DE PACE & FŒDERE INTER REGES PORTUGALLIÆ
& CALECHUT: A ARMADA DOS ALBUQUERQUES
E O PRIMEIRO TRATADO INTERNACIONAL FIRMADO
PELOS PORTUGUESES NA ÍNDIA
LUÍS FILIPE F. R. THOMAZ (Instituto de Estudos Orientais – Universidade Católica Portuguesa) Sem embargo de alguns autores, herdeiros dos preconceitos da his‑ toriografia britânica da época vitoriana, pretenderem apresentar o Estado Português da Índia como uma espécie de estado predador que, alimen‑ tando‑se do produto do saque e da rapina, não poderia ter relações nor‑ mais com nenhum estado vizinho, a importância que para a presença portuguesa no Oriente tiveram a diplomacia e os acordos internacionais foi de há muito reconhecida. Basta recordar a Collecção de Tratados e Con‑certos de Pazes que o Estado da India Portugueza fez com os Reis e Senhores com quem teve relações nas partes da Asia e Africa Oriental desde o principio da conquista até ao fim do seculo XVIII, organizada por Júlio Firmino Júdice
Biker, em 14 volumes publicados em 1881‑1887 pela Imprensa Nacional de Lisboa. Juntemos‑lhe, a título de exemplo, o valioso estudo de Pandu‑ ronga Pissurlencar, durante muito tempo director do Arquivo Histórico do Estado da Índia, Agentes da Diplomacia Portuguesa na Índia: Hindus,
muçulmanos, judeus e parses, editado pela conhecida tipografia Rangel de
Bastorá em 1953; e finalmente a síntese de António Vasconcelos de Saldanha Justum Imperium – Dos tratados como fundamento do Império dos
Portugueses no Oriente – Estudo de História do Direito Internacional e do Direito Português, que serviu ao autor de tese de doutoramento e veio a
ser publicada, com prefácio de Adriano Moreira, pela Fundação Oriente e pelo Instituto Português do Oriente, como se deduz do cólofon aposto pela tipografia, em 1997, mas sem indicação de lugar.
É este último autor um dos raros a mencionar o mais antigo de todos os tratados celebrados pelos Portugueses no Oriente, que escapou a Biker1: o acordo com o Samorim de Calecut firmado a 21 de Dezembro de 1503 por Francisco de Albuquerque, primo do famoso Afonso de Albuquerque e com ele capitão‑mor ex æquo da armada enviada à Índia nesse ano.
Verdade seja que já a 6 de Fevereiro desse ano fizera Vasco da Gama com el‑rei de Cochim um acordo, para assentar feitoria em terra, do qual consta a importante cláusula da jurisdição do feitor português sobre todos os cristãos, portugueses ou convertidos, que estivessem na cidade. É a relação anónima da segunda viagem de Vasco da Gama contida no chamado Manuscrito Português de Viena 2 que dele dá mais detalhada conta:
Item. Segunda feira bj de Fevereiro foi o almirante a Cochim com todos os capitães desta frota a fazer com el‑rei os concertos <que> pera ficar a feitoria eram necessários; e chegou d’avante o lugar e mandou pôr os batés todos de largo e o seu se chegou mais a terra; e estando assi, vêo el‑rei, e vêo‑se ao batel do almirante, onde muitas cousas falárom acerca de seus concertos, e el‑rei fez tudo ao almirante como lhe ele requereo. Aí deu el‑rei a jurdiçom de toda a nossa gente que em terra ficasse a Diogo Fernândez, e que ele, com os del‑Rei nosso Senhor, nom queira ter de fazer mais que empará‑los. E também assi propiamente lhe deu de todo cafre ou índio que se tornasse cristão3; e também lhe prometeo que sendo algo cristão que
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1 Op. cit., p.276 & 378.
2 “Relação anónima da segunda viagem de Vasco da Gama à Índia”, estudo
introdutório de João Rocha Pinto, leitura e notas de Leonor Freire Costa in
Cidadania e História ‑ Em homenagem a Jaime Cortesão, Cadernos da Revista de
História Económica e Social, 6‑7, Livª Sá da Costa, Lisboa, 1985, p.141‑199.
