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CAPÍTULO 2 Metodologia

2.1 Descrição do quadro de EC

A pessoa cuja produção verbal é estudada neste trabalho é EC. EC é uma brasileira, paulista, nascida em 14 de julho de 1976. É atualmente divorciada, mãe de um filho, com ensino médio completo e um curso técnico incompleto em Farmácia. Em 1997, aos 21 anos de idade, sofreu um rompimento de aneurisma em área fronto-parietal à esquerda e, em consequência disso, precisou colocar um clipe metálico supraciliar à esquerda. Começou a frequentar o grupo do CCA em 2008, por indicação do neurologista que a acompanhou no Ambulatório de Neurologia do HC da UNICAMP.

EC, acompanhada pelo ambulatório de Neurologia e pelo Ambulatório de Obesidade dessa mesma instituição, sempre teve uma grande participação no grupo do CCA, mostrando-se bastante comunicativa e cooperativa. Observamos nas reuniões que ela se engaja de forma entusiasmada nas atividades desenvolvidas no âmbito do CCA e atua de forma incentivadora em relação aos demais participantes afásicos. É também uma pessoa bem emotiva e ansiosa, com tendência a chorar e esbravejar quando comovida por algum fato, e, frequentemente, assalta ou interrompe o turno do interlocutor, procurando por vezes dirigir o tópico conversacional para temas de seu interesse, ainda que os demais presentes na interação estejam ainda envolvidos em determinado assunto. Também frequentemente mostra-se interessada nos relatos e comentários dos outros participantes do grupo, inteirando-se do que ocorre e das opiniões dos demais.

Do ponto de vista neurolinguístico, o quadro afásico de EC é predominantemente expressivo, com características do que a literatura afasiológica chama de fala telegráfica, com omissão de categorias funcionais, dificuldade de encontrar palavras, produção de parafasias semânticas e morfofonológicas (exibidas nas dificuldades com formas derivadas e, em menor grau, na dificuldade em fazer uso de morfemas flexionais).

Não há significativas alterações prosódicas no quadro apresentado por EC, tampouco significativas dificuldades na compreensão da linguagem oral.

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De acordo com a tipologia das afasias formulada por Luria, acima mencionada, o quadro apresentado por EC seria predominantemente motor eferente, correspondente também ao descrito como “afasia de Broca”. Nas palavras de Luria (1981):

(...) o córtex pré-motor é a sede do sistema adaptado para a integração de impulsos eferentes (motores) no tempo. Enquanto que as zonas corticais pós-centrais são responsáveis pela distribuição espacial de impulsos motores, as zonas pré-motoras, sobre a base de sinergismos motores a níveis inferiores, são responsáveis pela conversão de impulsos motores individuais em melodias cinéticas consecutivas, e introduzem, assim, um segundo componente essencial na organização de habilidades motoras complexas. (LURIA, 1981, p.154).

De acordo com Luria, lesões na área do córtex pré-motor, como a de EC, não acarretam nem paralisia nem paresia dos membros contralaterais. O sintoma principal que surge com esse tipo de lesão é, segundo o autor (1981, p.154), um “distúrbio de movimentos habilidosos, que não mais são executados suavemente, cada componente do movimento habilidoso requerendo agora seu próprio impulso isolado”.

Luria aponta também que, quando a lesão afeta as zonas inferiores da área pré-motora do hemisfério esquerdo, esse distúrbio de passagem suave de um elemento motor para outro e o surgimento de perseveranças motoras patológicas aparecem mais na fala do paciente do que em seus movimentos. Pacientes com afasia motora eferente têm como principal sintoma problemas relacionados a movimentos sequenciais elaborados. Eles conseguem posicionar seus articuladores corretamente, contudo não conseguem passar suavemente de uma posição articulatória para a seguinte, como durante a combinação de palavras. A escrita também é, nesses casos, igualmente afetada.

Algumas características neurolinguísticas comuns na fala de pacientes com esse tipo de afasia são a perseveração, a presença de agramatismo e linguagem telegráfica; o processo de automatização da linguagem se perde parcialmente, ocorrendo parafasias fonêmicas e o comprometimento da compreensão de relações lógico-gramaticais.

