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O estatuto da partícula le na fala de um sujeito afásico : um estudo da reconstrução da linguagem em contextos interacionais

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NATHÁLIA DO NASCIMENTO EPIFANIO

O ESTATUTO DA PARTÍCULA LE NA FALA DE UM SUJEITO

AFÁSICO – UM ESTUDO DA RECONSTRUÇÃO DA

LINGUAGEM EM CONTEXTOS INTERACIONAIS

CAMPINAS, 2014

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iii

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM

NATHÁLIA DO NASCIMENTO EPIFANIO

O estatuto da partícula le na fala de um sujeito afásico – um

estudo da reconstrução da linguagem em contextos

interacionais

Dissertação apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem, da Universidade Estadual de Campinas, para obtenção do Título de Mestra em Linguística.

Orientadora: Profa Drª Edwiges Maria Morato

CAMPINAS 2014

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Ficha catalográfica

Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Estudos da Linguagem

Haroldo Batista da Silva - CRB 5470

Epifanio, Nathália do Nascimento,

Ep43e EpiO estatuto da partícula /e na fala de um indivíduo afásico - um estudo da reconstrução da linguagem em contextos interacionais / Nathália do Nascimento Epifanio. – Campinas, SP : [s.n.], 2014.

EpiOrientador: Edwiges Maria Morato.

EpiDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de

Estudos da Linguagem.

Epi1. Afasia. 2. Interaçao. 3. Reconstrução. 4. Prompting (Fonoaudiologia). I. Morato, Edwiges Maria,1961-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: The status of the particle "le" in the speech of an aphasic individual - a

study of language reconstruction in interactional contexts

Palavras-chave em inglês:

Aphasia Interaction Reconstruction

Prompting (Speech, language and hearing sciences)

Área de concentração: Linguística Titulação: Mestra em Linguística Banca examinadora:

Edwiges Maria Morato [Orientador] Anna Christina Bentes da Silva Sebastião Carlos Leite Gonçalves

Data de defesa: 27-08-2014

Programa de Pós-Graduação: Linguística

Powered by TCPDF (www.tcpdf.org)

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vii RESUMO

Este trabalho tem como objetivo a descrição e análise das funções linguísticas e pragmáticas do elemento le, que emerge de forma a assumir várias funções linguísticas na fala de uma pessoa afásica, EC, participante do Centro de Convivência de Afásicos (CCA), situado na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). O corpus desta pesquisa é constituído pelos registros de 6 encontros mensais do CCA (que totalizam 12 horas de transcrição), pertencentes ao acervo de dados linguístico-interacionais AphasiAcervus, que constitui os corpora de pesquisas coordenadas pela Profa. Dra. Edwiges Maria Morato junto ao CCA. Os encontros em questão foram realizados do segundo semestre de 2008 – que corresponde ao período do ingresso de EC no grupo do qual participa – ao segundo semestre de 2010. Os resultados desta pesquisa foram obtidos através da análise não apenas qualitativa mas também descritiva e quantitativa dos dados, com vistas tanto ao detalhamento da descrição quanto à visibilidade das ocorrências e do estatuto da partícula le na fala de EC. Após o levantamento e a análise das ocorrências do fenômeno na fala de EC, chegou-se à conclusão de que esse elemento atua de maneira plurifuncional: ele tem o papel de estruturador de margem esquerda nos níveis do sintagma, da sentença e no nível morfofonológico, o que mostra que EC não está despojada de uma consciência gramatical, operando com o princípio de constituência; ao mesmo tempo, ele funciona como uma espécie de

prompting, que a auxilia em sua dinâmica interaconal. É preciso ressaltar, no entanto, que ambas

as funções operam conjuntamente e se complementam. Os dois fenômenos fazem parte de um mesmo funcionamento, sendo que um destaca aspectos da organização estrutural da fala de EC enquanto o outro destaca os ganhos conversacionais obtidos pelo uso do elemento le. Ao mesmo tempo que le preenche a margem esquerda de um sintagma, por exemplo, ele pode funcionar como um estímulo para a evocação do núcleo sintagmático, o que se observa nas pausas, nos prolongamentos vocálicos, etc. Esta dissertação tem como foco principal mostrar que a presença do elemento le, longe de ser uma mera excrescência na linguagem de EC, é fator de reorganização gramatical e discursiva, sendo possível destacar em sua produção vários aspectos (linguísticos, pragmáticos, textuais, comunicacionais, contextuais) ligados à competência na linguagem. Tomando-se a competência linguística não como uma faculdade mental inata, mas sim como prática, EC não deixa de atuar com e sobre a linguagem em suas práticas comunicacionais de forma criativa, colaborativa e apropriada aos propósitos conversacionais, fato evidenciado no uso

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estratégico da partícula le. Para analisar o fenômeno aqui descrito, foram evocados estudos conversacionais e sociocognitivos, sobretudo trabalhos que consideram os processos linguísticos e cognitivos tomados em contexto e em interação. Evocamos para nossa análise das ocorrências da partícula le algumas contribuições trazidas do Funcionalismo Linguístico, da Análise da Conversação e da Linguística Textual.

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ix ABSTRACT

This work aims to describe and analyze the linguistic and pragmatic functions of the element ‘le’, which is produced in the speech of EC, a participant at the Aphasics Conviviality Center (CCA), located at the State University of Campinas (UNICAMP). The research data consists of the records of six CCA weekly meetings (which correspond to 12 hours of transcribed sessions) and is part of the collection of linguistic-interactional data called AphasiAcervus, data used in the researches led by Professor Dr. Edwiges Maria Morato. The sessions in question took place from the second half of 2008 – the period in which EC joined her CCA group – to the second half of 2010. The results of this research were obtained through the qualitative and descriptive analysis of the data so as to achieve a detailed description and provide visibility to the occurrences and to the status of the particle “le” in EC’s speech. After the identification and analysis of the phenomenon’s occurrences, the conclusion obtained was that this element operates in a multifunctional way. One of its roles is to structure the left margin at the phrase, sentence and morphophonological levels, which shows that EC is not deprived of a grammatical knowledge, since this structuring demonstrates the operation of the grammatical principle of constituency. At the same time, the particle works as a kind of prompting, which aids EC in the interactional dynamics. It is necessary to highlight that both functions operate jointly and are complementary; the first is related to aspects of the structural organization of EC’s speech and the second is related to the conversational gains that the use of the element ‘le’ provides. At the same time as ‘le’ fills, for example, the left margin of a phrase, it can work as a stimulus for evoking the phrase nucleus; this is noted in speech pauses, vowel extension, etc. The focus of this dissertation is to show that the presence of the element ‘le’, far from being a mere excrescence in EC’s language, is a factor in grammatical and discursive reorganization, and that it is possible to highlight several aspects of its use (linguistic, pragmatic, textual, communicational, contextual) related to competence in language. Considering linguistic competence not as an innate mental faculty but rather as practice, EC dos not fail to act with and on language in the communication practices in a collaborative, creative manner, appropriate for the conversational purposes, a fact evidenced by the strategic use of the particle ‘le’. For the analysis of the described phenomenon, conversational and sociocognitive studies were taken into account, especially the ones that consider linguistic and cognitive processes in context and interaction. A few contributions from Linguistic Functionalism,

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Conversation Analysis and Text Linguistics were considered in the analysis of the particle’s occurrences.

