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Fundamentos da clínica psicanalítica 1

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Academic year: 2021

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Frederico Feu de Carvalho2

Palavras-chave: psicanálise – ciência – desejo do analista – ato fundador Chamamos de fundamentação a articulação de uma teoria a um campo de experiência. Em uma primeira acepção, fundamentar significa ir aos primeiros princípios. É o que Platão chamaria de “protologia”. Utilizaremos o termo aqui em um sentido mais amplo, designando como fundamentos da clínica a tentativa de tratar com rigor teórico este campo de experiência. Para isso é indispensável, para nós, a referência à ciência. Não porque tomamos a psicanálise como uma ciência. Podemos dizer que a psicanálise mantém uma relação com a ciência sem, entretanto, se deixar tomar por ela, já que o estatuto científico da psicanálise permanece uma questão em aberto. Tal relação se sustenta no procedimento, comum à psicanálise e à ciência, de literalização do real, como meio de afastamento do objeto, a fim de tornar nossa prática menos intuitiva. A formalização consiste, neste sentido, em uma exigência ética de julgamento de nossa ação. Temos necessidade de constituir um campo de justificação da experiência clínica, ao mesmo tempo apartado do real e referido ao real (para não tomar esta justificação em um sentido metafísico, onde estamos mais próximos do delírio a que se refere Freud, quando opõe a perspectiva da ciência àquela da filosofia especulativa). A fundamentação supõe que o terreno da descoberta, com o qual lidamos em cada análise singular, se desdobra quando confrontado com o conjunto destas experiências, deixando-se generalizar. Neste sentido, a clínica psicanalítica é indutiva: ela vai do particular ao geral. Mas esta não é sua única direção. Se assim fosse, teríamos um padrão de análise, um ideal do sujeito analisado, uma normatização da experiência analítica. O que a análise encontra ao final é muito mais algo da ordem de uma singularidade, de um Um que não se reduz à unidade do todo. Caminhamos aqui na direção do mais geral ao mais particular sem, no entanto, poder

1 Publicado em: Fundamentos da clínica psicanalítica. Frederico Feu de Carvalho e Lúcia Grossi, org. Belo

Horizonte: FUMEC, 2002.

2 Psicanalista, membro da Seção Minas da EBP. Mestre em filosofia pela UFMG. Coordenador do Curso de

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deduzi-lo do caso geral (é aqui que a psicanálise se torna anti-popperiana, pois ela não está à procura do caso que desmente a proposição mais geral, mas desta inscrição de uma expressão subjetiva para a qual não existe nenhum antecedente, que não está implicada no universal, que se encontra em disjunção com este, e que Lacan vai chamar de sinthoma). A posição desejante e singular do sujeito da psicanálise se opõe, desta maneira, à exclusão do desejo do sujeito da ciência.

O uso do termo “fundamentos da clínica” considera, portanto, que o saber se encontra articulado ao real da experiência. Como sabê-lo? A garantia dada por Freud quando a psicanálise se via refutada a partir de teses cientificistas consistia em mostrar que este saber tem efeitos, que ele modifica o real, que retira seus fundamentos da experiência clínica, isto é, da observação cuidadosa dos fatos, mesmo que não pudéssemos referir, termo a termo, nomes e coisas. O procedimento metódico de Freud não deriva, deste modo, da correspondência entre uma descrição e os dados da experiência (próprio, por exemplo, das chamadas ciências duras ou do modelo biologicista) mas da coerência conceitual com que estes dados são trabalhados teoricamente. Fazendo um jogo retórico, poderíamos dizer que a exigência de fundamentação se impõe a Freud justamente diante dos impasses e imposibilidades da verificação empírica. Entretanto, mesmo as ciências naturais, que aceitam a verificação experimental, não se viram livres de exigências de fundamentação. Perguntava-se então — trata-se de uma questão recorrente no sec. XVIII — como era possível o conhecimento científico. Sabemos que tal questão se tornou obsoleta para os próprios cientistas diante da eficácia atual da técnica, o que acabou por reduzir a exigência de fundamentação a uma preocupação de cunho filosófico, a um exercício especulativo desnecessário à própria ciência. De fato, o argumento técnico se reduz a constatação de que as coisas são assim porque funcionam assim. A pergunta sobre o que fundamenta uma dada disciplina tornou-se cada vez mais circunscrita ao campo das chamadas ciências humanas, que denunciaria sua crise de credibilidade, pois estas não funcionam muito bem, isto é, na medida em que não existe, para as ciências ditas humanas, o domínio da técnica. Ora, o que articula para estas disciplinas experiência e teoria é, em última instância, a linguagem, de forma que todo o século XX teve que se ver com a questão do que é a linguagem, pois a

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fundamentação de todas as ciências ditas humanas, por oposição às ciências naturais, parecia depender disto, a saber, da consistência da própria linguagem.

