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OS IMPACTOS DA ALIENAÇÃO DO TRABALHO SOBRE O REFLEXO PSÍQUICO CONSCIENTE The impact of the alienation of labor on the conscious psychic reflex

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Volume 2 | Número 1 | Ano 2020

ISSN 2596-268X

OS IMPACTOS DA ALIENAÇÃO DO TRABALHO SOBRE O REFLEXO PSÍQUICO CONSCIENTE

The impact of the alienation of labor on the conscious psychic reflex

Izabelle Cristinne Rizental Garcia1 João Henrique Rossler2

RESUMO

Este artigo visa discutir o conceito marxiano de alienação para a análise do reflexo psíquico consciente, a partir de autores marxistas clássicos e da Psicologia Histórico-Cultural. Objetiva-se analisar do ponto de vista teórico-conceitual como a alienação do trabalho, em especial, no capitalismo, aliena o reflexo psíquico consciente. Analisa-se, assim, o fenômeno a partir de três processos. 1) Ao deixar de ser controlada pelos trabalhadores e resultar em produtos que não lhes pertencem, a atividade de trabalho produz sentidos pessoais progressivamente restritos à manutenção da vida individual, alienando o sentido do trabalho como produção social da vida e produtor de valores de uso, consequentemente, determinando a alienação da consciência do ser-humano como ser coletivo e pertencente ao gênero humano. 2) Pelo fetiche da mercadoria oculta-se o caráter social do trabalho nela corporificado, determinando que a relação entre produtores se reflita no psiquismo como relação entre coisas, com determinações que se expandem para as demais esferas da vida humana, contribuindo com valorização dos objetos em detrimento das relações humanas e para o estranhamento em relação às forças produtivas sociais das quais o indivíduo é parte. 3) A alienação da atividade principal implica restrições ao desenvolvimento das funções psicológicas superiores, limitando-as às necessidades de desenvolvimento do trabalhador como força de trabalho. Com isso, limita-se o desenvolvimento do reflexo psíquico consciente, a capacidade do trabalhador apreender a realidade na qual

1 Universidade Federal do Paraná – UFPR. Email: izabellecrg@hotmail.com 2 Universidade Federal do Paraná – UFPR. Email: joheross@yahoo.com.br

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se insere, limitando sua capacidade de refletir acerca das determinações da própria vida e de interferir nas mesmas.

Palavras-Chave: Alienação; Trabalho; Reflexo psíquico consciente; Psicologia histórico-cultural.

ABSTRACT

ABSTRACT: This article aims to discuss the Marxian concept of alienation on the conscious psychic reflex, from classic Marxist authors and Historical-Cultural Psychology. It aims to analyze from a theoretical-conceptual point of view how the alienation of labor, especially in capitalism, alienates the conscious psychic reflex. The phenomenon is analyzed through three processes. 1) By ceasing to be controlled by workers and resulting in products that do not belong to them, work activity produces personal meanings progressively restricted to the maintenance of individual life, alienating the sense of work as social production of life and producer of value of use, consequently, determining the alienation from the consciousness of the human being as a collective being and belonging to the humankind. 2) The social characteristic of the work embodied in it is concealed by the commodity fetishism, determining that the relation among workers is reflected in the psyche as a relation among things, with determinations that expand to other spheres of human life, contributing to the valorization of objects to the detriment of human relations and to alienation from the productive social forces of which the individual is part. 3) The alienation from the main activity determines restrictions on the development of higher psychological functions, limiting them to the developmental needs of the worker as a work force. This limits the development of the conscious psychic reflex, as the capacity of the worker to grasp the reality in which he is inserted, limiting his ability to reflect on and determine his life.

Keywords: Alienation; Labor; Conscious psychic reflex; Historical-cultural psychology.

1. Introdução

O presente artigo tem como objetivo a discussão do conceito marxiano de alienação na análise do reflexo psíquico consciente e suas formas alienadas de expressão. O problema da alienação do trabalho e seu impacto no desenvolvimento do reflexo psíquico consciente é central para a Psicologia Histórico-Cultural, cujas bases filosóficas se assentam sobre o materialismo histórico-dialético. Em especial, em razão do estatuto ontológico e psicológico que o reflexo psíquico da realidade objetiva, o reflexo consciente ou a consciência, possui para essa corrente científica da Psicologia que o toma como sendo o próprio objeto da Psicologia como ciência.

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Assim, é importante que se retome a categoria da alienação que, embora central na análise de tantos fenômenos psicológicos e sociais, é tratada comumente de modo superficial e abreviado, sem a devida conceituação. O intuito, com isso, é aprofundar a compreensão de seus impactos sobre o reflexo psíquico consciente.

Para tanto, a análise que ora se realiza organiza-se em três momentos distintos, porém, articulados. Primeiramente, nos itens 2 e 3, retoma-se o conceito de alienação no pensamento marxista. Na sequência, no item 4, define-se o reflexo psíquico como objeto da psicologia a partir de A. N. Leontiev (1972, 1978a, 1978b), S. L. Rubinstein (1963), A. A. Smirnov (1969). Por fim, no item 5, buscar-se-á compreender a relação entre a alienação do trabalho e alienação do reflexo psíquico consciente.

