é um símbolo de Apolo e, se a senhora ainda está viva, são bons auspícios.  Na verdade, são excelentes.

 Digo isto porque sou sacerdote e sei do que falo! – Exclamou ele, convictamente.  Conheço todos os sacerdotes romanos e eu nunca o vi. – Contrariei.

Ele seria um impostor?

 Eu sou de Antioquia. Estou de passagem. Também sou médico. Como se sente? Fixei-me nos seus olhos de mel e expliquei-lhe o óbvio:

 Eu estava a dormir, até vocês aparecer. Agora estou assustada com a cobra. Foi então que Fidélis interrompeu o nosso diálogo, ao aproximar-se de nós:  O que se passa, tia Emília? – Perguntou, olhando com suspeita para o sacerdote.  Está tudo bem, Fidélis. Apresento-te o sacerdote de Apolo de Antioquia.

 Uma cobra deixou rasto de Apolo no ventre da sua tia, o que significa que a ela vai dar à luz um grande homem. – Foi o veredito.

Fidélis olhou para mim com espanto.  Está grávida, tia Emília?

 Que eu saiba não! A única prenhe aqui és tu, Fidélis. – Fis questão de frisar.  A sua tia Emília foi abençoada e o futuro o dirá! – Insistiu o sacerdote. – Desejos

de boa nova! Adeus e felicidades.

As despedidas foram rápidas, pois o sacerdote regressou ao templo, Fidélis entrou na liteira em direção ao Palatino e eu fui à minha vida! Segui pela calçada com as mãos no baixo-ventre, a remexer nas rugas da túnica como se, de repente, a minha barriga fosse a parte mais importante do meu corpo. Comecei a cantar baixinho. Abri os braços ao frio que fazia, pois a temperatura tinha subitamente baixado e, com a cabeça regada de sonhos, atravessei a ponte sobre o Tibre e regressei a casa.

Quando cheguei à propriedade, as luzes estavam todas acesas! Os guarda-costas avisaram-me que César me aguardava há bastante tempo. Apeei-me com agilidade. Depois de um momento de silêncio, ele disparou porta fora a cavalgar nas pernas. Ele estava furioso e encheu-me de perguntas, a caminho da liteira:

 Sabes o quão preocupado eu estava contigo? Onde é que tu foste, Emília?

César mais teria perguntado, se eu não me tivesse colocado em pontinhas dos pés, para me lançar ao seu pescoço, qual tivesse vinte anos, o meu corpo fosse jovem e ele o meu marido. Envolvi-o com um sorriso imenso de alegria estampada no rosto. A lua brilhava no céu estrelado. Estava frio? Não o sentia!

 Fui às celebrações do sol Indiges e aconteceu uma coisa extraordinária! Uma cobra passeou pelo meu ventre e não me mordeu.

César era pontífice e sempre tivera familiares no colégio dos áugures.  Pelo ventre? Foste fecundada pelo deus Apolo?

 Só se foi por ti, querido. – Frisei. – Há dias que não fazemos outra coisa!  Eu nasci durante os ludi apollinares. – Foi a sua associação de ideias.  E és louro como o sol. – Sorri-lhe e ele baixou os olhos.

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 Enfim, era. Estou a ficar sem cabelo. – E penteou umas madeixas para a testa, com os dedos. – Os Júlios Césares eram os cabeludos da nossa Gens e eu estou a ficar careca! É uma ironia do destino. – Queixou-se.

 Concentra-te, querido. Hoje estamos a falar de mim.

Entrámos em casa. Eu estava bem-disposta. César parecia lívido. Sentou-se no cubículo, pensativamente, devotado ao silêncio. Parecia surpreso e aflito.

 Tu estás grávida, Emília? – Perguntou-me. A sua expressão era séria e pesada.

 Não sei, César. Por enquanto não tenho sintoma nenhum.

 Seja como for, algum dia pode acontecer. Se não for agora, poderá ser no futuro e eu devo alertar-te para uma verdade que ainda não partilhei contigo.

O meu coração ficou apertado.  O que se passa, César?

 Eu tenho um grave problema de saúde e temo que um filho nosso o herde. Não fui completamente apanhada de surpresa. Mas a revelação chocou-me!  Que doença tens?

 Foi-me diagnosticado mal comicial.  O que é isso?

 Sou epilético!

César fez um historial dos seus surtos. Na terra dos sabinos, a fugir das proscrições de Sila, ele não tivera malária. Quando foi capturado na Cilícia, durante quarenta dias, na companhia do seu médico e de dois escravos graves, os piratas não o alimentaram convenientemente e julgaram-no demente, ao assistirem às suas convulsões ou incapaz de constituir uma ameaça, troçaram de César e arrependeram-se por isso!

César perdera a consciência em público, na Hispânia Ulterior, aquando questor, quando visitara o templo de Hércules, um herói igualmente epilético e regressara a Roma, mais cedo, por razões de saúde. Portanto, os seus altos e baixos emocionais advinham de um descontrolo físico. Era importante saber isso!

 Quando eras criança, lembro-me que ausentavas o olhar, por momentos. Perante Sila, na Domus Publica, nem conseguias falar. Em Circeo caíste ao chão. Mas pareces ter aprendido a conviver com a doença. Fazes uma vida normal. Portanto, tudo bem. – Recordei calmamente, sem o julgar por isso.

 A doença é debilitante. Os Júlios não costumam chegar a velhos. O meu avô morreu de repente e o meu pai, depois de acordar, ao calçar-se. Pode acontecer-me o acontecer-mesmo, a qualquer moacontecer-mento.

 É por isso que não temes a morte e ousas até ao limite?

 Sim! Eu não sei se estou vivo amanhã, portanto, não tenho nada a perder em fazer o que quero e não temo a nada, nem a ninguém! – Confessou, de peito aberto. Respirei fundo e abri o baú das memórias:

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 Desconfiava. Ele não queria que casássemos para não ter netos com a doença dos

Júlios. – Teorizou. A verdade subia à superfície após trinta anos!

 Todos sabiam que tu eras epilético, menos eu? Não é justo! – Revoltei-me.  Pelo contrário, Emília. Contam-se pelos dedos os que conhecem a verdade. É

suposto ser segredo.

 Eu não conto a ninguém, prometo.  Não era suposto sequer saberes!  Porquê? – Surpreendi-me!

 Não queria que me rejeitasses, ou tivesses pena de mim.

 Eu adoro-te, César! Devias confiar mais em mim. Para além do que é admirável o muito que consegues fazer, apesar das limitações. Há mérito nisso!

 Obrigado, Emília.

 Aliás, como aguentas uma batalha?