3 Não nos parece neste caso ter razão Jean Aubin — interdum etiam bonus
dormitat Homerus — que (op. cit. infra, nota 8, p.72), a nosso ver sem fundamento,
comenta assim a presente cláusula: ce qui englobe ‑ mais seulement ‑ les chrétiens
indigènes ramenés à l’orthodoxie romaine. Em primeiro lugar o termo cafre (que tanto
quanto sabemos faz aqui a sua primeira aparição escrita no nosso idioma), que deriva do árabe kâfir, ”incrédulo, infiel, pagão, descrente, ateu”, e, como o seu étimo, se não aplica senão a quem não é cristão, nem judeu, nem muçulmano (em suma, monoteísta), não deixa lugar para dúvidas. Em segundo lugar, afora um caso isolado na década de 1520, não encontramos na documentação escrita
tornar se quisesse mouro, que ele o entregasse ao dicto feitor pera ele fazer dele justiça. E com estas outras muitas cousas passadas se vêo o almirante pera as naos e el‑rei se recolheo a suas casas 4.
No entanto, este acordo, como do texto facilmante se deduz, foi puramente verbal, jamais, ao que saibamos, recebendo forma escrita — pelo que continua a ser o concerto de 21 de Dezembro com o Samorim de Calecut o mais antigo tratado escrito firmado pelos portugueses na Índia de que há notícia e cujo articulado se conhece.
A razão do esquecimento a que durante séculos foi votado é assaz simples: perdeu‑se o original português do texto desse convénio, que apenas se conserva em traduções alemã, italiana, francesa e latina; e, certamente por não ter permanecido em vigor senão escassas semanas, os cronistas apenas lhe aludem de passagem, mencionando apenas duas, na melhor das hipóteses três, das suas dez cláusulas. A priori a versão tudesca seria a mais fidedigna, visto conter‑se na tradução, feita por Peutinger, de uma carta do próprio Francisco de Albuquerque a el‑rei D. Manuel, que o transcreve de verbo ad verbum. Essa carta, até aqui quase desconhecida, foi recentemente traduzida para português e publicada, com introdução e abundantes notas, por Zoltán Biedermann 5.
Sem embargo, encontra‑se uma versão um pouco mais desenvolvida do tratado — contendo nomeadamente duas cláusulas que faltam no texto vertido por Peutinger — numa carta mandada para Florença por mercadores florentinos estantes em Lisboa e publicada em 1507 por Francanzano di Montalbodo na sua célebre colectânea de viagens Paesi ________________
portuguesa acusações de heresia (nestorianismo, no caso vertente) contra os cristãos siro‑malabares ou“cristãos de São Tomé” senão na segunda metade do século XVI, no ambiente já da Contra‑Reforma. Em terceiro lugar, mesmo então, jamais o clero português da Índia — ao contrário dos jesuítas na Etiópia — promoveu as conversões individuais ao catolicismo, concentrando os seus esforços na submissão colectiva da comunidade ao papa e à hierarquia do Padroado Português (cf. o nosso artigo “São Tomé, Cristãos de” in Dicionário de
História Religiosa de Portugal, publicado pelo Centro de Estudos de História
Religiosa da Universidade Católica Portuguesa sob a direcção de Carlos de Azevedo, 4 vols., Lisboa, Círculo de Leitores, 2000‑2001, s. v.).
4 Fl. 22v‑23 do ms, ed. cit., p. 193.
5 “A última carta de Francisco de Albuquerque (Cochim, 31 de Dezembro
nouamente retrouati ‑ Nouo Mondo da Alberico Vesputio Florentino intitulato,
editada em Vicência; várias vezes reimpressa entre 1508 e 1522, foi prontamente traduzida em francês, em latim e em alemão. Foi logo em 1508 que, em Milão, foi editada a versão latina, intitulada Itinerarium
Portugallensium, de onde extraímos o texto que em seguida transcrevemos
e traduzimos 6.
Os sucessos da armada dos Albuquerques foram exaustivamente estudados por Jean Aubin num desenvolvido artigo, publicado na revista
Moyen‑Orient & Océan Indien, XVIe‑XIXe s., que dirigia 7, e reproduzido no primeiro volume da recolha das suas obras sobre história portuguesa, Le
Latin et l’Astrolabe – Recherches sur le Portugal de la Renaissance, son expansion en Asie et les relations internationales, editada pelo Centro
Cultural Calouste Gulbenkian de Paris em 1996, cerca de um ano antes do falecimento do autor 8. Quase nada temos a acrescentar‑lhe e, por isso, preferimos para ele remeter o leitor curioso de pormenores sobre o contexto em que o acordo foi celebrado, ou sobre a expedição de 1503‑ 1504 em geral. Seria, porém, nosso desejo ajuntar à edição do documento alguns considerandos introdutórios, focando predominantemente os aspectos estruturais que Aubin não desenvolve 9; mas o reduzido espaço de que aqui dispomos não no‑lo permite. Deixá‑los‑emos, por conse‑ guinte, para uma publicação futura.