2. A elaboração conceitual da alienação em Marx

A discussão da elaboração conceitual de Marx acerca do problema da alienação deve ter início pela pergunta direta: o que é alienação, afinal? E a melhor forma de responder é recorrendo, inicialmente, às origens etimológicas do termo. Segundo Saviani (2012),

Etimologicamente a palavra “alienação” deriva do adjetivo latino “alius”, “alia”, “aliud”. Alius significa, simplesmente, “outro”. Deste adjetivo deriva “alienar”, “alienação” e “alienado”. E são essas expressões que tanto podem significar “tornar outro”, “tornado outro”, isto é, “objetivar”, “objetivação”, “objetivado”, como “passar para outro”, “passado para outro” ou “apropriado por outro” (p. 29).

Konder (2009) afirma que Marx retoma o conceito de alienação a partir de Hegel3 e Feuerbach4. O termo é utilizado, especialmente, a partir dos vocábulos

da língua alemã Entäußerung e Entfremdung. Borgianni (1998), explica que o primeiro termo é utilizado com foco na questão da “exteriorização” ou “externalização” dos atributos do ser-humano como “objetivação” – processo pelo qual a atividade humana materializa-se, externaliza-se em seu produto. O segundo é utilizado enfatizando a questão do “estranhamento” ou “alienação” propriamente dita, isto é, correspondendo ao sentido negativo do termo em que o ser humano estaria em uma relação de oposição com um poder hostil, que é

3 Georg Wilhelm Friedrich Hegel (27/08/1770 a 14/11/1831) foi um importante filósofo

representante do idealismo alemão.

4 Ludwig Andreas Feuerbach (8/07/1804 a 13/09/1872) foi um eminente filósofo do materialismo

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criado por ele próprio e o domina. Assim, segundo Saviani (2012), Entäußerung tem o sentido de “torna-se outro” ou objetivar; enquanto Entfremdung o sentido de “passar para outro” ou “apropriado por outro”.

Conforme Mészáros (2006), a formulação do sistema teórico de Marx, que se vincula diretamente com a superação da alienação do trabalho, tem origem em sua tese de doutorado, que põe em relevo a “privatização da vida”, a “individualidade isolada”, a chamada “bellum omnium contra omnes”5. Segundo ele, Marx, em seu artigo Sobre a questão judaica, toma “a guerra de todos contra todos” praticada na sociedade burguesa como seu objeto de estudo, considerando-a então como o princípio responsável pela divisão do ser-humano em cidadão público e indivíduo privado; o motivo da separação do ser-humano com o ser comunitário e consigo próprio. Assim, a concepção inicial de alienação em Marx se destaca como denominador comum na análise da religião e do Estado, bem como da vida econômica, política e familiar, nas quais essa guerra de todos contra todos se opera (MÉSZÁROS, 2006).

Em janeiro de 1844 Marx entra em contato com o texto Esboço de uma

crítica da economia política, de Engels. Nesse texto, Engels expõe o capitalismo

como uma “condição inconsciente da humanidade” e propõe o abandono da propriedade privada e da produção regida pelo acaso, por uma produção conscientemente dirigida pela espécie humana.

A partir do contato com esse texto, Marx intensifica seus estudos sobre a economia política, o que se desdobra na produção dos Manuscritos

econômico-filosóficos, no qual discorre sobre questões como a liberdade, o significado da

vida, a relação entre o ser comunitário e o individual, dentre outras. Neste texto adentra na problemática da superação (Aufhebung) concreta da situação da alienação, aí já entendida de forma mais clara como alienação do trabalho ou alienação da própria essência humana, já que sua essência é o trabalho. Ou seja, como um processo de servidão aos objetos, que distancia o trabalhador do gênero humano, que o deforma em suas capacidades e que decorre da propriedade privada dos meios de produção e da exploração do trabalho, o qual deixa de ser controlado pela comunidade e de servir diretamente aos seus interesses. Dessa forma, os fenômenos de separação, isolamento, individualismo etc. são analisados como manifestações do processo de produção da vida sob a divisão do trabalho, como um processo material e histórico (MÉSZÁROS, 2006).

Observa-se, portanto, que o contato com a economia política possibilitou a Marx um grande salto em termos da capacidade de abordar e articular uma

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série de problemas filosóficos que foram observados por ele ao longo de sua trajetória enquanto filósofo e economista. Nesse ponto do desenvolvimento teórico de Marx, o trabalho toma contornos definidos como aspecto ontológico definidor tanto da “essência” humana, como também da existência humana específica, quando tomado nas formas em que é organizado e executado historicamente pelo conjunto das diferentes sociedades, nos diferentes modos de produção (MÉSZÁROS, 2006).

O trabalho em seu caráter ontológico, como definidor do que é o ser humano, merece destaque, pois é apenas a partir da concepção de essência humana que se pode definir o que se constitui como alienação dessa essência: o trabalho alienado. Para Saviani (2012), essência humana e trabalho são, portanto, questões centrais nos Manuscritos. Nele, a essência humana aparece como essência alienada, negada socialmente nas relações dos homens com o produto de sua atividade, com sua própria atividade e com outros homens (SAVIANI, 2012).

Segundo Saviani (2012), é importante ressaltar, todavia, que a ideia de essência humana aparece já nesse momento, em Marx, como atributo resultante do processo de construção histórico-social da humanidade, afastando-se, assim, de uma ideia abstrata, a priori e universal de essência, que poderia ser interpretada como uma mera possibilidade a ser realizada, porém, inexistente até o momento. Do mesmo modo, a alienação dessa essência, o trabalho alienado, aparece como decorrente de relações histórico-sociais concretas ligadas à produção material da vida. Portanto, um fenômeno histórico e socialmente determinado, cuja possibilidade de superação é também histórica e socialmente condicionada (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 1980).