 Com autodisciplina. – Exclamou, de queixo erguido.  Incrível!

 Atenção, a doença é incurável! Um filho nosso poderá não ser tão forte quanto eu.  Pois, já percebi. – E engoli em seco. – A tua filha é epilética?

 Sim, Cesariana herdou a doença. Ela é linda mas delicada, não sei se aguenta ter filhos. – Confessou uma realidade que o magoava e deu outros exemplos. – O meu avô paterno nunca foi guerreiro. O meu pai contrariou os médicos, ao seguir a carreira militar, mas morreu cedo, com morte súbita. O tio Sexto morreu na guerra contra os italianos. O médico desaconselhou-me a via das armas e, por isso, é que eu insistia tanto em ser flâmine de Júpiter.

As suas atitudes, finalmente, faziam sentido!

 Eu corro riscos de ficar doente como tu? – Perguntei-lhe.  As mulheres dos Júlios nunca tiveram surtos.

Encolhi os ombros.

 Bom, o destino aos deuses pertence.

 De hoje em diante, estamos sob a luz do sol. – Rematou, abraçando-me.

Seis dias depois, as famílias romanas começaram a celebrar a Saturnália. As festas estendiam-se durante sete dias, até à Larentalia, mas logo no primeiro dia de Saturno, pedi a César que enviasse os meus cumprimentos a Aurélia e à filha dele (que não me visitavam por respeito a Pompeia e a Cornélia!), com dois lenços bordados por mim e flores de inverno do meu jardim. Aurélia correspondeu à gentileza:

Minha querida Emília. Envio-te saudações cá de casa, em agradecimento pelos presentes que tão gentilmente nos enviaste e sobretudo pela forma carinhosa e compreensiva como estás a tratar o meu filho. Aurélia.

Parecia uma mensagem simples, mas a mãe de César era uma mulher pragmática que pensava todas as palavras que escrevia. Digamos que, a partir desse dia, passei a considerar-me parte da família!

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Foi durante a Saturnália que César deu mais um passo em minha direção, ao convidar a filha a visitar-me. Presumi que Cesariana me fosse hostil. Não me enganei a esse respeito! Ela queria muito agradar ao pai, mas estava de pé atrás comigo. Percebendo perfeitamente o que ela sentia no seu coraçãozinho de menina, não a forcei a aceitar-me e dei-lhe todo o tempo para se habituar a mim. Eu não era mimada como Pompeia, sabia o que fazia. No dia em que trouxe a filha, César estava ansioso. Quando entrámos no triclínio, para tomarmos uma refeição, reclinámo-nos para comer. Cesariana não queria colaborar na conversa e eu, ao fim de algum tempo, deixei de insistir com ela.

César parecia incomodado com a frieza da filha, mas não a repreendia. Percebi, portanto, que eu tinha de vencer a batalha sem a sua ajuda. Foi então que lhe pedi que me acudisse a uma situação pontual, cuja resolução não era prioritária, mas que, naquele dia, eu imaginei que tivesse, para ficar sozinha com a rapariga. Ele levantou-se, saiu do triclínio e foi ter com a equipa que velava pela segurança da casa.

Aproveitei para estabelecer uma ponte com Cesariana. Pedi-lhe que falasse da mãe. Ela desconfiou do pedido. Primeiro hesitou. Depois abusou da retórica, para tecer rasgados elogios à falecida. Aquele repto foi uma provação para mim. Fui confrontada com verdades que teria preferido ignorar. Sei que fui testada pela jovem. Mas tive a perceção intuitiva de aquela ser a única forma de chegar ao seu coração. Aguentei estoicamente o ataque com elegância patrícia.

 Cinila gostava muito do teu pai e tu guardas bonitas memórias da tua mãe. És uma boa filha, Cesariana. – Disse-lhe, convictamente, pois era verdade.

A rapariga começou a sentir-se culpada e calou-se. Deixou de tentar magoar-me. Quando o pai chegou, a rapariga tinha olhar de carneiro mal morto. Ele olhou para mim e eu sorri-lhe com ternura. Depois, coloquei a boneca que Cesariana fizera e César me oferecera, uns anos antes, sobre o colo. Eu já agradecera o presente à miúda. Mas, desta vez, Cesariana, ao ver o brinquedo, desatou a chorar. O pai ficou confuso.

 Estás bem, filha? O que foi que aconteceu aqui? – Perguntou César. Eu nada respondi. Abri os braços a Cesariana e ela agarrou-se a mim.

 Não te preocupes, querido. Cesariana está com saudades da mãe. Ela só quer colinho…

A jovem podia não ter regressado. O progenitor certamente não teria insistido com ela! Mas depois de uma conversa a três, entre Aurélia, filho e neta, Cesariana fez questão de, por sua iniciativa, atravessar segunda vez a ponte sobre Tibre para visitar-me.

Lembro-me de a ver chegar à propriedade. Recebia-a como Júlia costumava receber-nos, a mim e a César, com torradas barradas com manteiga das Gálias. Depois levei-a a passear pelo jardim. Sentei-a comigo, a ler os rolos de papiro de César. Como ela venerava o pai, mostrou-se sensibilizada com a atenção que eu lhe devotava. Deu-se conta que eu não era uma megera que tentava roubar-lhe o progenitor, mas alguém em quem ela podia confiar.

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César e a Vestal 459 Maria Galito

Eu cuidava da rapariga e tentava ser compreensiva, pois Cesariana era frágil de corpo e às vezes perdia o vigor. Eu dava-lhe mel e ovos cozidos, e ela voltava a ter força nas pernas! De resto, ela era alta, esguia e loura de pele alvoreada.

Cesariana era encantadora. Também era mimada. Mas comigo não tinha rédea solta! O respeito era bonito e ela, no meu território, não contrariava tudo por orgulho e teimosia. Portanto, competia-me limar-lhe as arestas, sem cair no erro de deixá-la fazer e dizer tudo quanto queria!

Aproveitei a informação, que ela própria facultava, para melhor comunicar com ela. Cesariana foi relaxando na minha presença e passou a associar sensações de bem-estar aos nossos encontros vespertinos, em que ela podia declamar poesia e escrever discursos, falar das suas amigas, aprender novos pontos de costura e dar as suas gargalhadas! A jovem era alegre e, aos poucos, deixou de me considerar uma estranha. De adversária passei a amiga. Em breve, eu era sua confidente.

 Gostas da minha filha, Emília? – Perguntou César, num dia ao serão.  A tua filha é absolutamente maravilhosa. – Disse-lhe eu.

Ele ficou contente com a resposta e puxou-me para si:  Tu promoves a concórdia entre as pessoas, é impressionante!

