• Nenhum resultado encontrado

JOSÉ NO EDIFÍCIO ESPLENDOR

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "JOSÉ NO EDIFÍCIO ESPLENDOR"

Copied!
6
0
0

Texto

(1)

JOSÉ NO EDIFÍCIO ESPLENDOR

Paulo Cezar MAIA1

Resumo

O modo como Carlos Drummond de Andrade lê o mundo, a cidade e a si próprio, traduzindo-os e traduzindo-se, experimentando formas antialheamento, converte-se em uma tradução corrosiva. Tradução ou mineração, como veremos, construída não no espaço limitado do apartamento em Edifício Esplendor, mas no spielraum da página em branco, no qual sua poesia experimenta um sentido para a realidade na arquitetura dos seus versos. A poesia de Drummond dos anos 1940 e os impasses internos e externos ao poeta frente ao mundo centralizado e administrado das cidades.

Palavras-chave: inquietudes poéticas, destino mineral, Carlos Drummond.

Prólogo

Este trabalho apresenta notas de leitura para uma oficina de literatura e comunicação audiovisual organizada com estudantes de graduação e secundaristas no na Ocupação Solano Trindade/Duque de Caxias. A pesquisa a que essa oficina se vincula estuda formas de figuração da práxis das lutas sociais pelo direito à cidade no Rio e em São Paulo. Para a oficina, parte-se: da popularidade do audiovisual como instrumento que oportuniza a comunicação (interação sensível e dialógica); do conceito de transcriação ou tradução intersemiótica de Jakobson e do conceito de spielraum de Benjamin.

Para Jakobson: toda leitura contém uma escrita feita pelo leitor e toda escrita contém uma leitura encaminhada pelo escrevente, sendo as duas práticas processos de recodificação, transposição criativa ou tradução intersemiótica.

(2)

Para Benjamin: spielraum é espaço limitado para o jogo, para o lúdico ou para o teatral, nos três sentidos o filósofo destaca a potência experimental de arena criativa, seja se referindo às peças de aprendizagem de Brecht (O que é o teatro épico?) seja refletindo sobre um teatro de formação proletária (Programa de um teatro infantil proletário).

O modo como Carlos Drummond de Andrade lê o mundo, a cidade e a si próprio, traduzindo-os e traduzindo-se, experimentando formas antialheamento, converte-se em uma tradução corrosiva. Tradução ou mineração, como veremos, construída não no espaço limitado do apartamento, mas no spielraum da página em branco, no qual sua poesia experimenta um sentido para a realidade na arquitetura dos seus versos.

* * *

Este texto nasce da curiosidade em relação a uma imagem, à última imagem de Edifício Esplendor, que se dinamiza nos dois versos derradeiros do poema.

Que século, meu Deus! diziam os ratos e começavam a roer o edifício.

O poema faz parte do volume José, publicado em 1942, que traz também as peças bem conhecidas E agora, José?, O Lutador e Viagem na Família. Edifício Esplendor é um texto distópico sobre a modernidade como experiência administrada, sobre a automatização da vida e sobre o indivíduo frente às múltiplas determinações da história. São cinco estrofes nas quais se apresentam aspectos da experiência social fragmentada e mecanismos dos gestos individuais padronizados. Além disso, por contraposição a esses dois aspectos, apresentam-se também impulsos de negação da paisagem apocalíptica, encerrada com os ratos que roem o edifício-século, a máquina-vida, a cidade-modernidade.

Esses impulsos recuperam a intimidade do sujeito que enuncia, como o desejo de amor (amar, morder, uivar, desesperar) e o desejo de morte (os convites ao suicídio das complicadas instalações de gás e do terraço onde camisas tremem). Tais impulsos trazem também elementos da sua rememoração (os retratos da infância, com trinta crioulas sorrindo, talvez nuas, nas trinta portas da casa paterna). Retratos, é bem dizer, bebidos como um copo de veneno. O sujeito busca humanizar-se, mesmo que seja pelo suicídio, contra a máquina de morar histórica. Ele faz isso no interior de seu apartamento, onde delira seus lamentos e fantasia sua quietude (a vida jogada fora,

(3)

voltava pela janela). Interessante é retomar a dinâmica arquitetada em Edifício Esplendor entre aspectos da mitologia pessoal emparedada e o peso do sentimento do mundo, uma dialética convertida em um sistema poético regido por inquietudes. Antonio Candido, no texto Inquietudes na Poesia de Drummond, afirma que há um procedimento típico da poética drummondiana entre os anos 1940 e 1960 estabelecido a partir de uma contradição produtiva entre os assuntos íntimos e os assuntos públicos: "se trata de si, o poeta julga que melhor fora tratar do mundo, se trata do mundo, que melhor fora tratar de si." Essa luta entre o eu e o mundo parece ser uma das razões do melancólico tensionamento expresso em Edifício Esplendor.

