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Da Potência Motriz Solar Kepleriana como Emanação Imaterial

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CDD: 521.3

Da Potência Motriz Solar Kepleriana como

Emanação

Imaterial

ANASTASIA GUIDI ITOKAZU1

Universidade Estadual de Campinas CAMPINAS, SP

anastasiaguidi@hotmail.com

Resumo: Em um artigo recente de Scheila Rabin, publicado no ‘Journal for the History of Astronomy’, foi contestada a imaterialidade da potência motriz solar que explica os movimentos dos planetas no helio-centrismo físico de Johannes Kepler. A partir da analogia tecida na Astronomia nova entre a força solar e a luz, procuramos mostrar que imaterialidade da potência solar não está em questão. O artigo de Rabin nos interessa no entanto porque os argumentos por ela levantados em defesa de sua tese propiciam uma perspectiva reveladora tanto das dificuldades enfrentadas por Kepler na formulação de sua física celeste quanto daquelas que afligem os seus intérpretes contemporâneos.

Palavras-chave: Kepler. Força solar. Hipótese.

Na astronomia física de Johannes Kepler os movimentos dos pla-netas são explicados pela ação de uma certa força ou potência motriz solar. A força solar é definida na Astronomia nova (1609) como uma species

immaterata, expressão tradicionalmente interpretada pelos estudiosos da

ciência kepleriana2 como uma emanação imaterial que partilha do

movi-mento de rotação executado pelo próprio Sol, transmitindo aos planetas

seus respectivos movimentos translacionais. Em um artigo recente3, essa

interpretação usual da força solar kepleriana foi colocada em questão por Scheila J. Rabin, que sugeriu que a expressão species immateriata fosse

tra-1 Pós-doutoranda financiada pela FAPESP. 2 Cf. KOYRÉ, A. 1961, p. 206-207. 3 RABIN, 2005

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duzida como ‘emanação material’ (emanation made into matter). Rabin identi-fica a species immateriata da Astronomia nova com o materialischer Auβfluβ (escoamento material) do Tertius interveniens, o trabalho de Kepler dedica-do à astrologia, argumentandedica-do que essa interpretação é necessária em vista da passagem da Astronomia nova onde se lê “E pelo mesmo argumen-to, parece ser concluído corretamente que nada há de imaterial

(immateria-tum) no interior dos limites do corpo solar, por cuja rotação a species

pro-veniente daquele algo imaterial (immateriato) seja posta a girar. Pois, retro-cedendo, o movimento local que requer tempo não pode ser

corretamen-te atribuído a algo imacorretamen-terial (immacorretamen-teriato).”4 Se a força solar é imaterial,

como poderia ela girar em torno do Sol e assim mover os planetas? Além disso, Rabin argumenta que os atributos corpóreo e imateri-al são contraditórios e não podem pertencer a um mesmo sujeito. De acordo com sua leitura, a interpretação da força solar como uma propa-gação imaterial encobre a evolução que distingue o primeiro tratado as-tronômico de Kepler, o Mistério cosmográfico (1596), da Astronomia nova. Ela se refere aqui à substituição da alma motriz do Sol, à qual eram atribuídos no Mistério cosmográfico os movimentos planetários no sistema heliocêntri-co, pelo conceito matematizado de força solar que opera na Astronomia

nova.5 Uma força motriz imaterial, no final das contas, não seria muito

4 KEPLER, 1992, p. 387. Atque eodem etiam argumento recte concludi videtur, non es-se immateriatum quippiam intra corporis Solaris terminos, cujus conversione simul convertatur species ista ab illo immateriato descendens. Rursum enim immateriato cuipiam localis motus cum tempore non recte tribuitur. Astronomia nova, Kepler Gesammelte Werke (K.G.W.) III, p. 243. Seguimos a opção de William Donahue e optamos por não traduzir o termo latino species. Cf. ITOKAZU, 2006-a.

5 Em carta a Herwart von Hohenburg de fevereiro de 1605, Kepler escreve sobre a Astronomia nova: “Muito tenho indagado a respeito de causas físicas. O meu objetivo aqui é dizer que a máquina celeste não é como um ser animado ou divino, mas como um relógio (esse relógio que acredita-se ser animado, e que concede à obra a glória do criador); e que nela quase toda a variedade dos movi-mentos se deve a uma simplíssima força corpórea magnética, assim como no relógio todos os movimentos se devem a um simplíssimo peso.” Multus sum in

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diferente das inteligências planetárias da astronomia tradicional.6

Final-mente, Rabin considera “incômoda para Kepler” a associação de uma

estrutura geométrica a uma propagação imaterial.7

Os problemas levantados por Rabin são de naturezas diversas. A aproximação entre a species que move os planetas e o materialischer Auβfluβ do Tertius interveniens é artificial e facilmente refutável. A questão da estru-tura geométrica da força solar é iluminada pela consideração da analogia com a luz, e também não representa um problema sério. Já a relação entre almas motrizes e forças corpóreas é de fato complexa na Astronomia

nova. Propomos que a diferença não é tão clara quanto Kepler parece

sugerir, e pode ser iluminada se for abandonada a tradução de species

co-mo ‘imagem’ proposta por Bruce Stephenson8 e mantida a palavra latina,

que pode significar ‘imagem’ ou ‘aparência’, mas também ‘forma’. Quan-to ao trecho da Astronomia nova que proíbe o movimenQuan-to local no tempo às species imateriais, este compõe a exposição acerca da emissão e atenua-ção da força solar, uma das questões mais espinhosas da física celeste kepleriana porque neste ponto a experiência astronômica entra em confli-to com a estrutura geométrica da potência motriz solar. Em confli-todo caso, acreditamos que a solução proposta por Rabin ao interpretar a força solar como uma propagação material não se sustenta em vista dos textos de Kepler, em especial da Astronomia nova e do Suplemento a Vitelo ou Parte

Óptica da Astronomia, o seu principal tratado sobre a óptica. Propomos

uma análise das passagens dessas obras que consideramos relevantes do ponto de vista da elucidação da questão da possível materialidade da força solar. Procuramos mostrar que Kepler entende a força solar como causis physicis indagandis. Scopus meus hic est, ut Caelestem machinam dicam non esse instar divinj animalis, sed instar horologij (.qui horologium credit esse animatum, is gloriam artificis tribuit operj.), ut in qua penè omnis motuum varietas ab una simplicissima vi magnetica corpo-ralj, utj in horologio motus omnes a simplicissimo pondere. Carta 325, K.G.W. XV, p. 146.