A fala de EC apresenta, de forma marcante ou atenuada, algumas dessas características. Para exemplificar algumas delas, trazemos abaixo alguns fragmentos extraídos de encontros do CCA, dos quais EC participa.

27 (6) Corpus AphasiAcervus (11/09/2008)

Contexto: EM, pesquisadora, pergunta aos participantes do CCA se eles gostam de viver na cidade em que moram. EC, NS e SI respondem à indagação. Estão na mesa as pesquisadoras EM, HM e JS e os participantes afásicos EC, NS, MN, LM, SP, MS, VM e SI.

1. EM então você gosta de morar em Sumaré/ 2. NS eu gosto... Parque real

3. EC é::/

4. NS sabe porque... Parque real... eu moro aqui só... só 5. mato... só mato... [agora a casa]&

6. [ le mato/ ai] gosto::so no::ssa\ 7. NS &só eu e vizinho... só só [só] (SI)

8. EC [só] isso/ amém né... o le 9. saco cheio... é le casa livre né/ e nossa o le 10. Campinas... Padre Anchieta e le mercadinho lado... 11. mercado e le Camp/Maré aqui ó casa... entendeu ó 12. ((olha para SI, participante afásico que está ao 13. lado dela)) éh::: nossa ((se levanta da cadeira para 14. ele sentar))... no::ssa... nossa, Evaine10 (SI).

Na conversação acima, na linha 9, a produção de EC se caracteriza pela omissão de artigos e preposições (características da fala telegráfica). Como estratégia de preenchimento e integração gramatical, a partícula le parece ocupar o lugar de alguns desses elementos.

(7) Corpus AphasiAcervus (16/04/2009)

Contexto: Os participantes do CCA estão conversando sobre filmes. EC se lembra de um filme que havia visto, contudo não se lembra do título dele. Ela dá, então, pistas sobre o filme. Os outros participantes tentam identificar o filme cujo título EC procura evocar. Estão sentados ao redor da mesa as pesquisadoras EM, HM e JS e os participantes afásicos EC, MS, MN, SI, LM e VM.

1. EC ow, sabe a... [sabe le:] 2. MS [dois.] 3. EC ...sabe [le:]

4. MS [três]

5. EC sabe le:... le: o monér/ Monér... sabe o [filme/] 6. HM [a mulher/] 7. EC ...a monér né/...o le home

8. HM o homem... o homem do filme/

9. EC nosse o monér... sabe o filme o monér/ 10. EM (SI)

11. EC éh:: le nome 12. EM Monér/

13. EC não... é le moner é le:: ai meu Deus\ 14. MS mulher/

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15. EC é molher... nossa homem... monér... eh:: é filme o 16. monér eh:

17. HM mulher/ mas que filme você tá falando/ 18. MN (SI) que apresenta/

19. EC nã::o... meu Deus\ éh:: ai meu Deus\... o le

20. Ponsim... entendeu/ o le chamá... le carro e entrá:: 21. JS “uma linda mulher”/

22. EC éh::: éh:: 23. EM como chama/

24. JS “uma linda mulher”

Neste fragmento, podemos perceber várias características da fala de EC. Nas linhas 5, 7, 9, 13 e 15, EC produz “monér”, uma parafasia morfofonológica da palavra “mulher”. Outra parafasia morfofonológica produzida por EC está na linha 20: EC produz “ponsim” para “bolsinha”. EC também apresenta fala telegráfica na linha 19. Podemos perceber ainda fenômenos afásicos como anomia e dificuldades de encontrar palavras (word finding difficulty), com omissão de substantivos.

Observam-se, ainda, outras características presentes na fala de EC, como as parafasias semânticas, observadas no próximo fragmento:

(8) Corpus AphasiAcervus (14/05/2009)

Contexto: Os participantes estão tomando o café da manhã. A pesquisadora está perguntando a cada participante como eles haviam passado o domingo do Dia das Mães. Dentro dessa atividade de conversação, espera-se que todos produzam pequenas narrativas, com maior autonomia enunciativa; cada participante sabe que tem a sua vez de falar. Ao ser perguntada sobre se havia ganhado algum presente de seu filho, EC relata à pesquisadora HM que não havia recebido nada. HM pergunta, em seguida, se o filho de EC já estava estudando em uma escolinha. EC responde que sim e relata que na sexta-feira anterior ao Dia das Mães havia sido o aniversário de seu marido, Milton11. Estão sentados ao redor da mesa as pesquisadoras HM e

JS e os participantes afásicos EC, RC, MS, SI, LM, MN e VM.