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Sumário

RESUMO ... vii ABSTRACT ... ix AGRADECIMENTOS... xiii INTRODUÇAO ... 1 1.1 O fenômeno investigado ... 1 1.2 Objetivos do trabalho ... 5

1.3 Justificativa e a relevância do tema – Investigação anterior: Contextualizando as hipóteses, o empreendimento metodológico e os achados teóricos ... 6

1.4 Pressupostos teóricos gerais ...12

1.5 Estruturação do trabalho ...13

CAPÍTULO 1 – Subsídios Teóricos ...15

1.1 Aspectos linguísticos, neuropsicológicos e neurolinguísticos do quadro afásico de EC ...15

1.2 Sobre a observação dos aspectos gramaticais ...18

1.3 Nosso domínio empírico – a conversação face a face ...20

1.4 Sobre a observação de aspectos conversacionais ...21

1.5 A propósito da noção de prompting ...23

CAPÍTULO 2 - Metodologia ...25

2.1 Descrição do quadro de EC ...25

2.2 Objetivos ...30

2.3 Sistema de notação versão 2011 (AphasiAcervus, Morato et al, 2011). ...31

2.4 O CCA ...34

2.5 Constituição do corpus ...36

Capítulo 3 – Resultados e Discussão ...39

3.1 Investigando a atuação da partícula le na fala de EC ...39

3.2 Levantamento das ocorrência no corpus da pesquisa ...41

3.3 Os papéis que o elemento le assume na fala do sujeito afásico ...46

3.3.1 Hipótese acerca das ocorrências e do funcionamento da partícula le ...46

3.3.2 A partícula le, o Princípio de Constituência e o deslocamento à esquerda ...46

3.3.3 A hipótese do elemento le como um prompting ...48

3.4 Da análise do dado oral ...51

3.5 Análise ...52

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3.5.2 Preenchedor da margem esquerda da sentença ...60

3.5.3 Preenchedor de margem esquerda de SV...64

3.5.4 Preenchedor de margem esquerda de SA ...65

3.5.5 Parte integrante de palavra ...67

3.5.6 Preenchedor de margem esquerda de SAdv ...70

3.5.7 Preenchedor de margem esquerda de SP ...71

3.6 Sobre a questão do agramatismo ...71

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...75

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...79

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AGRADECIMENTOS

À Profa. Dra. Edwiges Maria Morato, minha orientadora, a quem eu devo todo meu respeito, minha gratidão e minha admiração, por ter me apoiado e instruído em minha pesquisa e por ter contribuído significativamente na minha formação acadêmica e pessoal desde a minha graduação, seja com as suas aulas, nas reuniões do grupo de pesquisa COGITES, no grupo do Centro de Convivência de Afásicos, nas reuniões de orientação e até em conversas informais.

À Profa. Dra. Anna Christina Bentes, por ter aceitado nosso convite para o exame de qualificação e para a defesa desta dissertação, e pelas valiosas contribuições para este trabalho dadas em ambas as ocasiões. Agradeço também pela enorme contribuição em minha formação acadêmica, desde a graduação, por suas aulas, que foram muito importantes para o meu crescimento intelectual. Ao professor Sebastião Carlos Leite, por ter também aceitado nosso convite para participar do exame de qualificação, para a defesa desta dissertação e por ter se dedicado a elaborar, de forma detalhada e cuidadosa, comentários preciosos sobre as diferentes versões do texto.

Aos Profs. Drs. Júlia Marinho e Wilmar DÁngelis, que aceitaram nosso convite para a suplência da banca examinadora.

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), pelo apoio financeiro em minhas pesquisas de Iniciação Científica e Mestrado.

Ao Cláudio, ao Miguel e à Rose, da Secretaria de Pós-Graduação, pela prontidão e eficiência em me auxiliar na execução dos diversos procedimentos burocráticos relacionados com a vida acadêmica.

A todos os participantes do grupo do CCA (Centro de Convivência de Afásicos), que durante minha graduação e minha pós-graduação fizeram (e espero que continuem fazendo) parte da minha vida, tornaram minhas quintas-feiras mais alegres e me fizeram enxergar o mundo de uma forma muito melhor.

Ao Marcel, que me acompanhou e me apoiou durante todo o mestrado e cuja ajuda foi fundamental para o desenvolvimento desta dissertação.

Ao grupo Cogites, pelas valiosas discussões, e sobretudo aos meus amigos Janaína, Natália e Rafahel, pela importante presença durante todo o meu percurso acadêmico e pelas ótimas reuniões estendidas que tive com eles.

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A todos os meus amigos, que sempre torceram por mim, em especial à Amanda, Leonardo, Gaby, Lucas, Rafael e Camila.

À minha família, minha mãe, Silvana, meu pai, Amadeu, minha irmã, Camilla, ao Steve e principalmente à minha vó Dirce, que até em minha defesa fez questão de estar presente.

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INTRODUÇAO

INVESTIGAÇÃO DE UMA OCORRÊNCIA SINGULAR NA FALA DE UMA PESSOA AFÁSICA EM PROCESSOS DE REORGANIZAÇÃO DE SUA LINGUAGEM

1.1 O fenômeno investigado

Este trabalho tem como objetivo descrever e analisar as funções linguísticas e pragmáticas do elemento le, que emerge de forma a assumir várias funções linguísticas, na fala de uma pessoa afásica1, EC2, participante do Centro de Convivência de Afásicos (CCA)3, situado na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).

O interesse por esse fenômeno surgiu em março de 2009, quando demos início a um estágio de observação num dos grupos que constituem o CCA, e, durante esse período de cerca de seis meses, uma característica da fala de uma das participantes afásicaschamou-nos a atenção.

Trata-se de uma jovem afásica (à época com 33 anos) que produz um elemento que, muitas vezes, parece funcionar como uma espécie de prompting4 para implementação de sua evocação e de seu turno de fala e, outras vezes, como uma espécie de “curinga” categorial com a finalidade de garantir a produção de itens linguísticos gramaticalmente adequados, já que o

1 As afasias, grosso modo, são alterações na linguagem oral e/ou escrita decorrentes de um comprometimento

neurológico, como acidente vascular cerebral (AVC), traumatismo crânio-encefálico ou um tumor cerebral. O que essas sequelas acarretam são dificuldades nos processos de produção e interpretação de linguagem, em seus vários níveis (fonoarticulatório, morfofonológico, semântico, sintático) e modos de funcionamento (Cf. Morato et al., 2002). No caso de EC, suas alterações afásicas decorrem de dificuldade léxico-gramatical, o que caracteriza sua produção em termos de “fala telegráfica”, na qual podem estar ausentes, ou inconstantes, palavras funcionais e elementos conectivos.

2 EC, brasileira, paulista, nascida em 14/07/1976, destra, casada e mãe de um filho de 5 anos, dona de casa, sofreu em

1997, aos 21 anos de idade, um rompimento de aneurisma em área fronto-parietal à esquerda e, em consequência disso, precisou colocar um clipe metálico supraciliar à esquerda. EC, que mantinha práticas variadas de letramento antes do comprometimento neurológico, tem o Ensino Médio completo e um curso técnico incompleto em Farmácia. Frequenta o CCA desde 2008.

3 O Centro de Convivência de Afásicos (CCA), criado em 1989 por iniciativa de pesquisadores do Departamento de

Neurologia e do Departamento de Linguística, é um “espaço de interação entre afásicos e não afásicos (cf. Morato et alli, 2002) que funciona nas dependências do Instituto de Estudos da Linguagem, na UNICAMP.

4 Em sua tese doutoral, Marinho (2012) afirma que o prompting, assim como outros recursos linguísticos, atua não só

como auxiliador do paciente afásico na evocação de determinados segmentos ou enunciados, mas também na organização da dinâmica interacional, na manutenção do discurso, no desenvolvimento do tópico conversacional e na resolução de mal-entedidos, fornecendo estratégias que promovem o encadeamento tópico e conversacional, bem como impactos na própria dinâmica interacional.

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elemento le parecia ocupar lugares gramaticais (sobretudo em níveis morfofonológicos e sintáticos) “vazios”.

Do ponto de vista neurolinguístico, o quadro afásico de EC é predominantemente expressivo, com características do que a literatura afasiológica chama de fala telegráfica, com omissão de categorias funcionais, dificuldade de encontrar palavras, produção de parafasias semânticas e morfofonológicas (exibidas nas dificuldades com formas derivadas, que fazem EC produzir “cabelo” ou “cabela” no lugar de “cabeleireira”, por exemplo) e, em menor grau, dificuldade em fazer uso de morfemas flexionais.