6 Cf. RABIN, 2005, p. 52-53. 7 Cf. RABIN, 2005, p. 50. 8 Em STEPHENSON, 2007.

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uma emanação desprovida de massa, e é nesse sentido que deve ser lido o atributo immateriata.

1. A analogia entre a luz e a força solar na Astronomia nova

Na astronomia física de Kepler, o Sol age sobre os planetas através de uma força (vis) ou potência (virtus). Na Astronomia nova a propagação da força motriz e a sua ação sobre os corpos dos planetas são avaliadas se-gundo o exemplo constituído pela luz, a melhor conhecida dentre as emanações geradas pelo Sol:

Finalmente, como há tanta potência em um círculo amplo e mais distante quanto em um menor e mais próximo, nada dessa potência se perde no trajeto a partir de sua fonte, nada é espalhado entre a fonte e o corpo [do planeta] que se move. O fluxo, assim, do mesmo modo que a luz, é ima-terial, diferentemente dos odores, que são acompanhados de uma dimi-nuição da substância, e diferentemente do calor de uma fornalha quente, ou de qualquer coisa similar que preencha o espaço intermediário. Resta, assim, que, exatamente como a luz, que ilumina toda a Terra, é uma species imaterial daquele fogo que existe no corpo do Sol, assim esta potência que envolve e arrasta os corpos dos planetas é uma species imaterial que reside no próprio Sol, e tem um vigor inestimável, visto que ela é o pri-meiro agente de todo movimento do universo.9

A potência solar não pode, entretanto, ser identificada com a luz porque neste caso os planetas se moveriam mais lentamente quando parte dessa luz fosse obstruída por outro corpo celeste (como ocorre por

9 KEPLER, 1992, p. 381-382. Denique cum tantundem virtutis sit in amplo et remo-tiori circulo, quanto in angusremo-tiori et propinquo; nihil igitur periit de hac virtute in itinere ex fonte suo, nihil inter fontem et mobile dispersum est. Effluxus igitur, quemadmodum et lucis, immateriatus est; non qualis odorum cum diminutione substantiae, non qualis caloris ab aestuante fornace, et si quid est simile, quibus media implentur. Relinquitur igitur, ut quemadmodum lux, omnia terrena illustrans, species est immateriata ignis illius, qui est in corpore Solis: ita virtus haec, Planetarum corpora complexa et vehens, sit species immateriata ejus virtutis, quae in ipso Sole residet, inaestimabilis vigoris, adeoque actus primus omni motus mundani. Astronomia nova, K.G.W. III, p. 240.

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ocasião dos eclipses), o que não é observado.10 Já o magnetismo

demons-tra a possibilidade de que o movimento de um corpo seja causado por um outro corpo espacialmente distante e, visto que fora recentemente demonstrada por William Gilbert a natureza magnética da Terra, Kepler considera plausível que a força solar seja magnética ou quase-magnética.11

A passagem reproduzida acima expressa bem o contraste traçado por Kepler entre as species materiais, como o calor de uma fornalha e os odores, e aquelas imateriais, como a luz e a potência motriz solar. Luz e força solar são emanadas eternamente, enquanto durar o mundo. Já o calor emitido por uma fornalha está associado a uma diminuição da ma-téria que o gera, assim como a fonte de um odor sempre acaba por exau-rir-se. Este parágrafo remete à discussão sobre a natureza da luz que ocupa o primeiro capítulo da Óptica, e acreditamos que seja interessante examiná-lo brevemente aqui concentrando-nos na questão da imateriali-dade da luz. Diz a terceira proposição deste primeiro capítulo:

A luz é apta a se propagar por si mesma até o infinito.

Com efeito, como ela participa da quantidade e da densidade de acordo com o que precede, em nada poderá diminuir em nenhuma extensão: pois a quantidade, assim como a densidade, se divide ao infinito. Isso do ponto de vista da essência. Mas, além disso, a força de projeção é infinita porque, segundo o que precede, a luz é desprovida de matéria e de peso, isto é, ela não sofre resistência. Assim, para ela a razão entre a potência e o peso é infinita.12

10 Cf. KEPLER, 1992, p. 380; Astronomia nova, K.G.W. III, p. 240.

11 Tanto na Óptica quanto na Astronomia nova e na Defesa de Tycho contra Ursus Kepler faz menção da descoberta do magnetismo terrestre, anunciada em 1600 por William Gilbert no seu De magnete. Cf. KEPLER, 1992, p. 390-391; Astrono-mia nova, K.G.W. III, p. 246; KEPLER, 2000, p. 237; K.G.W II, p. 198; KE-PLER, In: JARDINE, 1988, p. 146.

