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"O Tekoha como uma criança pequena" : uma etnografia de acampamentos Kaiowá em Dourados (MS)

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

ELIS FERNANDA CORRADO

“O Tekoha como uma criança pequena”:

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ELIS FERNANDA CORRADO

“O Tekoha como uma criança pequena”:

uma etnografia de acampamentos Kaiowá em Dourados (MS)

Dissertação apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestra em Antropologia Social.

Orientadora: PROFA. DRA. NASHIELI CECÍLIA RANGEL LOERA Coorientadora: PROFA. DRA. ALINE CASTILHO CRESPE

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO

DEFENDIDA PELA ALUNA ELIS

FERNANDA CORRADO, E ORIENTADA PELA PROFA. DRA. NASHIELI CECÍLIA RANGEL LOERA.

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Mestrado, em sessão pública realizada em 28 de novembro de 2017, considerou a candidata Elis Fernanda Corrado aprovada.

Este exemplar corresponde à versão final da Dissertação defendida e aprovada pela Comissão Julgadora.

Profa. Dra. Nashieli Cecília Rangel Loera (orientadora) Profa. Dra. Antonádia Monteiro Borges (UnB)

Prof. Dr. Antonio Roberto Guerreiro Junior (IFCH/Unicamp)

A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Julgadora, consta no processo de vida acadêmica da aluna.

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Aos Kaiowá e Guarani

que

compartilharam

comigo suas histórias de

vida e de luta.

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Agradecimentos

Os caminhos que me trouxeram até aqui têm a presença de cinco mulheres muito fortes que foram fundamentais para minha construção enquanto pessoa e antropóloga: minha mãe, Edenea Pinto Corrado; minha avó, Dona Nice; minha irmã, Amanda Roberta Corrado; minha orientadora e mentora intelectual, Nashieli Rangel Loera e Aline Crespe, que desde os tempos de graduação sempre me acolheu em Dourados e generosamente sempre dividiu comigo sua pesquisa e seu conhecimento sobre os Guarani e Kaiowá. Os exemplos dessas mulheres me inspiram todo os dias.

Agradeço ao meu pai, José Roberto Corrado que através do seu jeito doce e tranquilo sempre me ajudou a me lembrar de onde vim e que conviver com a felicidade pode ser muito mais simples do que muitas vezes pensamos.

Agradeço aos meus amigos queridos de Rincão e ao meu amigo Diogo que nunca desistiram de mim, mesmo com todas as minhas ausências.

A querida Márcia Soares agradeço pela elaboração dos croquis e principalmente pela nossa amizade de muitos anos.

Pela companhia, as conversas, o apoio e as pipocas compartilhadas agradeço aos meus amigos Allan, Angelo, Luiza, Thiago, Karen e Cris. Amizades essas que me ajudaram a enfrentar as vicissitudes da vida acadêmica.

Ao Caue, João, Vini Ribeiro, Vini Zanoli, Vini Mattos, Denise, Carla e Beto, amigos da graduação e que agradeço por continuarem na minha vida, apesar das distâncias.

Aos amigos de pós-graduação em especial ao Jonathan, Carol, Duvan e Marcela.

Agradeço ao grupo de orientandxs da Prof. Dra. Nashieli Loera, pelas várias sugestões desse trabalho e aos colegas do CERES, em especial a Luciana que esteve comigo em diferentes fases desse trabalho.

As pessoas queridas de Dourados que me receberam de braços abertos, em especial a Dona Durvalina, que me tratou como uma filha; a Cláudia pelos vários almoços e risadas e ao Pedro por sua leveza de criança.

Também agradeço ao Levi Marques Pereira, Silvana, Diógenes, Lauriene, Vander, Ellen e Marcelo e em especial ao Homero, antropólogo do MPF de Dourados, pelas inúmeras orientações.

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Ao Instituto de Filosofia de Ciência Humanos e ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social pelas oportunidades oferecidas e a todos os professores que sempre contribuíram com a minha formação.

A banca de qualificação, Antonio Guerreiro e José Manuel pelos comentários e contribuições valiosas.

Agradeço a FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) e a CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) pela bolsa de mestrado concedida, número de processo 2015/06850-1.

