ABEL DOS SANTOS CRUZ
A NOBREZA PORTUGUESA EM MARROCOS NO
SÉCULO XV
(1415-1464)
PORTO
1995
ABEL DOS SANTOS CRUZ
A NOBREZA PORTUGUESA EM MARROCOS NO SÉCULO XV
(1415-1464)
Dissertação de Mestrado em História
Medieval apresentada à Faculdade
de Letras da Universidade do Porto
UNIVERSIDADE DO PORTO Faculdade de Letras
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Data.PORTO
1995
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INTRODUÇÃO
Tudo na vida tem um início e um fim e durante este percurso as
etapas sucedem-se, cada qual, com um objectivo determinado. E no
contexto da História é este também o ccrminho do "aprendiz". Foi assim
que entendi a minha inscrição e frequência do Curso de Mestrado em
História Medieval que tinha como objectivo a elaboração de uma
dissertação sobre um tema a fixar.
Qual ? Não o sabiamos ainda, mas a nobreza, as campanhas
militares e o norte de África ... sim, talvez !
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*
A frequência dos seminários "Instituições Medievais Portuguesas",
"Aperfeiçoamento Paleográfico" e "Crítica Textual" orientados,
respectivamente, pelos Profs. Drs. Humberto Baquero Moreno, José
Marques e Armindo de Sousa, nada tinham a ver com o Magrebe. No
entanto, o estudo que desenvolvemos no âmbito do primeiro seminário
1ajudou-nos a tomar decisões: Nobreza e Marrocos
2.
1 No qual procedemos ao estudo dos quatro livros da chancelaria de D. Fernando, de que resultaria a publicação do trabalho « D e f e s a e Regulamentação de Encargos Militares no reinado de D. F e r n a n d o » , in Acras do 227 Colóquio Portugal e a Europa: sécs. XVIIaXX, Lisboa, Comissão Portuguesa de História Militar, 1992, pp. 321-337.
2 Desde já impõe-se dizer que muito devemos ao Sr. Prof. Dr. Humberto Baquero Moreno e Dras. Isabel Morgado da Silva e Maria Cristina Pimenta o entusiasmo com que nos
Havia então que definir um plano, um ponto de partida, que se iria
alterando com os resultados da pesquisa. O principal obstáculo foi o
avolumar da informação. Era nossa vontade estudar os reinados de D.
João I, D. Duarte, regência de D. Pedro, D. Afonso V e D. João II. A
realidade ou o bom senso "aconselhava" a parar em 1471. Por fim
detivemo-nos em 1464. Porquê ?. A fronteira cronológica de qualquer
trabalho historiográfico é quase sempre difícil e os limites legais
estabelecidos para uma tese de mestrado condicionam, muitas vezes, o
investigador. Há que fazer escolhas. Mas se poderá ser compreensível ao
leitor a exclusão do reinado de D. João II, talvez o corte que se fez ao
governo do Africano não suscite a mesma opinião. A conquista de Arzila e
a renúncia de Tânger pelos mouros — já para não falar em Anafe —
mereciam o mesmo tratamento que as outras cidades de África, tanto
mais que o levantamento foi feito e estudado. A sua não inclusão é da
nossa inteira responsabilidade.
A perspectiva de um apêndice poderia ter sido a solução para o
problema e o trabalho dividir-se-ia em duas partes: a primeira com texto e
a segunda com quadros dos intervenientes nas praças de África e
respectivas biografias [o estudo prosopográfico era ambição arrojada
para tão curto espaço de tempo]. Mas como facilmente se pode
depreender a separação destas seria prejudicial para o corpo da tese.
*
O trabalho pretende dar a conhecer os nobres que serviram em
Marrocos entre 1415-1464. Falta, como sabemos, na historiografia
portuguesa um levantamento exaustivo dos servidores
3nas praças do
lançaram neste projecto. Todos eles conheciam perfeitamente a realidade e a importância do norte de África para a Casa Real portuguesa.
3 António Dias FARINHA, Portugal e Marrocos no século XV, vol. I, Lisboa, dissertação de Doutoramento em História apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1990, pp. 251-276, reconstituiu a composição social de Arzila nos finais do século XV.
norte de Africa. Ao iniciarmos o trabalho
4tivemos presente esta realidade
e fomos "recolhendo" todos os dados relativos aos homens — quer se
tratassem de fidalgos ou não — que estiveram ligados a África. O
avultado material coligido exigia uma selecção tanto mais que o nosso
interesse recaía sobre a nobreza. O grande problema estava para vir, a
começar pela metodologia.
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*
A dissertação tem três capítulos: o primeiro, A Nobreza Portuguesa
em Quatrocentos e a Conquista do Norte de África; o segundo, A Nobreza
Portuguesa no Norte de África: os reinados de D. João I e D. Duarte; e o
terceiro, O reinado do Africano. Além do texto e das listas dos nobres, a
obra encerra alguns quadros de receitas e despesas para a manutenção
das praças e dos homens que nelas operavam. Por último, justificou-se a
apresentação de mais duas listagens: uma com a honra de cavalaria e
outra com a relação dos mortos em Marrocos.
Uma das maiores preocupações com que deparámos tem a ver com
o tema em si. A Nobreza
5. A sua complexidade exigiu-nos um critério —
4 Julgámos ser este o momento oportuno para reflectir sobre um dos muitos problemas que sempre nos acompanhou ao longo do trabalho. A nossa dissertação apresenta uma tendência — Involuntária — para o factual, o acontecimento. Sempre que possível "ocultámo-la", mas a verdade é que não basta a conceptualização. « N ã o ignoro o imenso interesse — refere Georges DUBY (citando Pierre Chaunu) a uma pergunta de Guy LARDREAU, Diálogos sobre a Nova História, Lisboa, Dom Quixote, 1989, p. 58 — de uma história "serial" baseada na análise sistemática pelas massas de dados, na contabilização das informações aparentemente ínfimas>>. Muitas vezes, é certo, revelamos um cuidado — talvez exacerbado — para a enumeração, mas era urgente a apresentação de um trabalho de forma a proporcionar o elemento humano que esteve ao serviço do reino em Marrocos.
5 A seu tempo [cfr. 2.1.] dedicaremos uma atenção especial aos nobres portugueses no século XV. Por ora e em termos genéricos procuraremos distinguir — com base nas ordenações afonsinas — a nobreza fidalga de nobreza não fidalga, já que é, como se
capaz de responder com segurança à dúvida que íomos mantendo: quem
era nobre — que só a nós cabe justificar. Para uma melhor compreensão
são devidos alguns esclarecimentos.
Em primeiro lugar, os casos claros. Aqui, as dúvidas dissipam-se
porque facilmente sabemos se um membro de uma família pertence à
fidalguia. Entre 1415-1464 foram muitas as casas senhoriais
6que correram
por terras marroquinas em prol do reino lusíada: Albergaria, Albuquerque,
Almada, Almeida, Andrade, Ataíde, Azevedo, Castelo Branco, Castro,
Coutinho, Cunha, Eça, Furtado de Mendonça, Lima, Mascarenhas, Melo,
Meneses, Moniz, Nogueira, Noronha, Pereira, Silva, Sousa, Távora,
Vasconcelos, etc.
Depois, as grandes dúvidas. Os elementos que recolhemos na
documentação suscitaram numerosas reflexões, sendo a resposta quase
sempre a mesma: não sei. é difícil, talvez, ... É importante poder provar que
um criado, um colaço, um moço de estrebaria, um coudel, um monteiro,
um escudeiro, pertence à nobreza. A verdade porém é que temos muitas
dúvidas acerca de alguns destes homens gozarem da condição de
fidalgo. Não sabemos mesmo se — à luz dos conhecimentos actuais —
será possível afirmar com clareza que alguns dos nomes apresentados
com a categoria sócio-profissional, acima referida, podem ser integrados
no escalão da nobreza
7. O desafio é suficientemente grande e fez-nos
hesitar mas, mesmo assim, decidimos incluí-los na ordem nobiliárquica.
Acrescento que não é fácil atribuir a este ou aquele personagem a
condição de "poderoso do reino". Gomes Eanes de Zurara oferece-nos ao
sabe, um problema em aberto. A primeira é comummente caracterizada por alhos de algo com, pelo menos, quatro gerações (Ordenações Afonsinas, tit. 63, § 8, p. 364). A segunda — referida na maior parte dos casos como cavaleiros e escudeiros — conheceu durante o século XV a nobilitação pelos serviços prestados em Marrocos [cfr. 4.5.1.].