12 KEPLER, 1980, p. 109. Lux seipsa in infinitum progredi apta est. Cum enim quantitatis et densitatis sit particeps, per superiora, nullâ amplitudine in nihilum abire poterit: quantitas enim, et sic densitas, diuisione in infinitum abit. Haec de essentia. Sed et vis

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O universo de Kepler é finito, limitado pela esfera das estrelas fi-xas, e por isso na prática a luz não se propaga até o infinito. Mas ela é apta a fazê-lo, e veremos logo a seguir que isso tem a importante conse-qüência de permitir que a atenuação da luz com a distância dependa so-mente de sua dispersão geométrica. Além disso, essa proposição também determina a forma retilínea da propagação da luz, pois Kepler observa que um percurso curvo, na medida em que é curvo, é limitado. A luz não tem peso, e portanto não sofre nenhuma resistência do meio. Por esse motivo a razão entre a ‘força de projeção’ ou potência motriz da luz e a resistência do meio é infinita. Kepler refere-se claramente aqui à ‘lei’ fun-damental da dinâmica de Aristóteles, “de acordo com a qual a velocidade de um corpo que se move em uma dada distância é determinada pela razão, ou proporção, e não pela diferença aritmética como propõe a ciên-cia moderna, entre a ‘potênciên-cia motriz’ e a resistênciên-cia do meio (...) Ou seja, de acordo com a dinâmica aristotélica a ‘potência motriz’ (força motora) em contato direto com o corpo móvel é diretamente proporcional à dis-tância percorrida pelo corpo e inversamente proporcional ao tempo gas-to, ou ainda, a ‘potência motriz’ é diretamente proporcional ao que hoje

chamamos de velocidade.”13 A velocidade de propagação da luz é infinita

pelo mesmo motivo, segundo a quinta proposição:

Com efeito, como demonstrou Aristóteles nos seus livros sobre o movi-mento, há um acordo entre a duração e esta proporção entre a potência motriz e o peso ou a massa móvel – ou ainda entre o peso e o meio. Mas aqui a razão entre a força motriz e a luz que ela deve mover é infinita, porque a luz não tem matéria, e portanto também não tem peso. Assim não há resistência do meio à luz, porque é da matéria que provém a resis-tência, e a luz é desprovida de matéria. Conseqüentemente, a velocidade da luz é infinita.14

toria infinita est, quia luci materia, pondus, seu resistentia nulla est per superiora. Infinita ergo virtutis ad pondus proportio. Óptica, K.G.W. II, p. 20.

13 ÉVORA, F. R. R., 2005, p. 157-158.

14 KEPLER, 1980, p. 110. Nam vt in libris de motu demonstratum est ab ARIS-TOTELE, commensus quidam est temporis ad eam proportionem, quae est inter virtutem

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A luz emana do Sol, corpo físico que ocupa o centro do universo, e se afasta da fonte por meio de infinitos raios lineares dirigidos a todas as direções como uma superfície esférica que se expande com velocidade infinita em direção à esfera das estrelas fixas. “As linhas dessas projeções

são retilíneas, e as chamamos raios.”15 Assim, em primeiro lugar, é

preci-so, por razões metafísicas, que a luz seja geometricamente estruturada como uma superfície esférica. Em seguida, porque a esfera é definida como o sólido que tem todos os pontos de sua superfície igualmente distantes do centro, os raios luminosos da óptica geométrica tradicional são incorporados à teoria como o movimento de expansão da superfície esférica a partir da fonte luminosa. “Pois dissemos que a luz aspira à forma da Esfera. Mas a verdadeira gênese geométrica desta [figura] con-siste justamente na igualdade dos segmentos pelos quais o ponto central

se espalha até a superfície, e estes segmentos são linhas retas.”16 Mas os

raios de luz apenas representam o movimento da superfície esférica em expansão, e não constituem uma parte da luz em si: “O raio luminoso não é de modo algum a própria luz emanada. Pois pela proposição quatro

o raio nada é além do movimento da luz.”17 Assim como o movimento

de um corpo físico pode ser uma linha reta ou qualquer outra curva, o movimento da luz é sempre uma linha reta, o raio luminoso. Finalmente, a luz só existe em ato na fonte que a emite e nos corpos iluminados; no mouentem et pondus seu molem mobilem, siue ponderis ad medium. Sed hic vis mouens ad lucem mouendam, infinitam habet proportionem: quia luci nulla materia, quare neque pondus. Ita medium luci nihil resistit, quia lux materiâ caret, per quam fiat resistentia. Ergo lucis infinita celeritas est. Óptica, K.G.W. II, p. 21.

15 KEPLER, 1980, p. 109. Linae harum eiaculationum rectae sunt, dicantur radij. K. G. W. II, p. 20.

16 KEPLER, 1980, p. 109. Nam diximus affectari à luce figurationem Sphaerici. Eius verò genesis verè Geometrica consistit in aequalitate interuallorum, per quae punctum medium in superficiem diditur: Illae verò sunt rectae lineae. Óptica, K.G.W. II, p. 20.

17 KEPLER, 1980, p. 111. Lucis radius nihil est de luce ipsa egrediente. Nam radius per 4. nihit aliud est nisi ipse motus lucis. Óptica, K.G.W. II, p. 21.