Voltando um pouco atrás, lembro-me da noite de Larentalia, que tinha epicentro na gruta de Acca Larentia, no monte Palatino, pois Rómulo construíra Roma a partir da Cúria Aculeia. Os romanos faziam procissões de velas até ao sepulcro da loba, que amamentara os gémeos fundadores, mas também ao templo de Magna Mater, um culto supostamente mais recente, com cerca de duzentos anos, mas embebido no mesmo culto ancestral. No sopé do monte Palatino ofereciam-se sacrifícios a Angerona no altar de Volúsia. Esta deusa era conhecida pelo nome de Libertina, muitas vezes associada a Vénus e ao culto dos Lares.

Libertina era, ao mesmo tempo, a deusa da paixão e da morte. Angerona era a deusa do silêncio que guardava a sete chaves o nome secreto de Roma, que não podia ser desvendado aos inimigos, nem proferido em voz alta, por quem não fosse sacerdote, sob pena de morte!

 Tenho uma coisa para contar-te. – Avisou César, misteriosamente. – Encontrei uns papiros antigos no templo de Júpiter.

 O que descobriste? – Perguntei, curiosa.

Ele respirou fundo, antes de revelar o mote da nossa conversa:

 Que a luta de poderes entre Rómulo e Remo não foi mera briga entre irmãos.  Ah não?

 Foi disputa entre dois modus vivendi e formas de prestar culto aos deuses.  Peço-te que me expliques um pouco melhor o teu ponto de vista.

 Conta a lenda que Eneias aportou em terras do Lácio. Primeiro, foi encarado como um invasor. Com o objetivo de se instalar na região, solicitou apoio ao rei Evandro, um aliado de Príamo que governava sobre a cidade de Palanteu. Depois

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César e a Vestal 460 Maria Galito

de vencer batalhas e demonstrar a sua coragem, casou com a filha do rei Latino e, desta união nasceu uma menina de nome Aemilia. Eneias já tinha um filho de Creúsa, de nome Ascânio, conhecido no Lácio por Iulo.

 Portanto, Eneias teve dois filhos, Iulo e Aemilia.

 As linhagens dos Júlios e dos Emílios são as duas Gens mais poderosas de Roma, por serem as únicas que descendem diretamente do herói da guerra de Troia. – Concluiu César.

 Essa doutrina não terá grandes adeptos em Roma, meu bem. – Alertei. Ele pouco se importava com isso! Prosseguiu com a história:

 Há quem diga que o fundador de Alba Longa foi Eneias. Mas ele morreu em batalha antes de a cidade ser construída. Pelo que terá sido Iulo.

 Defendes que a tua Gens é a mais poderosa de todas?

 Com certeza! – Exclamou César. – Mas ouve. Aqui está o segredo! Era costume o rei entregar uma das filhas ao seu templo e, assim, Aemilia tornou-se sacerdotisa da deusa-mãe, a principal divindade dos latinos. Mas, quando ela cresceu e se fez bonita, foi cobiçada por Iulo que, dela, teve três filhos: Júlio*, Emílio* e Roma*. Reorganizei as ideias:

 Iulo e Aemilia eram meios-irmãos e tiveram três filhos? A lenda fala de incesto!  O casal entregou a filha ao culto da deusa-mãe. Como Roma* era filha de incesto,

caiu sobre ela a superstição de não poder ter filhos. Foi então que o culto à deusa-mãe foi dividido em dois: Bona Dea (fértil) e Vesta (virgem).

Ponderei sobre o assunto:

 O que eu aprendi, enquanto vestal, é que os cultos eram concorrentes.

 Mas ouve! As vestais participam, simultaneamente, nos rituais de Vesta e de Bona

Dea, que são, no meu entender, cara e coroa da mesma moeda. Representam duas

formas diferentes de prestar culto a uma deidade que, na sua génese, era uma deusa-mãe, uma divindade da terra e da fertilidade.

 Pode ser. – Admiti.

 O templo de Bona Dea foi edificado no Aventino. Onde também se presta culto a Ceres, durante os rituais secretos de Ambarvália. Ceres, a deusa da agricultura, é irmã e amante de Júpiter, pelo que a sua história é semelhante à de Iulo e de

Aemilia. – Foi a teoria que ele desenvolveu.

 Queres estabelecer uma associação entre Vesta, Bona Dea e Ceres? Não sei. As lendas podem repetir-se, mas as deusas não são necessariamente as mesmas. O panteão romano tem doze deuses, que são Júpiter, Juno, Vénus, Marte, Neptuno, Minerva, Febo, Diana, Vulcano, Mercúrio e Dionísio; e depois Ceres ou Vesta. Mas nós importámos divindades dos vários cantos do mundo! Dos troianos, dos gregos, dos sabinos, dos etruscos e de outras províncias conquistadas.

 O ponto não é esse! – Alertou César. – Remo tentou edificar Roma no Aventino, onde havia altar de Bona Dea. Rómulo, ao matar o irmão, favoreceu os cultos patrícios (troianos) em detrimento dos plebeus (latinos). Portanto, foi uma luta de poder entre duas fações diferentes.

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César e a Vestal 461 Maria Galito

 Repara! Há uma tríade nos três montes principais. No Capitólio temos Júpiter, Marte e Quirino (pai, filho e espírito guerreiro dos romanos). No Palatino temos o Lupercal, que honra a loba e os gémeos Rómulo e Remo (mãe e dois filhos rapazes). No Aventino temos Ceres, Liber e Libera (mãe, filho e filha). São sempre três. Quando Rómulo se tornou rei, deu poder à tríade do Palatino. Cruzei os braços.

 Dá que pensar! Roma herdou tradições com centenas de anos, que nós perpetuamos, sem muitas vezes compreender o seu significado. Eu podia ter sido enterrada viva e tu podias ter sido flagelado em público… porque há mil anos a primeira vestal era filha de meios-irmãos.

 É uma interpretação. – Advertiu César. – A punição das vestais também pode ser ritual mais recente, que nos remete para a lenda de Rómulo e Remo, e ao facto de eles serem filhos de Amúlio e de Reia Sílvia, ou seja, de um tio e de uma sobrinha. O que à luz da nossa cultura, também é incesto.

 Portanto, a fundação de Roma é incestuosa, fratricida e parricida.  Não foi um bom começo, de facto.

 Rómulo também raptou as sabinas. Episódio que reporta a mais violência!  Repara! Somos filhos de Saturno. A nossa principal festa de família é a Saturnália,

quando vivemos num mundo ao contrário e temos a perceção do ridículo; em que nos rimos de nós próprios, qual catarse antes do novo ano civil (diferente do ano religioso que começa com Marte).

