• Nenhum resultado encontrado

Poética e autoria: um modo de ser da subjetividade em Ruy Guerra

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Poética e autoria: um modo de ser da subjetividade em Ruy Guerra"

Copied!
6
0
0

Texto

(1)

IV Mostra de Pesquisa da Pós-Graduação

PUCRS

Poética e autoria: um modo de ser da subjetividade em Ruy Guerra

Eduardo Portanova Barros, Carlos Gerbase (orientador)

Programa de Pós-graduação em Comunicação Social, Faculdade dos Meios de Comunicação Social, PUCRS

Resumo

Um modo de ser da subjetividade: assim é que o filósofo francês Mikel Dufrenne define o poético. Não para dar contornos definitivos sobre o tema, e sim, a exemplo de seu “mestre”, o também filósofo francês Maurice Merleau-Ponty, para deslocar o eixo de visão: não se trata de uma evidência. O poético só faz sentido a partir de um olhar, um jeito próprio de ver as coisas. Esse jeito de ver não é apenas do produtor da obra de arte (o artista), mas também, e principalmente, de quem a vê. É isso que denominamos deslocamento do eixo de visão: quem vê é quem vê, e não quem faz. Em “O poético”, Dufrenne procura, assumindo a dificuldade de verbalizar o indizível, uma forma de aproximar a poesia da linguagem filosófica. Este é o tema desta apresentação, que é um desdobramento da tese de doutoramento: “O cinema de Ruy Guerra: um imaginário autoral na pós-modernidade”.

Introdução

Logo, isso (o sentimental e a poética) não seria um obstáculo ao rigoroso pensamento filosófico? Esta preocupação é pertinente. Bachelard, por exemplo, fez do poético sua forma de expressão, tentando ser fiel à expressão dessa mesma poética. Não arrisca o uso de conceitos, a fim de não trair sua natureza imaginante. Dufrenne é de outra escola. Sua filosofia não é a mesma que a de Bachelard, mesmo procurando ser poético em suas palavras: é mais objetivo no devaneio do que o autor de “A poética do espaço”. Para Dufrenne, “o sentimento pode e deve tornar-se objeto de uma investigação racional” (1969, p.2). O problema é quando, porém, assim como no cinema, o racionalismo (que refreia a imaginação) sufoca também a expressão do autor. É da expressão que nasce a poesia. De uma expressão, porém, não-racional. Dufrenne

(2)

entende o poético, e por isso cabe nesta tese, como um “conteúdo intuitivo”, e não como forma imposta à experiência. Uma arquitetura autoral, mesmo que sistematizada

Outro problema que o autor coloca é como reconhecer a sensibilidade poética, da mesma forma que podemos dizer: como reconhecer o autoral no campo cinematográfico? Partimos, e desde o início procuramos esclarecer, da nossa subjetividade. O poético também, como aponta Dufrenne, tem uma natureza sensível, observada - ou melhor, sentida - por algum tipo de receptor. Falamos em “algum tipo” pelo fato de que é preciso um investimento cultural para que haja a percepção de uma obra de autor. Com isso, não queremos dizer que, a partir, por exemplo, de um curso sobre “como reconhecer filmes autorais”, seja possível nos tornarmos especialistas nisso. Estamos falando de um paradoxo: investir na sensibilidade exige treino para melhor usufruir a arte. O que, no nosso caso, procuramos reter de Dufrenne, neste livro, é a natureza poética do homem que o impele, conforme o autor, a ser ele mesmo, livre e criador. “A poesia é apelo e não pressão” (DUFRENNE, 1969, p.9). Talvez seja este o motivo pelo qual o autor cinematográfico consiga se distinguir, em termos estéticos, daquelas obras acabadas friamente, digamos. O artista (autoral) é, e aqui nos utilizamos de Dufrenne, estimulado a produzir uma obra singular: “A idéia da poesia que o inspira não é a idéia coisificada, um produto inerte de uma atividade indefinidamente repetida” (1969, p.10). Outra parte relevante na análise de Dufrenne, pelo menos para nós, é quando o filósofo afirma que a obra poética é um objeto da sensibilidade e que, por isso, ela só passa a existir no momento em que é apreendida e “consagrada” por essa mesma percepção.