Nos termos neuropsicológicos de Luria (1970), o que estaria alterado no quadro afásico apresentado por EC, um quadro predominantemente eferente, nos termos do médico russo, é a dinâmica da estrutura predicativa da fala, que transparece na dificuldade de selecionar e organizar os componentes da sentença. Nos termos de Jakobson (1954), a afasia apresentada inicialmente por EC afetaria predominantemente o eixo paradigmático, ainda que a complexidade do quadro neuropsicológico, bem como uma perspectiva funcional e interacional de linguagem, aponte para o comprometimento dos dois eixos ou processos simbólicos aludidos pelo linguista russo, sob inspiração saussuriana: paradigmático e sintagmático. Em termos jakobsonianos (Jakobson, 1954), o problema afásico de EC residiria mais nos processos de seletividade das categorias linguísticas, considerando que uma possível substituição de categorias funcionais pela partícula le nos mostraria que ele é um agente reconstrutor da estrutura gramatical (que não parece ausente no caso de EC), conferindo fluência, coesão, e sequencialidade aos seus enunciados. O que se observa, em resumo, no caso de EC, é tanto uma dificuldade de seleção quanto de combinação entre os elementos linguísticos – fato para o qual Jakobson estava atento quando se referia a interseção dos eixos paradigmáticos e sintagmáticos (Jakobson, 1960).

A título de exemplificação do uso da partícula le na fala de EC, fenômeno que chamou nossa atenção, seguem abaixo alguns fragmentos extraídos de encontros do CCA que constituem o nosso corpus de pesquisa. Desses encontros fazem parte afásicos e não afásicos (pesquisadores da área de Neurolinguística do Instituto de estudos da Linguagem, orientandos ou membros do grupo de pesquisa coordenado por Edwiges Maria Morato, o COGITES5) que participam das

5 O Grupo de Pesquisa COGITES (“Cognição, Interação e Significação”) , cadastrado no diretório do CNPq

(http://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/detalhegrupo.jsp?grupo=00798014981QOS), coordenado pela Profa. Dra. Edwiges Maria Morato, reúne pesquisadores de IC a pós-doutorado e está consagrado ao estudo das relações entre linguagem e cognição por meio da análise de práticas linguístico-interacionais, em especial as que envolvem

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atividades ali desenvolvidas, como práticas de conversação, discussão sobre temas diversos, leituras de jornais e revistas, oficinas de expressão teatral, confecção do jornal informativo produzido pelo grupo, oficinas de arte, dentre outras.

(1) Corpus AphasiAcervus6 (04/12/2008)

Contexto: Os participantes do CCA estão tomando café, preparado conjuntamente. EC informa aos demais que ela trouxe a banana que está sobre a mesa. Estão presentes nesta interação os participantes afásicos MS, MN e EC e a pesquisadora EM.

1. EC le banana é meu

2. EM quem trouxe a banana/ 3. EC é meu

Na linha 1, EC parece perceber que no enunciado “(le) banana é meu” o sintagma nominal banana necessita de um especificador, mas não consegue produzir nenhum dos elementos que normalmente ocupam essa posição (o artigo, os demonstrativos, os possessivos e os quantificadores); no entanto, ela evoca o elemento le para assumir essa posição, fazendo com que o enunciado tenha uma articulação sintático-prosódica que facilita a compreensão de seu interlocutor. Note-se que o possessivo em primeira pessoa presente no enunciado não concorda em gênero com o substantivo banana, o que pode estar relacionado com a dificuldade em menor grau de EC em operar com morfemas flexionais.

Vejamos abaixo outro exemplo:

(2) Corpus AphasiAcervus ( 16/04/2009)

sujeitos com afasia e com Doença de Alzheimer, com foco em determinados processos enunciativos (significação, metalinguagem, competência, referenciação, metaforicidade, relação oral/escrito) e processos meta (metalinguísticos, metaenunciativos, metadiscursivos, operações epilinguísticas, etc.). Mais recentemente, o Grupo se dedica também ao estudo de processos conversacionais e multimodais das interações (gestão do tópico conversacional, dêiticos, gestualidade, dinâmica de turno, constituição de comunidades de prática, atividades de reformulação, estruturação da interação conversacional, etc.).

6 Acervo de dados linguístico-interacionais de práticas discursivas envolvendo sujeitos afásicos no contexto dos

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Contexto: Os participantes do CCA estão planejando ir ao cinema de um shopping center de Campinas no período da manhã. No fragmento abaixo, estão combinando como voltarão de lá. Estão presentes na mesa os participantes afásicos MN, MS, LM, EC e SI e as pesquisadoras JM, HM e EM.

1. EM se alguém resolver ficar lá pra almoçar... tudo bem 2. EC ah não... é le caro

Na linha 2 desse pequeno diálogo, o enunciado “é le caro” produzido por EC estaria adequado sem a presença de le, ao menos se considerássemos que o sintagma adjetival caro não dependesse de um especificador naquela circunstância.

Vejamos, por fim, mais um exemplo de ocorrência do fenômeno observado na fala de EC:

(3) Corpus AphasiAcervus (04/06/2009)

Contexto: Os participantes do CCA estão entretidos com um jogo de palavras-cruzadas que consiste na evocação da palavra-alvo por meio de pistas fornecidas por escrito. Nesse momento, JS, pesquisadora, está ajudando EC a escrever uma das palavras do jogo, mostrando também em que direção essa palavra deve ser escrita no papel (dentro dos quadradinhos do jogo de palavras-cruzadas). Estão na mesa as pesquisadoras JM e HM e os participantes afásicos EC, SI, LM, MN, SP e MS.

1. JS aí você tem que colocar pequenininho aqui o “m” e aqui o 2. “e”... e aí... aqui vai terminar com “i”... entendeu/ 3. EC no::ssa... le fí::cil

4. JS mas isso é costume... EC... porque assim... ah... quem 5. não tem o costume de fazer num conhece essas regrinhas que 6. fazem parte da palavra cruzada... mas no que você vai 7. fazendo... você vai praticando você vai começando a a

8. entender... você agora... por exemplo... vocês já sabem... 9. que pra fazer... você tem que seguir a direção da setinha... 10. né/

Na linha 3 desse diálogo, a partícula le está atuando em um nível morfofonológico, preenchendo parte da produção oral do adjetivo “difícil”, no caso, a sílaba “di”, preservando a estrutura prosódica e morfológica da palavra “difícil” e auxiliando a sua evocação por EC e a compreensão da expressão por parte do interlocutor.

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5 1.2 Objetivos do trabalho

Este estudo começou a ser desenvolvido em nossa Iniciação Científica7, e, a partir dela, chegamos a uma hipótese principal: a de que o elemento le teria um papel multifuncional na fala de EC: ao mesmo tempo que funcionaria como uma espécie de prompting, auxiliando em sua dinâmica conversacional, funcionaria também como um “curinga categorial”, substituindo categorias que estariam ausentes devido à sua afasia.

Dando continuidade a esse estudo, esta dissertação tem como objetivos principais: i. o aprofundamento e a qualificação das análises das ocorrências da partícula le em

corpora já transcritos e preliminarmente descritos, a fim de averiguar a plausibilidade

das hipóteses por nós levantadas, ou mesmo formular novas rotas de investigação, dando atenção não apenas à produção verbal de EC, mas também ao seu contexto enunciativo-interacional de emergência;

ii. a observação do caráter estruturador da conversação, a partir das seguintes categorias de observação do corpus da pesquisa: sequencialidade e dinâmica de turnos, gerenciamento de tópicos conversacionais, processos textuais de reformulação da fala, fornecimento de promptings verbais e não verbais entre EC e seus interlocutores. iii. a discussão das relações entre os efeitos linguístico-pragmáticos da produção de le

na fala de EC e o conceito de agramatismo desenvolvido no campo da Afasiologia; e

Quanto ao item iii de nossos objetivos, ele se justifica em função da necessidade de compreendermos melhor as condições de produção “agramatical” da fala de EC. Esta, apesar da ocorrência produtiva do elemento le, e malgrado a apresentação de uma fala telegráfica, não poderia ser considerada um típico falante agramático ou perseverativo, como entenderia à primeira vista uma perspectiva mais tradicional (isto é, estruturalista) do campo, pois é capaz de construir

7 (1) “Descrição e análise do estatuto linguístico da partícula le na fala de um sujeito afásico como recurso de reconstrução da linguagem” (nº do processo: 110783/2009-3, CNPq); orientadora: Profa. Dra. Edwiges Maria Morato. (2) “Descrição e análise do estatuto linguístico da partícula le na fala de um sujeito afásico como recurso de reconstrução da linguagem” (nº do processo: 2010/10272-0, FAPESP); orientadora: Profa. Dra. Edwiges Maria Morato.