 As crianças adoram, porque há troca de presentes e fazemos votos de paz. Mas, na génese, era um ritual de purificação.

 Por ironia, as famílias ainda brigam bastante neste dia.

 Querido! Este ano, as nossas famílias promoveram a paz pela Saturnália.

 É verdade! É tão raro, entre os Júlios, que nem dá para acreditar. – Reconheceu.  E aquela praga antiga, sobre os Júlios e os Emílios? – Recordei.

 Connosco não tem qualquer hipótese! – Concluiu e beijou-me.

O ano do consulado de Cícero e de Híbrida abriu um precedente na história de Roma. Mas no mês de Jano, ainda se desconhecia o tamanho da onda, embora se soubesse que já estava a crescer! Como diria César, todos os maus precedentes começam com

medidas justificadas; mas quando a cidade é governada pelos pérfidos ou incompetentes, o novo precedente é transferido dos culpados, que merecem a punição, para os insontes e inocentes4. Num futuro incerto, ninguém é tão valente que não fique perturbado por algo inesperado5.

A primeira sessão de senado (segundo me contou César) foi tão gelada quanto o manto que cobria o Tibre! O fervor continuava conspurcado pelo orgulho. Catilina era uma carta solta! A sua campanha política dividia eleitores, pois nem todos o consideravam uma ameaça grave à República, mas muitos recordavam o seu passado e, portanto, temiam as suas constantes ameaças, em especial o novo cônsul sénior!

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César e a Vestal 462 Maria Galito

No ano em que César era candidato a pretor e Catilina a cônsul, Pompeu era uma sombra que pairava sobre as eleições, pois andava longe, a invadir a Judeia com os seus exércitos, mas obteve uma grande vitória, ao ser bem-sucedido no cerco a Jerusalém.

 Roma passou a ter mais uma província, a da Palestina.  Isso quer dizer que o regresso de Pompeu está para breve?  Provavelmente.

 E Crasso?

 Ele ainda é censor e quer mandar fazer um recenseamento. É costume! – Avisou. Com aquele frio? Quem é que se atrevia a sair de casa? A meu pedido, as lareiras mantinham-se acesas, mais tempo do que o normal, para aquecer a casa. Mas aquela não era a novidade do dia.

 Metelo Pio faleceu.

 Coitado! Foi morte natural? – Indaguei, pois em Roma, nunca fiando!  Que eu saiba, sim.

 Pode ter-se engripado. Ele estava a ficar velhote e está um frio de rachar!

 Os rituais religiosos não serão mais gagos! Glória aos deuses. – Agradeceu César, antes de acrescentar. – Eu sou membro do colégio de pontífices, posso candidatar-me ao lugar de líder.

Ele já tentava tirar vantagem da situação, com frieza e pragmatismo!  Calma, ainda é cedo para pensares nisso. – Pedi-lhe, com pudor.

Ele não acudiu ao meu conselho.

 Na tua opinião de ex-vestal, eu poderei ser escolhido líder da religião romana? Hesitei em responder e mordi o lábio.

 Pelos teus pares? Dificilmente.  Porquê?

 Tens currículo de edil e és um popular num colégio cheio de optimates.

Ele não parecia preocupar-se muito com isso, talvez por ser genro de Mamerco:  Com base na tua experiência, quem dirias que é o candidato mais forte?

Refleti antes de responder.

 Na linha de Metelo Pio, a hipótese mais óbvia é Isáurico.  Sim, mas Isáurico é letárgico e não viverá muitos anos.

 Um homem mais jovem seria Catulo, que recebeu o cognome de Capitolino, por ter supervisionado a reconstrução do templo de Jove e é um nome forte para o lugar de pontífice máximo.

César ergueu-se do leito e começou a andar, de um lado para o outro como um leão. Eu até fiquei tonta de o ver naquele estado. Depois, travou os pés de repente e fixou os seus olhos nos meus.

 Pensa comigo. Isáurico e Catulo são ambos optimates. Os conservadores vão dividir-se nos apoios a um e a outro. Pode ganhar um terceiro candidato!

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César e a Vestal 463 Maria Galito

 Teoricamente, sim. Na prática, tens poucas hipóteses. A não ser que faças algo de extraordinário que revire a mesa a teu favor.

 O que poderia eu fazer para convencer os outros pontífices a escolher-me? Pensei antes de falar! O meu cérebro galopava depressa como o cavalo de César.  Não sei. Mas salvavas Roma se resolvesses o problema do calendário. –

Lembrei-me, embora soubesse que tal objetivo fosse de difícil concretização.  É isso! Eu posso prometer resolver o calendário! Que bela ideia.

 Mas, querido, toda a gente quer resolver o problema e ninguém consegue.

De facto, se havia imbróglio que nenhum pontífice máximo conseguia resolver, era o do calendário! O anuário tinha 355 dias oficiais (ao contrário dos 304 dias regulamentados no Calendário de Rómulo!). No fim do mês de Fébruo celebrava-se a Terminalia, um festival em honra de Términus (o deus romano protetor das fronteiras da cidade e do seu espaço sagrado!) que devia ser absolutamente respeitado por todos os senadores a quem era atribuída a liderança dos exércitos de Roma, os quais não podiam invadir com armas a cidade (embora, pelos vistos, o fizessem!).

O pontífice máximo, em certas circunstâncias, acrescentava um mês intercalar, após a

Terminalia, para ajustar o sistema. Mas nem sempre resolvia a questão e as estações

pareciam andar às avessas com o calendário oficial!

 Eu vou propor essa ideia. Mas não em sistema fechado.  Como assim?

 Tens razão! Eu dificilmente serei nomeado pelos meus pares. Terei mais hipóteses se o pontífice máximo for eleito.

 Sendo assim, a lei terá de mudar. – Alertei. – Tu consegues fazer isso? Ele não tinha falta de autoestima.

 Pois, claro! Eu sou César e não há nada que eu não consiga fazer!

Ele pulou jovialmente para o leito e enrolou-se a mim. Os seus olhos faiscavam de tão brilhantes e o seu sorriso encheu o meu coração de alegria. Deixei-me rir, enquanto ele me fazia cócegas, a borboletar nos meus seios.

 Eu gostava que fosses bem-sucedido na vida pública, sabes que sim. Mas tu já és candidato a pretor! Como vais conseguir conciliar essa eleição, com uma corrida a pontífice máximo?

Ele tentou reconfortar-me:

 Emília, os deuses estão connosco. Vai correr tudo bem!

César despediu-se de mim, na manhã seguinte, alertando-me para a possibilidade de se apartar por alguns dias. A sua ausência, porém, foi mais longa do que o previsto e prolongava-se no tempo!