É o que falamos antes. Não adianta rotularmos um filme como sendo ou não autoral se a idéia de autoria não faz parte do vocabulário (ou compreensão) de um receptor que, por ignorância (no sentido de não integrar seu repertório), esteja alheio a esse tipo de leitura. Em outras palavras, segundo Dufrenne, “o poético define um modo de ser da subjetividade” (1969, p.10). Esta é a frase mais precisa dele, e vale a pena repetir, por causa de sua clareza e simplicidade: “O poético define um modo de ser da subjetividade”. Este modo de ser, se inspirado sob o aspecto monocórdico do racionalismo, deixa de ser poético. A natureza poética precisa da inspiração que nasce livre, pois, só assim, terá como resultado um ato criativo de pessoa para pessoa, de uma relação eu-tu. Cremilda Medina lembra, citando Martin Buber, que a relação eu-tu é um “tu-pessoa” e não um “tu-isto”. É na aproximação dos interlocutores que uma entrevista, prática na qual Cremilda se debruçou na condição de jornalista, pesquisadora e

(3)

professora universitária, adquire um sentido, uma entrega e uma interlocução complexa. E é, justamente, pelo uso dela, da relação “eu-tu”, que uma obra cultural pode se afirmar menos ou mais poética. Aliás, poderíamos abdicar da linguagem para estabelecer os parâmetros de uma obra poética? Parece que não. Da linguagem falada, porém, sim. Mas o que interessa é a maneira pela qual o artista ordena a matéria. Não entraremos em assuntos pertinentes aos estudos lingüísticos. Ficamos com Dufrenne: “Nem a fala, nem o pensamento possuem o domínio total da linguagem” (1969, p.20). Isso porque ela não é inerte.

Dufrenne ao falar de sentido explica que “as regras da sintaxe poética são ditadas pelo gosto, não pelo entendimento” (1969, p.98). Este aspecto, próprio da Teoria da Informação, tem importância, para nós, porque a opção por uma obra autoral também tem a ver com o nosso gosto (traduzido, por sua vez, por nossa sensibilidade). O belo, na opinião de Dufrenne, é o que tem sentido para nós. O autoral, também. Em outros termos, “poética é a obra que induz o leitor [espectador] ao estado poético” (DUFRENNE, 1969, p.101). O termo “estado poético” pode ser lido como “emoção”, anda de acordo com Dufrenne. Poesia emociona. É a descoberta, segundo Valéry, citado por Dufrenne de um mundo singular. Toda obra autoral nos remete a uma singularidade, que é resultante de um espírito imaginativo de seu autor. Este espírito imaginativo tem, dentro de si, um ato de criação livre, para além das injunções objetivas do cotidiano. A criação autoral pertence a um tipo de artista assim como a impressão digital da pessoa. É impossível copiá-la. O motivo é que o autor está concentrado na sua própria natureza poética, e não atento à produção em série de filmes que, através das fórmulas de manuais, instauram uma alienação artística. O artístico, na nossa concepção, se fundamenta na qualidade do que é arte, e não cultura. Produtos culturais são facilmente observáveis. Já os de natureza poético-autoral, não, porque são, conforme Godard, exceção. O autor se insere no que Dufrenne chama de “o poético no poeta”. A diferença entre o ser que cria e o ser que vê é que o primeiro está diante da obra enquanto utopia; o segundo, da obra consumada. O mesmo Dufrenne, em outro livro, “Estética e filosofia”, apresenta alguns caminhos para o entendimento da estética. Um dos pontos que gostaríamos de salientar é o fato de que, segundo ele, a experiência estética diz respeito a uma sensibilidade. O termo “sensível”, por esse motivo, tem sido recorrente nesta tese. “Nós nos confiamos sempre ao veredito da sensibilidade: o criador para julgar a obra acabada; o espectador para julgá-la bela” (2008, p.90).