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frases gramaticais adequadas, bem como evocar categorias lexicais sem le, como podemos ver nos exemplos a seguir:

(4) Corpus AphasiAcervus (16/04/2009)

Contexto: os participantes do CCA estão conversando sobre uma receita de torta de maçã que constará na seção “Culinária” do Jornal do CCA, que é confeccionado pelos próprios participantes do grupo, afásicos e não afásicos. Estão presentes na mesa neste momento as pesquisadoras HM e JM e os participantes afásicos VM, EC, RC, MN e MS.

1. VM °o:lha°

2. EC [e:u que:ro comer]

3. HM [(olha eu também... as palavras me faltam)] de vez em quando 4. RC é: o é simples

(5) Corpus AphasiAcervus (19/02/2009)

Contexto: os participantes do CCA estão tomando café. EC pergunta a LM, também afásico, se ele aceita um café. Estão presentes na mesa do café as pesquisadoras EM e HM e os participantes afásicos EC, LM, RC, MS, SI e MN.

1. EC quer mais café?... quer mais?

2. LM ((faz gesto de negação com a cabeça))

Mesmo nas sentenças produzidas com o uso do elemento le, este parece preencher categorias que EC julga ausentes. EC nos mostra, dessa forma, que não está despojada de uma “consciência gramatical”; o uso produtivo da partícula le indica que sua percepção da estrutura e do funcionamento dos elementos que compõem a gramática em sua língua não está ausente. Neste trabalho, desenvolveremos argumentos para sustentar essas afirmações e para discutir a noção de agramatismo.

1.3 Justificativa e a relevância do tema – Investigação anterior: Contextualizando as hipóteses, o empreendimento metodológico e os achados teóricos

No período de 2009 a 2010, a fim de levantar e descrever as ocorrências e os contextos de emergência do elemento le na fala de EC, desenvolvemos uma pesquisa de Iniciação Científica financiada pelo CNPq, no âmbito da qual realizamos a transcrição dos encontros iniciais do CCA dos quais EC participou, período que vai do segundo semestre de 2008 ao primeiro semestre de 2009. Depois de realizada a transcrição conversacional dos dados, tarefa que se mostrou bastante

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complexa em função do fato de que os encontros do CCA dizem respeito a interações e situações conversacionais coletivas entre afásicos e não afásicos, passamos a fazer o levantamento da ocorrência de le na fala de EC, com o objetivo de quantificar e qualificar sua emergência nos enunciados produzidos em situações interativas variadas.

Em primeiro lugar, a fim de descobrir se esse elemento teria alguma regularidade na fala de EC, foram levantadas as ocorrências de le de acordo com o lugar e a função que estaria ocupando no enunciado: (i) se no início do enunciado, procuramos identificar quais as categorias linguísticas que o precedem; (ii) se no meio, entre quais categorias de palavras ele se encontra; e (iii) se no fim dos enunciados, procuramos identificar sua função semântico-sintática.

Após esse levantamento inicial, que nos permitiu formular a hipótese de que esse elemento não era uma mera excrescência afásica (automatismo ou perseveração, por exemplo), empreendemos uma pesquisa de Iniciação Científica financiada pela Fapesp, cujos objetivos eram aprofundar a descrição inicialmente realizada, qualificar de forma geral as ocorrências e proceder a uma pré-análise do corpus até então constituído.

Para melhor qualificar a produção do elemento le na fala de EC, decidimos fazer um levantamento de ocorrências em um conjunto expressivo de dados que foram extraídos de sete encontros do CCA durante os anos de 2008 e 2009 (totalizando 12 horas de gravação transcritas). Assim, procurando já compreender melhor o estatuto linguístico-conversacional dessas ocorrências no contexto de língua falada, classificamo-las da seguinte forma: i) sentenças consideradas “adequadas”, produzidas sem o uso de le; ii) sentenças consideradas “inadequadas”, produzidas sem o uso de le; iii) sentenças em que EC faz uso da partícula le. As perguntas que procurávamos fazer eram i) se o elemento le teria uma função “saneadora” em sua produção verbal e ii) se EC poderia produzir sentenças adequadas sem recurso a esse elemento (o que se confirmou, por observação do corpus, ainda que em menor número).

Fizemos também um levantamento para identificar as possíveis funções que a partícula

le poderia estar ocupando na sentença, turno ou enunciado de EC.

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8 Gráfico 2: 261; 48% 254; 47% 27; 5% começo do enunciado meio do enunciado fim do enunciado 136 - 25% 86 - 16% 320 - 59%

Sentenças gramaticalmente "adequadas" sem o uso de "le" - 25% Sentenças gramaticalmente "inadequadas" sem o uso de "le" - 16% Porcentagem de sentenças em que EC faz uso de "le" - 59%

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Gráfico 3: Possíveis posições gramaticais ocupadas por le:

Ao analisarmos o gráfico elaborado a partir do levantamento das ocorrências de le, de acordo com a sua posição nos enunciados, pudemos sustentar a hipótese de que esse elemento funcionaria como uma espécie de prompting, pois as porcentagens de ocorrências no início de turno e na posição imediatamente anterior às evocações foram muito maiores: 48% das ocorrências de le estão situadas no início do enunciado; 47% das ocorrências da partícula le estão situadas no meio do enunciado, imediatamente antes de evocações. Apenas 5% das ocorrências do elemento le estão situadas no fim do enunciado, e mesmo essa última ocorrência sustenta a hipótese de prompting, pois o elemento le, sempre que posicionado no final do enunciado, era produzido de forma prolongada, o que demonstra que EC estava tentando manter seu turno enquanto tentava evocar uma palavra ou expressão.

Já com a identificação das possíveis funções que a partícula le poderia estar ocupando na sentença e com a identificação de quais seriam as alterações linguísticas que EC cometeria em seus enunciados gramaticalmente inadequados sem o uso de le, pudemos chegar a uma hipótese sobre o que estaria ocorrendo com esse elemento. Quando le substituía classes fechadas, por exemplo, ele parecia funcionar como uma espécie de “curinga categorial” (exemplo 1) e estaria

0% 5% 10% 15% 20% 25% artig o verb o* pron ome s part e de pala vras * prep osiçã o prep osiçã o+ar tigo nada * subs tanti vo* advé rbio mais de uma pala vra conj unçã o adje tivos * Série1 22% 20% 19% 9% 7% 7% 5% 4% 4% 3% 0,50%0,20% Série1

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sofrendo um processo ou trabalho de reorganização linguística, processos estes que são constitutivos da (re)construção formal e discursiva da língua. Processos de reorganização da língua, vale dizer, são próprios da sua dinâmica de funcionamento, como nos mostram os estudos funcionalistas voltados para a análise da gramaticalização e da discursivização, por exemplo8.

Embora a analogia tenha parecido até certo ponto útil para observarmos as estratégias de reconstrução gramatical por parte do sujeito EC, entendemos que um item que está sendo gramaticalizado precisa ser reconhecido em termos históricos e admitido linguística e discursivamente, bem como ser reproduzido por uma comunidade de falantes – o que não é o caso do elemento le na fala de EC, a única pessoa falante dessa partícula.

Quando o elemento le não parecia preencher categorias fechadas ou quando integrava partes omitidas ou faltantes de palavras, ele estaria funcionando, na verdade, como uma espécie de

prompting, auxiliando a seleção de categorias e a predicação, bem como a própria gestão

linguístico-comunicacional por parte de EC, atuando de maneira positiva na dinâmica interacional da qual ela participa. O prompting seria, pois, um recurso linguístico-cognitivo utilizado por EC com vistas ao incremento de sua capacidade pragmático-comunicativa.