E, por fim, agradeço especialmente a todos os Kaiowá e Guarani que me receberam e tornaram esse trabalho possível, em especial a Vice-liderança do Tekoha 2, a Liderança do Tekoha 1 e a Liderança do Tekoha 2.

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Nunca saí daqui, este é meu chão... não deixo esta terra... vou morrer por aqui mesmo, aqui nesta região... Sou kaiowá e índio kaiowá gosta muito de ter família por perto... queremos ter todos em volta, morando sempre juntinhos... eh!... a vida de um é a vida de outro... só deixo esta terrinha quando Deus me chamar, quando a minha fala não sair mais, quando ela morrer... (...) Somos filhos de Ñhanderú e Ñhandesi e Ñhanderamoue é nosso protetor... é o protetor da mata... kaiowá quer dizer filho da floresta, da madeira, da mata... kaiowá é a natureza... protegido de Ñhanderamoe... em guarani a gente fala txe-dja-ri... Capitão Ireno Canto de Morte Kaiowá

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Resumo

Desde os anos 1990, as ocupações de terra e montagem de acampamentos conhecidos como “de lona preta” se tornaram uma das formas de demandar desapropriação e distribuição de terra ao Estado brasileiro. Nos últimos 30 anos, esta forma de reivindicação havia sido associada a trabalhadores rurais sem-terra. No entanto, indígenas Kaiowá da região de Dourados, no sul do Mato Grosso do Sul, também têm se utilizado dessa linguagem de demanda para reivindicar terras consideradas por eles como tekoha, isto é, como seus territórios ou espaços de vida tradicionais. Essa dissertação pretende refletir sobre as características dessa “linguagem” simbólica entre os Kaiowá e Guarani, e a partir da etnografia de dois acampamentos indígenas: Tekoha 1 e Tekoha 2, localizados no município de Dourados/MS, explorar os sentidos das áreas de retomadas para eles. Nessa perspectiva dois temas se tornaram essenciais: os sentidos de terra para os Kaiowá e Guarani e seus modos de mobilidade, como fundamental para manutenção e reprodução de novos acampamentos.

Palavras-chaves: sociabilidade; territorialidade; acampamentos indígenas; modos de mobilidade; Kaiowá e Guarani.

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Abstract

Since the 1990s, the land occupations and the establishment of encampments, known as "black canvas", have become one of the ways to claim land expropriation and redistribution to the Brazilian state. Over the last 30 years, this form of claim has been associated to landless rural workers. However, the indigenous Kaiowá, in the region of Dourados in Mato Grosso do Sul state, have also been using this language of demanding to claim land they consider to be Tekoha, that is, their traditional life territory or spaces. The aim of this dissertation is to analyse the features of such symbolic language among the Kaiowá and, from an ethnography of two Kaiowá’s encampments, Tekoha 1 e Tekoha 2, located in the city of Dourados in Mato Grosso do Sul state, to comprehend the different meanings that the Kaiowá ascribe to the claimed lands. From such perspective, two topics become essential: the meanings of land to the Kaiowá and Guarani and their ways of mobility, crucial for the preservation and reproduction of new encampments.

Key Words: Sociability; Territoriality; Indigenous Encampments; Ways of Mobility; Kaiowá and Guarani.

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Lista de Tabelas

Tabela 1: Reservas Indígenas criadas entre 1915 e 1928. ... 38 Tabela 2: Projeção da população guarani e kaiowa em reservas entre 1991 e 2031. ... 40 Tabela 3: Acampamentos guarani e kaiowa no sul de Mato Grosso do Sul – inclusive áreas em

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Lista de ilustrações

Figura 1. Aty Guasu, agosto de 2011. Fonte: Arquivo fotográfico “As formas de acampamentos”.