6 Para não sobrecarregarmos o texto com notas, optámos por enumerar algumas famílias que viram membros da sua casa pelejar em Marrocos contra os inimigos da fé. A sua linhagem é tão perceptível que dispensa quaisquer outros comentários. Cfr. Anselmo Braamcamp FREIRE, Brasões .... 2a ed., 3 vols., Coimbra, Imprensa da Universidade,
1921-1930.
7 Um exemplo concreto é o de Diogo Pires, homem de « l i n h a g e m de boos cavalleiros e escudeiros», morador no Carvalhal, que recebe em 13 de Abril de 1446 a isenção de servir como besteiro do conto, pelos serviços que prestara no palanque de Tânger: A. N. T. T., Chanc. D. Afonso V, liv. 5, fl. 26v., Santarém; pub. por Pedro de AZEVEDO, Chancelarias Reais .... 1.1, doe. 278, p. 314.
longo das suas obras inúmeros homens catalogados com a categoria de
fidalgo
8. Sê-lo-iam todos ?, devemos tomar à letra a aplicação
etimológica do cronista da palavra homem nobre ?.
Resta afirmar que na dúvida, sempre que havia uma possibilidade,
ainda que remota, de a pessoa pertencer à nobreza, aí o incluímos.
Entendemos também que há fortes probabilidades — reforçamos esta
ideia — de um ou mais homens não serem membros da nobreza, mas foi
nosso critério inseri-lo. Para terminar, impõe-se dizer que as tabelas
apresentadas são quadros de trabalho
9, que merecem uma investigação
mais profunda, capaz de trazer à luz do dia outros protagonistas do
serviço em Marrocos.
8 Não obstante o cronista repetir constantemente a expressão — principais [C. T. C, cap. 50, p. 153], homens especiais [C. P. M, cap. 6, p. 29], nobre homem [C. P. M, cap.
15, p. 53; C. D. M, cap. 40, p. 107], homem fidalgo [C, P. M, cap. 31, p. 106], bons homens [C. P. M., liv. II, cap. 4, p. 288], poderosos, etc. — torna-se extremamente difícil afirmar que determinados indivíduos têm o estatuto de fidalgo. Vale a pena observar alguns exemplos. No caso da conquista de Ceuta entre os « p r i m c i p a a e s que hiam com e l R e y » surge, entre outros, Belendim de Barbudo, escrivão dos maravedis: ZURARA, C. T. C, cap. 50, pp. 153-154. Afonso Garcia de Queirós, capitão em Ceuta da fusta Santiago Pé de Prata, deixa-nos muitas dúvidas acerca da sua condição social, apesar do cronista falar em homem fidalgo: Idem, C. P. M., cap. 31, p. 106. Fernão Rodrigues de Buarcos suscita igualmente curiosidade: a documentação por nós consultada mostrou-se infrutífera no que respeita a dados biográficos sobre este « n o b r e h o m e m » : Ibidem, cap. 79, p. 266; o mesmo poderíamos dizer de Gomes Martins de Moscoso «escudeiro de c a v a l l o » : Ibidem, liv. n, cap. 18, p. 340. E Diogo Martins, Álvaro Dias e João Pires, respectivamente, ichão, copeiro e contador da casa do infante D. Fernando ?. A estes, o redactor de quinhentos considera «fidalgos e boõs h o m e n s » : Idem, C. D. Aí., cap. 40, p. 107. O cepticismo permanece. Por todos, a hipótese de fidalguia mantem-se obscura.
9 Era nossa intenção apresentar dados biográficos dos intervenientes nas campanhas marroquinas com referências cronológicas até à participação nos cometimentos, mas a insuficiência documental e os espaços em branco que isso acarretava, levou-nos a dar a conhecer referências sócio-profissionais que são posteriores a um rebate.
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Para o estudo d a nobreza portuguesa em Marrocos percorremos
alguns Arquivos e Bibliotecas do país. No estrangeiro outras instituições
10encerram importantes fundos documentais sobre a vida dos portugueses,
com testemunho directo para a presença cristã no Magrebe. A
publicação desses diplomas em colectâneas como os Boletim da
Filmoteca Ultramarina Portuguesa, Descobrimentos Portugueses,
Monumento Henrícina, Monumento Portugaliae Vaticana, etc., facilitou a
nossa tarefa.
Convém sublinhar a importância d a pesquisa efectuada nas
Chancelarias, Capítulos de Cortes [insertos nas chancelarias] e Crónicas. O
recurso sistemático a estas fontes permitiu-nos recolher muitos dados
sobre:
— receitas e despesas;
— soldo e mantimento dos nobres;
— tecido social dos "defensores" do reino;
— honras, privilégios, foros e liberdades que receberam
pelo serviço militar;
— lamentação dos povos pelos dinheiros tomados para
a guena no além-mar;
— estado de espírito dos "Miles Christi" na passagem a
África e "defensão" das praças;
— saque e guena de corso;
— mortos, etc.
10
Archivo de la Corona de Aragón; Archivo General de Simancas; Archivo dei Reino
de Valencia; Archivo ai Stato e Biblioteca Medicea Laurenziana (Florença); Archivo
Segreto Vaticano, etc.
Agradecimentos
Começaria esta breve evocação gratulatória por expressar a mais
pura gratidão ao Sr. Proí. Dr. Humberto Baquero Moreno, que desde o
primeiro momento, revelou o seu interesse pelo tema. As críticas que impôs
ao trabalho revelaram um Mestre atento e enérgico no apuramento dos
resultados.
Dívidas temos também para com o Sr. Proí. Dr. António Dias Farinha
da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. A sua ajuda íoi
continuada. Mostrou-se disponível para assistirmos não só às aulas de
Árabe como ao seminário de História dos Descobrimentos e Expansão
Portuguesa. Fica aqui uma palavra de estima pelos conselhos,
esclarecimentos e indicações bibliográficas que sempre sugeriu.
Aos nossos Mestres universitários, Srs. Proí s. Drs. José Marques e
Armindo de Sousa, reiteramos o nosso reconhecimento pelo rigor das suas
observações.
Da Faculdade de Letras da Universidade do Porto gostaríamos de
sublinhar o apoio constante que recebemos do Doutor Luís Miguel Duarte.
O seu auxílio e total disponibilidade merecem umas palavras de
lembrança, que não chegam para exprimir toda a sua ajuda.
Depois, agradecemos na pessoa das Amigas e Dras. Isabel Morgado
da Silva e Maria Cristina Pimenta as incansáveis sugestões e estímulos
para a prossecução de um exercício que prenunciava dias agitados.
À Universidade Portucalense - infante D. Henrique renovamos
reconhecidamente a dispensa de serviço pelo período de um ano
[Outubro de 1994 / Julho de 1995]. Permita-se-nos ainda agradecer aos
meus amigos que contribuíram de igual modo para a consecução deste
trabalho, se não mais, pela sua presença.
Não poderíamos concluir estes agradecimentos sem manifestar um
destaque especial a "alguém" que, entretanto, conhecemos. Para ti, Carla,
um muito obrigado pelo clima de serenidade e felicidade que me
proporcionaste.
CAPÍTULO I
A NOBREZA PORTUGUESA EM QUATROCENTOS E A CONQUISTA DO
NORTE DE ÁFRICA
Consagrado nas cortes de Coimbra de 6 de Abril de 1385 como rei de
Portugal e do Algarve D. João I acrescentou ao seu título, poucas décadas
volvidas, o de Senhor de Ceuta.
Até à concretização deste feito o "ilegítimo", que procurava alicerçar
e assegurar a dinastia de Avis, pôs em prática uma intensa acção militar
— em estreita aliança com Nuno Álvares Pereira — tendente a
restabelecer a ordem interna do reino e afirmar-se como chefe de estado
no plano europeu. Implicado na morte de João Fernandes Andeiro, conde
de Ourém, o Mestre de Avis organizou as suas forças no sentido de derrotar
a nobreza tradicional portuguesa afecta ao rei de Castela
1. Assim
agraciou muitos partidários que ão longo de todo este processo o
acompanharam, em troca de terras e rendas. Auxiliado por um "novo
poder" e por membros do terceiro estado, certamente a favor de uma
política belicista destinada a alargar os seus privilégios, o rei d a Boa
Memória mostrou-se incansável para recuperar o território. Essa foi aliás a
sua vontade.