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espaço intermediário ela encontra-se em um estado de vir a ser: “...o raio não está no diáfano (na medida em que ele é diáfano), mas ali esteve, ou quase esteve. Ele só está realmente nas cores e nas superfícies das coi-sas.”18

A área de uma superfície esférica varia com o raio segundo a relação

4 π r2.Como a luz é apta a se propagar ao infinito, então “ao se afastar do

centro, o raio de luz não sofre nenhuma atenuação no sentido de sua pro-pagação [in longum], isto é, ele não se torna mais raro e esparso conforme se

torna mais longo, pelo menos não por se tornar mais longo.”19 Kepler

conclui que a atenuação da luz depende apenas de sua dispersão geométri-ca ou, em outras palavras, de sua densidade, e deriva daí a lei da fotometria

que determina a atenuação da luz com o quadrado da distância à fonte.20

Na Astronomia nova, a questão da possibilidade de associação de uma estrutura geométrica a uma potência imaterial é abordada a partir de uma possível objeção à potência motriz solar kepleriana: se ela é uma

species imaterial, como pode operar segundo leis geométricas? Pois

“pare-ce uma contradição care“pare-cer de matéria e no entanto estar sujeito às

di-mensões geométricas.”21 A isso Kepler responde logo em seguida:

A resposta é a seguinte: ainda que a potência motriz não seja algo materi-al, todavia, porque é destinada a transportar a matéria, isto é, o corpo de um planeta, ela não deve encontrar-se livre das leis geométricas, ao me-nos no que diz respeito a esta ação material de transportar. Nem é neces-sário muito mais. Pois vemos que esses movimentos são completados no espaço e no tempo, e que esta potência emana e se difunde a partir da fonte pelo espaço do mundo, os quais são todos coisas geométricas. E

18 KEPLER, 1980, p. 143. ...radius in perspicuo (quatenus perspicuum) non est, sed fuit, vel quasi fuit. Est verò in solis rerum coloribus et superficiebus. Óptica, K.G.W. II, p. 40.

19 KEPLER, 1980, p. 111. Lucis radio cum discessu à centro nulla accidit attenuatio in longum: hoc est, non quo longior radius hoc rarior seu sparsior, propter quidem hanc ipsam longitudinem. Óptica, K.G.W. II, p. 21.

20 Cf. KEPLER, 1980, p. 112; Óptica, K.G.W. II, p. 22.

21 KEPLER, 1992, p. 382. Videntur autem pugnantia, materia carere, et tamen di-mensionibus Geometricis subjacere... Astronomia nova, K.G.W. III, p. 241

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assim essa potência estaria além disso sujeita a outras necessidades geo-métricas.

Mas para que eu não pareça filosofar com demasiada insolência, devo oferecer ao leitor o exemplo claramente genuíno da luz. Pois ela também reside no corpo do Sol, para dali lançar-se em todo o mundo como a companheira desta potência motriz. Quem, eu pergunto, teria dito que a luz é algo material? E no entanto ela exerce as suas operações, e recipro-camente padece, com relação ao lugar: é refletida e refratada, e admite quantidades de maneira a ser densa ou rara e de maneira a poder ser to-mada como uma superfície onde quer que incida sobre algo iluminável.22 Em vista dessa exposição, esvazia-se completamente a crítica quanto à impossibilidade de que uma propagação imaterial obedeça a leis geométricas. Assim como a luz tem a forma esférica porque a sua função é espalhar-se pelo mundo esférico e iluminá-lo, também a potência mo-triz é provida de uma estrutura geométrica porque caso contrário seria impossível que ela cumprisse a sua função de mover os corpos dos plane-tas no espaço em torno do Sol.

Passemos agora aos problemas mais graves. A força motriz per-corre o mesmo caminho que os planetas, analogamente ao que se

obser-22 KEPLER, 1992, p. 383. Respondetur autem sic: quamvis virtus motrix non sit ma-teriale quippiam, quia tamen materiae hoc est corpori Planetae vehendo destinatur, non liberam esse a legibus Geometricis, saltem ob hanc materialem actionem transvectionis. Nec opus est multis. Videmus enim motus istos perfici in loco et tempore, et emanare atque diffundi virtutem hanc a fonte per spacia mundi; quae sunt omnia res Geometricae. Quin igitur et caeteris Geo-metricis necessitatibus obnoxoria sit haec virtus.

At ne nimium insolenter philosophari videar, proponam lectori exemplum lucis plane geni-um, cum in Solis corpore et ipsa niduletur, indeque comes huic virtuti motrici in totum mundum emicet. Quis quaeso dixerit, lucem esse materiale quippiam? Illa tamen operationes suas exercet ratione loci, et mutuum patitur, repercutitur et refringitur, et quantitates induit; adeo, ut densa vel rara esse, et pro superficie habere possit, ibi ubi ab illustrabili aliquo recipitur. Astronomia nova, K.G.W. III, p. 241.

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va em catapultas e outros movimentos violentos.23 Assim é possível

dis-tinguir nela duas velocidades, a velocidade infinita de propagação, que decorre diretamente de sua imaterialidade, e a velocidade finita de rotação em torno do Sol, idêntica à velocidade de rotação do próprio corpo solar no centro do mundo:

Assim a species é transportada em um círculo, de modo que este movi-mento cause os movimovi-mentos dos planetas; o corpo do Sol, ou a fonte, deve necessariamente mover-se ao mesmo tempo, não certamente de uma posição para outra no mundo - visto que eu disse depositar, com Copérnico, o corpo do Sol no centro do mundo – mas sobre o seu cen-tro ou eixo, ambos imóveis, suas partes passando de um lugar a oucen-tro ainda que o corpo todo permaneça no mesmo lugar.24

O movimento de rotação do Sol é transmitido aos planetas por in-termédio da potência motriz, e as velocidades planetárias são determina-das pela densidade da species na região correspondente. Como todos os planetas são corpos materiais e portanto têm uma tendência natural ao

repouso25, aqueles situados mais externamente, onde a potência motriz é

mais rarefeita, oferecem maior resistência ao movimento, o que implica em períodos mais longos. No seu Mistério cosmográfico (1596) Kepler já havia proposto que se a causa dos movimentos dos planetas fosse

atribu-23 Esse tipo de analogia entre sistemas mecânicos como balanças e alavancas e os movimentos astronômicos é típico da física celeste kepleriana. Cf. TOSSA-TO, 2003, p. 48-49.