Resta‑nos dizer uma palavra sobre a autoria da missiva em que se transcrevem as condições da paz. O estilo — que a versão latina não altera inteiramente —os pontos de interesse que especialmente foca e a recorrência de certos temas recordam‑nos irresistivelmente as duas cartas em que Girolamo Sernigi ou, à portuguesa, Jerónimo Cerniche, participa ________________
6 Servimo‑nos da edição facsimilada Itinerarium Portugalensium, estudo
introdutório por Luís de Matos, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, Serviço de Educação, 1992.
7 Nº 4 (1987) 1‑96.
8 “L’apprentissage de l’Inde ‑ Cochin, 1503‑1504”, L & A, I, p.49‑110.
9 Focámo‑los já, em certa medida, no nosso estudo,“O testamento político
de Diogo Pereira, o Malabar, e o projecto oriental dos Gamas” in Anais de Historia
de Além‑Mar, nº 5, (2004) 61‑160 — a que, contudo, gostaríamos de ajuntar alguns
elementos novos. Juvante Deo publicá‑los‑emos no livro de homenagem a Maria do Rosário Themudo Barata de Azevedo Cruz que a Faculdade de Letras de Lisboa prepara neste momento.
a seus correspondentes em Florença a primeira viagem de Vasco da Gama e o descobrimento do caminho marítimo para a Índia; a primeira delas e um pequeno passo da segunda, vertidos em latim, fazem, aliás, parte da colectânea de onde extractámos o presente texto 10. Tivemos recentemente ocasião de, em colaboração com Carmen Radulet, as publicar ambas na íntegra 11. Girolamo Sernigi foi o principal armador privado a participar na expedição dos Albuquerques, pelo que não admiraria que se mostrasse tão bem informado como interessado nos sucessos da empresa.
Uma alternativa possível é ter o nosso texto por autor Bartolomeu Marchionni, outro florentino arraigado em Lisboa, a quem se devem duas breves cartas sobre a viagem de Pedro Álvares Cabral em 1500‑1501, que da mesma feita publicámos12; tinha também ele interesses na expe‑ dição, em que participou um seu agente, o jovem Giovanni da Empoli. Instintivamente, inclinar‑nos‑íamos, contudo, de prefererência para a pri‑ meira hipótese; mas melhor que nós o ajuizará o leitor que se dê ao tra‑ balho de cotejar os textos que então editámos com o que ora damos à luz. A carta não é datada, mas dir‑se‑ia que foi escrita já em começos de 1505, pois alude à nomeação de um vice‑rei português para a Índia; ora sabemos que D. Francisco de Almeida foi nomeado capitão‑mor da armada de 1505 e vice‑rei da Índia por cartas régias de 27 de Fevereiro e 5 de Março de 1505. Em contrapartida a carta ignora inteiramente os sucessos da armada de 1504‑1505, de que foi capitão‑mor Lopo Soares de Albergaria, pelo que é seguramente anterior a 30 de Junho de 1505, data em que chegou a Lisboa o navio de Lopo de Abreu, e, a fortiori, a 22 de Julho desse ano, data em que regressou o resto da frota13. ________________ 10 Cap. li‑lxii, fl xxxii v – xxvii. 11 Viagens portuguesas à Índia (1497‑1513) ‑ Fontes italianas para a sua história:
O Códice Riccardiano 1910 de Florença, transcrição e apresentação: Carmen M.
Radulet. Prefácio, tradução e notas: Luís Filipe F. R. Thomaz, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, Lisbonne 2002; também publicado in Mare Liberum, 18‑19 (1999‑2000) & 21‑22 (2002). 12 Op. cit., doc. VI & VII, p.149‑167. 13 Vide Geneviève Bouchon, “Le premier voyage de Lopo Soares en Inde” in Inde Découverte, Inde retrouvée, 1498‑1630 ‑ Études d’histoire indo‑portugaise, Centre
Culturel Calouste Gulbenkian / Commission Nationale pour les Commé‑ morations des Découvertes Portugaises, Lisboa & Paris, 1999, p.133‑158.