... 18

Figura 2. Reserva Indígenas criadas pelo SPI em MS entre 1924 e 1928. Fonte: MORAIS (2016, 48). ... 34

Figura 3. Croqui 1 - Tekoha 1, junho de 2011 ... 63

Figura 4. Croqui 2 - Tekoha 1, janeiro de 2012 ... 64

Figura 5. Roça de um morador. Foto: CORRADO, 2016. ... 66

Figura 6. Roça de um casal de moradores. Foto: CORRADO, 2016 ... 66

Figura 7. Croqui 3 - Tekoha 1, fevereiro de 2016. Croqui elaborado a partir da pesquisa etnográfica realizada no período de fevereiro a abril de 2016. Elaboração do croqui: Marcia Soares. ... 68

Figura 8. Reprodução do desenho da liderança ... 69

Figura 9. Croqui 4: Tekoha 2, fevereiro de 2016. Croqui elaborado a partir da pesquisa etnográfica realizada no período de fevereiro a abril de 2016. Elaboração do croqui: Marcia Soares. ... 81

Figura 10. Dia de reunião no Tekoha 2. Foto: CORRADO, 2016. ... 84

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Lista de abreviaturas e siglas

CAND: Colônia Agrícola Nacional de Dourados

CIMI: Conselho Indígena Missionário

CNBB: Conferência Nacional dos Bispos do Brasil CPI: Comissão Parlamentar de Inquérito

CPT: Comissão Pastoral da Terra FAF: Federação da Agricultura Familiar

FAPESP: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo FUNAI: Fundação Nacional do Índio

IBGE: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística ICP: Inquérito Civil Público

INCRA: Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária MPF: Ministério Público Federal

MS: Mato Grosso do Sul

MST: Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

NERA: Núcleo de estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária OIT: Organização Internacional do Trabalho

PEC: Projeto de Emenda Constitucional SPI: Serviço de Proteção ao Índio RJ: Rio de Janeiro

SESAI: Secretaria Especial da Saúde Indígena TAC: Termo de Ajustamento de Conduta TI: Terra Indígena

UFGD: Universidade Federal da Grande Dourados UPA: Unidades de Pronto Atendimento

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Sumário

Apresentação ... 16

Introdução:As direções não previstas ... 19

Capítulo I - A espiral das retomadas:contextualizando os acampamentos indígenas na região sul de Mato Grosso do Sul. ... 31

1.1 O processo de esbulho das terras dos Guarani e Kaiowá no sul do Mato Grosso do Sul ... 32

1.2 A vida na aldeia antiga ... 36

1.3 A espiral das retomadas indígenas: vai fazendo a cabeça ... 41

Variações da “forma acampamento” ... 44

As fases do acampamento ... 53

Capítulo II - “A gente tem sabedoria só para entrar, mas não tem para sair” ... 56

2.1 Tekoha 1 – O acampamento que sempre foi tekoha ... 56

Não aceita mais pessoa que não é aparentada ... 64

Não é muito nem é mais ... 69

A vila tá vindo, chegando a cada ano ... 71

2.2 O Tekoha 2: um barraco colado no outro ... 78

A reunião da comunidade ... 83

A História da retomada ... 87

Sabia falar bem, sabia das coisas ... 88

Capítulo III - “Uma retomada é uma criança pequena”: Os sentidos dos acampamentos para os Kaiowá e Guarani. ... 94

3.1 A terra como corpo ... 95

Índio igual [formiga] lava-pé, só mora eles, não tem um pretinho no meio ... 103

3.2 ‘igual maribondo’: circulação e modalidades de perambular ... 108

Andar igual marimbondo ... 111

Andanças pela vizinhança ... 116

Considerações Finais ... 120

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Anexos ... 129 Glossário ... 129 Sessão Fotográfica ... 130

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Apresentação

Em uma ocasião, nos meus primeiros trabalhos de campo, ainda como aluna de graduação, me disseram que quem conhece os Kaiowá uma vez, sempre acaba voltando para reencontrá-los. Essas palavras carregavam as experiências de outros pesquisadores e soaram como brincadeira para uma jovem estudante. No entanto, elas acabaram se profetizando. Este trabalho é o reflexo de algumas, várias idas e voltas ao Mato Grosso do Sul e de encontros e reencontros com os Kaiowá e Guarani, da região de Dourados.

Esta história tem início a partir da pesquisa que começou no ano de 2011, como uma Iniciação Científica, integrante do projeto Jovem Pesquisador, intitulado As Formas Acampamentos (2010 – 2015), coordenado pela professora Dra. Nashieli Loera com financiamento da Fapesp1. O projeto de Iniciação Científica De índios a sem-terra: variações da forma acampamento, surgiu da inquietação da pesquisadora ao tomar conhecimento da existência de grupos de índios Kaiowá que viviam em acampamentos de lona preta no Mato Grosso do Sul (doravante MS), bem como das informações do Nera2, que havia contabilizado mobilizações a nível nacional e identificado retomadas indígenas e principalmente acampamentos Kaiowá, como o grupo que ocupava a quinta posição em mobilizações por terra.