É nas Teses sobre Feuerbach e na Ideologia Alemã, contudo, que o problema da relação entre essência humana, trabalho e alienação, em Marx, será tratado com maior profundidade histórica, abandonando-se, inclusive, a terminologia filosófica adotada nos Manuscritos econômicos-filosóficos, a qual ainda remetia a certos conceitos metafísicos e especulativos (SAVIANI, 2012). Para o autor (2012, pp. 37-38), nessas obras,

(...) o conceito de essência humana passa a coincidir com práxis, ou seja, o homem passa a ser entendido como ser prático, produtor, transformador. Em consequência, o conceito de alienação deixa de desempenhar o papel central que desempenhava nos Manuscritos. Em lugar de ser o fundamento explicativo da situação humana, passa a ser considerado um fenômeno social que, por sua vez, é fundamentado e explicado ou outro fenômeno histórico, a saber, a divisão do trabalho.

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Dessa forma, com a mudança da perspectiva da abordagem da alienação, passando a tomá-la como produto da divisão social do trabalho e da propriedade privada, abriu-se o caminho para a análise rigorosa do modo de produção capitalista em sua obra máxima, O Capital.

3. Alienação, propriedade privada e exploração do trabalho

A gênese do fenômeno da alienação do trabalho acompanha a gênese da exploração dos trabalhadores por uma determinada classe social.

Durante a maior parte da história da humanidade o baixo nível de produtividade do trabalho impedia o controle da produção, bem como a apropriação privada sobre o produto do trabalho da comunidade. Dessa forma, a baixa produtividade se apresentava como impeditivo técnico para a exploração e, consequentemente, para uma relação distanciada do trabalhador em relação ao produto e ao processo do trabalho (KONDER, 2009).

Até então, vivia-se no chamado comunismo primitivo, no qual o trabalho apenas supria as necessidades imediatas do grupo. Nele inexistia a propriedade privada e a divisão do trabalho se baseava em características físicas dos membros da comunidade. Apenas depois do período neolítico, a produtividade do trabalho aumenta progressivamente, a ponto de se tornar viável economicamente o trabalho escravo, inaugurando-se nesse momento a divisão social do trabalho. Com ela surge também a propriedade privada e a diferença de interesses entre classes sociais distintas e antagônicas (KONDER, 2009).

Assim, de acordo com Netto e Braz (2012) o desenvolvimento dos meios de produção possibilitou que a humanidade passasse a produzir mais do que consumia. Tal marco viabilizou a exploração do trabalho, inicialmente pelo modo de produção escravista, cujo antagonismo fundamental entre as classes se desenhava entre os proprietários de terras e escravos, uma parcela da população que não dispunha nem mesmo da própria vida e que era propriedade do seu senhor. Posteriormente, o escravismo dá lugar ao feudalismo como modo de produção dominante no mundo ocidental, cuja economia era baseada na propriedade privada da terra pela nobreza e no trabalho da terra pela classe dos servos. Estes contraiam uma série de compromissos mútuos com os nobres, em especial, a troca de parte de seu trabalho e o pagamento de tributos pela proteção de sua vida pelo senhor feudal. Segue-se a esse período o modo de produção capitalista, marcado pelo assalariamento, o qual ocorre com igualdade jurídica entre capitalista e trabalhador, e pela generalização da forma mercadoria, tendo sua venda como objetivo da produção (NETTO & BRAZ, 2012).

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A demanda pela universalização das relações mercantis determinada pelo capitalismo e sua relação com a alienação é abordada por Mészáros (2006). O autor destaca que a alienação como venda de bens possuía limitações ditadas pela moral religiosa, a qual precisou ser adaptada para manter-se afinada às demandas do capitalismo em ascensão. Nesse caso, o modo de produção capitalista demandava a possibilidade de universalização da “vendabilidade”, isto é, de que tudo fosse passível de ser transformado em mercadoria. Demanda esta, inclusive, que se sobrepôs à concepções que pregavam a inalienabilidade de partes sagradas da criação de Deus, que não deveriam se tornar propriedade particular, como é o caso, por exemplo, da terra.

Esse processo de expansão das relações comerciais e da necessidade de vendabilidade inclui também o ser humano e a demanda de que estes pudessem livremente estabelecer relações contratuais, nas quais alienassem (passassem a outro) sua força de trabalho àquele que por ela estivesse disposto a pagar (se apropriar). Nesse contexto, Mészáros (2006, p. 39) define:

A alienação caracteriza-se, portanto, pela extensão universal da “vendabilidade” (isto é, a transformação de tudo em mercadoria); pela conversão dos seres humanos em “coisas”, para que eles possam aparecer como mercadorias no mercado (em outras palavras: a “reificação” das relações humanas); e pela fragmentação do corpo social em “indivíduos isolados” (vereinzelte Einzelnen), que perseguem seus próprios objetivos limitados, particularistas, “em servidão à necessidade egoísta”, fazendo de seu egoísmo uma virtude em seu culto da privacidade.