Da vitória em Aljubarrota "nascera" uma nova nobreza, em parte de
antigos populares e de filhos segundos: revelando-se tão opressiva e
ambiciosa quanto a predecessora, chefiada pelo condestável. A
desmedida outorga de bens aquando Intenegno, começa a ser posta em
causa pelo monarca quando formula a lei mental que o seu filho D. Duarte
editará
2. Aplica-a, aliás, desde logo reivindicando muitas das doações
feitas e impugnando a Nun' Álvares o direito de as fazer sobre bens em
préstamo.
1 Sobre este assunto veja-se Humberto Baquero MORENO, «Exilados Portugueses em Castela durante a crise dos finais do século X I V » [pp. 26-56] e « C o n t e s t a ç ã o e Oposição da Nobreza portuguesa ao Poder Político nos finais da Idade M é d i a » [pp. 13-25], in Exilados, Marginais e Contestatários na Sociedade Portuguesa Medieval Lisboa, Presença, 1990; José MATTOSO, « A nobreza e a revolução de 1 3 8 3 » in Fragmentos de
uma composição medieval, 2a ed., Lisboa, Estampa, 1990, pp. 277-293; Maria José Pimenta Ferro TAVARES, « A Nobreza no reinado de D. Fernando e a sua actuação em 1383-1 3 8 5 » , in Revista de História Económica e Social, vol. 1383-1, Lisboa, Sá da Costa, 1383-1984.
2 8 de Abril de 1434 [encontra-se publicada nas Ordenações Manuelinas, liv. H, tit. 17, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, pp. 66-90].
Em finais do século XIV, reflectindo um profundo mal-estar e
descontentamento por parte dos fidalgos, as cortes de Coimbra assumem
um carácter de forte oposição contra o poder central
3. Como observa o
professor Oliveira Marques as sucessivas cortes de 1391 a 1410
<<saldaram-se num cercear das liberdades conquistadas e num
fortalecimento dos direitos dos proprietários rurais e dos burgueses dos
concelhos»
4.
Na convulsão política e social que se segue ao êxito em Aljubarrota o
reino entrou gradualmente num período de acalmia. São bem visíveis os
diferendos entre D. João I e a nobreza, mas as habilidades políticas
evidenciadas pelo novo monarca — depois de anos de contenda —
deram-lhe o prestígio devido para fazer-se amar e respeitar
5. A nova
ordem interna saíra mesmo reforçada com o regresso ao reino de alguns
fidalgos adversos ao monarca.
A paz provisória com Castela em 1411 deu a Portugal a estabilidade
política desde há muito pretendida, mas consciencializou o poder
monárquico da sua fragilidade. Uma das preocupações fundamentais de
D. João I consistiu em romper com a dependência económica das regiões
do interior em relação a Castela
6. A difícil situação financeira do país
3 Ao longo de 45 capítulos os nobres demonstram o seu desapontamento pela política de governo desenvolvida pelo monarca, dando-lhe a conhecer os agravos que recebiam, como por exemplo: sisas; contias; soldos; morgados; jurisdições, honras e coutos; devassas; herdades; pousadas; comedorias; portagens; malfeitorias; serviço militar; jugadas; mantimentos; usos e costumes; etc.: Ordenações Afonsinas, liv. IT, tit. 59, pp. 339-376.
4 A. H. de Oliveira MARQUES, Portugal na Crise dos Séculos XIV e XV, Lisboa, Presença, 1987, p. 538.
5 A união matrimonial de 2 de Fevereiro de 1387 entre D. João I e D. Filipa, filha do duque de Lencastre, muito contribuiu para estreitar a aliança de dois reinos e, em certa medida, permitiu — anos mais tarde — resolver o problema senhorial, pela habitual política de casamentos. É o que acontece em 1401 com o consórcio de D. Beatriz, filha de Nun'Âlvares Pereira e D. Afonso, filho bastardo de D. João I, que recebeu em dote o condado de Barcelos.
6 Leia-se a este propósito J. Lúcio de AZEVEDO, Épocas de Portugal Económico, 4a ed., Lisboa, Clássica Editora, 1988; Armando de CASTRO, Evolução Económica de Portugal nos séculos XII a XV, 11 vols., Lisboa, 1964-1971; Idem, As Ideias Económicas no Portugal Medievo: séculos XHl a XV, Lisboa, 1978; Humberto Baquero MORENO, « A Acção dos Almocreves no desenvolvimento das comunicações inter-regionais portuguesas nos fins
reforçou essa ruptura. Não era apenas a nobreza quem se lamentava pela
falta de réditos, também os burgueses, particulares, pequenos
comerciantes, pescadores e artesãos aspiravam ao acesso a.novos
mercados. Mas não basta procurar o descontentamento destes grupos
sociais para justificarmos a presença de Portugal no além-mar. O
problema é complexo e obriga a uma reflexão mais cuidada.
da Idade M é d i a » , in Papel da Áreas Regionais na Formação Histórica de Portugal, Lisboa, Academia Portuguesa de História, 1975, pp. 185-239.
2.1. Os nobres portugueses no século XV: a norma e a prática
Estudar a nobreza portuguesa de Quatrocentos é uma tarefa
verdadeiramente difícil e exigente e obriga a que se recue ao século XJV e
em alguns casos a tempos mais remotos
1. A sua importância social é
devedora de uma análise mais profunda que não se circunscreve ao ciclo
cronológico do século XV. Por isso, não será de estranhar o recurso a
séculos anteriores e/ou posteriores: não o fazendo comamos o risco de
omitir corpos documentais como o Livro das Leis e Posturas, a Pragmática
de 1340, as Ordenações Manuelinas e Filipinas, etc.
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*
1 Exige também uma incursão ao reino de Castela porque uma parte significativa da linhagem medieval lusa procede de nobres exilados, partidários de D. Pedro — assassinado no castelo de Montiel, em Março de 1369 —, contra Henrique II de Trastâmara. O fluxo de proscritos de Castela para Portugal e vice-versa não parou ao longo das últimas três décadas do século XIV. Particularmente graves foram as lutas fratricidas de 1369, 1383-85 e 1397-98 que estão na origem do êxodo de fidalgos ibéricos, ora para um reino, ora para outro. Cfr. Julio VALDEÓN BARUQ.UE, Enrique U de Castilla: la guerra civil y la consolidation del regimen (1366-1371), Valladolid, 1966; Idem, Crisis y recuperation (siglos XTV-XV), Valladolid, Âmbito, 1985; a mobilidade no interior da nobreza castelhana foi estudada por Salvador de MOXÓ, « L a nobleza castellana en el siglo XIV», in Anuário de Estúdios Médiévales, vol. 7, Barcelona, 1970-1971, pp. 493-511; Idem, « D e la nobleza vieja a la nobleza nueva. La transformación nobiliária castellana en la baja Edad M e d i a » , in Cuadernos de Historia, vol. UJ, Madrid, 1969, pp. 1-270. Acresce a esta bibliografia os autores citados na introdução ao capítulo I [nota 1],
O reinado de D. Afonso V corresponde a um período de triunfo da
autoridade senhorial
2sobre os princípios da centralização do poder régio,
cuja figura mais representativa foi D. João I
3.
Nem sempre foi fácil ao poder central controlar e reprimir uma ordem
habituada a prevaricar. Contrária a todas as disposições legais, a
nobreza ao longo de todo o século XIV praticou abusos e roubos contra a
Igreja
4. Apesar da oposição do monarca, esta continuou a ser vítima da
2 Resulta claro que entre o reinado de D. Pedro I e D. Afonso V houve grandes alterações na aristocracia portuguesa. Alguns acontecimentos, sujeitos às contrariedades do tempo, — pestes, tragédia de Inês de Castro, problemas financeiros das casas senhoriais, guerras fernandinas, alianças matrimoniais, traições, mudança dinástica, oposição: rei/fidalgos, lutas pela independência, campanhas marroquinas, dissensões políticas, guerra civil, etc. — são a demonstração bem evidente dessas adversidades. Este clima de aparente insegurança não refreou a expansão do poder senhorial. Grandes casas — ligadas ao rei D, Afonso V, apaniguado da alta nobreza — foram distinguidas com títulos nobiliárquicos: três casas ducais [Bragança: regência de D. Pedro, Beja e Guimarães], três marquesados [Valença, Vila Viçosa e Montemor-o-Novo], vinte condados [Marialva e Avranches: regência de D. Pedro, Odemira, Atouguia, Monsanto, Guimarães, Valença, Atalaia, Faro, Penela, Loulé, Santa Comba, Arganil, Penamacor, Aveiro, Abrantes, Caminha, Olivença, Cantanhede e Feira] um viscondado [Vila Nova de Cerveira] e um baronato [Alvito]. Cfr. Anselmo Braamcamp FREIRE, Brasões .... liv. IH, pp. 225-440; Luís Filipe OLIVEIRA, Miguel Jasmins RODRIGUES, « A titulação na 2° dinastia» in Primeiras Jornadas de História Moderna, vol. II, Lisboa, Centro de História da Universidade de Lisboa, 1986, pp. 725-763.