Um dos principais objetivos desse projeto, que comecei a realizar quando cursava o terceiro ano de graduação no curso de Ciências Sociais da Unicamp, era refletir sobre a “forma acampamento” como linguagem simbólica de demanda coletiva tendo como lócus empírico os acampamentos indígenas. Nesse sentindo, ao iniciar a pesquisa em 2011, minha primeira atividade foi me familiarizar a bibliografia que tratava da temática do mundo das ocupações de terra.

Outro objetivo da iniciação era fazer um mapeamento de temas e textos que colocavam em discussão a existência de fronteiras entre campos de estudos aparentemente diferenciados, como os Estudos Rurais e Etnologia Indígena, por isso, a bibliografia inicial também foi dedicada a esse assunto. Refletir sobre a permeabilidade desses dois campos de estudos possibilitou entender um antigo debate nas ciências sociais, no Brasil, e reatualizar o diálogo a partir de um caso empírico. Essa experiência se mostrou profícua e por isso essa perspectiva se estende também ao trabalho de mestrado.

1 Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.

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Outra atividade a qual me debrucei foram as leituras dos trabalhos de Lévi Marques Pereira (2003, 2004, 2007) e Aline Crespe (2009), um dos primeiros antropólogos a escreverem sobre os acampamentos Guarani e Kaiowá. Essas leituras me introduziram na problemática dos acampamentos indígenas no MS.

A escolha pelos acampamentos como lócus etnográficos desta pesquisa foi delimitada após o primeiro trabalho de campo, que colocou a equipe do projeto As Formas de Acampamento mais próxima da realidade vivenciada pelos indígenas e pesquisadores da região sul do MS.

A colaboração com pesquisadores da UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados) nos ajudou a delimitar os acampamentos que seriam o lócus da pesquisa etnográfica. Nesse sentindo, e com o auxílio da Profa. Dra. Aline Crespe, coorientadora deste trabalho - fez parte da equipe Jovem pesquisador e realizou pesquisa na região - os acampamentos escolhidos foram: Tekoha 13 e Apyka’i. O primeiro por ser um acampamento com o qual os pesquisadores da UFGD já tinham contato e por estar localizado em uma área na qual se tinha uma relação “tranquila” com o proprietário da terra. Num contexto de extrema violência contra as populações Kaiowá e Guarani, esse local se tornava mais seguro para a realização do trabalho de campo. E o segundo por ser um acampamento que, na época, reproduzia uma configuração particular com poucos barracos e contato cotidiano com um acampamento de sem-terra próximo, organizado pela Federação da Agricultura Familiar – FAF, ambos montados na beira da estrada, e muito próximos de bairros considerados como à “periferia” da cidade de Dourados.

Foi nesse primeiro campo também que iniciamos o diálogo com setores do estado, como a Fundação Nacional do Índio (doravante Funai) e o Ministério Público Federal (doravante MPF), e com o Conselho Indígena Missionário (doravante CIMI4). As visitas de campo seguintes ajudaram a aproximar as relações com esses múltiplos interlocutores, relação essa necessária para compreender todos os aspectos que envolvem a situação dos acampamentos indígenas na região.

Durante a iniciação o foco principal da pesquisa foi a organização social dos acampamentos e para isso também foram realizadas pesquisas de documentos na regional da Funai de Dourados. Essas pesquisas, juntamente com os dados etnográficos levantados nos acampamentos, possibilitaram criar mapas de mobilidades das famílias guarani e kaiowá com o objetivo de traçar relações entre os acampamentos. A questão sobre a

3 Irei chamar de Tekoha 1 e Tekoha 2 as duas áreas que foram foco da pesquisa etnográfica dessa pesquisa. 4 Organismo vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, criado em 1972.

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mobilidade dos acampados, que surgiu nos últimos anos da pesquisa de iniciação foi um dos temas que ganhou destaque no mestrado, pois se mostrou sociologicamente relevante para entender a manutenção e formação de novos acampamentos indígenas.

