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Capítulo 3 – Resultados e Discussão

3.3 Os papéis que o elemento le assume na fala do sujeito afásico

3.3.1 Hipótese acerca das ocorrências e do funcionamento da partícula le

Depois de analisarmos cada caso, chegamos a uma constatação: o elemento le sempre aparece à esquerda, seja no nível do sintagma, da sentença ou no nível morfofonológico. Não encontramos casos em que a partícula le aparecesse no meio de uma palavra, como “nalerado” em vez de “lemorado”, ou no final de sentenças, como “João faz le”, caso em que le estaria na posição de complemento, ou na direita de um SN, como em “O João le é...”. Não conseguimos dizer ao certo que classe de palavras esse elemento substitui, mas essa descrição nos ajudou a formular uma hipótese: em decorrência de algum problema de seleção na fala de EC, a margem esquerda de diversos níveis (do sintagma, da sentença, da palavra) estaria sendo preenchida pelo elemento le. Esse preenchimento evidencia uma propriedade importante da estruturação da língua, que ocorre também na fala de indivíduos não afásicos. A manifestação dessa propriedade na fala de um afásico é o indício de um processo de reorganização e reconstrução linguística, baseado em padrões do uso do português brasileiro. Descreveremos essa propriedade no subtópico a seguir.

3.3.2 A partícula le, o Princípio de Constituência e o deslocamento à esquerda

O Princípio de Constituência é a “capacidade linguística de organizar expressões dotadas de uma margem esquerda, um núcleo e uma margem direita” (CASTILHO, 2010, p. 56). Essa estruturação é recorrente na língua e é observada em diferentes níveis de análise, como a sílaba, a palavra, o sintagma e a sentença. O elemento nuclear é essencial dentro do princípio de constituência, já as periferias não precisam ser necessariamente preenchidas.

As sílabas são unidades fonológicas que são constituídas por uma margem esquerda (preenchida por consoantes simples), um núcleo vocálico (preenchido por vogais) e uma margem direita (/l/, /s/ e /r/), sendo que apenas o núcleo é obrigatório.

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No nível da palavra temos a seguinte regra descritiva: uma margem esquerda (que é preenchida por um morfema prefixal), um núcleo (um morfema radical) e uma margem direita (um morfema sufixal).

Já no nível do sintagma a margem esquerda é ocupada por Especificadores, um núcleo (ocupado por uma classe de palavra específica) e a margem direita, ocupada pelos Complementadores, sendo os especificadores e complementadores constituintes facultativos.

Finalmente, no nível da sentença, o sujeito ocupa a posição à esquerda do verbo e o complemento a posição à direita.

No processo de reconstrução de sua linguagem, em termos gramaticais, podemos pensar que EC opera com esse princípio, ou seja, a estrutura de sua gramática parece estar preservada, porém, por uma dificuldade de seleção lexical e de processamento morfossintático, muitas vezes a margem esquerda nos diversos níveis acaba não sendo preenchida adequadamente. No nível do sintagma nominal, por exemplo, em que temos o maior número de ocorrências do elemento le, são os itens funcionais (como artigos, possessivos, demonstrativos, quantificadores) que geralmente ocupam a posição de especificadores.

Nossa hipótese, então, é a de que o elemento le aparece no processo de reconstrução da linguagem de EC, motivado pelo uso, para preencher essa margem esquerda, mesmo em momentos em que, na fala ordinária, esse preenchimento não seja obrigatório. E como pudemos ver pelas ocorrências que serão apresentadas abaixo, isso ocorre no nível do sintagma nominal, do sintagma adjetival, do sintagma verbal, do sintagma adverbial, do sintagma preposicional (ocupando a posição de especificador nesses casos), no nível da sentença (ocupando o lugar de sujeito) e no nível morfofonologico (ocupando o lugar da primeira sílaba). A sistematicidade de nossos dados permite conferir a le uma função gramatical de ordem morfossintática.

Desse modo, expandimos um pouco nossa hipótese inicial, a de que o elemento le estaria funcionando como um coringa categorial, devido à sua funcionalidade e à variedade das posições que podia assumir. O que podemos dizer é que esse elemento é um importantíssimo agente reconstrutor da linguagem de EC que está atuando como uma espécie de preenchedor de margem esquerda, um curinga que preenche uma posição que poderia ser ocupada por elementos de determinadas classes gramaticais.