24 KEPLER, 1992, p. 386. Specie ergo mota in gyrum, ut eo motu motum Planetis infe-rat, corpus Solis, seu fontem, una moveri necesse est; non quidem de spacio in spacium mundi: dixi enim me id corpus Solis cum COPERNICO in centro mundi relinquere: sed super suo centro, seu axe, immobilibus; partibus ejus de loco in locum (in eodem tamen spacio, toto corpore manente) transeuntibus. KEPLER, 1980, p. 243; O movimento rotacional do Sol seria observado por Galileu poucos anos mais tarde através das manchas solares, confirmando a previsão de Kepler. O autor da Astronomia nova responde entusi-asticamente às observações telescópias na sua Dissertatio cum nuncio sidereo, a Disser-tação com o mensageiro das estrelas, publicada em 1610.

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ída a uma certa alma motriz solar, então seria possível explicar os perío-dos planetários revelaperío-dos pelas observações, que no sistema heliocêntrico implicam em velocidades inversamente proporcionais à distância ao Sol. Na Astronomia nova a alma motriz do Sol é substituída pelo conceito ma-tematizado de força ou potência motriz solar, que explica também a vari-ação de velocidade de um planeta em sua órbita conforme ele se aproxi-ma ou se afasta do Sol.

Voltemos agora à passagem da Astronomia nova onde se lê que “o movimento local que requer tempo não pode ser corretamente atribuído

a algo imaterial (immateriato).”26 Ora, essa passagem faz parte da

demons-tração de que a rotação da species não pode advir senão de uma rotação do corpo Sol. Logo antes havia sido proposto o exemplo de um orador que perfaz um giro completo em meio a sua audiência. Ao girar, ele faz com que a luz refletida por seus olhos, uma species imaterial, gire também, de modo que os seus olhos possam ser vistos por todos os espectadores à sua volta. “Vês aqui claramente que a species imaterial da luz ou é levada ao redor ou permanece parada, a depender se aquilo de que é a species se

move ou permanece parado.”27

No apêndice ao primeiro capítulo da Óptica, onde Kepler critica a teoria da visão exposta por Aristóteles em De Anima livro 2, capítulo 7, pode-se ler: “Agora o que eu escuto dos outros é que a luz ou species, um mero acidente, não pode admitir nenhum movimento. Eu respondo a partir da mesma filosofia, que um corpo não pode se mover instantane-amente. E assim, o movimento da luz (sem tempo) se ajusta à qualidade

de seu corpo (sem matéria), sendo os dois analógicos”28 Embora a

26 KEPLER, 1992, p. 387. Rursum enim immateriato cuipiam localis motus cum tem-pore non recte tribuitur. Kepler Gesammelte Werke III, p. 243.

27 KEPLER, 1992, p. 387. Hic vides manifeste, speciem immateriatam lucis vel circum-ferri vel stare, uma cum circumlata vel stante re sua, cujus est species. Astronomia nova, K.G.W. III, p. 243.

28 KEPLER, 1980, p. 148. Nam quod audio ab aliis: Lux seu speciesmerum accidens motionem nullam sustinere potest. Regero ego eadem Philosophia, corpus in momento moueri

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cidade infinita da luz seja signo de sua imaterialidade, visto que “um cor-po não cor-pode se mover instantaneamente”, nada a princípio impede que a luz partilhe do movimento de sua fonte, como de fato ocorre no exem-plo do orador que acabamos de mencionar. Mas resta ainda uma pergun-ta: como pode essa potência imaterial descrever um movimento de rota-ção com velocidade finita? Indagar como é possível que o Sol transmita à potência motriz o seu movimento de rotação equivale a perguntar como é possível que essa potência aja sobre os corpos dos planetas e os faça girar. O mecanismo pelo qual se dá essa ação não é no entanto

esclareci-do por Kepler, ainda que ele procure abordar o tema em um trecho29

extremamente obscuro da Astronomia nova, onde procura estabelecer a estrutura geométrica da potência motriz solar. Trata-se aqui da interação entre as potências imateriais e a matéria, questão que certamente envolve dificuldades mas que, como mostraremos nas próximas linhas, não nos obriga a abrir mão da imaterialidade da força solar kepleriana.

A ação da força ou potência motriz solar sobre os corpos dos pla-netas é comparada na Astronomia nova ao clareamento de um corpo ex-posto à luz solar. Na Óptica, a iluminação dos corpos fora distinguida da ação física da luz sobre a matéria que se manifesta nos fenômenos do aquecimento, clareamento e destruição dos corpos. Enquanto a ilumina-ção se dá instantaneamente, por uma conjunilumina-ção geométrica, a ailumina-ção da luz sobre a matéria requer tempo, como pode ser observado nesses

fenôme-nos.30 Como os planetas são corpos materiais, a ação da força motriz

sobre eles deve ser investigada segundo o exemplo da ação da luz sobre a matéria:

non potest. Quale itaque corpus lucis (sine materiâ), talis et motus (sine tempore), utrumque analogicum. Óptica, K.G.W. II, p. 45.

29 Referimo-nos ao início capítulo 36, intitulado “Em que medida a potência motriz solar é atenuada na extensão do mundo” KEPLER, 1992, p. 394-399; Astronomia nova, K.G.W. III, p. 248-252.