Fazer parte de um grupo de pesquisa durante a graduação e a realização de trabalhos de campos coletivos - como era uma das propostas do projeto As formas de Acampamento - possibilitou também conhecer os acampamentos organizados por sem-terra e por indígenas Guarani Mbyá no estado de São Paulo. Esse trabalho coletivo foi fundamental para minha formação enquanto aluna e pesquisadora.

A dissertação de mestrado pretende desenvolver os desdobramentos etnográficos e analíticos surgidos a partir da pesquisa anterior de iniciação, ainda que a preocupação antropológica inicial se mantenha: a de refletir acerca dos sentidos que meus interlocutores Kaiowá e Guarani conferem aos acampamentos e os efeitos que têm nas suas vidas. Desta maneira dedico este trabalho a eles, pois, seis anos transcorrido da minha primeira visita aos Kaiowá e Guarani, talvez tenha entendido a frase que inicia essa introdução. Foi na relação de cativar e de se deixar cativar por eles5, por suas histórias de vidas e por suas lutas cotidianas, que permanece o desejo das voltas e dos reencontros.

Figura 1. Aty Guasu, agosto de 2011. 6 Fonte: Arquivo fotográfico “As formas de acampamentos”.

5 Referência ao livro O Pequeno Príncipe de Antoine de Saint-Exupéry, em que cativar é descrito como o ato pelo qual

criam-se laços e nos tornam responsáveis por aqueles que cativamos.

6 Essa foto foi tirada na primeira Aty Gassu que estive presente, realizada no Tekoha Passo Piraju (Dourados - MS) em

agosto de 2011, a pedido de Faride (ao meio), uma das lideranças do Tekoha Laranjeira Ñanderu, a quem tive a oportunidade de reencontrar em junho de 2016. Ao lado esquerdo está o antropólogo kaiowá Tonico Benites.

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Introdução:

As direções não previstas

“Nunca somos no campo uma pessoa clara, resolvida. A memória das construções de outros, de pessoas de uma difícil decifração, como nós somos sempre, precisa, entre os atores e as culturas, realizar às avessas, em direção convergente e contrária à nossa própria investigação, uma outra, através da qual uma certeira antropologia ingênua – a deles sobre nós e nosso mundo - elabora e redesenha a nossa identidade (1998, 192).

Carlos Brandão em Memória Sertão (1998) As Questões

O projeto de mestrado, Índios de lona preta: uma etnografia de acampamentos Kaiowá em Dourados (MS), partiu de duas questões principais: os significados que os acampamentos têm para os Guarani e Kaiowá, e, a segunda, sua relação com seus modos de mobilidade como fundamental na formação de novos acampamentos. Assim, o objetivo inicial era mapear a circulação e a mobilidade dos Kaiowá e Guarani entre os acampamentos e as reservas da região, a fim de avaliar o rendimento etnográfico e teórico de se pensar esses acampamentos como mais uma alternativa de mobilidade, onde as teias de relações de parentesco e de aliança se ampliam, e se produzem e reproduzem formas de socialidades específicas.

Estas questões têm ainda, como pano de fundo, refletir os acampamentos indígenas como parte de uma linguagem simbólica de demandas sociais coletivas e, quando se mostrou pertinente, a aproximação do diálogo entre Estudos Rurais e Etnologia Indígena; temáticas essas que perpassam o trabalho como um todo. Analiticamente busca-se relacionar a forma social e a linguagem dos acampamentos às concepções e aos sentidos Kaiowá e Guarani de terra e de mobilidade.

A perspectiva de considerar os acampamentos e as retomadas Guarani e Kaiowá como uma linguagem simbólica, vem do modelo de análise, proposto por Lygia Sigaud (2000), da “forma acampamento”, como uma linguagem simbólica para reivindicar benefícios ao Estado. Sigaud, ao estudar as ocupações de terra em Pernambuco, apresenta a lona preta e a montagem dos barracos como um dos símbolos da demanda por terra, e, por sua vez, como o conjunto dos elementos acionados nessas reivindicações tornou-se uma linguagem que é entendida tanto pelos acampados, pelos participantes dos movimentos sem-terra e por membros do Estado.