Contextualizando, José é um livro publicado no curso do projeto desenvolvimentista e industrial do Estado Novo e no calor da 2ª Guerra. A superação do passado colonial se fazia na esfera produtiva, com a ampliação das iniciativas manufatureiras nos principais centros, com a criação de uma indústria nacional de base e com a mudança da hegemonia agrária pela centralidade urbana. Na relação entre o particular e o geral, Vargas negociava a exploração do minério brasileiro com o bloco bélico que financiasse a indústria siderúrgica nacional. Itabira do Mato Dentro, lugar de origem de Drummond, é o epicentro da mineração do minério mundialmente cobiçado para o desenvolvimento das cidades em todo o planeta. Henri Lefèbvre, em Direito à Cidade, argumenta sobre a relação entre o poder e a cidade na ideologia do progresso na modernidade. A centralidade urbana impõe um contraste entre natureza e cultura, empurrando ao campo a sua natureza atrasada e oferecendo a ele o tecido urbano redentor. O problema disso, segundo Lefèbvre, estaria no modelo de ocupação e ordenação urbanas definidos em tal tecido, valorizando os aspectos disciplinadores, que impõe inclusão/exclusão e inviabiliza qualquer enfrentamento pelo seu contrário, inviabiliza a luta. Para Lefèbvre, o direito à cidade é a garantia do espaço de luta pela organização urbana plural. Assim, o livro José identifica a centralidade da cidade e o edifício como metonímia do poder central. Por isso, lutar contra seu modo administrado de funcionamento é assumir um direito ou induzir o questionamento: E agora, José?

No inconstante sistema poético de Drummond dessa fase, história e sujeito tensionam-se numa dialética produtiva que lê no mundo uma totalidade e nos seus próprios movimentos uma unidade sintética. A medida entre uma instância e outra é dosada pela melancólica inquietude, e as desmedidas de ambas as facetas projetam-se nas paisagens da cidade e do campo. O Edifício Esplendor é contraposto ao casarão da memória familiar que resolve e piora a tensão, pois retoma o espaço e o tempo rurais

(4)

como idílio e os contrapõe como retrato amargo ao espaço-tempo administrado. José Miguel Wisnik, no livro Maquinações do Mundo, destaca o papel de Itabira do Mato Dentro como matéria poética na poesia cosmopolita de Drummond. Para ele, essa matéria parte do luto não elaborado da herança familiar patriarcal esboçada e negada pelo fazendeiro do ar. "As oscilações culposas envolvendo o vínculo de classe, o trabalhoso rompimento com a origem oligárquica e a impossibilidade de fazê-lo completamente, de extinguir o sintoma, numa continuada luta mortal e amorosa com a figura do pai, atravessam a obra de Drummond como questão crucial." (WISNIK, p. 26)

Oh que saudade não tenho de minha casa paterna. Era lenta, calma, branca, tinha vastos corredores e nas suas trinta portas trinta crioulas sorrindo talvez nuas, não me lembro, …

Chora, retrato, chora. Vai crescer a tua barba neste medonho edifício de onde surge tua infância como um copo de veneno.

A presença de Itabira, contudo, tem outro conteúdo sub-reptício (surdo, como sugere Wisnik citando o famoso verso "penetra surdamente no reino das palavras…"). O crítico analisa o papel da mineração do ferro na poesia drummondiana. A paisagem da pacata cidadezinha qualquer colonial e rural se vê transformada pelos trens que sorvem as montanhas de ferro da infância do poeta. Sua casa senhorial, localizada em um lugar privilegiado entre o sino da Igreja do Rosário e o pico ferroso do Cauê, marca o que Wisnik chama de um destino mineral do poeta (80% de ferro nas calçadas, 20% de ferro nas almas). E o fato de nem o pico nem a igreja estarem mais lá, engolidos pela máquina do mundo que tritura e escoe o ferro mineiro, é a expressão do lamento itabirano. Além da cósmica paisagem, de acordo com Wisnik, a maquinaria que a corrói imprime um procedimento minerador em sua poesia, "no caso da relação de Drummond com Itabira, o passado volta insistentemente como matéria do presente, que ilumina, por sua vez, a origem: a seu modo, a história mundial está queimando e se desnudando ali." (Wisnik, p. 28)

Edifício Esplendor retoma a matéria da infância (absorvida entre exílio e culpa) como assunto do presente formulado na gangorra entre a mitologia pessoal e o controle sistêmico da vida moderna, que é metaforizada no edifício. Eucanaã Ferraz, no texto Drummond vê a cidade, destaca a curiosidade geográfica, urbanística, arquitetônica e cenográfica revelada fotográfica e cinematograficamente em sua poesia sobre os

(5)

espaços urbanos. Imagens essas, entretanto, melancólicas sobre a fragmentação, a automação, a injustiça e a impotência diante do imperativo da mercadoria. Para o crítico, analisando Edifício Esplendor, o poema arma um esquema surrealista que encena a imagem de uma elevação cósmica e de uma queda mítica. O edifício emerge da areia da praia por uma potência transcendental mas o mito se desmonta pela repetição reificante da existência.