De fato, esta é uma história bem conhecida, que começa com a crise das matemáticas no século XIX. Buscava-se uma base lógica para as matemáticas, retirando do número a sua base intuitiva (calcada na idéia de que nossa apreensão do número nasce da constatação empírica da diferença entre o que é um lápis e o que são dois lápis). Foi com este propósito que Frege escreveu os “Fundamentos da Aritmética”, a partir de teses logicistas. Procurava-se então uma linguagem depurada, livre das mazelas, equívocos e polisProcurava-semias da linguagem falada, uma linguagem que fosse formalizada, unívoca, capaz de se transmitir integralmente. Descobriu-se depois que toda tentativa de formalização resulta em um sistema incompleto, que nenhum sistema formal é isento de contradição e que toda linguagem universal é, necessariamente, uma linguagem inconsistente. Mas, ao menos em parte, esta tentativa teve êxitos; é o que nos permite hoje acionar um programa de computador. Em se tratando da nossa busca da verdade, entretanto, a história é outra. A verdade não é, como então se pensava, um atributo de uma linguagem bem formada. Wittgenstein, que meditou longamente sobre a obra de Frege, já havia demonstrado em seu

Tractatus (1921) que a verdade não se deduz logicamente da proposição, isto é, que a

verdade reduzida como tal a uma letra (“V” por oposição a “F”) perde todo o seu sentido, tornando-se um caso de tautologia . A verdade precisa dos equívocos da linguagem para se expressar. Trata-se de uma propriedade da verdade extraída por Freud da linguagem corrente. Podemos dizer que a psicanálise se funda sobre o que se exclui da lógica, que ela encontra o seu objeto nas lixeiras da lógica, e que uma análise desencadeia o que a lógica domestica (Miller, Matemas I, p. 62).

Não há, portanto, domínio da língua no mesmo sentido em que falamos de domínio da técnica para as ciências da natureza. A língua é uma espécie de multiplicidade inconsistente que não se deixa formalizar; a rigor não existe na língua dois enunciados que sejam semelhantes; a língua somente comporta diferenças, diria Saussure. Há uma dimensão da língua (lalangue, conforme o neologismo de Lacan), que parece não caber na linguagem, ou melhor, que escapa às regras da linguagem, resultando em um excesso, em algo que não

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se contabiliza no universo de discurso (idem, p. 68) e que, a rigor, não poderia ser colocado sequer em uma relação diferencial, mantendo o seu caráter unário, distintivo e disjunto com relação à linguagem. A questão que vemos surgir deste tipo de reflexão que perpassa os últimos seminários de Lacan é que a exigência de formalização convive lado a lado com os transbordamentos que a língua corrente impõe àquele que fala. Percebemos que o uso que se faz aí dos termos e conceitos próprios à psicanálise — o real, o falo, o significante etc... — se cruzam e se articulam de maneira diversa, tornando-se cada vez mais inapreensíveis dentro de um sistema, complicando sobremaneira o nosso ideal de fundamentação, ou melhor, operando sobre ele um deslocamento que vai do ato de justificar ao ato de fundar ou, dito de uma outra maneira, de um exercício de rigor, matêmico, onde os conceitos estão encadeados, ao rigor de um dizer desencadeado, cujo rigor está dado apenas pela decisão de dize-lo, onde “o sujeito determina sem atender a nenhuma determinação” (isso é uma evocação do seminário de Célio Garcia no curso de especialização, dia 23/03/02).

Ao colocar-se a questão sobre os fundamentos da psicanálise, na abertura do seminário 11 (Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise), Lacan argumenta que ela é, de certa forma, a reiteração desta outra: o que é a psicanálise? Ou seja: “o que funda a psicanálise como praxis?” Ora, o que fundamenta a praxis psicanalítica é aquilo a partir do que um psicanalista se autoriza. Portanto, a questão de seu fundamento é inseparável da questão da formação do analista. Não se trata, pois, de uma questão de princípios mas dos impasses e limites da psicanálise. Para a questão dos fundamentos, dirá Lacan, parafraseando Picasso, mais vale o achado que a procura, pois o analista não é de forma alguma um pesquisador, no sentido ativo deste termo, mas alguém que está à espera, inserido no dispositivo a partir do que Freud chamou ‘atenção flutuante’, distendida. O fundamento da psicanálise não é o resultado de uma pesquisa, como se tratasse de ir ver os alicerces do edifício para saber se estão bem construídos. A psicanálise se fundamenta pela presença do analista. É por esta razão que ao tocar na questão dos fundamentos da psicanálise, Lacan se pergunta sobre o que seria, afinal, o desejo do analista. Sabemos qual o destino que se deu a esta questão na abertura do seminário 11: ela remete ao desejo fundante do próprio Freud, desejo que em sua essência permanece como algo não analisável, mas cujas ressonâncias ainda se fazem sentir, para todo psicanalista.