3 Já vimos como o monarca conseguiu controlar a nobreza, a quem havia concedido largas benesses durante a crise dinástica. Curioso é notar que D. Dinis — por carta exarada em Coimbra, a 6 de Dezembro de 1283 — revogava todas as doações feitas até à data porque <<achey que as fiz en tenpo que era de pequena ydade e que as fiz en tenpo que nom devem valer e acho que foy engano»: A. N. T. T., Chanc. D. Dinis, liv. 1, fl. 83. Como lembra José Augusto de Sotto Mayor PIZARRO « D . Dinis e a Nobreza nos finais do século XIII», in Revista da Faculdade de Letras. História, TL série, vol. X, Porto, 1993, p. 92, a medida do monarca <<deve ser antes tomada como uma demonstração da sua força e da determinação de chamar à sua pessoa, à pessoa do Rei, um crescente poder e autoridade».
4 Em 25 de Setembro de 1386 o mosteiro de Grijó apresentou a D. João I uma queixa contra os fidalgos que « f o r ç a m o dicto moesteyro de parte das dietas herdades — Feira,
Cambra e Vouga — e lhas tomavam e lhes fazem muito desaguisado sobre as rendas d e l i a s » : A. N. T. T., Chanc. D. João I, liv. 1, fl. 83, Porto. A legislação subjacente ao
arrogância dos infantes, condes, ricos-homens, vassalos, cavaleiros e
escudeiros.
Em 1372 o clero de Entre Douro e Minho e Beira dava a
conhecer em cortes [Porto] um conjunto de nove artigos
onde reprovava a actuação dos fidalgos
5.
O cabido da catedral de Coimbra pedia ao rei que as
roupas, camas, alfaias, celeiros, adegas, mantimentos,
almotaçarias, palhas, lenhas e bestas não fossem tomadas
pelos mesmos
6.
Posição análoga foi tomada em 10 de Abril de 1385 pelo
a b a d e de S. João de Alpendurada
7; prior e convento de
Santa Cruz de Coimbra
8; prior e cónegos de Santa Maria de
Guimarães
9; a b a d e do mosteiro de Refoios de Basto
10,
pertencente à ordem de S. Bento, arcebispado de Braga;
mosteiro de São Salvador da Torre
11; deão da Sé de Viseu
12e mosteiro de Santa Maria de Moura
13.
Estes exemplos permitem-nos concluir que o direito de pousada
representa uma ameaça para a sobrevivência da congregação religiosa,
por um lado e por outro, reforça a falta de rendimentos da nobreza. Não
assunto pode lêr-se em Ordenações del-rei D. Duarte, p. 50; Ordenações Afonsinas, liv. n, tits. 17 e 19, pp. 187-189 e 190-191; Ordenações Manuelinas, liv. II, tit. 11, p. 37; Ordenações Filipinas, liv. II, tit. 21, p. 438.
5 Cortes Portuguesas. Reinado de D. Fernando (1367-1383), edição por A. H. de Oliveira MARQUES, vol. I, Lisboa, I. N. I. C, 1990, pp. 113-119.
6 A. N. T. T., Chanc. D. João I, liv. 1, fis. 102 e 129, Coimbra, 14 e 15 de Abril de 1385. 7 A. N. T. T., Chanc. D. João I, liv. 1, fis. 138v.-139, Coimbra.
8 A. N. T. T., Chanc. D. João I, liv. 1, fis. 129 e 137, Coimbra, 17 e 21 de Abril de 1385: [granjas, lugares, quintas, celeiros, pão, vinho, azeite e ornamentos].
9 A. N. T. T., Chanc. D. João I, liv. 1, fl. 109v., Guimarães, 6 de Junho de 1385.
1 0 A. N. T. T., Chanc. D. João I, liv. 1, fis. 109v. e 161v, Porto e Guimarães, 10 de Junho e 13 de Novembro de 1385 [couto, granjas, casais, herdades, palha, erva, cevada, pão, vinho, galinhas e bestas].
1 1 A. N. T. T., Chanc. D. João I, liv. 1, fl. 101, Porto, 11 de Junho de 1385. 1 2 A. N. T. T., Chanc. D. João I, liv. 1, fl. 176, Porto, 25 de Setembro de 1386. 1 3 A. N. T. T., Chanc. D. João I, liv. 1, fl. 158, Guimarães, 28 de Outubro de 1386.
raro foram também os protestos dos concelhos sobre a prepotência da
aristocracia portuguesa.
Nas cortes de Elvas de Maio de 1361 Rui Martins Toscano
e Fernando Esteves Chanoca, procuradores da cidade de
Évora, deram a conhecer a D. Pedro os agravos praticados
pelos infantes e outras pessoas
14. Aí, os representantes de
Torres Novas insurgiram-se contra Soeiro Coelho e Gonçalo
Eanes Pimentel, cavaleiros, por tomarem as roupas aos
homens bons da terra para o casamento das suas filhas
15.
Agastados com os excessos da nobreza, os homens bons
do concelho de Salvaterra de Magos receberam de D.
Fernando em 7 de Março de 1368 uma lei que obrigava os
poderosos a pagar cinco soldos por rede de palha que
tomassem aos seus moradores
16. Enquanto isso, as terras de
Braga
1 7e Marialva
18eram agraciadas com diplomas
régios que procuravam pôr termo à opressão a que eram
cometidos.
Aconteceu o mesmo no reinado joanino. A lei de 2 de
Setembro de 1385 reprimia os abusos dos condes,
ricos-homens e cavaleiros em favor da vila de Santarém
19.
Apesar do poder político intervir e mostrar-se favorável ao apelo dos
concelhos, estes continuaram a ser molestados pelos grandes do reino. Foi
1 4 Diziam-se constrangidos nas casas, exidos e adegas porque lhes apanhavam galinhas, patos, cabritos, leitões, palhas e lenhas. Coites Portuguesas. Reinado de D. Pedro 1(1357-1367), edição por A. H. de Oliveira MARQUES, Lisboa, I. N. I. C, 1986, pp. 97-98.
1 5 ibidem, pp. 125-126.
1 6 A. N. T. T., Chanc. D. Fernando, liv. 1, fl. 25v., Veiros.
1 7 A. N. T. T., Chanc. D. Fernando, liv. 1, fl. 35, Évora, 20 de Dezembro de 1368. 1 8 A. N. T. T., Chanc. D. Fernando, liv. 3, fl. 70v., Salvaterra, 6 de Maio de 1383. 1 9 A. N. T. T., Chanc. D. João I, liv. 1, fis. 96-96v., Santarém.
o que sucedeu com a urbe portuense
20que em resultado da sua
vitalidade económica conduziu os fidalgos à contravenção
21.
É difícil, por isso, avaliar até que ponto o cumprimento da norma
tinha aplicação prática no Portugal medievo
22. Estamos em crer que tudo
depende da evolução política, económica, militar e social de um
determinado momento histórico.
Para uma melhor compreensão da questão em análise, façamos
uma incursão ao século XIII. É importante notar que o percurso diacrónico
— D. Sancho II/D. Afonso V — refere-se ao problema das jurisdições
23e,
desta feita, às reclamações apresentadas pelas casas senhoriais.
A fraqueza e incapacidade do rei D. Sancho II permitiu à nobreza
dispor de amplos privilégios. D. Afonso III, por seu lado, controlou o poder
2 0 Afirmava Jaime CORTESÃO, A carta de Pêro Vaz de Caminha, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1994, p. 40, que « t e r o bispo encerrado no paço ... e os fidalgos bem longe dos muros da cidade, eis o ideal dos cidadãos do Porto».
2 1 Para pôr cobro a esta ilegalidade, os moradores da cidade viram ser publicadas algumas cartas régias isentando o concelho do direito de pousada. Dessa mercê foram distinguidos os lavradores do reguengo de Bouças: A. N. T. T., Chanc. D. Fernando, liv. 1, fis. 198v.-199, Leiria, 2 de Dezembro de 1376; o alcaide, moedeiros e oficiais da cidade: A. N. T. T., Chanc. D. João I, liv. 1, fis. 103v.-104, Porto, 5 de Maio de 1385; o prior e convento do mosteiro de Ansede: A. N. T. T., Chanc. D. João I, liv. 2, fis. 32-32v., Porto, 7 de Outubro de 1385; etc. Mas também as mulheres foram vítimas da pressão dos nobres. O diploma fernandino de 9 de Janeiro de 1379 surge contra a arbitrariedade dos poderosos, para isentar as mulheres dos mercadores da cidade em armas e cavalos enquanto os seus homens estivessem em França a « m e r c a r » : A. N. T. T., Chanc. D. Fernando, liv. 2, fl. 37, Moledo.