Salta o edifício da areia da praia versus

O elevador sem ternura expele, absorve

num ranger monótono substância humana.

Nas cinco estrofes do poema, as torções entre o eu e o mundo expressam as inquietudes poéticas do sistema criado por Drummond. Além disso, as comichões entre a família e a máquina conduzem o vigor da luta contra o silêncio das células em que se fecham outros tristes moradores resignados. No poema E agora, José?, há uma indignação que dá voz pública ao sentimento coletivo de aniquilamento. Em O lutador destaca-se a metaexpressão dessa voz: "lutar com palavras é luta mais vã, entanto, lutamos mal rompe a manhã". O regresso culposo à infância dissolve-se no espectro de lama do pai em Viagem na família em que "as águas cobrem o bigode,/ a família, Itabira, tudo." Porém, toda a indignação, o recalque familiar e a luta social com palavras contra a centralidade negada encontram uma síntese em Edifício Esplendor. O poema inicia com a cósmica imagem do surgimento do edifício-modernidade. A arquitetura do texto revela, contudo, uma queda livre do homem diante da vida disciplinada. O poema traduz a luta entre o mundo conforme e a voz íntima desconforme. A forma do delírio, espaço de jogo de palavras, se fecha em uma imagem identificada com o destino mineral apontado por Wisnik, uma espécie de garimpo ou higienização. Mecanismo autômato, o sistema chega ao seu limite e se corrompe. Roendo-se a si mesma, a modernidade rui-se e retorna cosmicamente à areia de que viera.

Que século, meu Deus! diziam os ratos, e começavam a roer o edifício.

(6)

Pós-escrito

A oficina de leitura e adaptação literária entende que um espaço privilegiado para compreender a práxis de um movimento social pode se constituir por meio da comunicação dialógica, tal como propõe Paulo Freire em Extensão ou Comunicação?. Construir um espaço criativo de experimentação com palavras e imagens a partir da noção de tradução intersemiótica é uma proposta e uma aposta no direito à arte e à cidade. Por fim, a poesia de Drummond parece oferecer uma oportunidade nesse sentido pela sua própria lógica de funcionamento, pela experimentação que ensaia na spielraum da página em branco.

REFERÊNCIAS:

ANDRADE, Carlos Drummond. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.

BENJAMIN, Walter. O que é Teatro épico?. In: Magia e Técnica, Arte e Política. Trad. Sergio Paulo Rouanet. 10ª reimpressão. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1996.

CANDIDO, Antonio. Inquietudes na Poesia de Drummond. In: Vários Escritos. 6ª ed. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2017.

FERRAZ, Eucanaã. O Poeta Vê a Cidade. Revista Poesia Sempre, Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, nº 16, outubro de 2002.

FREIRE, Paulo. Extensão ou Comunicação?. 18ª ed. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 2013. GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Brecht e Benjamin: peça de aprendizagem e ordenamento experimental. Cadernos de Estética Aplicada, São Paulo, v. VI, nº 11, jan-jun 2012, p. 145-151.

JAKOBSON, Roman. Aspectos Linguísticos da Tradução. In: Linguística e

Comunicação. Trad. Isidoro Blikstein e José Paulo Paes. 4ª ed. São Paulo: 1970.

Referências

Documentos relacionados

No nome que descreve o lugar, deve-se observar em qual posição a letra de campo bom está na palavra. Somar o valor da posição com o número da imagem no site... Ex.: Primeira

dinâmica socioespacial do Sudeste Goiano; mobilidade geográfica do capital e do trabalho; políticas estatais de desenvolvimento local; infraestrutura, mão de obra e matéria

Caso você vá realizar prova no final do ano, agora não é hora de se preocupar com currículo ou entrevista, porque nitidamente é mais rentável destinar horas de estudos para a

Por outro lado, freqüentar a escola entre 0 e 3 anos de idade tem impacto positivo e significante na conclusão do colegial e do ensino universitário e,

Este estudo teve como objetivo verificar tempo de aleitamento materno exclusivo e fatores de risco para desmame precoce em crianças frequentadoras de escolas particulares de

A abertura de inscrições para o Processo Seletivo de provas e títulos para contratação e/ou formação de cadastro de reserva para PROFESSORES DE ENSINO SUPERIOR

Assim como tocar numa mulher com desejo ou sem desejo, de acordo com a opinião mais correcta de Ulamás, não quebra o wudho, desde momento que nenhum líquido saia de

Diante disto, o presente estudo teve como objetivo determinar a composição centesimal e o rendimento do processo de extração do amido da semente do abacate