Vale ressaltar, no entanto, que na fala de EC aparecem outras características que apontam para essa reconstrução da linguagem baseada em padrões do uso do português brasileiro,

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como as distintas estratégias de construção de tópico típicas dessa variedade do português, como a topicalização, o deslocamento à esquerda e o tópico-sujeito.

No artigo “Português do Brasil: Língua de Tópico e de Sujeito”, de 2007, Orsini e Vasco apresentam os resultados de suas pesquisas, que revelam a predominância, no Português Brasileiro tanto culto como popular, de estruturas de deslocamento à esquerda do sujeito e de topicalização de objeto direto. As estruturas de deslocamento à esquerda foram relacionadas – ao lado das construções de tópico-sujeito – à tendência, em nossa variedade, de preenchimento da posição de sujeito; a topicalização de objeto direto, por outro lado, relaciona-se à perda do clítico acusativo de 3ª pessoa e à preferência pelo objeto nulo.

Se podemos dizer que o elemento le adquiriu funções sintáticas, tornando-se constituinte de unidades gramaticais, como o sintagma, e que demonstra um funcionamento linguístico típico do português brasileiro, que é o deslocamento à esquerda, novamente nos questionamos se podemos considerar EC um caso típico de agramatismo, já que este é descrito em termos de um distúrbio do componente sintático.

3.3.3 A hipótese do elemento le como um prompting

Ao mesmo tempo que atua como preenchedor de margem esquerda nos níveis do sintagma, da sentença e no nível morfofonológico, o elemento le atua como um auxiliador do processamento linguístico e da dinâmica interaconal, funcionando como um tipo de prompting.

Se levarmos em conta a descrição do conceito apresentada na seção 1.5, podemos dizer que o elemento le funciona na fala de EC como uma espécie de prompting, pois, além de auxiliá- la na evocação de determinados segmentos ou enunciados, por preencher a margem esquerda em diversos níveis (o que pode ajudá-la nessa evocação), também a auxilia na fluência da fala, contribuindo para a organização da dinâmica interacional, a manutenção do discurso e o desenvolvimento do tópico conversacional.

Sobre a questão da fluência, no campo da linguística ela ainda é muito discutida. Scarpa (1995) chega à conclusão de que a fluência oral e a existência de um sujeito idealmente fluente são abstrações metodológicas. A fluência seria um ideal também de escrita, não apenas de oralidade; nesta, a linguagem em uso é processada de maneira online e incompleta. Para se fazer entender, muitas vezes o falante procede a digressões, pausas, autocorreções, etc.

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De acordo com uma abordagem linguística textual-interativa como a de Koch & Perez (1992) e Marcuschi (2006), as disfluências (como pausas, repetições, digressões, etc.) são constitutivas da fala e da construção de todo texto falado. Portanto, elas fariam parte da própria ideia de fluência, do ponto de vista formal e discursivo. Rumo ao alcance de seu objetivo comunicacional, os sujeitos lançam mão de várias estratégias comunicativas, como desvios, repetições, correções, que caracterizam a linguagem como essencialmente reformulativa. Para chegarem a essa conclusão, esses autores, a partir de um corpus de língua falada, quantificaram e analisaram as ocorrências de hesitações, correções, repetições, etc., qualificando, também, cada ocorrência.

Koch e Pérez (1992), a partir de estudos realizados sobre dados de português falado, afirmam que as disfluências são estratégias de elaboração de que o falante lança mão para a construção do texto oral. As disfluências são, portanto, constitutivas da fala, e não meros problemas de formulação. As hesitações, pausas (preenchidas ou não), interrupções do fluxo de fala, cortes oracionais, repetições de sílaba, falsos começos, etc. seriam as disfluências do “plano motor” ou no “plano formal (fônico). E os desvios da linearidade do fluxo informacional, como as paráfrases, repetições, retomadas, autocorreções, digressões tópicas, segundo Koch e Pérez (1992), seriam as disfluências do “plano informacional” (do conteúdo).

De acordo com essa abordagem, a fluência é uma noção que abrange a complexidade linguístico-interacional envolvida nas situações habituais da conversação, e não mais somente o oposto da disfluência, uma produção linguística tida como desviante ou anormal, tal como é encarada nas abordagens mais tradicionais.

Esses autores chamam a atenção para a alta dinamicidade dos processos linguístico- interacionais no texto falado, interpretando de maneira positiva as descontinuidades da fala (inserções, quebras, retomadas e reconstruções) como "fatores de realização interacional associados à figura do falante como um 'estrategista da comunicação' (KOCH et al, 1989:125).