(4)

Metodologia

Optamos por uma entrevista com Ruy Guerra de cunho compreensivo. Com base no livro de Cremilda Medina, “Entrevista: o diálogo possível” e no de Jean-Claude Kaufmann, “L´entretien compréhensif”, a proposta - já concluída - foi a de realizar uma entrevista não-diretiva. Ambos postulam um diálogo de viés humanístico para estabelecer uma relação não-arbitrária entre entrevistador e entrevistado.

Resultados (ou Resultados e Discussão)

Trecho da entrevista com o cineasta Ruy Guerra, em sua casa, no dia 18 de março de 2009, no município de Petrópolis (RJ).

EPB – O senhor, por isso, é um cineasta marginal ou marginalizado? É semelhante a Godard, que, se referindo a ele mesmo, disse que é considerado, pela crítica, o modelo do não-modelo?

RG – Marginal, sim. Marginalizado, não. Sou marginal por atitudes em relação ao cinema corrente, mas não sou posto de lado: eu me ponho de lado. Posso também ser marginalizado em determinados momentos por ser marginal. Isso é uma postura. Eu seria marginalizado se eu fosse execrado. Às vezes até acontece, em determinados momentos ou em determinadas circunstâncias, mas, em geral, sou muito bem recebido pela crítica e tenho reconhecimento. Posso ser marginalizado por certos estatutos existentes ou organizações. Tu não podes andar de jeans rasgado e descalço e ter a pretensão de ser recebido no castelo do rei, porque tu não estarias respeitando as convenções daquela sociedade, daquele espaço. Então, nesse sentido, é natural ser marginalizado. Sou marginal. Não me sinto modelo de nada. Eu nem sou modelo de mim mesmo, quanto mais dos outros. Mas não separo a minha pessoa do meu cinema. Meus filmes são bastante claros, só que podem ter várias leituras. Não são herméticos, porque não gosto de fazer as coisas fechadas em si mesmas. Quando conto uma história, procuro a clareza dentro das contradições que a história oferece. Não sacrifico as contradições de uma história para obter uma clareza. Portanto, há certos hermetismos que vêm da própria história. Contar tudo acaba reduzindo a história em alguma coisa que ela não é. Minhas histórias são dúbias, mas não herméticas. Até digo mais: se não fosse esse hábito que as pessoas têm de encontrar soluções para tudo e vissem um filme só pelo prazer da história, meus filmes não seriam nada complicados. As pessoas procuram encontrar soluções quando não há soluções. Se olhassem o filme

(5)

como objeto de prazer o entenderiam muito mais, e até podiam gostar ou não gostar dele. O que acontece é que o cinema tem essa vertente imposta de uma relação causal. Mas conto uma história de uma forma um pouco diferente.

Conclusão

Observamos que o cinema de Ruy Guerra é marcado pelo Cinema Novo, mas não, em termos cinematográficos, pelo Cinema Novo de um único estilo, apenas. O Cinema Novo de Ruy Guerra é um Novo Cinema. Transversaliza o foco (em termos literais e abstratos) do cinema. Começou dirigindo um filme que não se enquadrava na Estética da Fome, para tratar não só de um universo brasileiro miserável, politicamente falando. A miserabilidade em Os cafajestes é outra. É de outra gente: a de uma elite na “civilizada” Copacabana. É um filme tão incômodo quanto a cena com cerca de seis minutos de duração, em um só take, da coreografia improvisada de Norma Bengell (nua), enquanto o carro-cafajeste ruge ao redor dela. O desajuste social é a temática de Ruy Guerra, neste ou nos outros filmes que fez. E esse desajuste é como que uma percepção da vida cotidiana, sem criticá-la ou desafiá-la. Ela é o que é, apenas. E, por isso, fizemos uma aproximação do cinema de Ruy Guerra com o presenteísmo e o nomadismo, as duas idéias-chave da pós-modernidade e do imaginário pós-moderno em Michel Maffesoli. O presenteísmo é o querer viver, como a própria palavra designa, o presente, sem um projeto de vida amarrado ao futuro. Nomadismo é uma espécie de desterritorialização da pessoa, hoje fragmentada (como o personagem de Estorvo e do próprio Ruy Guerra, que nasceu em Moçambique, foi considerado cidadão de “segunda classe”, estudou cinema e televisão na França e veio ao Brasil, para respirar o ar dos trópicos).