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Autores como Marcelo Macedo (2005), Nashieli Loera (2006, 2014) e Marcelo Rosa (2009), também se utilizaram da proposta da “forma acampamento” ao descrevem, em diferentes contextos etnográficos, como a ocupação de terras e a montagem de acampamentos se tornou uma linguagem legítima para demandar a reforma agrária ao Estado brasileiro. Este é o referencial que me motivou a buscar os elementos da “forma acampamento” dos Guarani e Kaiowá, onde as retomadas de terras se configuram como um dos símbolos principais na reivindicação dos territórios tradicionais desse povo. Além disso, essa abordagem permite traçar tanto, aproximações como distinções entre a linguagem comumente adotada pelos movimentos sem-terra, e a que está sendo adotada pelos Guarani e Kaiowá. No entanto, se a forma de organização desses movimentos, muitas vezes podem se assemelhar, o mesmo não se pode dizer dos sentidos que os acampamentos têm para esses atores, pois os sentidos são muito mais variáveis e, como irei mostrar no decorrer deste trabalho, podem nos levar para diferentes lugares.

Portanto, embora descrever os acampamentos Guarani e Kaiowá como linguagem, seja parte constitutiva desse trabalho, é ao explorar os sentidos que esses espaços têm para os meus interlocutores que consigo avistar as contribuições mais significativas dessa pesquisa. Assim, refletir sobre os sentidos das áreas de retomadas se transformou no eixo distintivo desse trabalho.

Todavia, este trabalho também passa a ter um sentido para os meus interlocutores. Para a liderança do Tekoha 1, esta dissertação é como um documento que conta a sua luta e a luta da sua família pelo tekoha. Quando comentei que poderia suprimir o nome da vice-liderança do Tekoha 2 na dissertação, para preservar sua identidade, ela me respondeu: “mas aí ninguém vai saber da minha luta”7. No entanto, considerando o contexto atual de extrema violência vivenciado pelos Guarani e Kaiowá: segundo o relatório da CPT sobre Conflito no Campo Brasil 2016, no MS houveram dez tentativas de assassinatos8, cinco ameaças de mortes e um assassinato9, todos de índios ou lideranças indígenas vivendo em áreas de retomada. Frente a esse cenário atroz e por se tratar da versão final da dissertação, a banca de defesa em conjunto com minha

7 As frases ditas pelos meus interlocutores serão destacadas em itálico e acrescidas de aspas e as palavras em itálico fazem referências aos termos nativos.

8 O MS é o terceiro estado com mais tentativas de assassinatos.

9 O assassinato foi de Clodiodi Souza que aconteceu em junho de 2016, quando pistoleiros atacaram o

Tekoha Guapoy, no município de Caarapó, esse ataque deixou mais seis índios feridos a bala e no mês de

junho um novo ataque foi perpetrado deixando mais três indígenas baleados. Esses ataques passaram a ser conhecidos como o “Massacre de Caarapó”.

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orientadora aconselharam em deixar os nomes das áreas e dos meus interlocutores no anonimato, para preservar sua segurança. Assim, embora fosse o desejo dos meus interlocutores manter seus nomes e os nomes dos tekoha originais, a necessidade de omiti-los também é uma tentativa de visibilizar o quão violento e o quão violentado são os Guarani e Kaiowá no MS.

***

Os primeiros passos da pesquisa tiveram início com um levantamento bibliográfico levando em consideração produções clássicas sobre os Guarani, trabalhos mais específicos sobre os Kaiowá e a questão territorial, sobre o processo histórico do MS e produções dos estudos rurais que dialogam com o meu tema de pesquisa, bem como um levantamento de textos e artigos atuais que discutem a questão dos Guarani e Kaiowá no sul do estado. Fiz igualmente, um levantamento de trabalhos, principalmente da etnologia indígena que tratam sobre: a mobilidade, o parentesco, as trocas e a cosmologia Kaiowá e Guarani.