As paráfrases, as correções e algumas repetições (atividades de reformulação) representam estratégias das quais o falante dispõe para a resolução de problemas de disfluências ou de descontinuidades textuais-interativas, na formulação oral da conversação (Koch, 2004), sendo assim um componente fundamental da fluência.

A priori, poderíamos dizer que a partícula le seria um fator de disfluência na fala de

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Afasiologia, altamente prescritiva e normativista. Contudo, após feitos o levantamento e a análise da presença desse elemento em sua fala, percebemos seu caráter plurifuncional. Se levarmos em consideração uma noção de fluência que leva em conta fatores pragmáticos e interacionais, poderemos dizer que, na verdade, a partícula le, funcionando como um prompting, atua como um fator de fluência em sua fala, pois a auxilia na organização da sua dinâmica interacional, na manutenção de seu discurso e no desenvolvimento de seu tópico conversacional, fornecendo estratégias que promovem o encadeamento conversacional e a própria dinâmica interacional, além de auxiliá-la na evocação de palavras.

Uma das principais evidências de que le é um fator de fluência na fala de EC é o fato de ele ser muitas vezes usado em hesitações. Para Marcuschi (2006), a hesitação é um mecanismo da língua que torna possível a introdução no discurso de um processo de formulação prospectiva. Segundo a descrição do autor, as pausas e os alongamentos vocálicos, que ocorrem com maior frequência com itens funcionais (artigos, preposições, pronomes), são marcas empíricas da materialização das hesitações. Esses fenômenos ocorrem com o elemento le, como veremos abaixo:

(11) Corpus AphasiAcervus (04/12/2008)

Contexto: EC está servindo café a VM, afásica, e pergunta se ela quer uma colherzinha. Participam deste episódio as participantes afásicas VM e EC.

1. EC o le chá... é le... colherzinha/ 2. VM é

3. EC quer colherzinha

No fragmento acima, há uma hesitação na fala de EC depois do segundo le, expressa por uma pausa antes da produção da palavra “colherzinha”, momento em que provavelmente ela estaria evocando essa palavra.

(12) Corpus AphasiAcervus (04/06/2009)

Contexto: os participantes do CCA estão se preparando para fazerem palavras cruzadas. EC, nesse momento, está comentando que sabe fazer a atividade, mas que tem certas dificuldades. Participam desse episódio a pesquisadora HM e EC.

1. EC o le::... o le::... o le SABE Evand-, tempo ma- 2. HM (SI).

3. EC né mais

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5. EC le fícil

Neste exemplo, o elemento le aparece duas vezes seguido de alongamento de vogal e de pausa, constituindo hesitações que acabam dando lugar a uma reformulação. Nos dois primeiros momentos, é possível que EC estivesse tentando se lembrar de uma palavra, mas no momento posterior desiste dessa evocação e dá prosseguimento ao turno.

A partir das observações e análises realizadas, o que podemos considerar é que o papel estruturador da partícula le mostra que ele é um agente reconstrutor da estrutura gramatical, o que confere coesividade e sequencialidade aos enunciados de EC, demonstrando, em uma concepção de fluência que abrange tanto fatores linguísticos quanto pragmáticos e interacionais, que a partícula le é também um grande auxiliador da fluência da fala e da interação de EC.

Dessa maneira, pensando no conceito de prompting como auxiliador na organização da dinâmica interacional, na manutenção do discurso, no desenvolvimento do tópico conversacional e na resolução de mal-entendidos, que fornece estratégias que promovem o encadeamento tópico e conversacional, bem como impactos na própria dinâmica interacional, podemos dizer que o elemento le atua, sim, como um prompting.

É preciso ressaltar, no entanto, que no atual estágio da pesquisa não concebemos o

prompting como uma hipótese dissociada da primeira hipótese (a do preenchimento da margem

esquerda de unidades gramaticais). Acreditamos que os dois fenômenos fazem parte de um mesmo funcionamento, sendo que um enfatiza aspectos da organização estrutural da fala de EC, enquanto o outro destaca os ganhos conversacionais obtidos pelo uso do elemento le. Ao mesmo tempo que

le preenche a margem esquerda de um sintagma, por exemplo, ele pode funcionar como um

estímulo para a evocação do núcleo sintagmático, o que se observa nas pausas, nos prolongamentos vocálicos, etc.

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