O olhar de Ruy Guerra é transversal, e essa transversalidade se apresenta por uma temática fílmica, como frisei antes, do desajuste. O desajuste, por sua vez, é uma característica humana. Compreender o mal é uma forma de viver essa compreensão e se afastar do pensamento crítico, no sentido moralista da crítica. Crítico, ele é, mas sem a pretensão da verdade. O mal, inerente ao desajuste, é vivido artisticamente no cinema e adquire, por isso, uma natureza simbólica sob a lente de Ruy Guerra, que procura a expressão cinematográfica na relação com o Outro. É um processo de individuação ou amadurecimento, ouvindo o silêncio interior para sair de si: recolhimento e êxtase. Ruy Guerra não vive, porém, só da reflexão. É na ação - por meio da linguagem - que o

(6)

pensamento toma forma; mas ele, o pensamento, ao se configurar, já é, aí, ultrapassado pela expressão poética, conforme a epígrafe de autoria de Bachelard “É próprio da lei da expressão poética ultrapassar o pensamento”. É nesse constante vai-e-vem e nessa ambivalência de natureza antropológica, como ensina Gilbert Durand, que o artista autoral vive. Para ele, autor, filmar é viver, e vice-versa. Este é o cinema de Ruy Guerra, o da transversalidade. É ver o (in-)comum da vida. A vida, para ele, é rara, e essa raridade não tem sido contemplada pelo cinema de entretenimento, segundo ele. Percebemos que, na pós-modernidade, a de um hedonismo cotidiano, ainda se preserva um espaço autoral, não só no campo cinematográfico como também artístico. Não poderíamos ler o futuro para saber se o autor desaparecerá, como vários teóricos postulam. Acreditamos, porém, e a tese procurou mostrar justamente isso, que, considerando a necessidade do gesto poético, segundo a definição de Dufrenne, o autor é eterno, existindo ou não vanguardas para justificá-lo.

Referências

DUFRENNE, M. O poético. Porto Alegre: Globo, 1969. _______. Estética e filosofia. São Paulo, Perspectiva: 2008.

KAUFMANN, J-C. L´entretien compréhensif. Paris, Nathan : 1996. MEDINA, C. Entrevista: o diálogo possível. São Paulo, Ática, 1990.

Referências

Documentos relacionados

Em nosso espaço de coworking, localizado no Brooklin, você encontrá uma variedade de pensadores inovadores, focados em seus trabalhos e em metas para alcançar o sucesso.. Com

O recurso à nação como narração enfatiza a insistência do poder político e a autoridade cultural naquilo que Derrida descreve “o excesso irredutível do sintático sobre

Ou talvez você tenha apenas reservado um tempo para se sentar e refletir sobre a Mensagem, para chegar um pouco mais perto daquilo que satsang significa para você, para mergulhar

Mais uma vez, o aluno usará a atenção para realizar esta atividade e por fim, poderão colorir de modo que trabalhe diretamente com a coordenação motora fina... Nesta atividade

Acaso não seja possível o pagamento de todos os credores titulares de créditos entre R$ 5.000,01 (cinco mil e um centavo) até R$ 7.500,00, em razão de o valor adquirido com

Há uma grande expectativa entre os cientistas de que, nesta próxima década, novos resultados de observações cosmológicas, aliados aos resultados dos grandes aceleradores como o

Este trabalho se propõe a investigar as relações entre o jornalismo, a literatura e o cinema por meio da análise da obra O que é isso, companheiro?, de Fernando Gabeira (1979) e a sua

Os motins na América Portuguesa tanto quanto na Espanhola derivam do colapso das formas acomodativas - como será melhor explicado à frente -, ou melhor dizendo, do rompimento