Além da expansão das relações mercantis e do assalariamento, a divisão do trabalho sob o modo de produção capitalista ocorre de forma específica e é outro aspecto intrinsecamente relacionado aos contornos particulares que a alienação adquire neste modo de produção. De acordo com Marx (2011), as origens desta divisão datam do início do capitalismo, século XVI, no período manufatureiro. Nele os trabalhadores eram unidos em galpões para exercer em conjunto ofícios como de carpintaria, pintura e costura, com o objetivo de elaboração de um produto tecnicamente complexo; ou ainda pela divisão de um trabalho em diferentes etapas para maior eficiência, tornando o produto síntese coletiva de vários trabalhadores parciais. Marx (2011) aponta que em ambos os casos se inaugura um mecanismo de produção cujos órgãos são os seres humanos, no qual sua força de trabalho é absorvida pela função parcial que executa, restringindo o trabalhador a uma aptidão específica. Para cada fase da produção é necessário que o trabalhador desenvolva uma habilidade distinta. Em certa etapa da produção é necessária mais força, noutra mais destreza, em

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outra mais atenção etc., chegando-se ao desenvolvimento anômalo dos músculos, a deformações ósseas e às patologias decorrentes do trabalho repetitivo.

Com o desenvolvimento da indústria moderna, a maquinaria vem a incrementar o sistema de divisão do trabalho, aprofundando a cisão do trabalhador. De acordo com Marx (2015), o trabalhador deixa de manejar uma mesma ferramenta parcial por toda sua vida, para então servir sempre a uma máquina parcial, convertendo-se em parte dessa máquina da mesma forma que era parte da ferramenta na manufatura.

Assim, com a introdução da maquinaria e desenvolvimento do capitalismo, intensifica-se o processo que teve início a partir da manufatura. Os trabalhadores progressivamente têm o desenvolvimento das suas mais diversas capacidades deformado, em virtude do trabalho parcial e da rotina de trabalho extenuante; da relação distanciada em relação ao produto de seu trabalho e ao processo de produção; da falta de compreensão da sua singularidade como agente ativo da produção social da vida e de sua motivação para o trabalho atrelar-se essencialmente ao salário. Dessa forma, os trabalhadores se confrontam como produtores independentes de mercadorias, reconhecendo apenas a autoridade da concorrência, em uma verdadeira “guerra de todos contra todos” (Marx, 2011).

De acordo com Pinto (2007), mesmo com as modificações ocorridas nos processos de produção e trabalho e na forma de gestão dos trabalhadores a partir da década de 1970 – quando os trabalhadores passam a ter maior responsabilidade sobre seu trabalho, a exercer diversas funções (multifuncionalidade), com tarefas mais intelectualizadas e coletivas (em equipe) e com jornadas flexíveis – o trabalho permanece alienado. De fato, observou-se a intensificação do trabalho, o rompimento das relações colaborativas em virtude da vigilância mútua entre os trabalhadores, a permanência da falta de controle sobre a produção e de acesso aos bens produzidos. Assim, de acordo com Malaguty e Rossler (2016), as transformações ocorridas no trabalho nas últimas décadas acabaram por intensificar os processos de alienação ao produzir novas exigências objetivas e subjetivas (psíquicas) ao trabalhador.

Seja em qualquer época histórica, a alienação expressou-se objetiva e subjetivamente na vida dos trabalhadores. Se por um lado, a dimensão objetiva dos processos de alienação expressa e determina o empobrecimento material e espiritual dos indivíduos, cujo desenvolvimento particular se distanciou progressivamente do desenvolvimento universal do gênero humano, da humanidade tomada em seu conjunto; por outro, a vivência subjetiva desse processo se expressou e se expressa de forma contundente na consciência de

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Nesse sentido, urge a análise da dimensão subjetiva (psicológica) da alienação e sua expressão no reflexo psíquico consciente, na consciência. Em outras palavras, a análise do modo pelo qual os processos de alienação do trabalho repercutem psiquicamente sobre a forma pela qual os trabalhadores apreendem subjetivamente a realidade objetiva a sua volta.

4. O reflexo subjetivo da realidade objetiva

Smirnov, Leontiev, Rubinshtein e Tieplov (1969) definem que “a psicologia é a ciência dos fenômenos psíquicos, ou seja, das funções cerebrais que refletem a realidade objetiva” (p.13, tradução nossa). Essa afirmação coloca em questão a discussão de que, para a Psicologia Histórico-Cultural, o fator primário é a matéria, de forma que, ao analisar o psiquismo, a consciência, a ideia, é uma forma derivada do reflexo da realidade objetiva no cérebro humano, um processo de transformação da excitação externa produzida pela matéria em um ato de consciência (SMIRNOV ET AL. 1969; RUBINSTEIN, 1963).

A matéria é também refletida no psiquismo de outros seres-vivos, cujo desenvolvimento acompanha a filogênese, em especial, a filogênese do sistema nervoso. Todavia, é com a gênese da sociedade humana, baseada no trabalho coletivo, que se desenvolve o reflexo psíquico especificamente humano, a consciência, que se reflete e se fixa na linguagem e é condicionada socialmente (SMIRNOV ET AL., 1969; LEONTIEV, 1978a). Assim, a atividade do ser humano é regulada por imagens mentais da realidade, de forma que a consciência é o retrato do mundo que se desdobra para o sujeito, incluídas suas atividades e estados físicos e psicológicos (LEONTIEV, 1972). A consciência caracteriza-se, portanto, pelo fato do reflexo psíquico da realidade se diferenciar das relações imediatas existentes entre o sujeito e a realidade circundante (LEONTIEV, 1978a). Ou seja, desenvolvem-se abstrações correspondentes às propriedades objetivas da realidade, que podem se desvincular da relação singular e imediata com o objeto, a partir das experiências anteriores do indivíduo.