2 2 Cfr. Marcello CAETANO, História do Direito Português, 2a ed., Lisboa, Editorial Verbo, 1985; António Manuel HESPANHA, « A constelação originária dos p o d e r e s » in As vésperas do Leviathan, Coimbra, Almedina, 1994, pp. 295-438; Idem, « L e i e Justiça: história e prospectiva de um p a r a d i g m a » , in Justiça e Litigiosidade. História e Prospectiva, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, pp. 5-58; Nuno Espinosa Gomes da SILVA, História do Direito Português, 2a ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1991.
2 3 Um bom resumo do desenvolvimento do poder senhorial pode vêr-se em José MATTOSO, « P a r a a História do Regime Senhorial no século XH1», in Portugal Medieval: novas interpretações, 2a ed., Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1992, pp. 135-148.
dos senhores feudais ao aplicar em 1258 novas Inquirições Gerais. Estas
normas legais procuravam refrear os abusos dos ricos-homens e infanções
e fazer cumprir os direitos reais
24. A reacção da aristocracia não tardou.
Nas cortes de Lisboa de 1285, levantou-se contra os oficiais régios que não
respeitavam as "honras"
25. A partir de então a clivagem entre poder
central/fidalgos acentuou-se, até que D. Fernando, estante em Atouguia,
no adro da igreja, regulou — em 3 de Setembro de 1375 — o exercício dos
direitos jurisdicionais, distinguindo com « m e r o e misto império assy no
Crime como no Civil>> apenas os infantes, condes, mestres das ordens
militares e mosteiro de Alcobaça
26. Mais tarde, D. João, enquanto regedor
e defensor do reino, multiplicou os senhorios de mero e misto império a
Mem Rodrigues de Vasconcelos, senhor da vila de Monsaraz, mestre e
cavaleiro da ordem de Santiago
27, a Gonçalo Vasques Coutinho, senhor
de Armamar e Sernancelhe e alcaide de Trancoso
28, etc., em favor do
serviço prestado durante o Intenegno. Este tipo de doação manteve-se nos
primeiros anos de governo de D. João I, sendo um dos principais
privilegiados Nun'Âlvares Pereira que recebeu — a par de outras — as
vilas e castelos de Vila Viçosa, Borba, Estremoz, Évora Monte, Portel,
Montemor-o-Novo, Almada, Setúbal, Frelas, Unhos, Camarate, Colares,
Ourém, Porto de Mós, Rabaçal, Bouças, Alvaiázere, Pena, Basto e
Barroso
29. E evidenciou-se com D. Afonso V, período que corresponde a um
aumento desenfreado do senhorialismo
30, contrário às limitações impostas
2 4 Gama BARROS, História da Administração Pública, t. II, pp. 424-468; Marcello CAETANO, ob. cit., pp. 325-331.
2 5 Numa tentativa de pôr termo ao conflito, D. Dinis e D. Afonso IV proferiram uma série de textos normativos para legalizar a questão das "honras". Para tudo isto, cfr. Ordenações Afonsinas, liv. n, tit. 65, pp. 407^420; Ordenações Manuelinas, liv. H, tit. 40, pp. 209-212; Ordenações Filipinas, liv. H, tit. 48, pp. 478-480; Memorias para a Historia das Inquirições, Lisboa, 1815; Livro das Leis e Posturas, Lisboa, 1971.
2 6 Ordenações Afonsinas, liv. H, tit. 63, pp. 394-405.
2 7 A. N. T. T., Chanc. D. João I, liv. 1, fis. 39-39v. e 193v., Lisboa, 24 de Setembro de 1384.
2 8 A. N. T. T., Chanc. D. Joãol, liv. 1, fis. 61-61v. e 64v, Lisboa, 31 de Outubro de 1384. 2 9 A. N. T. T., Chanc. D. João I, liv. 1, fis. 82v.-83, Santarém, 20 de Agosto de 1385. 3 0 Para José Augusto de Sotto Mayor PIZARRO, « A Nobreza Medieval>>, in Nos Confins da Idade Média, Porto, Secretaria de Estado da Cultura - Instituto Português de Museus - Museu Nacional Soares dos Reis, 1992, p. 50, <<o século XV viu o nascimento da última tentativa séria de restauração dos poderes senhoriais».
por seu pai, o rei D. Duarte, no que respeita à transmissão dos bens da
coroa.
A generalização de tais procedimentos por todo o século XV criou
muitas dificuldades ao poder real, de tal forma, que foi-lhe difícil fazer
cumprir a lei em propriedades fundiárias que gozavam de direitos iguais
aos das terras realengas. Como no-lo refere Oliveira Marques «emJbora a
tradição portuguesa reservasse para o rei o direito de apelação, a justiça
maior e outras regalias, a tendência fora sempre para não se interferir nas
terras privilegiadas e para se deixar à Nobreza plena liberdade de
jurisdição»
31.
Não se pense, contudo, que do confronto entre a norma e a prática,
foi a primeira, sempre a vencida. Aconteceu que a lei afonsina de 10 de
Março de 1478 determinava «nom dar moradia, nem dinheiro nenhuu ...
senam apesoa [fidalgos, cavaleiros e escudeiros, moradores da casa real]
que tenha boas armas e boõ cavalo»
32. Há a considerar que os parcos
recursos do tempo tornava dispendioso a posse e manutenção do referido
animal
33. Pese embora o facto, a política oficial do rei «provera como for
rezaõ» de cavalos e armas os moradores d a casa de sua alteza
34.
Mas, um outro aspecto interessa apontar. Foi o que sucedeu com o
sector d a alimentação e vestuário. Numa época de grave crise
3 1 A. H. de Oliveira MARQUES, Portugal na crise dos séculos XIV e XV, p. 238.
3 2 «Livro Vermelho do Senhor Rey D. Afonso V » , n° 49, in Collecção de livros inéditos de Historia Poríugueza, pub. por José Correia da SERRA, t. HJ, Lisboa, Academia das Ciências, 1793, p. 510. Também Álvaro Lopes de CHAVES, Livro de Apontamentos (1438-1489). Códice 443 da Colecção Pombalina da B. N. L., introdução e transcrição de Anastácia Mestrinho SALGADO e Abílio José SALGADO, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, [1984], pp. 56-62.
3 3 Humberto Baquero MORENO, A Organização Militar em Portugal nos séculos XIV e XV, sep. da «Revista da Faculdade de Letras», H série, vol. vm, Porto, 1991, pp. 29-41; Abel dos Santos CRUZ, «Defesa e Regulamentação de Encargos Militares no reinado de D. Fernando>>, in Actas do IR Colóquio Portugal e a Europa: see. XVH a XX, Lisboa, Comissão Portuguesa de História Militar, 1992, pp. 321-337.
3 4 livro Vermelho do Senhor Rey D. Afonso V, n° 49, p. 510. Nas Ordenações Manuelinas, liv. n, tit. 38, pp. 204-206; Ordenações Filipinas, liv. n, tit. 60, p. 496, pode lêr-se: « q u e os Caualeiros nom guozem dos priuilegios da Caualaria sem terem caualos e a r m a s » .
económica, a realeza viu-se no acaso de controlar a loucura e ostentação
da aristocracia. A pragmática de 1340 revelou a disposição de «coibir
abusos e de pôr um certo freio à corrupção dos costumes [...] mas o sangue
valia ainda muito, nesse Portugal de Trezentos!»
35. D. João I procurou,
através de uma postura, combater certos abusos relativamente a trajes e
ornatos em ouro
36. Não tardou que D. Duarte aplicasse certas restrições
para «boõ enxempro de os grandes e nobres de seu Regno nom fazerem
despesas desmasiadas em vestidos e arrêos sobejos»
37. Ordenou, então,
que não se comprassem anualmente mais de 500 dobras em panos de lã
e seda para se enroupar. Alguns anos mais tarde, D. João II «uendo a
grande desulução de uestir dos homens e molheres de toda sorte de
panos, seda, brocados, brotados e chamalotes» impôs ao reino um
alvará
3 8que restringia algumas peças de vestuário e punia com degredo
os prevaricadores.