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O contexto no qual se desenrola o Seminário 11, denominado de “Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise”, é propício a este tipo de interrogação. Estamos no ano de 1964, momento em que se trama, no seio da IPA, o que Lacan chamou de sua excomunhão da Sociedade Francesa de Psicanálise. Este seminário marca uma mudança de rumo importante no ensino de Lacan, que deixa então de consagrar-se a uma leitura sistemática dos textos freudianos, que foi a tônica do Seminário até então, para assumir uma postura que coloca o próprio Freud em questão. Não se trata aí de um rompimento. Lacan se mantém, como ele mesmo assinala, freudiano. O que ele vai buscar é alguma coisa que na obra de Freud escapa a ele mesmo, um “mais além do próprio Freud”. É assim que Lacan parece tomar a questão dos fundamentos da psicanálise. “O que nos garante que não estamos na impostura, contra a qual o psicanalista se protege por meio de um certo número de cerimônias?”, pergunta Lacan. De fato, reencontramos aqui o fecundo debate entre ritualização e fundamentação. É preciso mesmo se despir de certos ritos para se colocar a questão dos fundamentos da clínica.

Trabalhar os fundamentos da clínica psicanalítica resulta, portanto, em um trabalho de desmitificação do texto psicanalítico. É neste sentido que a referência à ciência se torna, ela mesma, fundamental. “O trabalho científico, dirá Freud, constitui a única estrada que nos pode levar a um conhecimento da realidade externa a nós mesmos” (Freud, “O Futuro de uma ilusão, 1927). A ciência responde para Freud a esta dupla exigência: por um lado é o que faz obstáculo ao imaginário, servindo-nos de orientação no campo da realidade; por outro lado, a ciência presentifica para nós os limites desta mesma realidade, ou seja, a fronteira móvel entre o simbólico e o real. Estamos também implicados por uma outra restrição: não buscamos abordar todo o edifício mas aquilo a partir do qual cada um poderá construí-lo. É uma estratégia de evitação do excesso de literatura psicanalítica e de delimitação do objeto da psicanálise desde seu ponto de partida, com Freud. O que buscamos é que cada um que se disponha a tomar a psicanálise em questão para autorizar-se como analista autorizar-se coloque, de certa maneira, na perspectiva de um fundador, perspectiva que supõe os limites da política da psicanálise, como acentua Lacan, ou seja, “o que há de ser do desejo do analista para que ele opere de maneira correta” ( O Seminário 11, p. 17).

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Esta referência estrita ao desejo é o que diferencia a psicanálise da ciência. A psicanálise é, neste sentido, uma praxis, isto é, uma atividade que visa uma finalidade e é com este objetivo em vista que se desenvolve a teoria.

Se buscamos então um ato fundador é porque, de certa maneira, a psicanálise enquanto um saber exposto, publicado, não se deixa fundamentar a não por esta referência ao desejo do analista. O campo da enunciação, onde este desejo se coloca como pode, de maneira não determinada, excede toda possibilidade de teorização. A enunciação é um campo atraído pelo objeto, e isso vai as vezes muito além da “boa forma” (Antônio Teixeira, “Sujeito sem qualidades, ciência sem consciência”, in: “Dez Encontros - Psicanálise e Filosofia”, p. 244) pretendida pelos enunciados da ciência. Mas a psicanálise é, como a ciência moderna, ciência do contingente. Ela acompanha as mutações do objeto, sem se prender a um referente único. É uma derivação de sua teoria do sujeito considerá-lo como indeterminado em sua determinação. Para o psicanalista, o que dá sustentação à sua praxis é a fissura que Freud designa como recalque primário, isto é, uma falha (recorro aqui a etimologia do termo “recalque”), algo que o sujeito desconecta de seu feixe de representações para contornar com o seu desejo. Basta pretender uma fundação muito rígida para produzir a ruína de todo edifício, como Freud demonstra no caso das psicoses, na medida em que se recusa aí a referência ao Outro da lei, falha estruturante, para designar-se a si mesmo como uma exceção, como um caso de auto-fundação. Assim, trabalhar os fundamentos da psicanálise nos impõe a conexão com as ciências afins, como um Outro da psicanálise, da mesma forma que dizemos que não existe auto-análise, que é necessário uma alteridade à lógica do tratamento para deslocar do Eu o lugar da verdade. À tendência narcisista de tratar a questão da verdade de forma auto-referencial opomos a perspectiva de uma apreensão da verdade como o que escapa ao Eu e necessita a presença do analista para que se possa, ao menos, ensejar sua possibilidade. Pois distinguimos a reivindicação de uma filiação à ciência, que sacrificou a verdade da psicanálise, do apelo à ciência como Outro da psicanálise, não o outro semelhante, mas disjunto, ou melhor, como um lugar onde se possa lançar o carretel amarrado ao barbante para extrair daí um ato de fundação.

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