Todas essas características da inserção da partícula le atuam como expedientes de reconstrução estrutural e funcional da linguagem, bem como de incremento da capacidade comunicativa de EC.

A partir desse levantamento inicial, chegamos a algumas considerações em nossa pesquisa de Iniciativa Científica, à guisa de conclusão. Uma delas é que a presença do elemento le na fala de EC, ocupando ou operando no acesso a categorias gramaticais, indica o tipo de repercussão ou inibição da complexidade linguística característica de seu quadro afásico, que se caracteriza por uma produção agramatical, ainda que não possamos considerar EC um caso típico de agramatismo, tal como descrito tradicionalmente na literatura afasiológica9. Como admitem

8Segundo Martelotta, Votre e Cezário (1996), gramaticalização e discursivização são dois importantes processos de mudança linguística. O primeiro faz com que um item lexical ou construção sintática assuma funções relacionadas com a organização interna do discurso ou com estratégias comunicativas. A gramaticalização, então, teria como função principal expressar uma coisa por outra. A discursivização, por sua vez, faz com que o item já gramaticalizado assuma a função de marcador discursivo, ou servindo de preenchimento para o vazio causado pela perda momentânea da linearidade, ou reorganizando o discurso quando essa perda da linearidade ocorre.

9As características principais do agramatismo descritas na literatura, de acordo com o que foi resumido por Novaes-Pinto (1992), seriam o apagamento de palavras funcionais (como conjunções, preposições, artigos), a perda da flexão verbal (substituída pela forma nominal do verbo) e a perda da concordância de pessoa, número e gênero (mais notadamente nas línguas flexionais).Nos aprofundaremos neste assunto no capítulo 4.

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estudiosos da linguagem afásica, alterações de ordem fonológica, morfológica ou semântica também podem afetar o processamento gramatical, que não se reduz a alterações propriamente sintáticas.

Outra consideração que fizemos ao final de nosso trabalho de Iniciação Científica é que nossos dados indicariam que, além de ocupar o lugar de categorias gramaticais ausentes, o uso do elemento le por parte de EC se associa ao processamento linguístico-comunicacional. EC se serve da partícula le não como uma anomalia verbal produzida em virtude da carência metalinguística que seria própria das afasias; pelo contrário, esse elemento é importantíssimo para a reconstrução de sua linguagem, pois além de preencher categorias faltantes ou alteradas em decorrência de sua afasia, ainda a auxilia na organização da sua dinâmica interacional, na manutenção do fluxo enunciativo e no desenvolvimento e gestão do tópico conversacional, sendo estratégia de encadeamento conversacional e de evocação de palavras.

A partir da pesquisa desenvolvida no âmbito de Iniciação Científica, pudemos perceber que, tomando a competência linguística não como uma faculdade mental inata, mas sim como prática (cf. Morato 2008, p.62), EC não deixa de atuar de forma competente em suas ações e práticas com linguagem, o que inclui o uso e as várias funções do elemento le. Pudemos observar na análise do nosso corpus que EC não deixa de atuar com e sobre a linguagem de forma criativa, colaborativa e apropriada aos propósitos conversacionais, fato evidenciado pelo uso estratégico da partícula le.

A partir da descrição dos dados observados no corpus da pesquisa de Iniciação Científica, pudemos melhor elaborar e discutir as hipóteses de trabalho; contudo, vimos que era ainda necessário um aprofundamento da transcrição dos dados linguístico-interacionais, bem como da análise linguística das muitas ocorrências do fenômeno focalizado. Além disso, novas e pertinentes questões teóricas foram aparecendo no percurso desenvolvido na Iniciação Científica, justificando a continuidade do estudo.

Em nosso projeto de Mestrado, apresentamos os termos da continuidade da pesquisa iniciada na graduação, de caráter descritivo e exploratório.

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12 1.4 Pressupostos teóricos gerais

Para finalizar este capítulo introdutório, é importante salientar que esta pesquisa tem como ênfase a reflexão sobre a produção de linguagem em interação, tendo como base uma perspectiva sociointeracional (ou sociocognitiva) de inspiração vygotskyana. Sob tal inspiração, o campo da Neurolinguística entende a linguagem e a interação como essenciais na constituição e organização da cognição humana.

De acordo com Morato (1996, 2007), tomando-se por base as reflexões sobre a sociogênese da cognição humana e o papel epistemológico reservado à linguagem e à interação desenvolvidas por Vygotsky (1934) e, mais recentemente, por autores como Michael Tomasello (1999), é nas múltiplas e diversas experiências simbólicas e práticas socioculturais - ou seja, nas ações sociocognitivas - que emergem as significações verbais e não verbais. Essa abordagem privilegia as relações sociais instauradas pelos interlocutores mediante os recursos linguísticos e cognitivos de que dispõem, salientando a presença de semioses coocorrentes (simultâneas e solidárias entre si) em nossa tarefa de compreensão e interpretação do mundo.

Para a perspectiva teórica chamada em linhas gerais de sociocognitiva (Salomão, 1999; Marcuschi, 2003; Koch & Cunha-Lima, 2004; Morato, 2004), a cognição – tomada sempre em interação –, além de ser um fenômeno psicossocial, é também situada local e historicamente, sendo que sua constituição e funcionamento são estabilizados e reorganizados nessas circunstâncias, e os sujeitos em interação, por meio de ações conjuntas, a compartilham de algum modo.

De acordo com a perspectiva sociocognitiva, o caráter social da cognição humana foi conquistado às custas de uma filogênese que não se resume à mera adaptação biológica, mas que se constitui nos processos simbólicos motivados pela vida em sociedade.

Sendo assim, essa cognição social pode ser considerada um patrimônio universal do homem. Segundo essa perspectiva, o uso não é mera circunstância pelas quais podemos ver as regras, parâmetros e hierarquias internas ao sistema linguístico. O uso na verdade é que constrói padrões. O uso é baseado em estruturas conceptuais.

Segundo Tomasello (1999/2003), no processo de aquisição da linguagem, as crianças se baseiam em habilidades aprendidas culturalmente (“sociocognitivamente”). Algumas dessas habilidades seriam o reconhecimento do outro como um coespecífico, ou seja, alguém também

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dotado de uma vida mental intencional, inferencial e perspectivada; há atenção conjunta e coordenada e engajamento em ações compartilhadas.

Para Tomasello (1999/2003), esse reconhecimento do outro como um coespecífico torna possível “um tipo de conceptualização por meio da qual os indivíduos atuam frente à realidade, cooperam entre si, criam artefatos e práticas culturais.” (Morato, 2013).

De acordo com Tomasello, inspirado por postulados interacionistas vygotskianos, a linguagem decorreria da forma interacional e sociocognitiva com que nossas capacidades mentais são forjadas, tanto em termos filogenéticos quanto em termos ontogenéticos. A linguagem, nessa abordagem, seria mediadora por excelência da relação do homem com a realidade e atuaria de forma decisiva na constituição da cognição humana (Vygotsky, 1934, apud Morato, 2013).

1.5 Estruturação do trabalho

Primeiramente, no Capítulo 1, serão apresentados os subsídios teóricos dessa pesquisa. Já no Capítulo 2, de metodologia, há uma breve descrição do quadro afásico de EC, os objetivos deste trabalho e o sistema de notação utilizado. Falaremos também um pouco sobre o Centro de Convivência de Afásicos e sobre a constituição do corpus de nossa pesquisa.

No Capítulo 3 será apresentado todo o percurso de nossa pesquisa, os levantamentos feitos, nossas hipóteses e análises e ao final uma breve discussão sobre a questão do agramatismo. Nas Considerações Finais os resultados apontados por essa pesquisa serão apontados.

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CAPÍTULO 1

SUBSÍDIOS TEÓRICOS

1.1 Aspectos linguísticos, neuropsicológicos e neurolinguísticos do quadro afásico de EC

Para a descrição do tipo de afasia de EC, apoiaremo-nos nos estudos de Luria (1962, 1974, 1979), neuropsicólogo russo que trabalhou em uma perspectiva sociogênica da cognição humana (ao lado de Vygotsky e de Leontiev, entre outros) e se dedicou em sua longa carreira, como clínico e pesquisador, a aspectos estruturais e funcionais da atividade cerebral, em muito colaborando para a consolidação da investigação neuropsicológica e neurolinguística de base interacional.