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A luz torna manifestas aquelas coisas que são próprias a ela em um ins-tante, mas requer tempo para afetar aquelas relacionadas à matéria. Ela ilumina uma superfície em um momento, porque aqui não é preciso que a matéria sofra nenhuma alteração, pois toda iluminação ocorre em razão das superfícies, ou como em razão das superfícies31, e não da

corporei-dade na medida em que é corporeicorporei-dade. Contrariamente, a luz clareia as cores no tempo, porque aqui age sobre a matéria enquanto matéria, aque-cendo-a e expelindo o frio contrário que se encontra fixo na matéria do corpo, e não em sua superfície. É claramente desta mesma maneira que a potência motriz, perpetuamente e sem intervalo de tempo, encontra-se presente desde o Sol até onde quer que haja móvel adequado, pois ela por princípio nada recebe do corpo móvel pelo que se encontre ali. Po-rém ela causa movimento no tempo, porque o móvel é material.32 O clareamento dos corpos pela ação da luz é um fenômeno fami-liar onde é possível observar a ação de uma potência imaterial sobre a matéria. Em vista do primeiro livro da Óptica, torna-se evidente que o argumento dos capítulos 33 e 34 da Astronomia nova tem o objetivo de desenvolver a hipótese física de uma potência imaterial que age sobre os corpos materiais dos planetas e causa os seus movimentos no sistema heliocêntrico.

Ocorre que Kepler enfrenta dificuldades ao procurar relacionar a estrutura geométrica da força solar indicada pela analogia com a luz com 31 Kepler provavelmente refere-se aqui a sua teoria da iluminação das cores: entendidas como pequenas superfícies existentes no interior de corpos que são em certa medida transparentes, as cores podem interagir com a luz por uma semelhança de gênero, como acontece com as superfícies dos corpos nos fenô-menos bem conhecidos da reflexão e da refração. Cf. Suplemento a Virelo, p. 114.; Óptica, K.G.W. II, p. 23.

32 KEPLER, 1992, p. 383. Lux quae sua sunt in momento praestat; qua materia con-currit, ipsa quoque tempore proficit. Illustrat superficies in momento; quia nihil hic materiam pati opus est, cum illustratio omnis ratione superficierum perficiatum vel quasi superficierum, non ratione corpulentiae quatenus corpulentiae. Contra lux dealbat colores in tempore; quia hic in materiam agit quatenus materia, eamque calfacit, expellens contrarium frigus in corporis materia fixum non in superficie. Ita plane et haec virtus movens, perpetuo et sine temporis intervallo, illic ex Sole adest, ubi est idoneum mobile, quia nihil accipit a mobile ad hoc, ut adsit. Movet autem in tempore; quia mobile materiatum est. Astronomia nova, K.G.W. III, 241.

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o decréscimo linear das velocidades dos planetas associado ao aumento da distância ao Sol, verificado nas observações. Como as velocidades planetárias indicadas tanto pelos períodos dos planetas quanto pelas va-riações periódicas do movimento de Marte variam linearmente com a distância ao Sol, a lei de atenuação da potência solar deve necessaria-mente ser linear. (Aqui, mais uma vez, Kepler segue a dinâmica aristotéli-ca e considera a força diretamente proporcional à velocidade.) Ainda que o clareamento dos corpos mostre que é possível a ação da luz sobre a matéria, a essência da luz no entanto determina que ela ilumine as super-fícies dos corpos, e é a esta função que se acorda a sua estrutura geomé-trica como superfície esférica bidimensional e determina a sua atenuação com o quadrado da distância à fonte. Já a força motriz deve, de acordo com sua essência, mover os corpos materiais dos planetas, e pela analogia com a luz ela deveria ter a estrutura de uma esfera tridimensional, e ate-nuar-se com o cubo da distância à fonte – ou pelo menos com o quadra-do da distância, exatamente como a luz. Essa dificuldade é abordada no início do trigésimo sexto capítulo da Astronomia nova, onde Kepler obser-va que embora as obserobser-vações mostrem que as velocidades dos planetas decrescem linearmente com o aumento da distância ao Sol, é de se espe-rar que a atenuação da força motriz se dê com o quadrado ou com o

cubo da distância à fonte.33 A solução encontrada por Kepler consiste

em argumentar que a força solar age apenas em uma direção, movendo

os planetas em círculos paralelos ao equador solar.34

33 Cf. KEPLER, 1992, p. 394; K.G.W. III, p. 248.

34 As inclinações das órbitas dos planetas relativamente à órbita da Terra, aparente nos movimentos observados como o chamado ‘movimento em latitu-de’, é explicada por Kepler como um efeito da interação entre o magnetismo de cada planeta e o magnetismo solar. A mesma explicação dá conta da forma elíp-tica das órbitas. Cf. KEPLER, 1992, p. 612-619, 547-572; Astronomia nova, K.G.W. III, p. 389-394, 348-364.

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Por outro lado a luz escoa esfericamente por linhas retas enquanto a po-tência motriz, embora escoe por linhas retas, o faz circularmente; isto é, ela só faz esforço em uma região do mundo, do poente para o nascente, e não o oposto, nem em direção aos pólos, etc.35

A interpretação tradicional dessa passagem propõe que, diferen-temente do que acontece com a luz, a força motriz kepleriana não se expande como uma superfície esférica em torno do corpo solar mas como um disco, que se propaga somente no plano determinado pelo equador solar. A estrutura geométrica circular da potência motriz explica-ria assim a atenuação com o inverso da distância, revelada pelas

observa-ções.36 Bruce Stephenson37, no entanto, observou que essa interpretação

entra em conflito com uma passagem da Astronomia nova onde se lê:

Pois ainda que os filamentos magnéticos do corpo solar sejam ordenados conforme o comprimento do zodíaco, e embora apenas o singular círculo máximo do corpo do Sol se situe sob o zodíaco ou a eclíptica, e aproxi-madamente sob a órbita do planeta, e, finalmente, mesmo que os outros círculos menores (diminuídos até a pequenez de um ponto sobre os pó-los) sejam arranjados sob seus círculos correspondentes na esfera [que contém a órbita] do planeta, ainda assim os raios escoam a partir de todos os filamentos do corpo solar (que se encontram em um hemisfério do corpo solar) e convergem não apenas em todos os pontos do caminho de algum planeta, mas nos próprios pólos sobre os pólos do corpo do Sol. E o corpo do planeta é arrastado proporcionalmente à densidade dessa

spe-cies inteira, composta a partir de todos os filamentos.38

35KEPLER, 1992, p. 380-381. Rursum lux rectis effluit orbiculariter, virtus movens rectis quidem sed circulariter; hoc est in unam tantum plagam mundi ab occasu in ortum niti-tur, non contra, non ad polos etc. Astronomia nova, K.G.W. III, p. 240.