Até que finalmente me fartei de esperar, por ele ou pelos meus sobrinhos! Não aguentando mais estar sozinha, resolvi deslocar-me à Basílica Emília, para tratar de negócios com o Joaquim.

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César e a Vestal 464 Maria Galito

Faltavam poucos dias para o meu aniversário. Nessa manhã, vesti roupas especialmente quentes, pois andava arrefecida, arrepiada e meio zonza. Vomitei antes de sair e cheguei a pensar em adiar a viagem. Mas já tinha decidido sair, por isso, bebi um cocho de água e encaminhei-me para a rua.

Atravessei a ponte sobre o rio Tibre que, nessa manhã, era um fio gelado de prata. Enjoada, não sabia o que tinha. Há dias que a minha barriga andava às voltas. Padecia de dores de cabeça fortes e até os seios pareciam pesados. Sentia-me angustiada e algo desesperada. Foi por isso que procurei companhia e a Ana era alguém com quem eu podia conversar.

Ao chegar à Basílica Emília, apeei-me e entrei na loja do Joaquim. Ele saudou-me e avisou a mulher que eu tinha chegado. Ela cumprimentou-me e logo tratou de me oferecer um agasalho, enquanto eu sentia as entranhas a revolverem-se.

 Comeu alguma coisa que lhe fez mal? – Perguntou a Ana.  Tem tido muitos enjoos ultimamente. – Confessei.

 Pode estar grávida.

 No final do ano passado, no templo de Apolo, fui avisada que viria a ser mãe. Parece que o vaticínio se concretizou.

 César vai assumir a criança?  Claro que sim, Ana.

 Pois eu não sei! Tentei justificar-me:

 Ele prometeu-me oficializar a nossa relação após vencer as eleições para pretor. A Ana abanou a cabeça e não foi meiga com a verdade:

 A Emília acreditou num homem habituado a mentir para obter o que quer? Enrubesci.

 Tudo vai correr bem. Vai ver, Ana! – Rematei, mas sem grande convicção. Pouco depois, reuni-me com o meu financeiro, ali mesmo na loja, pois eu não conseguia subir as escadas até ao tablino. Ele sentou-se à minha frente, com rolos de papiro debaixo do braços e material para escrever.

 Quanto ouro posso levantar hoje, Joaquim?

O usurário não se riu. Encolheu os ombros e avisou:

 Aconselho-a a ter calma. O tempo das vacas gordas já passou. – Foi o seu alerta. – Ultimamente, a senhora tem feito muitas despesas com a casa e os seus sobrinhos e eu estou a ter alguma dificuldade em repor os investimentos.

Eu podia ter levado a mal o reparo. Mas dei valor à sua advertência.

 Preciso ser mais prudente como o dinheiro, é isso? Se começar a desbaratá-lo, ele perder-se-á para sempre. – Depreendi das suas palavras.

 Dificilmente se conseguem reunir as condições de outros tempos.

O Joaquim explicou-me que, enquanto sacerdotisa, o meu nome servira de garantia bancária. Portanto, eu beneficiara dos contratos com os prestamistas, desde que estes

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César e a Vestal 465 Maria Galito

tinham aberto loja e a maior parte dos estabelecimentos da Basílica Emília eram financeiros. O marido da Ana ganhara proporcionalmente aos lucros, durante todos aqueles anos e fizera de mim uma mulher abastada! Ele também estava bem instalado na vida. Por isso admitia comprar uma casa nova para a família.

 Portanto, a sua situação financeira ainda é boa. Mas, se me permite um conselho, deve haver alguma cautela nos bastos, daqui para a frente.

 Está bem, Joaquim. Vamos então tratar do que me trouxe aqui hoje.  O quê, senhora?

 Do meu testamento.

 Está assim tão doente? – Surpreendeu-se.

 Não! Estou grávida e corro riscos, como qualquer mulher nesta condição. – Expliquei, antes de acrescentar. – Sou uma ex-vestal. Se não fizer testamento, o meu espólio reverterá para o Estado e eu tenho uma lista de beneficiários que gostaria de identificar por escrito. O seguro morreu de velho, não é assim?  Muito bem, senhora. Vou já tratar do assunto.

Só ao fim da tarde, saí da Basílica Emília. Lépido encontrou-me nas arcadas. Caminhava de cabelo despenteado e toga torta, como de costume. O seu aspeto desalinhado já dava azo a cochichos, mas ele pouco se importava com isso. Até achava piada que o subestimassem, pois assim podia apanhar os mais incautos de surpresa com os seus rasgos de inspiração e talento (a ele também não faltava a autoestima!).

 A tia já sabe o que aconteceu hoje? – Perguntou-me, esfugentado.  Não, sobrinho. O que se passa?

 Luciano e César, os duúnviros, levaram Rabírio a tribunal e conseguiram condená-lo há quinze dias. Pois bem…

 Já sei! – Interrompi, com amargo de boca. – Eu recebi os vossos papiros a reportar o assunto. Sei que vos respondi às mensagens, a desejar parabéns pela vitória em tribunal. Até esperei que fossem celebrar comigo, lá a casa….

 Paulo e eu não fomos visitá-la, porque a êxito foi temporário. Um dos senadores foi lá para as suas bandas do Janículo tirar a bandeira militar, para dissolver a assembleia que retificaria a condenação…

 Ah foi isso? Eu ouvi uns barulhos e perguntei aos vizinhos o que se passava. Mas ninguém sabia o que, aqueles homens, andavam ali a fazer!

 Resumindo, a situação ficou sem efeito.  O homem foi ilibado?

 Ainda não! Mas Cícero é o novo advogado de Rabírio.  Ora essa! O teu irmão não deve estar contente.

 Não está mesmo! – Reconheceu Lépido, esbugalhando os olhos. – Mas está tudo parado. Não faço ideia quando a situação será resolvida.

 Lamento.

 Por outro lado, César quer candidatar-se a pontífice máximo, não apenas a pretor.  Pois é!

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César e a Vestal 466 Maria Galito

 A novidade é que, hoje, a pedido de César, um tribuno da plebe conseguiu mudar a lei sacerdotal. Vim de lá agora! Portanto, é oficial. O substituo de Metelo Pio será eleito.

 Qual é a data do escrutínio religioso? Lépido encolheu os ombros:

 Não sei, tia Emília. César disse-me que ainda há preceitos a garantir e que, no colégio de pontífices, alguns dos membros decidiram atrasar os trabalhos.

A situação ia de mal a pior! Respirei fundo, desalentada.