3 5 A. H. de Oliveira MARQUES, « A pragmática de 1 3 4 0 » , in Ensaios de História Medieval Portuguesa, 2a ed., Lisboa, Editorial Vega, 1980, pp. 97 e 101 [documento composto por 27 artigos: 18 relativos ao vestuário, 5 à alimentação e os restantes 4 a diversos]. Para o vestuário e alimentação, vejam-se principalmente Idem, « O Traje» in A Sociedade Medieval Portuguesa. Aspectos de vida quotidiana, 5a ed., Lisboa, Sá da Costa, 1987, pp. 23-62; Idem, « A M e s a » , in Ibidem, pp. 7 - 2 2 » ; Iria GONÇALVES, <<Acerca da alimentação medieval>>, in Imagens do Mundo Medieval, Lisboa, Horizonte, 1988, pp. 201-217; Maria Helena da Cruz COELHO, «Apontamentos sobre a comida e a bebida do campesinato coimbrão em tempos medievos>>, in Homens, Espaços e Poderes. I - notas do viver social, Lisboa, Horizonte, 1990, pp. 9-22; D. João I, «Libro de Monteria», in Obras dos Príncipes de Avis, liv. HI, cap. TL, Porto, Lello & Irmão, 1981, pp. 181-183; D. Duarte, « L e a l Conselheiro», in Ibidem, cap. 100, pp. 438-440; Idem, <<Livro da ensinança de bem cavalgar toda s e l a » , in Ibidem, liv. I, cap. 18, pp. 466-467; Ordenações Afonsinas, liv. 5, tit. 43, pp. 154-157 e liv. I, tit. 49, pp. 280-282; Garcia de RESENDE, Cancioneiro Geral, por Aida Fernanda DIAS, 4 vols., Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1990-1993.
3 6 Gama BARROS, História da Administração Pública, t. IH, p. 121. 3 7 PINA, C. D. D., cap. 7, p. 504.
3 8 Livro de Apontamentos (1438-1489). Códice 443 da Colecção Pombalina da B. N. L., ed. cit., pp. 252-254.
Resta afirmar que « a s queixas sucediam-se a cada momento, o que
mostra com toda a evidência a inoperância das ordenações e
determinações régias perante a prepotência dos nobres»
39.
rCfttC *
A exposição feita em torno dos direitos de pousada, abusos para
com os concelhos, jurisdições senhoriais, posse e manutenção de cavalos,
alimentação e vestuário, permitiu clarificar o problema da norma e da
prática. A referida disposição deve ser entendida como um ensaio no
sentido de confrontar governantes/governados e observar a
praticabilidade das leis no espaço medieval português.
Podemos concluir que a legislação régia, para além de
salvaguardar os interesses da monarquia, constituiu, de algum modo,
uma tentativa de controlar os interesses dos fidalgos. Só que — observa E.
Powell — «as instituições e processos de justiça eram sistematicamente
pervertidos para servir aqueles que tinham mais riqueza ou poder»
40.
3 9 Humberto Baquero MORENO, «Situação Moral da Nobreza em Portugal», in Subsídios para o Estudo da Sociedade Medieval Portuguesa. Moralidade e Costumes, cap. VI, dissertação de licenciatura em Ciências Histórico-Filosóficas apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1961, pp. 171-172.
4 0 E. POWELL, « A arbitragem e o direito na Inglaterra dos finais da Idade Média, in Justiça e Litigiosidade. História e Prospectiva, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, pp. 169-170.
2.2. As conquistas no além-mar: Justificação pela presença em Marrocos
Conscientes do poder que a sua estada em Marrocos lhe poderia
trazer, a Berbéria não pôde deixar de suscitar na Casa Real um interesse
muito particular. Por outras palavras, todas as possibilidades que o
processo expansionista ofereceu a este grupo social alertou o reino
português da necessidade deste ser integrado n a ordem monárquica,
necessidade essa que se corporaliza ao longo do século XVI quando, a
diversidade de cargos a ocupar no além-mar, permitiu o aparecimento de
uma nobreza de "interesses ultramarinos".
Do ponto de vista d a nobreza portuguesa, a problemática das
conquistas no Magrebe assume uma dimensão mais acentuada durante
as discussões empreendidas no que poderemos chamar o tempo de
Alfarrobeira. Com a vitória do Africano retoma-se a política de ocupação
de terras manoquinas a qual, como é conhecido, teve o seu momento de
arranque em 21 de Agosto de 1415 com a tomada d a primeira praça
cristã em África.
Desde logo, importa referir a ligação deste grupo social à expansão
portuguesa no norte de África, particularmente evidenciada através do
seu conhecido posicionamento face às conquistas e manutenção das
cidades. Essa atitude acabou, aliás, por suscitar acesas discussões na
época
1e permitiu um debate historiográfico extremamente rico à volta
deste tema entre alguns especialistas da história dos descobrimentos e
expansão portuguesa.
Estes trabalhos — de inegável valor — carecem no entanto da falta
de complementaridade. Para justificarem a presença de Portugal no norte
1 Os diversos pareceres sobre a guerra em Marrocos encontram-se publicados em Livro dos Conselhos de el-Rei D. Duarte (livro da Cartuxa), edição diplomática por João José Alves DIAS, Lisboa, Estampa, 1982; J. M. da Silva MARQUES, Descobrimentos Portugueses; vol. I, Lisboa, I. N. I. C, 1988; MonumentoHenrícina; vols. V-VI, 1963-1964.
de África invocam: desempenho do infante D. Henrique
2e da burguesia
comercial
3, ocupar uma nobreza inactiva desde a paz com Castela
4,
estratégia de Ceuta como ponto de passagem das rotas caravaneiras
(ouro, pedras preciosas, seda e especiarias) e base de corso
5, vocação
marítima dos portugueses
6. Apesar das controvérsias doutrinais —
necessárias para o progresso histórico, mas muitas vezes excessivo — não
se tem dado o devido valor ao papel desempenhado pela fidalguia no
processo de expansão além fronteiras.
Portugal no início do século XV é um reino com escassos recursos
económico-financeiros: os trabalhos agrícolas eram progressivamente
interrompidos para as sucessivas guerras com Castela, a mercancia —
2 J. P. Oliveira MARTINS, Os Filhos de D. João I, Porto, Lello & Irmão Editores, 1983. Joaquim BENSAÚDE, A cruzada do iníante D. Henrique, Lisboa, 1942, retoma a ideia de Oliveira Martins do plano henriquino assente no devaneio religioso do Navegador em passar, respectivamente, a Marrocos e índia por terra e mar.
3 António SÉRGIO, « A conquista de Ceuta: ensaio de interpretação não romântica do texto de A z u r a r a » e « A s duas políticas nacionais», in Ensaios, 3a e 2a edição, ts. I-II, Lisboa, Sá da Costa, 1980-1977, chama a atenção para o défice cerealífero que o reino — ao contrário do que dizia Zurara — tanto carecia. A mesma linha segue António Borges COELHO, Raízes da Expansão Portuguesa, Lisboa, Prelo, 1964, p. 87, para quem « a alta burguesia marítima» foi responsável pela expansão portuguesa.
4 Mário de ALBUQUERQUE, O Significado das Navegações e outros Ensaios, Lisboa, 1930. A. Veiga SIMÕES, Portugal, o ouro, as decobertas e a criação do Estado Capitalista, Lisboa, 1938; e Duarte LEITE, História dos Descobrimentos, 2 vols., Lisboa, Cosmos,
1958-1961, reforçam a tese de uma nobreza guerreira ávida de rendas e terras.
5 Jaime CORTESÃO, Os Descobrimenos Portugueses, apresentação de José Manuel GARCIA, 3 vols., Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1991; David LOPES, « A Expansão em Marrocos», in História da Expansão Portuguesa no Mundo, vol. I, Lisboa, Ática, 1937; Vitorino Magalhães GODINHO, Documentos sobre a Expansão Portuguesa, 3 vols., Lisboa, Gleba/Cosmos, [19431-1956; Idem, Os Descobrimentos e a Economia Mundial, 2a ed., 4 vols., Lisboa, Presença, 1981-1983; Torquato de Sousa SOARES, « A l g u m a s observações sobre a política marroquina da Monarquia Portuguesa», in Revista Portuguesa de História, tomo X, 1952, pp. 509-554, advoga que o ataque a Ceuta foi uma resposta à pirataria e corso muçulmanos. Cfr., ainda, Luís Adão da FONSECA, Navegación
Y corso en el Mediterrâneo Occidental. Los Portugueses a mediados dei siglo XV, Pamplona, Universidad de Navarra, 1978.