Segundo Luria (1979), o funcionamento cerebral se constitui de maneira dinâmica através do trabalho conjunto e articulado de várias zonas, o que o difere de teorias localizacionistas e de teorias holísticas. Para Luria, que assume uma concepção da ontogenia das atividades mentais superiores como histórica e social, os sistemas funcionais vão se estruturando no decorrer do desenvolvimento da criança até a vida adulta. O cérebro, então, através dos sistemas funcionais, se modifica, aprende, reaprende, se reorganiza.

De acordo com Luria (1962, 1974, 1979), a atividade mental humana se efetua através da combinação das estruturas cerebrais que trabalham conjuntamente, o que contribui para a realização das atividades cognitivas, sendo que cada uma delas “porta” sua própria especificidade, contribuindo para o sistema funcional como um todo. Ou seja, uma lesão em uma determinada região, ou em alguma dessas estruturas, desequilibrará toda a dinâmica do sistema funcional.

Outra ideia defendida por Luria é a de que os sistemas funcionais são construídos ao longo do desenvolvimento da criança e mediados pelo seu ambiente e experiência social; portanto, o cérebro seria dinâmico, plástico, coordenado tanto por um plano biológico como por um plano linguístico-cognitivo constituído histórica e socialmente.

A organização funcional do cérebro proposta por Luria é ancorada em três unidades básicas, que conjugadas são necessárias para todo tipo de atividade mental. A primeira seria responsável pela regulação do tônus cortical, que é fundamental para manter o estado de vigília. A segunda seria responsável pela obtenção, processamento e conservação da informação que chega

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do meio exterior. E a terceira unidade é responsável pela programação, regulação e verificação da atividade mental. De acordo com Gandolfo (2006), cada unidade funcional contém seus substratos orgânicos que funcionam como analisadores. Dessa forma, a estrutura que desempenha um substrato orgânico para a primeira unidade funcional básica é o tronco cerebral, que através da formação reticular (ascendente e descendente) assegura o tônus cortical necessário. Na segunda unidade funcional básica, temos no sistema perceptivo o substrato orgânico dos analisadores, que, por sua vez, atuarão em três regiões corticais: situado na região temporal, o analisador auditivo; situado na região parietal, o analisador táctil-cinestésico; e situado na região occipital, o analisador visual. A terceira unidade funcional básica, que tem como substrato orgânico, particularmente, os lobos frontais, é responsável pela programação, regulação e controle de uma dada atividade. É importante ressaltar que essas três unidades se organizam hierarquicamente em todos os lobos; contudo, é no lobo frontal que tanto a primeira unidade como a terceira mantêm uma estreita ligação, assegurando, dessa forma, um tônus cortical ótimo nas atividades programadas pela terceira unidade funcional básica.

Com base nesse modelo que toma o cérebro como um sistema funcional complexo (SFC), Luria (1986) descreveu os seguintes tipos de afasia:

1. Afásica Dinâmica: Quadro resultante de lesões na parte anterior do lóbulo frontal esquerdo até a área pré-motora; lesões fronto-temporais também podem estar envolvidas. Como característica principal deste tipo de afasia temos a dificuldade de output espontâneo; já a compreensão, a articulação, a repetição e a nomeação parecem estar razoavelmente preservadas. Observando pessoas com esse quadro neuropsicológico, Luria afirma:

Estes enfermos não apresentam nenhuma dificuldade de articulação, repetem com facilidade palavras ou frases isoladas, não têm dificuldade para nomear objetos e séries de objetos, não produzem fenômenos de perseveração ou de emergência incontroladas de enlaces secundários, característicos dos enfermos com afecções da zona pré-frontal. A observação inicial pode não detectar neles nenhuma desordem verbal. No entanto, uma análise atenta mostra estas alterações em forma bem evidente, pois aparecem nos enfermos deste grupo no momento em que é necessário passar da simples repetição de palavras, frases ou da designação de objetos à criação ativa, criativa, de esquemas da própria enunciação verbal (LURIA,1986, p.222).

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2. Afasia Motora Eferente: Quadro resultante de uma lesão nos setores inferiores da zona pré-motora do hemisfério esquerdo. Esse tipo de afasia motora é considerado por Luria como correspondente à afasia motora de Broca. O principal problema está relacionado a movimentos sequenciais elaborados. Os indivíduos que apresentam esse quadro afásico conseguem posicionar seus articuladores corretamente, contudo não conseguem passar suavemente de uma posição articulatória para a seguinte. Esse padrão é observado também no nível da palavra ou da frase. Essa lesão acarreta alterações dos movimentos voluntários, o sujeito tem a tendência a perseverar movimentos, já que não existe a inibição dos movimentos de uma sequência sonora, para que haja excitação da próxima. Neste caso, a estrutura prosódica é prejudicada; não se consegue repetir palavras ou mesmo denominar objetos. Este seria o tipo de afasia apresentada por EC, sujeito afásico cuja produção é estudada nesta dissertação, ainda que sua lesão extensa justifique traços que também se observam nos demais tipos de afasia, como a denominada Afasia Semântica, que pode afetar processos sintático-semânticos.

3. Afasia Motora Aferente: Quadro resultante de uma lesão na porção inferior do giro pós-central esquerdo da zona verbal. Esse distúrbio é declarado como uma forma de apraxia oral. Nesse tipo de afasia ocorre uma imprecisão dos movimentos devido a uma perda da sensação para com eles; contudo, encontrando a posição articulatória correta, o sujeito consegue articular. Diferentemente das pessoas com afasia motora eferente, os indivíduos com esse tipo de afasia têm dificuldade para articular sons isolados e confundem sons de articulação parecida.

4. Afasia Sensorial: Quadro resultante de lesões que atingem os setores áudio-verbais do córtex, ou seja, a região póstero-superior da área temporal esquerda, costumeiramente conhecida como área de Wernicke. Nesse tipo de afasia há falhas na habilidade de discriminar entre fonemas semelhantes e muitas vezes também na discriminação dos sons da língua de maneira geral. Contudo, indivíduos com essas afecções conseguem discriminar perfeitamente sons não verbais de sons de música, passos, etc. Em casos mais graves, observa Luria, pode ocorrer uma dissociação entre o som e o significado das palavras. Outros sintomas são observados na fala expressiva. As pessoas com esse quadro afásico apresentam muitas parafasias, principalmente fonológicas (também chamadas de literais). Podem também apresentar confabulações e circunlóquios.

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5. Afasia Acústico-Amnésica: Apesar de estar relacionada com lesões na área temporal inferior esquerda, os mecanismos fisiológicos que se encontram na base desta alteração ainda não são bem conhecidos, de acordo com Luria. O problema principal é uma alteração na memória áudio-verbal. A característica básica desses indivíduos é a instabilidade de retenção das séries articulatórias:

Estes enfermos podem reter ou a parte inicial da série verbal ou a sua parte final. Como resultante disso, a comunicação percebida perde sua totalidade, e sua compreensão torna-se mais complexa com a aparição de novas dificuldades, desta vez de ordem mnêmica (LURIA,1986, p.234).

6. Afasia Semântica: Quadro resultante de lesões que atingem as zonas terciárias, parieto-têmporo-occipitais do hemisfério esquerdo. As pessoas com essa lesão sofrem de desorientação espacial, apraxia de construção espacial, acalculia, agnosia e, do ponto de vista linguístico, observam-se alterações da percepção de sentenças compostas. Nesse tipo de sentença, observa Luria, o significado de cada termo depende das relações entre eles e o sentido se dá pela compreensão simultânea e direta da estrutura lógico-gramatical. Os indivíduos com esse tipo de afasia não são capazes de compreender essas relações, mesmo conseguindo compreender de forma correta palavras isoladas. Encontramos essa característica na afasia de EC, embora sua afasia seja predominantemente Motora Eferente.