36 Westman, Aiton e Gingerich, por exemplo, são dessa opinião. Cf. WESTMAN, 1975, p. 716; AITON, 1969, p. 78; GINGERICH, 1993, p. 316.

37 Cf. STEPHENSON, 1987, p. 72-73.

38 KEPLER, 1992, p. 398. Nam etsi filamenta corporis Solaris magnetica ordinantur secundum longitudinem zodiaci: etsi etiam unicus tantummodo circulus maximus corporis Solis subest zodiaco sive eclipticae, et quam proxime orbitae Planetae: denique etsi alteri circelli minores (tandem sub polis in puncti angustiam attenuati) subordinantur respondentibus suis circulis in sphaera Planetae: tamen ab omnibus Solaris corporis filamentis (ab uno

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Em um artigo recente39, dirigimos nossa atenção para aquela

pas-sagem citada anteriormente, onde se lê:

Por outro lado a luz escoa esfericamente por linhas retas enquanto a po-tência motriz, embora escoe por linhas retas, o faz circularmente; isto é, ela só faz esforço em uma região do mundo, do poente para o nascente, e não o oposto, nem em direção aos pólos, etc.40

Sugerimos que o termo ‘circularmente’ não se opõe aqui a ‘esferi-camente’ como a forma da propagação da potência solar à forma da pro-pagação da luz, mas que ao invés disso refere-se ao esforço (nititur) exer-cido pela força solar, como indica a segunda oração introduzida por hoc

est. O movimento dos planetas é em última instância causado pelo

movi-mento rotacional do Sol, a eles transmitido pela species immateriata por ele emitida para este fim. Mais adiante Kepler irá comparar a força solar a

uma rápida torrente (rapidus quidam torrens)41 ou à correnteza de um rio

(torrente fluminis)42. Esta analogia parece-nos perfeitamente compatível

com a analogia com a luz. A analogia com a correnteza de um rio, ainda que imperfeita dada a imaterialidade da força, mostra que Kepler entende a sua ação sobre os planetas como a transmissão de um movimento rota-cional originalmente executado pelo Sol. Segundo nossa interpretação, a rio corporis stantibus) radii defluunt et confluunt tam ad puncta singula itineris alicujus Plane-tae, quam ad ipsos polos polis corporis Solis imminentes; et Planetae corpus vehitur ad modu-lum densitatis, hujus integrae speciei, ex filamentis omnibus compositae. Astronomia nova, K.G.W III, p. 251.

39 ITOKAZU, 2006.

40 KEPLER, 1992, p. 380-381. Rursum lux rectis effluit orbiculariter, virtus movens rectis quidem sed circulariter; hoc est in unam tantum plagam mundi ab occasu in ortum niti-tur, non contra, non ad polos etc. Astronomia nova, K.G.W. III, p. 240.

41 Cf. KEPLER, 1992, p. 405; Astronomia nova, K.G.W. III p. 255;

42 Cf. KEPLER, 1992, p. 413; Astronomia nova, K.G.W. III, p. 261. No capítulo 57, onde Kepler desenvolve uma explicação física para a recém-descoberta forma elíptica da órbita de Marte, ele compara a força solar a algum rio circular (flumen aliquod circulare). Cf. KEPLER, 1992, p. 549; Astronomia nova, K.G.W. III, p. 349.

(17)

species immateriata é emitida esfericamente e ocupa todo o espaço limitado

pela esfera das estrelas fixas, mas a sua atenuação linear é geometrica-mente determinada pelo movimento circular que ela compartilha com o Sol e transmite aos planetas. Se a ação da força sobre cada planeta nada mais é senão a transmissão de um movimento circular, é possível argu-mentar que a sua intensidade depende somente do raio do círculo corres-pondente, e decresce linearmente com o aumento da distância ao Sol. Stephenson chega à atenuação linear sem abrir mão da estrutura esférica da força solar ao traduzir species como ‘imagem’ e entendendo o circular-mente como relativo à imagem do Sol em rotação. Porém, se é verdade em algumas passagens a tradução de species como imagem pode de fato

tornar o texto da Astronomia nova mais claro43, ela não é aceitável do

pon-to de vista da analogia com a luz, como procuramos mostrar no artigo acima mencionado.