Especificamente sobre os Kaiowá e a questão dos acampamentos indígenas é importante destacar trabalhos como de Aline Crespe, “Mobilidade e temporalidade Kaiowá: do tekoha à reserva. Do tekoharã ao tekoha” (2015), referência central, uma vez que mobiliza as categorias de mobilidade entre os Kaiowá, analisadas também a partir da situação das reservas e do movimento de retomada. Outros trabalhos sobre mobilidade Kaiowá relevantes, é a tese “Mais além da “aldeia”: território e redes sociais entre os Guarani de Mato Grosso do Sul” (2007) de Alexandra Barbosa da Silva que questiona o conceito utilizado por Brand (1993, 1997) de “confinamento”. Segundo a antropóloga, a noção de “confinamento” deixa de considerar a dinâmica de circulação dos indígenas, como se o processo de territorialização fosse feito apenas pela ação do Estado. Assim, a proposta da autora é focar nas redes de relações, através da trajetória de famílias extensas e não no local que os índios estão.

Ao trabalhar com diferentes fontes documentais, o livro de Graciela Chamorro, História Kaiowa. Das origens aos desafios contemporâneos (2015), faz um recuo no tempo até os séculos XVI e XVII para contar a história dos Kaiowá, relatando suas práticas culturais, o processo de aldeamento até chegar ao movimento de retomada. Além disso, traz dados recentes sobre os números de acampamentos indígenas na região das cidades de Dourados e Ponta Porã, ajudando assim no mapeamento dos acampamentos.

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Ademais do levantamento bibliográfico, também foi feita uma busca por notícias em jornais online que tratassem especificamente sobre a situação dos acampamentos indígenas, principalmente aqueles que se localizam na região da cidade de Dourados. Outro importante levantamento realizado foram os dados sobre os conflitos de terras compilados em relatórios produzidos pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) e que estão disponibilizados online10. Nesse levantamento alguns acampamentos indígenas foram citados.

É importante considerar que esses primeiros elementos da construção metodológica do trabalho da pesquisa, bem como a formação, que inclui disciplinas cursadas, levantamento bibliográfico são as fases da pesquisa das quais temos mais “controle”, e muitas vezes antecedem o trabalho de campo. Se até aqui tudo pode ser descrito como numa linha contínua, o trabalho de campo, por sua vez, obedece a uma lógica própria, da qual você só ‘dá conta’ parcialmente, pois é justamente o campo que nos leva por caminhos inusitados e por direções não previstas, inicialmente não pensadas no projeto, e muitas vezes nos faz repensar e redefinir nossos objetivos e lócus da pesquisa.

O campo e seus imponderáveis

Se a mobilidade dos meus interlocutores era uma questão presente no projeto inicial, pensar sobre a minha mobilidade se tornou uma questão que surgiu durante o trabalho de campo. Como chegar aos acampamentos numa região de confrontos cotidianos entre indígenas e fazendeiros e na qual não é fácil, e pode resultar até arriscado estar sozinha em campo, se tornou uma questão nada banal, e de fato foi um dos motivos que me levaram a mudar o lócus de um dos acampamentos para outro. No projeto inicial, as áreas indicadas para realização da pesquisa de campo eram os acampamentos Tekoha 1 e Apica’y. Essa escolha pretendia dar continuidade aos contatos e campos anteriormente realizados que reunia um material etnográfico importante. O acampamento Apica’y se localizava na margem da BR 455 (que liga Dourados a Ponta Porã) e em 2014 o grupo, liderado por Dona Damiana realizaram uma retomada e passaram ocupar uma área localizada dentro da Fazenda São Fernando11.

A dificuldade de circular por esse acampamento, e a preocupação com a minha segurança em campo fizeram com que começasse contatos em outro

10 Fonte: http://www.cptnacional.org.br/

11 Dona Damiana, liderança do Apica’y, e mais oito famílias que ocupavam uma parte da Fazenda São Fernando, foram despejados da área no dia 06 de julho de 2016.

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acampamento. A minha coorientadora, Aline Crespe, me sugeriu trabalhar no Tekoha 2, um outro acampamento também próximo da área urbana, o que facilitaria minha circulação, além disso, ele também fica ao lado da reserva e próximo a outro acampamento indígena conhecido como Tekoha 3.