1. HM ele vai na escolinha/

2. EC sim graças a Deus\ nossa le ju- sexta nossa parabéns

3. Milton entendeu/ (ele/é le) maio...[oito parabéns

4. Milton]

5. HM [a::h ele fez 6. aniver]sár[io/]

7. EC [é...] é

8. HM então comemoraram o aniversário dele/ 9. EC é:

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Neste fragmento, na linha 2, ao tentar informar que na sexta-feira anterior havia sido aniversário de seu marido Milton, EC apresenta características da chamada fala telegráfica, com supressão de categorias morfossintáticas e produção de parafasia semântica, na qual podemos identificar uma referência subespecificada, sociocognitivamente contextualizadora, ao aniversário/aniversariante: “parabéns Milton”.

A produção abundante de le, ao que tudo indica, não é meramente uma excrescência na fala de EC, e sim um elemento reconstrutor; por isso, esta pesquisa tem cunho analítico heurístico longitudinal e qualitativo, para melhor compreender seu estatuto linguístico- comunicacional no decurso da evolução do quadro afásico de EC. A partícula le, apesar de ser usada unicamente por EC, parece não ser desmotivada, pois, observando sua ocorrência, percebemos que ela é produtiva e tem uma estabilidade funcional. O que ocorre na fala de EC, a nosso ver, não é possível de ser tomado como automatismo ou perseveração.

O automatismo é definido por Blanken (1991; Wallesch & Blanken, 2000), Code (1994) e de Bleser & Poeck (1985) como a produção continuada, repetitiva e involuntária de uma sílaba, palavra ou enunciado. Nesse caso, por suas dificuldades metalinguísticas, o sujeito afásico somente teria acesso a essa produção, tida em geral como involuntária, monocórdica e inconsciente. Fortes limitações quanto à produção espontânea de palavras, frases ou sentenças da língua seriam apresentadas pelo sujeito que utiliza os segmentos da língua sem ter controle sobre sua manipulação.

Algo muito parecido com esse fenômeno afásico ocorreria com os sujeitos que apresentam perseveração, que, segundo Moses et al (2007), “é uma repetição ou continuação inapropriada de uma resposta anterior, após mudança na solicitação da tarefa”12. Porém, como mostram os estudos de Viscardi13 (2005) e Lima 14(2004), mesmo essas categorias não são fórmulas fixas, no sentido que lhes dá a Afasiologia tradicional.

12 NEISSER, A. Krankenvorstellung (Fall von ‘Asymbolie’). Allgemeine Zeitschrifte für Psychiatrie, 1895.

13 Em sua dissertação de mestrado intitulada “O estatuto neurolinguistico do automatismo”, de 2005, Viscardi descreve

e postula as características linguísticas do automatismo a partir de uma perspectiva enunciativa, tendo em vista a análise longitudinal de dados do sujeito CF, que frequentou o Centro de Convivência de Afásicos (CCA), no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), da UNICAMP, numa tentativa de confirmar a expectativa de que as condições de enunciação alteram a qualidade de produção dos automatismos.

14Em sua tese (2004), Lima analisa o fenômeno da perseveração na afasia sob uma perspectiva sócio-intaracionista. Após analisar quatro sujeitos que foram avaliados e neuropsicologicamente diagnosticados com afasia de acordo com a classificação de LURIA (1974), ela conclui em seu estudo que a perseveração não é sempre uma resposta patológica permeando uma categoria clínica que delineia a semiologia neolinguística da afasia.

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Nota-se que ambos os fenômenos neurolinguísticos não explicam ou correspondem ao que ocorre na produção verbal de EC, que utiliza le não como uma mera repetição sem controle e intencionalidade, mas como elemento ativo reconstrutor da sua linguagem, uma espécie de expediente ou recurso linguístico-comunicacional que a auxilia na sua tentativa de adequar ou “normalizar” sua fala do ponto de vista gramatical e, ao mesmo tempo, otimizar sua comunicação, visto que sua ocorrência ou produtividade parece estar vinculada às exigências formais e discursivas das práticas conversacionais nas quais se engaja.

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