A determinação social da consciência pode ser observada analisando o ser humano em seu constante processo de intercâmbio com o meio natural e social. Neste contato, o ser humano se confronta com uma imensa gama de objetos e fenômenos que produzem excitação em seus órgãos sensoriais, a qual é convertida em sensações, percepções, sentimentos e aspirações. Constitui-se, assim, o mundo subjetivo do ser humano como imagem do mundo objetivo (SMIRNOV et al., 1969). Assim, realidade objetiva e a atividade do sujeito vão determinar, inicialmente, a imagem que se constrói da realidade (o reflexo

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psíquico consciente), sendo a consciência, portanto, um produto objetivo que, todavia, exerce papel ativo no controle da atividade. Embora a realidade objetiva e a atividade que nela se realiza sejam o ponto de partida do desenvolvimento do reflexo psíquico consciente, atividade e consciência se determinam mutuamente (LEONTIEV, 1972).

Ainda que boa parte dos estímulos advindos do mundo interno e externo ao sujeito não se reflita em seu cérebro de forma imediata – como costuma ocorrer com um estímulo doloroso ou com a contração involuntária das pupilas diante de um estímulo luminoso – com o desenvolvimento da história da humanidade e ampliação do universo de objetos materiais e simbólicos por ela criados, dos quais cada individuo pode se apropriar ao longo de sua vida, a relação do homem consigo mesmo e com o mundo natural e social passou a ser mediatizada por conceitos, generalizações, deduções e comparações. A captação da realidade passou a ocorrer para além do que as sensações e percepções trazem como dados imediatos. E a humanidade passou a conhecer a realidade a partir do pensamento (SMIRNOV et al., 1969).

De acordo com os Smirnov et al. (1969), a realidade não se reflete de forma passiva sobre o ser humano, mas sim ativamente. A atitude do indivíduo diante de um fenômeno se apresenta e se relaciona com a sua experiência anterior, com as características de sua personalidade que foram se constituindo ao longo de sua história e que se traduzem em necessidades, interesses, sentimentos e atos volitivos, os quais medeiam sua relação com a realidade a sua volta. De acordo com Rubinstein (1963), a imagem que se forma subjetivamente é um reflexo do objeto tal como ele se apresenta nas relações que o sujeito desenvolve com ele, não sendo uma reprodução mecânica e passiva, nem tampouco uma projeção solipsista por parte do sujeito.

Com relação a esse aspecto ativo e objetivo do reflexo psíquico consciente, dois conceitos são fundamentais para sua devida compreensão, pois se tratam, junto com a matriz sensorial6, dos componentes centrais da

consciência humana. A saber, a significação social e sentido pessoal (LEONTIEV, 1978a). Os significados são transmitidos pela linguagem e revelam os modos socialmente desenvolvidos de ação pelos quais os seres humanos modificam e conhecem a realidade objetiva. De acordo com Leontiev (1972, p.14), “significados são a forma ideal materializada e linguisticamente transmutada de existência do mundo objetivo, suas propriedades, conexões e relações reveladas pela prática social agregada”. Além da consciência social que se cristaliza nos significados, estes também se constroem como processos da

6 A matriz sensorial refere-se ao conteúdo sensível da consciência, como sensações,

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atividade e da consciência de indivíduos específicos, mediatizados pela consciência social, mas com características singulares, constituindo o chamado sentido pessoal (LEONTIEV, 1978a).

Assim, é na atividade do homem que ocorre o reflexo da realidade e a atividade é a fonte do conhecimento dos fenômenos e objetos. É nela que o reflexo se orienta para um fim determinado e selecionado pela vontade; a partir daquilo que tem importância para si, bem como de acordo com as necessidades singulares e as necessidades da vida social (Smirnov et al., 1969). Dessa forma, a atividade provê as experiências que constituem a base sobre a qual se constrói o reflexo psíquico da realidade, em intrínseca dependência das condições sociais do indivíduo. Como, por exemplo, do trabalho, da educação e das influências das pessoas ao seu redor. Dessa forma, o processo de atividade constitui a bagagem da história individual, a qual refrata as experiências presentes pela forma singular com a qual o indivíduo se apropria da cultura humana (Smirnov et al., 1969; Leontiev, 1978b).

Diferentes atividades determinam diferentes reflexos psíquicos da realidade e, portanto, diferentes formas de consciência. Leontiev (1972) aponta que a realidade é refletida para o indivíduo na forma de imagens sensoriais, porém não é apenas refletida, como também refratada por significados ou valores com os quais o indivíduo tem contato e se apropria ativamente ao longo de sua vida. O autor (1972) aponta que a assimilação dos significados se dá na atividade externa e de forma mediada, ocorrendo na interação com os objetos e nas relações e operações lógicas práticas. Com o processo de interiorização dessas relações externas, estas passam a construir conceitos abstratos, ou significados, que constituem a atividade mental interna. Assim, na relação com o mundo externo assimilam-se os significados socialmente elaborados e constrói-se uma relação singular com os mesmos na consciência individual, utilizando-se dos significados para se apreender a experiência histórica generalizada e conceitualizada (LEONTIEV, 1978a)

O desenvolvimento promovido pela apropriação da cultura teve sua origem no trabalho como atividade vital humana, no salto que este promove no psiquismo humano ao possibilitar o parcelamento das atividades em ações, e com isso, o desenvolvimento de novas necessidades, motivos e sentidos pessoais. Esse parcelamento demanda atenção e objetivos próprios para cada fase da produção, criando, assim, a necessidade de que se desenvolva um elo entre a parte e a totalidade do processo, ou seja, um sentido para a ação que está sendo desenvolvida, a qual precisa estar vinculada à atividade geral e ao motivo que a impulsiona (LEONTIEV, 1978a).