6 Orlando RIBEIRO, Aspectos e problemas da Expansão Portuguesa, Lisboa, J. I. U., 1962; Idem, Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico, 5a ed., Lisboa, Sá da Costa, 1987.
apesar das vantagens evidentes — nunca foi livre e isenta de dificuldades
e a indústria, no contexto dos países europeus, era muito limitada
7. É neste
estado geral, tantas vezes exagerado em épocas de crise e atenuado em
tempos mais prósperos, que se organiza a expansão em Manocos.
No fundo, a justificação encontrada para a presença portuguesa em
terras dos merínidas radica forçosamente numa explicação muito mais
vasta — procura/oferta — que se prende com os próprios fundamentos da
expansão ultramarina portuguesa: os objectivos políticos, sempre
determinantes na ocupação ou abandono das referidas possessões; os
objectivos estratégico-militares, interessava pôr em prática um plano de
ocupação; os objectivos religiosos, positivamente sancionados pela mais
alta hierarquia da Igreja e os objectivos económicos das conquistas e/ou
reconquistas, terão de acompanhar qualquer investigação que se faça
neste domínio temático.
Por outras palavras, os motivos que levaram os cristãos ao Habt
prende-se com as necessidades do reino e os benefícios de uma ocupação
territorial em Marrocos região que, aparentemente, só trazia despesas e
trabalhos.
2.2.1. Os objectivos políticos
Ultrapassada a crise 1383-1385, os dois reinos ibéricos assinaram, em
31 de Outubro de 1411, as pazes
8pondo termo a um ciclo de lutas
7 A bibliografia existente sobre estes assuntos é vastíssima. Para tudo isto, vejam-se Henrique da Gama BARROS, Históría da Administração Pública em Portugal, 2 ° ed., dirigida por Torquato de Sousa SOARES, 11 vols., Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1945-54; A. H. de Oliveira MARQUES, Introdução à Históría da Agricultura em Portugal, 2a ed., Lisboa, Cosmos, 1968; Idem, Hansa e Portugal na Idade Média, 2a ed., Lisboa, Editorial Presença, 1993; Idem, Portugal na Crise dos Séculos XIV e XV, pp. 76-180; Ana Maria Pereira FERREIRA, A Importação e o Comércio Têxtil em Portugal no Século XV (1385 a 1481), Lisboa, I. N. C. M., 1983.
8 Não tardou que as circunstâncias da política peninsular forçassem Portugal e Castela a substituir o tratado provisório por outro definitivo. Então, celebrou-se em Medina dei
fratricidas tão prejudiciais para ambas as monarquias. Não será então de
estranhar que, desde logo, Portugal assistisse a uma época de renovação
que culmina com um novo período histórico a que é comum chamar-se de
expansão portuguesa.
Para a matéria que nos ocupa é devida a seguinte questão: qual o
posicionamento do poder real perante as conquistas no além-mar ? É difícil,
hoje em dia, avaliar as motivações que terão levado a dinastia de Avis a
enfrentar, respectivamente, a tena africana e o oceano desconhecido
9. A
situação torna-se mais complicada uma vez que o ambiente político de
Portugal conhecia "progressos", mais ou menos paralelos, aos que
caracterizavam o resto da Europa e, além disso, o reino sentia ser ainda
muito frágil a trégua alcançada com Castela.
Apesar destas contrariedades surgiu no conselho real a "ideia" ou
"necessidade" de uma « f e s t a medieval da guena contra o m o u r o »
1 0.
A intenção régia de tomar Ceuta apresentava-se como uma escolha
inteligente: sendo bem sucedido, D. João I não só fortalecia a monarquia,
como ganhava margem de manobra para junto de Roma reivindicar o
território conquistado e obter desta as prerrogativas necessárias para a
prossecução de um plano de luta contra os inimigos da fé e, por último,
abria caminho «para os dois mundos comerciais marroquino-sudanês e
marroquino-mediterrâneo >
u.
2.2.2. Os objectivos estratégico-militares
Além do alcance político oferecido pela cidade, Ceuta encenava um
valor estratégico-militar que devia ser tomado em conta.
Campo, a 30 de Outubro de 1431, uma paz perpétua que, mais tarde, 17 de Maio de 1432, D. João I ratificou em Almeirim.
9 Convém lembrar que não é nosso propósito desenvolver a problemática dos descobrimentos portugueses.
1 0 António Dias FARINHA, Portugal e Marrocos no Século XV, p. 103.
1 1 Vitorino Magalhães GODINHO, Documentos sobre a Expansão Portuguesa, vol. I, p. 43.
As restrições materiais impostas por D. João I aos domínios da
fidalguia, a quem dotara de extensos senhorios e confiara cargos
administrativos e militares, colocara a nobreza numa embaraçada
situação financeira. O agravamento das tensões sociais e económicas do
reino traduziu-se na necessidade da expansão da sociedade, em especial
da aristocracia, para novos territórios. Não será de excluir a hipótese da
intenção do monarca em manter a nobreza "entretida" — saudosa dos
seus antigos feitos — de forma a garantir-lhe o exercício das armas. Por
certo, o rei estava empenhado na realização da luta contra os
muçulmanos: ainda que indirectamente, a decisão régia em passar a
África propiciava à casta militar uma ocupação desde à muito
reclamada e salvaguardava a sua posição e estado social
12. Tem razão
Joaquim Veríssimo Senão ao escrever que causas de «ordem militar
fundamentam a iniciativa ... fazê-lo era obrigação do monarca — porque
— punha termo à ameaça castelhana e oferecia um campo de batalha a
muitos cavaletos»
13.
Marrocos era, por excelência, o campo privilegiado para a Coroa pôr
em prática uma acção bélica contra o infiel. O controlo da praça
assegurava a Portugal não só a defesa da costa Algarvia, o Estreito de
Gibraltar e o comércio no Meditenâneo, como obstava à penetração do
reino de Castela no Magrebe
14.
O proveito e a honra, tão característicos de uma sociedade
cavaleiresco, estão bem marcados na ida a Ceuta. Este facto é bem
visível na acção desenvolvida junto do rei pelos infantes para lutar contra
o infiel a fim de serem cobertos de glória e armados cavaleiros. O denodo
com que a nobreza participou nos aprestos do empreendimento projecta,
desde logo, o acrescentamento de benesses régias como prémio pelos
12
Da pena de Zurara sobressai a impaciência desta ordem que desejava glorificar o
seu nome através das armas, anexar territórios e obter deles as cavalgadas. Cfr. J. Lúcio
de AZEVEDO, ob. cit., pp. 62-67.
13
Joaquim Veríssimo SERRÃO, História de Portugal (1415-1495). 3
aed., vol. H, p. 27.
1 4A Coroa portuguesa era conhecedora da importância económica e militar da
cidade marroquina. O reino sabia que a conquista de Ceuta: dificultava o socorro a
Granada, facilitava a navegação para o Mediterrâneo, abria a perspectiva do comércio
com outros mercadores e o contacto com as pedras preciosas, rotas da seda e
especiarias. Cfr. Vitorino Magalhães GODINHO, Documentos sobre a Expansão Portuguesa,
vol. I, pp. 55-56.
actos de bravura militar. É aue, só assim, o nobre poderia sustentar os
homens da sua criação.
Por outro lado, a ascensão social de alguns filhos segundos por
serviços prestados na moirama, desempenhando cargos ultramarinos, era
motivo para uma intervenção mais assídua no além-mar.
Mas, ao factor estratégico-militar acresce um outro móbil para a
continuação da guerra em África.
2.2.3. Os objectivos religiosos
Para a Igreja tratava-se de reconquistar para a doutrina cristã os
inimigos de Roma. Este projecto era abençoado pela Santa Sé que
concedia através da publicação de bulas importantes rendas
eclesiásticas aos cruzados
15. A partir de então, o interesse religioso pelas
praças do Magrebe cresceu significativamente ao longo dos séculos XV e
XVI.
Motivado pelo espírito religioso o projecto joanino tinha a faculdade
de levar o credo de Cristo aos infiéis: ao combater os mouros em Marrocos
D. João I punha em perigo as estruturas doutrinais dos irmãos de Granada.
A guerra, ao serviço de Deus, contra os muçulmanos no norte de Africa
ocultava — acima de tudo — um problema de segurança, móbil
suficiente para a elaboração de um plano de acção militar do reino
português em terras manoquinas.