Resta ainda um problema: as passagens que reproduzimos aqui mostram o contraste traçado por Kepler entre as species materiais, como os odores e o calor de uma fornalha, e aquelas imateriais, a luz, o magnetismo e a potência solar. Seríamos nós agora forçados a entender a luz e outras emanações imateriais como seres espirituais, como sugere Rabin? Mas Kepler escrevera claramente logo no início do primeiro capítulo da Óptica:

Por conseguinte, ainda que os corpos sejam por si mesmos contidos nos limites de suas próprias superfícies, e por si mesmos não possam multi-plicar-se esfericamente, há no entanto diversas potências, mencionadas acima: estas, embora abrigadas nos corpos são na verdade um pouco mais livres; são destituídas de matéria corpórea, mas constituídas de uma certa matéria que lhes é própria (suâ) e que admite as dimensões geomé-tricas, e emanam dos corpos afetando as suas vizinhanças, como é evi-dente principalmente no caso do Magneto, mas também em muitos ou-tros.44

43 Essa leitura proposta por STEPHENSON, 1987 e seguida por VOEL-KEL, 2001.

44 KEPLER, 1980, p. 107-108. Propterea corpora ipsa, cum per sese suarum superfici-erum finibus continerentur, nec sese ipsa multiplicare possent in orbem; variis sunt praedita

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As propagações desprovidas de matéria corpórea, como a luz e o magnetismo, são portanto constituídas de uma ‘certa matéria própria’ que admite as dimensões geométricas. E, no caso da luz, dispomos de uma exposição detalhada sobre sua estrutura geométrica, uma superfície esfé-rica em expansão, cuja densidade cai com o quadrado da distância à fon-te. As passagens que reunimos aqui sugerem que luz e potência solar são imateriais na medida em que são desprovidas de peso ou massa. O trecho acima mostra que isso não entanto não significa necessariamente para Kepler que essas potências devam ser entendidas como seres espirituais. As potências imateriais são descritas aqui como potências que se multi-plicam esfericamente e que portanto partilham da estrutura geométrica da matéria mas não de outras de suas propriedades, em especial a resistência à matéria. E assim, concluímos que em vista da dinâmica aristotélica subjacente à nova física celeste o termo ‘imaterial’, empregado na discus-são acerca da propagação da luz, significa ‘desprovido de massa e livre de resistência ao mover-se’.

Poderíamos então finalmente declarar a noção de potência imate-rial na ciência de Kepler inteiramente livre de dificuldades? Certamente que não. É provável que a diferença entre a alma motriz solar do Mistério

cosmográfico e a força ou potência motriz solar da Astronomia nova seja

me-nos profunda do que o próprio Kepler dá a entender. Acreditamos, com

Martens45 e Stephenson46, que as almas planetárias tenham continuado a

desempenhar um papel importante no pensamento kepleriano, como fica patente nas discussões sobre a alma do Sol presentes tanto na Harmonia virtutibus, quae nidulantes quidem in corporibus, seipsis verò paulò liberiores, et materiâ caren-tes corporeâ, sed suâ quadam constancaren-tes materiâ, quae dimensiones suscipit Geometricas, egrede-rentur, orbemque adfectarent: vt praecipuè in Magnete, sed et in multis aliis clarè apparet. Óptica, K.G.W. II, p. 19.

45 MARTENS, 2000, p. 82, 91-94.

46 MARTENS, 2000, p. 82, 91-94; STEPHENSON, 1987, p. 3, 23-24, 67, 132.

(19)

do mundo, livro IV, quanto no sexto capítulo da Óptica47. No opúsculo Da

neve hexagonal, a forma regular dos flocos de neve é creditada a uma certa

faculdade geometrizante da alma da Terra, e mesmo no argumento da

Astronomia nova, sobretudo na análise da possibilidade física das diferentes

representações geométricas tradicionais do movimento aparente de Marte e de suas possíveis órbitas no sistema heliocêntrico, Kepler recorre à

noção de alma planetária.48 Em todas essas ocasiões, as almas planetárias

são entendidas como potências geometrizantes ou motrizes, que operam no sentido de garantir a manutenção do ordenamento do mundo. Como Martens observou, elas encontram-se sujeitas às necessidades naturais e, acrescentamos, são acessíveis à razão. Assim, almas planetárias e forças corpóreas talvez não sejam tão diferentes na física celeste de Kepler, pelo menos quanto ao seu modo de operação. Lembrando que a palavra esco-lhida por Kepler para designar a potência motriz solar é species, que pode significar ‘imagem’ mas também ‘forma’, vemos que no final das contas a possibilidade de que a força solar seja espiritual porque imaterial talvez não seja tão grave para o autor da Astronomia nova quanto é para nós.

O certo é que Kepler tinha plena consciência do caráter hipotético de suas investigações físicas, como fica claro tanto na Óptica quanto na

Astronomia nova, onde ele confessa: “como é costume na física, eu misturo

o provável com o necessário e traço uma conclusão provável a partir da mistura. Pois como neste trabalho eu misturei física celeste com astro-nomia, ninguém deve se surpreender por eu ter recorrido a algumas con-jecturas. Pois é esta a natureza da física, da medicina e de todas as ciên-cias que fazem uso de outros axiomas além da segura evidência dos

47 Cf. KEPLER, 2000, p. 239.

48 Ver, principalmente, os capítulos 2, 39 e 57. Temos um artigo sobre o pa-pel das almas planetárias no argumento da Astronomia nova que deve ser publica-do em breve.

(20)

olhos.”49 Kepler também indica que sua nova física celeste é embrionária

e inacabada, e acreditamos que seja esta a razão pela qual a Astronomia

nova foi escrita na forma de um ‘diário de viagem’ ou de uma narrativa

histórica da chamada ‘guerra contra Marte’, para que seus leitores pudes-sem seguir o caminho previamente percorrido e completar a reforma da

ciência astronômica.50

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49 KEPLER, 1992, p. 47. Idem faciam etiam tunc, ubi more Physicorum necessariis admiscuero probabilia, exque iis sic mixtis probabilem extruxero conclusionem. Nam quia hoc in Opere Physicam coelestem Astronomiae permiscui, nemo mirari debet, conjecturas etiam nonnullas adhiberi. Haec enim Physicae, haec Medicinae, haec omnium scientiarum Natura est, quae praeter oculorum certissimas indicationes alia etiam adhibent axiomata. Astronomia nova, K.G.W. III, p. 19.

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Referências

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