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específico realizado por cada ser humano singular, em um dado modo de produção, que promove o desenvolvimento individual de acordo com as condições de sua execução. Dessa forma, o trabalho em seu duplo caráter, ou seja, como responsável pelo desenvolvimento histórico e social da humanidade e como atividade principal da vida adulta, ocupa um papel central no processo de desenvolvimento da consciência. De acordo com Leontiev (1978), a atividade principal se define não apenas pela sua frequência, mas pelo fato de, a partir dela, outras atividades e processos psíquicos se moldarem e se reorganizarem. Assim, as principais mudanças da personalidade dependem da atividade principal e, em cada fase da vida, uma determinada atividade assume esse papel (RIOS & ROSSLER, 2017a). Na vida adulta, a atividade principal é o trabalho. De acordo com Rios & Rossler (2017b, p. 567):

O trabalho implica, portanto, o desenvolvimento de capacidades e habilidades, a automatização de ações, a apropriação e sofisticação de conhecimentos e saberes e a criatividade. Confere, além disso, um nível qualitativamente superior à dinâmica interfuncional do psiquismo, potencializando a consciência acerca da realidade e de si mesmo. Mobilizando signos e significados, o trabalho engendra rearticulações entre as funções psicológicas do complexo sistema interfuncional do psiquismo humano (sensação, percepção, memória, linguagem, pensamento, imaginação, emoção e sentimento), e transforma, com isso, a consciência como um todo.

Em outras palavras, como atividade principal, o trabalho assume papel central na determinação do reflexo psíquico consciente. Sua forma e conteúdo determinam, ao longo da história, as formas e conteúdos da consciência individual, a qual se transforma, portanto, conforme se transformam as relações sociais estabelecidas entre os homens para a produção da sua vida.

Rubinstein (1963) afirma que no processo histórico da humanidade se produzem modificações no reflexo da realidade – tanto no caso de aspectos sensoriais, como em relação aos traços e processos psíquicos mais gerais, como pensamentos, sentimentos, interesses etc. – a depender do desenvolvimento e organização social de cada período histórico. O autor aponta, como exemplo disso, a modificação do reflexo psíquico decorrentes do advento das transformações econômicas e sociais promovidas pela revolução russa de outubro de 1917. Com a cessação do regime de exploração fruto da propriedade privada teria sido possível observar o desenvolvimento de novas aptidões e forças criadoras nos indivíduos. Assim, sem a restrição do desenvolvimento psíquico decorrente da propriedade privada, puderam se manifestar os traços mais gerais da natureza autenticamente humana, que até então ficavam

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impedidos de se desenvolver em virtude da exploração do trabalho, da propriedade privada e da priorização do lucro em detrimento da satisfação das necessidades e desenvolvimento humano, que se expressa no reflexo psíquico. Dado que o capitalismo é o modo de produção atualmente vigente, quase que na totalidade do planeta, e que nele o trabalho é organizado a partir da propriedade privada, da necessidade do lucro e da expansão do capital, cabe analisarmos como o modo de trabalho alienado que ele determina impacta na constituição da imagem subjetiva da realidade.

5. O trabalho alienado e a alienação do reflexo psíquico consciente. Observamos que no modo de produção capitalista a forma de trabalho predominante é o trabalho assalariado, sendo o controle da produção determinado pelas necessidades do próprio capital. Na fábrica, por exemplo, os movimentos e o ritmo de trabalho são determinados pela maquinaria e o trabalhador executa um trabalho parcializado que não controla. Desenvolve-se, assim, a monotonia do trabalho e sua penosidade, alargando-se a unilateralidade do desenvolvimento dos trabalhadores (MARX, 2011).

Entretanto, a deformação das capacidades humanas não se opera apenas na esfera do trabalho. As habilidades desenvolvidas no trabalho tornam-se órgãos da individualidade do trabalhador, agregando-tornam-se a ele e tornam-sendo utilizadas em todas as esferas da sua vida. Todavia, ao longo do desenvolvimento histórico do capitalismo, esse processo se limita cada vez mais ao desenvolvimento de capacidades necessárias à execução das tarefas imediatas que o trabalhador executa em seu trabalho. Assim, as habilidades socialmente desenvolvidas pelo conjunto da atividade dos homens, em cada esfera da produção social da vida, são individualmente amputadas, empobrecendo a individualidade do trabalhador seja no trabalho, seja fora dele. Como aponta Marx (2011), por exemplo, o camponês e o artesão independentes desenvolvem, ainda que modestamente, conhecimentos, sagacidade e vontade, apurando sua astúcia pessoal. Já na manufatura e na fábrica, essas capacidades são exigidas apenas do conjunto dos produtores, não mais dos indivíduos. As forças intelectuais ficam, portanto, inibidas em relação a tudo o que não se enquadre na unilateralidade da produção. Conforme demonstra Marx

n’O capital (2011, p. 416), em consonância com os Manuscritos econômico-filosóficos (2015):

O que perdem os trabalhadores parciais, concentra-se no capital que se confronta com eles. A divisão manufatureira opõe-lhes as forças intelectuais do processo material de produção como

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propriedade de outrem e como poder que os domina. (...) Esse processo desenvolve-se na manufatura, que mutila o trabalhador, reduzindo-o a uma fração de si mesmo, e completa-se na indústria moderna, que faz da ciência uma força produtiva independente de trabalho, recrutando-a para servir ao capital. A divisão do trabalho e as condições de vida impostas ao trabalhador no capitalismo determinam, portanto, que este se desenvolva apenas como mero portador da força de trabalho, ou seja, cada vez mais parcial e dependente do capitalista para sua subsistência. Isso ocorre em virtude do fato do trabalhador parcial ser incapaz de produzir mercadorias por si só. E mesmo que o seja, de não conseguir produzi-las de forma competitiva e que lhe garanta sua subsistência7 (MARX, 2011). Observa-se, dessa forma, como o trabalho parcelar

e a relação de assalariamento a que o trabalhador é submetido no capitalismo acabam circunscrevendo o desenvolvimento dos seres humanos às demandas do capital.