1.2 Sobre a observação dos aspectos gramaticais

Primeiramente, é importante ressaltar que nesta pesquisa exploramos aspectos gramaticais do funcionamento do elemento le na fala de EC, atentando-nos para estudos funcionalistas que se aproximam da perspectiva sociocognitiva, que considera a língua em uso, como os de Moura Neves (2004), Castilho (1997, 2010) e Martelotta (2011).

Segundo Castilho (2010), pode-se dizer que o Funcionalismo Linguístico se fundamenta em três postulados principais: o de que a língua é uma competência comunicativa, o de que as estruturas linguísticas não são objetos autônomos e o de que se deve explicar o funcionamento da língua a partir dos usos linguísticos e de uma percepção linguística pancrônica.

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A competência de que trata o primeiro postulado diz respeito à capacidade que o falante tem de realizar escolhas adequadas de acordo com o processo da comunicação. Diferentemente de uma posição que defende a forma como a origem da capacidade de produção linguística, as posições funcionalistas que contribuem para a constituição desse postulado procuram compreender a língua analisando a relação das formas com a semântica, com o discurso e com o processamento da informação.

As formas linguísticas podem ser descritas e interpretadas a partir da noção de

flexibilidade das estruturas. As estruturas linguísticas são dinâmicas e sujeitas a reelaborações,

estimuladas pela pressão que o uso exerce sobre elas. Afirmar isso significa assumir o postulado de que não há autonomia nas estruturas linguísticas.

Perspectivas como a funcionalista da variação e mudança, a das gramáticas em competição, a da iconicidade e a da gramaticalização operam com esse postulado. Assumir que é a partir do uso que se obtém a explicação linguística significa tomar como certo que o que faz a estrutura existir, e existir como existe, é a necessidade de que se cumpram dadas funções comunicativas. Quando se trabalha com o uso linguístico, investe-se primeiramente no significado das expressões linguísticas, para que depois se trate de como elas se organizam gramaticalmente. Assim, na Sintaxe Funcional, considera-se que é dos usos socialmente configurados que se origina o fato sintático.

Não é difícil notar como são complementares esses três postulados, pois, se a língua é uma competência comunicativa, nada mais sensato que procurar em seu uso real a explicação linguística, e, dadas as pressões do uso, que se ancora no processo comunicativo, que é extremamente dinâmico, difícil seria a concessão de autonomia às formas linguísticas.

De acordo com Castilho (2010, p.64),

O Funcionalismo considera a língua como um fenômeno heterogêneo, como uma atividade social por meio da qual veiculamos as informações, externamos nossos sentimentos e agimos sobre o outro. Sendo assim, a língua é um somatório de usos concretos, historicamente situados, que envolve sempre um locutor e um interlocutor localizados num espaço particular, interagindo a propósito de um tópico previamente negociado.

Ao descrever as expressões linguísticas, devemos relacionar seu funcionamento com determinado contexto. O que está implicado nesse modelo, de acordo com Moura Neves (1997), é

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uma integração de sintaxe e semântica dentro de uma teoria pragmática, o que, de acordo com a autora, envolve a intervenção:

• dos papéis envolvidos nos estados de coisas designados pelas predicações (funções semânticas);

• da perspectiva selecionada para apresentação dos estados de coisas na expressão linguística (funções sintáticas);

• do estatuto informacional dos constituintes dentro do contexto comunicativo em que eles ocorrem (funções pragmáticas). (MOURA NEVES, 1997:14)

De acordo com Moura Neves (2009), uma Gramática Funcional busca verificar como se processa a comunicação nas diversas línguas; assim, ela não assume a tarefa de descrever a língua enquanto um sistema autônomo, mas a de descrevê-la considerando a instabilidade da relação entre estrutura e função, que reflete o caráter dinâmico da linguagem, sendo assim uma gramática de uso linguístico.

Na Sintaxe Funcional, a língua é contextualizada na situação interacional a que as estruturas se correlacionam, dando-se mais atenção ao modo como ela se gramaticaliza, ou seja, ao modo como ela representa as categorias sociais e cognitivas em sua estrutura gramatical.

Em suma, a gramática, dentro da perspectiva funcionalista, é organizada por um conjunto de regras que observamos nos usos linguísticos. A partir disso, podemos dizer que a gramática “é um conjunto de parcelas recorrentes e sedimentadas, no sentido de gramaticizadas, cujo estatuto vai sendo constantemente negociado na fala, não podendo, em princípio, ser separada das estratégias de construção do discurso”. (Hopper, 1988, p. 118 apud Castilho, 2010, p. 139). Para esse modelo, a língua é uma atividade no tempo real e constitutivamente heterogênea, sendo suas regularidades provisórias e continuamente sujeitas à negociação, à renovação e ao abandono. Segundo o ponto de vista funcionalista, a rigor, não existe gramática, o que existe é a gramaticalização, que é ao mesmo tempo um processo sincrônico e diacrônico.

1.3 Nosso domínio empírico – a conversação face a face

Nosso domínio empírico é a conversação face a face, sendo este um importante fator a considerar em nossas análises. A conversação face a face estabelece e configura “o uso básico e

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primordial da linguagem, e a melhor descrição para todos os outros usos vem a ser em termos do modo como eles se desviam daquela base” (FILMORE, 1991, apud, CLARK, 2000: 53).

Entendemos a conversação como algo que ocorre no interior de quadros sociais mais explícitos que, ao mesmo tempo, dão forma e conteúdo às ações comunicativas. De acordo com Marcuschi (2008), a conversação é:

uma interação centrada, da qual participam pelo menos dois interlocutores que se revezam, tomando cada qual pelo menos uma vez a palavra, dando-se o evento comunicativo uma identidade temporal e num determinado “quadro social” (W. LABOV / D. FANSHEL, 1977, p. 26). Como numa conversação várias pessoas agem (ao mesmo tempo ou sequencialmente), trata-se também de uma sequência de ações inter-relacionadas que, de algum modo, devem formar um todo coerente para que sejam compreensíveis. Evidentemente, uma conversação deve preencher uma série de condições cognitivas, contextuais, sociais e linguísticas para que se dê uma interação bem-sucedida. (MARCHUSCHI, 2008, p. 319-320) Em suma, na conversação, inúmeros elementos são partilhados e construídos de maneira conjunta pelos interactantes. De acordo com a perspectiva textual-interativa, que adotamos também em nossa pesquisa, é essencialmente na interação que o sentido é construído.

Ao se considerar a noção de objeto de discurso interessa ter em conta a imbricação das práticas cognitivas e sociais nas operações de referenciação, onde a referência é construída pela atividade enunciativa e orientada em primeiro lugar para a dimensão intersubjetiva no seio da qual ela é negociada, instaurada, modificada, ratificada.” MONDADA, 1994, p.17, citado por MARCUSCHI, 2006, p.08.

Dessa forma, enxergar as características do texto falado é enxergar a “moldura” para nossas análises. EC não atua sozinha, todos os interactantes dos nossos dados constroem conjuntamente com ela o sentido dentro da conversação. Por essa razão, é muito importante levar em consideração nosso domínio empírico de interação face a face.

1.4 Sobre a observação de aspectos conversacionais

Para analisar o fenômeno aqui descrito, evocamos também estudos conversacionais e de orientação sociocognitiva, sobretudo trabalhos que consideram os processos linguísticos e os

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cognitivos tomados em contexto e em interação. Seguindo reflexões como as de Marcuschi (2002) e de Mondada e Dubois (1995) a respeito dos processos atinentes à interação face a face, Morato (2007) afirma que a perspectiva sociocognitiva

incorpora aspectos socioculturais e linguístico-interacionais à compreensão da problemática cognitiva, investindo no domínio empírico baseado na hipótese de que nossos processos cognitivos são constituídos em sociedade e no decorrer das interações e práticas sociais, e na hipótese vygotskiana de que não há possibilidades integrais de conteúdos cognitivos fora da linguagem, nem possibilidades integrais de linguagem fora de processos interativos humanos. (Morato, 2007: 44).