 Como tudo muda, de repente! No início do ano, a perspetiva era boa. César convencia-se que conseguia condenar Rabírio e ser eleito pretor, pelo que poderia divorciar-se de Pompeia logo depois. Afinal, Rabírio poderá ser ilibado das acusações e César corre o risco de não ser eleito nem pretor, nem pontífice máximo, por concorrer às duas eleições ao mesmo tempo. E eu nunca mais regularizo a minha situação. Bonito serviço!

Lépido alertou-me para outra questão:

 Para ser eleito pontífice máximo, César tem de convencer os romanos que cumpre todos os ditames para desempenhar o cargo. Uma das exigências é não se meter com as vestais. A tia Emília foi sacerdotisa.

 Mas já não sou.

 Ainda assim, é complicado! Não convém a César que a vossa relação se torne pública! – Rematou, sem papas na língua.

Comecei a nadar no meu próprio mar.

 Porquê? Roma beneficiaria em ter um pontífice máximo casado com uma antiga vestal. O casal seria experiente nos rituais e nas orações, como convém. Até acredito que fosse prestigiante. – Convenci-me.

Lépido abanou a cabeça, pois discordava do meu ponto de vista:

 Eu não sei se a tia percebe que… casal formado por um Júlio (pontífice máximo e ex-flâmine de Jove) e uma Emília (ex-vestal máxima) a liderar a religião em Roma… cheira a Monarquia!

A palavra proibida.  Por Vesta!

 Por Júpiter!

Agarrei-me ao ventre. Qual era o plano de César para nós? Os romanos nunca permitiriam o regresso dos reis a Roma e duas candidaturas num ano eram a receita para o desastre! Era óbvio que César deixara de ter tempo para me fazer companhia. Com os comícios, os banquetes e a recolha de fundos, na prática, a dor de cabeça já começara!

 Venha comigo, tia Emília. Subamos ao Palatino! – Propôs Lépido.

Aceitei o convite. Pouco depois, entrei na casa patriarcal, ao lado do meu sobrinho. Paulo estava no átrio e veio saudar-me. Reparei que estava suado, impaciente e nervoso. Mais magro, ele tinha olheiras e grandes aftas nos lábios.

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César e a Vestal 467 Maria Galito

 Fidélis entrou em trabalho de parto. – Avisou-me, aflito.

 Calma, Paulo. Se os deuses quiserem, o teu bebé vai nascer saudável. – Disse-lhe carinhosamente e ele abraçou-me com mais força.

Lépido ficou com o irmão e eu fui ter com Fidélis. O cubículo, onde ela repousava, estava quente, por estar cheio de gente. Dispensei as pessoas que não eram necessárias e dei a mão a uma mulher que tomava banho no seu próprio suor. Fidélis era uma mulher doce e estava completamente desesperada!

 Tia! Tia! Ainda bem que veio, sinto-me tão mal! – Queixou-se.

 Estou aqui contigo, Fidélis. Vou ficar até teres o bebé. Não te preocupes.  Estou tão aflita…

 Quanto mais agitada estiveres, pior. Tenta acalmar-te.

Eu não conseguia evitar-lhe o sofrimento, mas podia aliviar-lhe o terror.  Não consigo! – Lamentou-se, com o corpo a tremer.

 Consegues sim. Respira pausadamente.  Oh tia Emília, eu vou morrer!

O seu desespero era imenso e eu precisava incutir-lhe esperança:

 Não vais nada, Fidélis. A dor é um mal necessário para que nasça o teu bebé lindo. Não desanimes, está bem?

Fidélis confiou em mim o suficiente, para a sua atitude mudar! Era bom sinal ela relaxar o corpo, para evitar que o sistema rompesse com a pressão. Fiz-lhe umas massagens aos braços e às pernas, para ela não se concentrar nas dores que sentia.

A parteira era uma mulher baixa e forte, de grandes seios e barriga redonda. Mas seria ela versada o suficiente, para salvar Fidélis? Pedi o seu parecer técnico.

 Há mulheres que ficam em trabalho de parto de manhã até à noite. Já estive ao lado de uma matrona dois dias inteiros, que o bebé nunca mais nascia! O problema é saber se ela aguenta o esforço. – Respondeu a parteira, de forma passiva e vaga. O seu plano consistia em aguardar? A ideia não me agradou! Roma tinha elevada taxa de mortalidade das parturientes e dos nados-vivos. O melhor era agir! Saí do cubículo e regressei para junto dos meus sobrinhos. Avaliei com eles o melhor procedimento. Paulo estava demasiado nervoso para raciocinar convenientemente, mas Lépido ainda me ouvia.  César tem um médico particular, que é muito bom. Podias ir buscá-lo. – Propus.  Eu sei onde mora o esculápio. Fui a casa dele, uma vez, com César. – Disse-me

Lépido e despediu-se. – Se for a cavalo, chego lá mais depressa. Até logo!  Ocupei-me de Paulo, que estava um caco!

 Tem calma! Eu estou aqui com vocês e vamos lidar com o assunto, juntos. Ele foi-se tranquilizando na minha presença. Regressei ao cubículo de Fidélis. Ela tinha contrações muito espaçadas no tempo. Mas, nos lençóis de linho, já pingavam gotas de sangue. Mordi o lábio.

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César e a Vestal 468 Maria Galito

O médico demorou a chegar mas substituiu a parteira, ocupando o seu lugar. Ela embruteceu-se! Queixou-se e começou a reivindicar direitos que não lhe assistiam. Lépido insultou-a em resposta e mandou-a embora.

Os meus sobrinhos regressaram ao átrio. Paulo começou a emborcar vinho diretamente de uma ânfora de Circeo! Não sendo homem de beber, embriagou-se rapidamente e começou a declamar excertos dos discursos de Cícero (pois eu também os lia e conhecia a prosápia!).

Foi então que apareceu o filho de Paulo, que saíra com os amigos, às primeiras horas do dia. Ele não estava a par do drama da mãe, mas a sua reação também não foi moderada, ao tomar conhecimento do sucedido.

 Vocês estão tão atrapalhados como Fidélis! Palavra de honra. – Lamentei. Eu estava grávida e com enjoos e não me queixava.

Regressei ao cubículo de Fidélis. O médico parecia melhor apetrechado do que a parteira e explicou que o bebé, virado numa posição difícil, tinha dificuldades em nascer. A grávida delirava. Peguei-lhe pela mão.

 Fidélis é agora ou nunca. Eu sei que dói! Mas temos de tirar o bebé cá para fora, está bem? Puxa! Puxa!

Fidélis ganhou ânimo, pois eu não a largava e estava disposta a lutar com ela até ao fim. Foi então que ela deu um berro monumental e o médico deu sinal:

 A cabeça do bebé já saiu. Está quase.

 Vamos, tu consegues, Fidélis! – Incentivei-a.