A atividade psíquica humana e o conteúdo do reflexo consciente da realidade objetiva são dependentes do modo de vida que os indivíduos possuem, se modificando a partir das mudanças nas atividades que estes desenvolvem (LEONTIEV, 1978a). Um exemplo dessa mudança se refere à consciência dos seres humanos primitivos, que correspondia à organização social comunal, ao baixo desenvolvimento das forças produtivas e à inexistência de divisão entre trabalho intelectual e manual. Dessa forma, todos os membros da tribo realizavam atividades que contribuíam com a sobrevivência do grupo. Diferentemente da vida moderna, na qual se vive em uma estrutura social muito mais complexa, na qual os diferentes interesses, valores e explicações para os mesmos fenômenos do mundo distinguem-se entre as classes sociais que a compõem e chocam-se entre si.

Na sociedade comunal a consciência dos indivíduos era marcada pelo fato das relações dos membros do grupo com as condições e meios de produção serem idênticas, havendo, portanto, certa homogeneidade na forma pela qual o mundo era refletido na consciência de seus membros (LEONTIEV, 1978a). Assim, sob condições semelhantes de trabalho, em que imperava uma relação de igualdade com os meios de produção e com os produtos do trabalho, os indivíduos desenvolviam sentidos coincidentes, havendo, portanto, unidade entre os significados sociais e sentidos pessoais na consciência.

7 Mesmo havendo a permanência de trabalhadores autônomos, artistas, artesãos etc., estes são uma fração muito pequena dos trabalhadores, de forma que se considera o trabalho assalariado e parcial como forma dominante e capaz de melhor explicar as relações sociais e a subjetividade no capitalismo.

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Com o desenvolvimento dos meios de produção, com o aprofundamento da divisão sócio-técnica do trabalho e a ampliação da esfera dos fenômenos conscientes que resultam desse processo, inevitavelmente passa a haver divergência na forma com que os fenômenos são refletidos na consciência dos indivíduos. Em um primeiro momento, entretanto, havia ainda unidade entre sentidos e significados devido à relação com os produtos e meios de produção serem iguais, ou seja, em virtude de o produto do trabalho coletivo ter o sentido de um bem comum (LEONTIEV, 1978a). Porém, com desenvolvimento da divisão social do trabalho e da propriedade privada se modifica a relação com a atividade de trabalho, ocorrendo, então, uma ruptura entre sentidos e significados, que passam a ter “uma relação de exterioridade” (LEONTIEV, 1978a, p. 114). Essa ruptura ocorre a partir do processo objetivo de surgimento de uma classe social que passa a exercer atividades predominantemente intelectuais e a ter a posse de parte dos frutos da produção material obtidos pelo trabalho de outra parcela da sociedade. Dessa forma, progressivamente, a atividade de planejamento e controle e a atividade de execução da produção social da vida se distanciam, bem como as ligações e relações entre os membros da sociedade que executam uma ou outra atividade.

No modo de produção capitalista esse processo se acentua e a separação entre produtores e não produtores, proprietários e não proprietários dos meios de produção, bem como a conversão da força de trabalho em mercadoria, determinam a subordinação do trabalho ao capital; e, consequentemente, a subsunção do valor de uso do trabalho, sua finalidade social concreta, ao seu valor abstrato de troca, como mercadoria.

Como afirma Leontiev (1978a), essa ruptura entre atividade intelectual e manual, entre produto e produtor, entre o valor de uso e o valor de troca do trabalho, entre o trabalho e a riqueza por ele socialmente produzida, se reflete na consciência dos homens que não a percebem como decorrente de processos histórico-sociais, mas sim como o resultado de um processo natural, abstrato e a-histórico, cujo caráter explica a história ao invés de ser explicado por ela. Com essa ruptura, o sentido pessoal do trabalho e, com ele, o sentido da vida humana, deixam de convergir diretamente com a produção coletiva da vida, com a produção de bens úteis à satisfação de necessidades do conjunto da humanidade, voltando-se progressivamente para a reprodução apenas da vida individual. Tem-se nesse processo a gênese psíquica do individualismo, ou seja, das formas de pensamento, sentimento e ação centradas psicologicamente na particularidade do eu; da alienação da consciência (do reflexo psíquico) do homem como ser coletivo, pertencente ao gênero humano; da alienação dos homens para com os próprios homens. Nele desenvolve-se paralelamente o

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sentimento da posse como expressão do reflexo psíquico alienado da particularidade e da sua relação com a genericidade, com o gênero humano.

Por outro lado, com a universalização da produção de mercadorias, ou seja, com a generalização da forma-mercadoria no modo de produção capitalista, as relações entre os homens e destes com a produção e seus produtos passam a ser por ela mediadas. Tem-se no interior desse processo a gênese do fenômeno social e psicológico do fetiche da mercadoria, definido por Marx (1996; 2011) a partir do caráter abstrato que o trabalho adquire no modo de produção capitalista. Fenômeno este que irá impactar diretamente na consciência do trabalhador, adquirindo um papel central no processo de alienação do reflexo psíquico da realidade. Ao confrontarem-se como equivalentes no mercado as diferentes mercadorias, se oculta o próprio caráter da relação que ali se opera, isto é, a de equivalência entre trabalhos humanos que dão valor às mercadorias. Desse modo, a relação entre os produtores e as características sociais dos seus trabalhos aparecem como relações sociais entre coisas, em virtude de serem mediadas pelas mercadorias que aparentam, assim, terem um valor em si mesmas.