De acordo com essa perspectiva, as significações verbais e não verbais emergem nas diversas interações humanas. Os sujeitos afásicos e não afásicos, durante as práticas e atividades desenvolvidas no CCA, demonstram múltiplos aspectos relativos à linguagem que estão ligados à questão da competência.

Os aspectos atinentes a essa competência podem ser linguísticos, pragmáticos, argumentativos, textuais, discursivos e coexistem com diferentes tipos de competências, sendo essas, por exemplo, sociais, comunicativas, profissionais, etc. Trata-se de uma competência que não se restringe a fatores estritamente linguísticos ou cognitivos; uma competência de linguagem que se serve de diferentes processos cognitivos que atuam na produção e na compreensão do sentido, agindo de maneira constitutiva nessas tarefas. Assim, pode-se dizer que sujeitos afásicos atuam de maneira competente nas atividades de linguagem (cf. Goodwin, 2004).

Sendo assim, o ambiente interacional se mostra o mais eficaz para os estudos neurolinguísticos de base sociocognitivista, pois é dele que se extraem dados de situações linguístico-interacionais pelas quais os sujeitos mostram seu real estado linguístico, considerando os processos e as práticas linguístico-discursivas, o impacto da afasia sobre o sujeito e seu entorno psicossocial, a coocorrência de processos não verbais de significação, etc.

Dentro dessa perspectiva interacional, interessa-nos neste estudo compreender fatores linguísticos, cognitivos e interacionais da reconstrução de processos linguísticos nas afasias. No caso do fenômeno em questão – o estatuto da partícula le, cuja ocorrência é bastante rica na fala de EC –, nos remeteremos a estudos sobre prompting, principalmente os que ocorrem em interação face a face, também analisados no campo da Afasiologia por Marinho (2013).

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23 1.5 A propósito da noção de prompting

O termo prompting é mais frequentemente compreendido nos estudos tradicionais do campo da Afasiologia como um mecanismo compensatório, ou seja, o paciente - geralmente com grandes dificuldades de se expressar ou de evocar elementos linguísticos - aproveita-se desse mecanismo facilitador, muitas vezes com a ajuda do interlocutor, para falar. É definido, muitas vezes de acordo com a literatura afasiológica tradicional (cf. Marinho, 2010), como pista ou dica para se atingir um certo objetivo: é fornecido um esboço oral ou gestual pelo terapeuta ou interlocutor, como partes de palavras ou até mesmo palavras inteiras, para ajudarem na evocação e no processamento semântico-lexical.

De acordo com Marinho (2013), o prompting, assim como outros recursos linguísticos e interacionais, atua não só como auxiliador do paciente afásico na evocação de determinados segmentos ou enunciados, mas também na organização da dinâmica interacional, na manutenção do discurso, no desenvolvimento do tópico conversacional e na resolução de mal-entendidos, fornecendo estratégias que promovem o encadeamento tópico e conversacional, bem como impactos na própria dinâmica interacional.

Dessa forma, podemos admitir que, na conversação espontânea, seja ela entre sujeitos afásicos ou não, verificamos manobras e estratégias linguísticas que estruturam e (re)organizam a dinâmica conversacional ocorrendo em episódios e sequências interacionais. Os diferentes tipos de

prompting operam de forma produtiva e funcional nessa estruturação conversacional,

principalmente atuando na resolução das questões de acesso/seleção lexical.

De acordo com a autora, o prompting é um processo linguístico que convoca na situação interacional o estabelecimento e a organização da evocação de um enunciado ou ideia. É um fenômeno que pode ser identificado na estrutura textual e no funcionamento de um evento conversacional de forma explícita, mas que também pode se apresentar de forma vinculada à interlocução, exigindo um amplo conhecimento de questões de ordem linguístico-pragmática, o que exige bastante atenção, conhecimento e sensibilidade para sua interpretação.

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25 CAPÍTULO 2

METODOLOGIA

2.1 Descrição do quadro de EC

A pessoa cuja produção verbal é estudada neste trabalho é EC. EC é uma brasileira, paulista, nascida em 14 de julho de 1976. É atualmente divorciada, mãe de um filho, com ensino médio completo e um curso técnico incompleto em Farmácia. Em 1997, aos 21 anos de idade, sofreu um rompimento de aneurisma em área fronto-parietal à esquerda e, em consequência disso, precisou colocar um clipe metálico supraciliar à esquerda. Começou a frequentar o grupo do CCA em 2008, por indicação do neurologista que a acompanhou no Ambulatório de Neurologia do HC da UNICAMP.

EC, acompanhada pelo ambulatório de Neurologia e pelo Ambulatório de Obesidade dessa mesma instituição, sempre teve uma grande participação no grupo do CCA, mostrando-se bastante comunicativa e cooperativa. Observamos nas reuniões que ela se engaja de forma entusiasmada nas atividades desenvolvidas no âmbito do CCA e atua de forma incentivadora em relação aos demais participantes afásicos. É também uma pessoa bem emotiva e ansiosa, com tendência a chorar e esbravejar quando comovida por algum fato, e, frequentemente, assalta ou interrompe o turno do interlocutor, procurando por vezes dirigir o tópico conversacional para temas de seu interesse, ainda que os demais presentes na interação estejam ainda envolvidos em determinado assunto. Também frequentemente mostra-se interessada nos relatos e comentários dos outros participantes do grupo, inteirando-se do que ocorre e das opiniões dos demais.

Do ponto de vista neurolinguístico, o quadro afásico de EC é predominantemente expressivo, com características do que a literatura afasiológica chama de fala telegráfica, com omissão de categorias funcionais, dificuldade de encontrar palavras, produção de parafasias semânticas e morfofonológicas (exibidas nas dificuldades com formas derivadas e, em menor grau, na dificuldade em fazer uso de morfemas flexionais).

Não há significativas alterações prosódicas no quadro apresentado por EC, tampouco significativas dificuldades na compreensão da linguagem oral.

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De acordo com a tipologia das afasias formulada por Luria, acima mencionada, o quadro apresentado por EC seria predominantemente motor eferente, correspondente também ao descrito como “afasia de Broca”. Nas palavras de Luria (1981):

(...) o córtex pré-motor é a sede do sistema adaptado para a integração de impulsos eferentes (motores) no tempo. Enquanto que as zonas corticais pós-centrais são responsáveis pela distribuição espacial de impulsos motores, as zonas pré-motoras, sobre a base de sinergismos motores a níveis inferiores, são responsáveis pela conversão de impulsos motores individuais em melodias cinéticas consecutivas, e introduzem, assim, um segundo componente essencial na organização de habilidades motoras complexas. (LURIA, 1981, p.154).

De acordo com Luria, lesões na área do córtex pré-motor, como a de EC, não acarretam nem paralisia nem paresia dos membros contralaterais. O sintoma principal que surge com esse tipo de lesão é, segundo o autor (1981, p.154), um “distúrbio de movimentos habilidosos, que não mais são executados suavemente, cada componente do movimento habilidoso requerendo agora seu próprio impulso isolado”.

Luria aponta também que, quando a lesão afeta as zonas inferiores da área pré-motora do hemisfério esquerdo, esse distúrbio de passagem suave de um elemento motor para outro e o surgimento de perseveranças motoras patológicas aparecem mais na fala do paciente do que em seus movimentos. Pacientes com afasia motora eferente têm como principal sintoma problemas relacionados a movimentos sequenciais elaborados. Eles conseguem posicionar seus articuladores corretamente, contudo não conseguem passar suavemente de uma posição articulatória para a seguinte, como durante a combinação de palavras. A escrita também é, nesses casos, igualmente afetada.

Algumas características neurolinguísticas comuns na fala de pacientes com esse tipo de afasia são a perseveração, a presença de agramatismo e linguagem telegráfica; o processo de automatização da linguagem se perde parcialmente, ocorrendo parafasias fonêmicas e o comprometimento da compreensão de relações lógico-gramaticais.

A fala de EC apresenta, de forma marcante ou atenuada, algumas dessas características. Para exemplificar algumas delas, trazemos abaixo alguns fragmentos extraídos de encontros do CCA, dos quais EC participa.

Referências

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