Ela fez um derradeiro esforço, que deu lugar a um grito pueril.  É uma menina. – Avisou o médico.

Os varões deram logo sinal! Começaram a fazer barulho do outro lado da porta, a competir com a criança, a ver quem berrava mais alto! As escravas começaram a bater palmas. A parteira colocou os braços no ar e o médico limpou a testa, depois de cortar o cordão umbilical.

A escrava entregou o bebé nos meus braços. Limpei o seu corpito rubro e enrugado, mas forte e saudável, que chorava bastante, mas de susto. Embalei a menina com carinho. Envolvi-a num manto limpo de linho branco. Era um bebé rechonchudo, que se contorcia, a mexer braços e pernas, com pequenos sons que, aos meus ouvidos, eram música! Fidélis pediu-me para levar a criança imediatamente ao pai, o que não era muito a regra, pois a tradição recomendava alguma espera, para saber se o bebé sobrevivia aos primeiros dias. Mas eu fui e fiz o que me competia, de acordo com a lei. Coloquei a menina no chão, aos pés do pai. Lépido espreitou a menina e o sobrinho também. Paulo ergueu a filha das lajes e agarrou-a com ambas as mãos. Estava extasiado. Depois olhou para mim e pediu-me:

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César e a Vestal 469 Maria Galito

 Já não sou uma vestal, Paulo.

 Mas é minha tia e isso vale mais do que tudo o resto. Uma lágrima correu-me pelo rosto abaixo.

 Vamos orar juntos pela tua filha, no altar doméstico. – Anunciei e dei início aos rituais. – Muitos parabéns, Paulo. A tua filhota é linda! – E ele desmanchou-se em sorrisos.

Os meus sobrinhos rodearam-me. O filho de Paulo também espreitou a irmã. Éramos uma família unida. Regressei ao cubículo de Fidélis. Coloquei a filha nos braços da mãe. Ela estava muito cansada, mas feliz.

 Obrigada por ter vindo, tia Emília.  Não tens de quê. Foi um gosto.

O médico seguiu-me até à porta e não se foi embora sem avisar que Fidélis perdera muito sangue, pelo que a sua condição exigia cuidados. Depois recebeu a remuneração, pelos seus serviços e foi-se embora.

A casa ficou embalada pelo choro da criança. Até que o mordomo anunciou a chegada de Mamerco e de Cornélia. Quando os cabelos rubros deram comigo, o drama pegou fogo!

 O que é que esta traidora está aqui a fazer? – Perguntou tonitruante.

Lépido tentou defender-me, em vão! Paulo estava inebriado, o filho era demasiado jovem para me proteger e Mamerco não o queria fazer. Portanto, eu estava incólume perante a fera! E Cornélia insultou-me da cabeça aos pés! Ela era igual ao pai, a melhor das amigas

e a pior das inimigas!

 Que César desista da ideia de casar a filha com o sobrinho de Catão, porque Mamerco nunca o irá permitir, depois disto! – Gritou, pois Catão era sobrinho do marido dela.

Fui apanhada de surpresa pela novidade. Eu não sabia de nada.  Cesariana está noiva? – Estranhei.

 Sim, de Marco Jovem. – Foi tudo o que Mamerco admitiu, de olhos baixos.  Pois, mas se César continuar consigo, esse noivado não vai concretizar-se nunca,

que eu não deixo! – Berrou Cornélia.

Tentei manter o sangue frio. Avisei a matrona que aquele não era o melhor momento para termos aquela conversa. Fidélis sobrevivera a parto longo e difícil, acabara de ter uma filha e precisava de descansar. A minha diplomacia foi infrutífera.

Eu apenas protegia o meu espaço, qual cidade de portas fechadas ao inimigo. Mas a filha de Sila era portentosa, tinha força aos rodos e, nesse dia, estava ameaçadora. Ela também não era uma mulher qualquer, era um remoinho de vento e a sua fúria estava para durar! Coloquei uma máscara de emoções geladas e fechei os ouvidos à retórica. Eu não queria ripostar, para evitar uma bola de neve. Mas Cornélia sentiu-se desprezada pela minha indiferença e avançou contra mim.

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César e a Vestal 470 Maria Galito

Perante o ataque, fui obrigada a defender-me. Primeiro afastei-me, para evitar a fúria das suas garras. Mas Cornélia bateu com a cabeça na parede e ripostou com mais força. Acabei por desferir nela uma bofetada, tão forte que se ouviu a léguas! Cornélia estremeceu, de surpresa. Fixou, em mim, os seus olhos assustadores. Tive a certeza absoluta que ela nunca me perdoaria pela ofensa! Mas não chegou a esmurrar-me. Se o tivesse feito, tinha-me certamente desfigurado o rosto.

Quem me salvou? Não foi Paulo, nem o seu filho, nem Mamerco, nem Lépido. Foi Mânio. Ele fora informado pelo irmão sobre o que se passava na nossa casa. Viera inspecionar o assunto. Talvez intuísse que algo podia correr mal. A verdade é que estava lá para me ajudar, quando mais ninguém conseguia travar Cornélia.

 Leva a tua mulher para casa, Mamerco. Quero falar com Emília. – Avisou Mânio. O casal não se foi embora, pois Cornélia estava em chamas e o marido não a conseguia controlar. Mas Lépido, Paulo e o filho, impediam mais problemas. Foi então que Mânio me puxou de lado, para me sussurrar ao ouvido e os outros não ouvirem o aviso que ele me fazia.

 Corres perigo de vida, Emília.

 Como assim? – Perguntei. O meu coração já estava acelerado e ficou aflito. Mânio era um homem profundamente entristecido e revoltado:

 Não refletiste sobre a tua vida em Circeo. Não te olhaste ao espelho como eu pensava! Mas tu fazes tudo ao contrário daquilo que eu gostava que tu fizesses.– Exclamou, para minha total surpresa.

Esbugalhei os olhos.

 O espelho de prata era oferta tua? Pensei que fosse herança do meu avô. Desculpa, eu não sabia…

 A culpa foi minha. – Castigou-se, agarrado aos meus braços. – Eu devia ter casado contigo enquanto podia. Afastei-me, por orgulho! Agora estou de mãos atadas, não posso fazer nada, pois tu estás metida no buraco que escavaste para ti própria!  Mânio…

 Ouve o meu conselho, Emília. Salva-te!

Mânio calou-se e foi ter com Cornélia. Com a ajuda do irmão, conseguiu levá-la para casa. Foram-se embora e eu fiquei para trás, confusa. Ainda trémula, fui ter com Fidélis. Abracei-a. As emoções de um dia de parto estavam a dar cabo dela.