O fetichismo se caracteriza, assim, por um processo objetivo e psicológico de ocultamento ao trabalhador do trabalho que se corporifica nas mercadorias que produz, ou seja, como um distanciamento em relação ao caráter social da produção, que é a esfera privilegiada de determinação sobre as demais formas de relação social. Por isso, de um ponto de vista social e psicológico, tem importância especial e estruturante em relação às demais manifestações da alienação. As mercadorias refletem aos produtores as características sociais do trabalho humano como se fossem características inerentes ao próprio produto do trabalho, como suas propriedades naturais, trazendo a aparência de que as relações entre os produtores e destes com o seu trabalho consistem em uma relação entre objetos. Coisifica-se, assim, objetiva e subjetivamente, nesse processo, o homem; refletindo-se na sua consciência a relação entre os homens como relação entre objetos; como relação entre coisas. Nele a lógica da mercadoria e seu fetiche se generalizam e invadem as demais esferas da vida humana, refletindo-se na consciência, alimentando o sentimento da posse e promovendo a valoração psicológica do ter sobre o ser.

O fetichismo é um fenômeno característico da produção mercantil e isso decorre do fato de que os trabalhos são realizados de forma privada e independente uns dos outros, confrontando-se o trabalhador com o caráter social da produção apenas na esfera da troca entre mercadorias (MARX, 2011). Saviani (2012, p.29), assim, por outro lado, o trabalho socialmente desenvolvido, a fábrica e a ciência, por exemplo, não aparecem ao trabalhador como fruto das

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forças produtivas sociais, das quais ele é parte ativa e constitutiva, mas como dele independentes, como seres alienados (forças estranhas) que a ele se opõem. Enfraquece-se, assim, o homem frente a uma força estranha e externa que lhe domina o corpo e o espírito.

Por último, mas não menos importante, as determinações dos processos de alienação do trabalho como atividade principal, implicam restrições ao desenvolvimento do psiquismo consciente, das capacidades e habilidades do homem, que ocorre apenas circunscrito às necessidades de desenvolvimento do trabalhador como força de trabalho, como executor de tarefas circunscritas à porção imediata que lhe cabe no processo de trabalho do qual é apenas um elemento constitutivo. Assim, ainda que o trabalho, mesmo que alienado, humanize (MALAGUTY & ROSSLER, 2016), sob relações sociais de produção alienadas encontra-se limitado o desenvolvimento das funções psicológicas superiores – como a memória, a atenção, a percepção, a imaginação etc. – limitando-se com isso a capacidade psíquica do trabalhador de refletir o mundo a sua volta, ou seja, sua capacidade de apreensão (conhecimento) da realidade natural e social na qual se insere. Em virtude disso, a capacidade de refletir acerca das determinações da própria vida e de interferir em tais determinações; de se apropriar “do seu próprio destino” e se tornar, de fato, um sujeito livre para realizar verdadeiras escolhas têm sido para os homens, ao longo da história, apenas um ideal ainda distante de ser plenamente realizado.

6. Conclusões

Podemos sintetizar a alienação como um processo objetivo e subjetivo, cuja origem se encontra na esfera da produção da vida, mas não se restringe a ela. Um processo marcado pela exploração do trabalho, que controlado e apropriado por uma classe em detrimento de outra se converte em produtos e processos que se tornam alheios ao produtor.

Vimos que sob o capitalismo a alienação se expande e ganha nova qualidade pelo fato de o produtor tornar-se apêndice da máquina e trabalhador parcial. Além disso, sob o capitalismo, o próprio trabalhador, na figura de força de trabalho assalariada, converte-se em mercadoria, tendo seu desenvolvimento global e todas suas relações perpassadas pelas relações mercantis, pelas demandas do capital. Nele o homem qualifica-se como indivíduo a partir do que possui, ou seja, qualifica-se como mercadoria fetichizada que possui características inerentes a si e não a partir do conjunto de relações sociais que desenvolve ao longo de sua história individual inscrita na história da

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também com os outros seres-humanos, com os quais desenvolve relações baseadas em trocas mercantis, não em relações sociais entre seres humanos que realizam atividades e tem interesses comuns.

A partir do entendimento de que o reflexo psíquico da realidade se desenvolve por meio da atividade, temos que o trabalho alienado se reflete na alienação do reflexo psíquico da realidade objetiva de vários modos. Considera-se assim que é somente a partir da superação da sociedade de clasConsidera-ses, da propriedade privada e do fenômeno da alienação do trabalho que se pode pensar na possibilidade histórico-psicológica de desenvolvimento de formas de reflexo, de consciência, que superem a determinação das demandas do capital sobre o trabalho; superem a ruptura entre significa e sentido e a alienação do sentido do trabalho como atividade limitada à manutenção da vida individual, da particularidade, e não como atividade coletiva de produção de objetos que satisfazem as necessidades da coletividade, do gênero humano; e superem o fetichismo da mercadoria como processo de alienação do caráter social do trabalho que nelas se corporifica, e que reflete na consciência a relação entre os homens como sendo relação entre objetos, como relação apenas entre coisas.

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