Resta escrever que o avanço territorial e geográfico para terras do
ocidente extremo foi o prolongamento — em África — da reconquista
cristã
16.
Mas não só.
1 5 Veja-se Charles Martial DE WITTE, « L e s bulles pontificales et l'Expansion portugaise au XVe. s i è c l e » , sep. da Revue d'Histotie Ecclésiastique, tomo XLVm (1953), tomo XLEX (1954), tomo U (1956) e tomo Lm (1958).
1 6 Maria Augusta Lima CRUZ, « O s portugueses em Marrocos nos séculos XV e X V I » in História dos Descobrimentos e Expansão Portuguesa, Lisboa, Universidade Aberta, 1990, p. 58.
2.2.4. Os objectivos económicos
A presença portuguesa em Marrocos insere-se num plano de
conquistas que não se confina ao espaço geográfico marroquino. O
domínio desta região permitia a Portugal assegurar a ligação do
movimento expansionista com o estabelecimento de trocas comerciais
com a costa ocidental africana.
«Marrocos era — no dizer de António Dias Farinha — um vasto país
com produção agrícola e mineral relevante, uma impressionante riqueza
em gado, indústria de tecidos, de curtumes, de objectos de cobre ... e
surpreendentes bancos de pesca na orla marítima e no interior dos
rios»
17. As razões económicas aqui invocadas parecem acentuar a ida a
Ceuta. Senão vejamos: o Habt [Ceuta, Alcácer Ceguer, Tânger e Arzila]
habitado por pequenos agricultores, serranos e pescadores, oferecia gado
e peixe; a Duquela e Enxovia [Azamor, Mazagão e Safim] habitada por
nómadas árabes e berberes, eram zonas de grande produção cerealífera;
e o Suz [Sta. Cruz do Cabo de Gué] região densamente povoada, além de
proporcionar algodão e açúcar de boa qualidade, atraía os mercadores
porque à região convergia o comércio trans-saariano. A estas razões
junta-se-lhe a procura de novos mercados.
Para compreendermos verdadeiramente o alcance deste objecto,
importa não esquecer que um dos argumentos levantados pela burguesia
para o financiamento da empresa africana tinha, como contrapartida, a
promessa — por parte do rei — do acesso a novas rotas comerciais,
susceptível de obter novos produtos e, de igual modo, metais preciosos
para curar a crise monetária vigente no reino.
17
António Dias FARINHA, oh. cit., p. 92. Referenciando obras importantes de V. M.
Godinho, o autor apresenta uma síntese analítica — cuidada e rigorosa — sobre « A
Economia de Marrocos», ob. cit., pp. 84-93, que deixam quaisquer outras alocuções sem
significado académico.
rtX/t *
Pese embora o facto da conquista da cidade de Ceuta, até à
viragem dos séculos XIX-XX, manter a versão cavaleiresco e religiosa, tal
como o cronista a apresentou, não é mais sustentável considerar-se esta a
única interpretação.
A expansão portuguesa pressupõe objectivos muito mais vastos que
se prendem com a ideologia do tempo. A tomada da cidade não foi um
caso isolado: a ela acresce o restante espaço manoquino ocupado pelos
portugueses. Penso também que esta problemática não se circunscreve a
África — é verdade que Ceuta foi o primeiro passo da expansão no
além-mar que se prolongou até inícios do século XVI — porque como se
depreende a dinastia de Avis traçou um programa que pretendia rasgar
o oceano desconhecido e encontrar novos mundos.
2.3. Os nobres da expedição a Ceuta: 1415
A História da conquista de Ceuta — 21 de Agosto de 1415 — íoi
escrita, alguns anos mais tarde: 1450, por Gomes Eanes de Zurara sob o
título de Crónica da Tomada de Ceuta por el Rei D. João I.
No decurso dos tempos têm sido inúmeros os trabalhos sobre a
campanha que levou os portugueses ao norte de África. Recentemente e
retomando considerações dadas à estampa por Vitorino Magalhães
Godinho a propósito do número excessivo de teses, ensaios e explicações,
António Dias Farinha considerava que o «feito de Ceuta é quase infinito e
continua a crescer a um ritmo que desafia a imaginação>>'
[. Esta
afirmação adverte-nos para o perigo de muitas vezes colocarmos
questões inadvertidas e inconectas ao "acontecimento histórico". No caso
d a tomada de Ceuta tem-se frequentemente pretendido explicar o
cometimento e descurado as razões que levaram D. João I a organizar
uma tão sigilosa campanha.
As fontes documentais disponíveis parecem não suscitar dúvidas
quanto à conquista. A partir de 1409-1410 emergiu n a privança do
conselho régio a ideia de uma grande expedição. A sua concretização
teria de ser marítima porque não era verosímil que Portugal, após a
assinatura provisória d a paz com Castela, utilizasse os solos do reino
vizinho. Mais difícil parecia ser manter o segredo do objectivo militar.
Porquê a mobilização de um tal exército e de tamanha frota ? Qual o
inimigo ?
A não existência de qualquer opositor obrigou à invenção de um
forjado: Guilherme d a Baviera, duque de Holanda, a quem Fernão
Fogaça, vedor da casa do infante D. Duarte, revela os verdadeiros motivos
de D. João I em ir sobre os inimigos da igreja. Este silêncio por parte de
Portugal deixou alguns reinos da Europa em alvoroço. Ruy Dias Vega,
1 António Dias FARINHA, Portugal e Marrocos no Século XV, vol. I, p. 97; Vitorino Magalhães GODINHO, A Economia dos Descobrimentos Henriquinos. Lisboa, Sá da Costa,
agente castelhano ao serviço do rei D. Fernando I de Aragão, é o espelho
dessa insegurança chegando a propor a destruição da frota lusa
2.
Da pena de Zurara ressalta que a operação ultramarina foi
largamente preparada por um número muito restrito dos membros do
conselho do rei. É tal a contribuição e envolvimento do vedor da fazenda
João Afonso de Alenquer que satisfaz tanto os interesses do clero como os
da nobreza e burguesia. Este dinâmico homem de estado inflama o
coração dos infantes ao acentuar a riqueza e formosura da praça
magrebina
3. Nas longas alocuções com o monarca, que considerava
quatro as razões para a guena em Marrocos: serviço de Deus, grandeza de
coração, maravilhosa ordenança e proveitosa vitória, os príncipes de Avis
apresentam argumentos "religiosos e militares" para a guena do
além-mar.
Na presença dos confessores, o Mestre Frei João Xira e o Dr. Frei Vasco
Pereira, o problema religioso é por diversas vezes invocado. Convém
lembrar que D. João I em 20 de Março de 1411 solicitara à Santa Sé a
ajuda das ordens militares para a guerra justa contra os cristãos,
sarracenos e inimigos do reino de Portugal
4. Mas o pensamento do
monarca encerrava ainda muitas incertezas: onerar os povos com
pedidos que poderiam provocar escândalo e rompimento do segredo,
distância, insuficiência de homens, maior dano que proveito e encargos. A
estas dúvidas os infantes respondem com soluções: despesa, participação
dos mercadores, rendas régias e suprir com os encargos desnecessários ao
reino; distância, reparar as galés, construir outras e cooperação de
estrangeiros; por último, falta de gente, deixar as frontarias da terra
acompanhadas de gentes e reparadas.
O vigor e determinação dos infantes, ávidos de serem armados
cavaleiros ao serviço de Deus, moveu o chefe de Estado « a proseguir
2 Javier de SALAS, « D o s cartas sobre la expedition a Ceuta em 1 4 1 5 » , in O Instituto, vol. 81, 1931, pp. 317-338; Monumento Henricina, vol. II, doa 57, pp. 132-146; António Dias FARINHA, ob. cit., vol. II, doc. 8, pp. 32-47.
3 Consulte-se Luís T. de SAMPAIO, Anfes de Ceuta, sep. do «Arquivo de História e Bibliografia», Coimbra, Imprensa da Universidade, 1923; E. LEVI-PROVENÇAL, « U n e description de Ceuta musulmane au XVe. siècle», in Hespérís, vol. XII, 1931, pp. 145-177 [texto árabe de al-Ansari, Ihtisar al-Ahbar, traduzido por Joaquim FIGANIER, in Revista da Faculdade de Letras de Lisboa, vol. 13, 1947, pp. 10-52].
4 A Bula Eximie deuocionis exarada pelo antipapa João XXIII atendia ao pedido do Mestre de Avis: Monumento Henricina, vol. I, doa 147, pp. 336-337.