De repente chegou César. Chamou por mim e eu fui ter com ele.

No átrio estava Lépido, Paulo e o filho. Comecei por explicar que Fidélis precisava de cuidados especiais e que pensava em permanecer no Palatino, mas César aconselhou-me a partir, pois Cornélia podia regressar.

Fui ter com Fidélis uma última vez, mas ela já dormia. Dei um beijinho no rosto da bebé e deixei-me levar por César. Entrei na liteira, enquanto ele montava Delos. Descemos

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César e a Vestal 471 Maria Galito

pela vereda do Palatino, percorremos as ruelas da cidade, atravessámos a ponte até ao outro lado do Tibre e entrámos na minha propriedade, onde fui a primeira a entrar. Eu estava gelada, por causa da noite agreste que sibilava lá fora, por causa do vento. Eu precisava de aquecer! Por isso, pedi a Ilírica que me enchesse a banheira com água quente e ela foi acender o lume, para colocar o caldeiro por cima.

Aproximei-me da banheira, despi-me e entrei lá para dentro, quando esta ainda estava vazia e, portanto, fria! Olhei para o meu corpo. A barriga ainda mal se via, mas as lágrimas brotaram-me dos olhos. Eu estava angustiada com tudo o que me acontecera naquele dia e a minha cabeça doía! Sentia-me insegura. A ansiedade dominava-a.

 Calma, Emília. – Pediu César, que viera atrás de mim.

Ele passou a mão pelos meus cabelos, até Ilírica encher a banheira de água quente. Tapei o rosto com as mãos para esconder as minhas lágrimas, enquanto César orientava o serviço. Depois, ele desnudou-se, entrou na banheira e sentou-se atrás de mim. Abraçou-me pela cintura e colocou as mãos no ventre fecundado.

 A situação voltou a complicar para o nosso lado, Emília. – Disse-me.  Cornélia disse-me que é contra o noivado da tua filha com Bruto Júnior.

César suspirou de desilusão:

 Não te contei antes, porque queria presentear-te com a novidade, no dia do teu aniversário. A ideia era substituir o meu casamento com Pompeia, pelo noivado de Cesariana com o sobrinho-neto de Mamerco. Assim eu podia divorciar-me e casar contigo, sem alterar as afiliações políticas. Mas Cornélia decidiu inviabilizar o projeto, por isso, não sei. Vamos ver, quando a tempestade passar e as águas acalmarem, se ainda é possível manter este plano.

César deu-me um beijo no pescoço, sossegou-me e eu respirei fundo. A água quente e o seu carinho acabaram por ter um efeito calmante sobre os meus nervos! Nós tínhamos aguentado o frio do inverno e as tormentas da chuva. Mas sobrevivíamos nos braços um do outro, do tempo das flores ao rebentar dos frutos.

Passei o meu aniversário nos braços dele. Para mim, a felicidade era acordar e adormecer a seu lado. Sabia que a vida era uma porta para a obscuridade, ou uma janela para a eternidade, mas se eu sempre me dedicara a Roma e, agora, César era a minha cidade! Mas, no mês de Juno, os áugures fizeram-nos uma rasteira. Em Roma, produziu-se um prodígio, que eles interpretaram como sendo uma ameaça religiosa de inspiração

casuística de fonte inopinada que anunciava a vinda de um novo rei de Roma.

O espectro da Monarquia assombrava a República e o senado reuniu-se para fazer face à ameaça. A maioria dos seus membros decretou que não devia sobreviver nenhum rapaz nascido nesse ano. Os que tinham mulheres grávidas, julgaram-se objeto da vaticínio e tudo fizeram para que o senátus-consulto não desse entrada no Tesouro, onde ganharia estatuto oficial e definitivo.

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 A superstição angustia os incautos. – Ironizou César.

 Quem incentivou ao voto nesse senátus-consulto? – Estranhei, pois era grave.  Mamerco, claro! Decidiu retaliar, sob pressão da mulher e da enteada Pompeia. O súbito fanatismo religioso era consequência direta da bofetada que eu desferira em Cornélia? Talvez! Ela era uma mulher poderosa. O seu marido era Princeps Senatus, liderava oficiosamente o colégio dos pontífices (morto que estava Metelo Pio e por não existir ainda substituto!) e tinha influência sobre áugures que podiam ter interpretado o fenómeno ao sabor dos interesses do chefe!

Não sei se Mamerco e Cornélia tiveram alguma coisa com o incêndio que deflagrou em minha casa, no final do mês, mas eu assustei-me ao ver as labaredas entrarem pela casa a dentro e tive de procurar guarida, por causa do fumo!

Com o pessoal de serviço alarmado, pedi a um dos guarda-costas que fosse avisar César, sobre o que se passava. O pontífice chegou quando a casa estava quase perdida. Ainda escutei escaramuças, pois as espadas chocavam umas contra outras, com força e faziam estardalhaço! Ouvi muitos gritos, coisas a partirem-se e uma correria desenfreada lá fora! Depois, os guarda-costas ocuparem as entradas mais vulneráveis da casa, ou seja, as portas que davam para a rua e o incêndio foi apagado. A situação normalizou-se umas horas depois.

Toda aquela azáfama pôs-me nervosa. Fui deitar-me onde ainda havia telhado. Sentia-me tonta e nauseada, com o corpo a tremer. Mas eu não queria abortar, por isso, tentava controlar a respiração, num esforço desesperado para me acalmar. César veio espreitar-me. Apareceu sujo e suado, mas eu acalmei com os beijos que ele me deu.

 Como estás, querida? – Sussurrou-me ao ouvido.

 Eu estou bem e o bebé também. – Disse-lhe sorridente, agarrada à barriga.  Da casa pouco restou.

 Eu sei, querido.

Explicou-me que, no seu entender, os ataques teriam tendência a repetir-se.  A tua segurança está em risco, Emília.

 O que devo fazer? – Perguntei, aflita.  Sair de Roma!

 Estou grávida, não posso.

 Neste momento, não tens alternativa. Mas espera! Eu acompanho-te até Velitras. Uma das minhas sobrinhas tem lá casa. Ela é de confiança e abriga-te até terminar o período eleitoral. Entretanto, eu regresso a Roma para participar nos escrutínios.  Lépido tem um carpeto, posso pedir-lho. – Ponderei como hipótese.

 Fora de questão! Nem de liteira. Dadas as circunstâncias, descobriam-nos logo! Ainda pensei em usarmos uma carroça de vendedores de hortaliças, mas o poder instituído mandou revistar a pente fino todas as rodas que entram e saem de Roma! Eles querem matar todos os bebés nascidos este ano e as grávidas também. Engoli em seco.

Referências

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