Do mesmo modo, foi notável o interesse e a preocupação com que os moradores dos acampamentos passaram a ter com a minha mobilidade, desde a minha primeira visita sozinha as áreas12. Minha ida a Dourados, igualmente, foi motivo de interesse e especulação por parte dos Guarani e Kaiowá, principalmente no início do campo. Quando as pessoas descobriam que eu não era de Dourados, logo mostravam interesse em saber de onde vinha, qual era a distância de Campinas a Dourados, quanto tempo eu demorei para chegar, se tinha ido de ônibus, carro ou avião, se a viagem tinha sido cansativa. Ao chegar aos acampamentos sozinha, eles também sempre me perguntavam como eu tinha ido da cidade até lá. Quando falava que havia conseguido uma carona até as proximidades eles se alegravam e faziam comentários do tipo: “que bom que conseguiu uma carona”.

A esse respeito é relevante pontuar que, na maioria das vezes, minha circulação por essas áreas se deu caminhando, eu chegava aos acampamentos a pé, diferentemente da maioria dos pesquisadores e funcionários do estado, por exemplo, que utilizam carro. Essa minha forma de acessar os acampamentos, a pé, colocou um “certo dilema classificatório” aos meus interlocutores (COMERFORD, 2003), uma vez que eu não me encaixava no perfil de visitantes vindo das universidades, ou de alguma outra entidade do Estado. Ao mesmo tempo, esta forma de chegar, também me aproximou deles, pois caminhar a pé e pegar carona é uma das formas mais corriqueiras dos Kaiowá e Guarani para irem às cidades e visitarem seus parentes. Comerford, em sua pesquisa sobre os sindicatos rurais, do mesmo modo chamou atenção para o “dilema classificatório” ao analisar como o “caminhar a pé”, na sua entrada em campo, na zona rural da Zona da Mata de Minas Gerais, alterou a percepção dos seus interlocutores, que antes o viam como um integrante do sindicato (aqueles que estão sempre circulando de carro) para alguém que se busca aproximar e até se aparentar.

12 Minha primeira ida aos Tekoha 1 e Tekoha 2 foi acompanhada por minha coorientadora, Aline Crespe, que já havia trabalhado em os ambos acampamentos. Nessa primeira visita fui apresentada as lideranças, no caso do Tekoha 1, já conhecia a liderança, o que facilitava esse primeiro contato. Falei sobre a pesquisa de mestrado e sobre o consentimento deles em realizá-la. As duas lideranças consentiram e mostraram interesse pela pesquisa, apenas ressaltando que eu precisaria informá-los sempre das minhas idas, essas também seriam pautadas na disponibilidade das lideranças em me receberem.

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Em campo, muitos cuidados e preocupações foram dirigidos ao meu caminhar a pé. Ao deixar os acampamentos, por exemplo, principalmente a vice-liderança do Tekoha 2, fazia questão que sua filha me acompanhasse pela estrada de terra que levava até a rodovia, bem próximo ao Bairro 3, ela mesma me acompanhou uma vez. Em visita a família de um morador do Tekoha 2, sua esposa também fez questão que ele me acompanhasse pela estrada de terra. A liderança do Tekoha 1, por sua vez, em uma das nossas conversas me dizia que ele avisará os moradores do tekoha que eu os visitaria por um tempo e que não era para ninguém mexer comigo e assim, sempre que eu chegasse ao Tekoha 1 poderia ficar tranquila pois estaria segura. Quando passei a frequentar o Tekoha 2 com uma amiga, também antropóloga, as lideranças comentavam como era bom eu ter arrumado uma companhia. Todos esses gestos de cuidados e interesse pela forma de como chegava e deixava os acampamentos, além de refletir a preocupação com a minha segurança, diante do cenário de conflito que vivenciam cotidianamente, dizia também sobre a sociabilidade Kaiowá e Guarani.

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De modo geral, para a pesquisa do mestrado, o trabalho de campo foi realizado de janeiro a maio de 2016. Durante esse período me mudei para a cidade de Dourados e assim pude frequentar cotidianamente os Tekoha 1 e Tekoha 2 e realizar um levantamento de documentos na regional da Funai de Dourados, no MPF e na Secretaria Especial da Saúde Indígena (SESAI).

Mas se a escrita consegue condensar resumidamente o que foi o campo, a pesquisa etnográfica, por outro lado, pertence ao domínio dos “imponderáveis”, pois é com a vida real que nos defrontamos e não com os nossos cronogramas de projeto, que, de tão sincrônicos que os construímos, parece até nos trazer alento. Enquanto meu cronograma previa que o período do trabalho de campo, inicialmente terminaria em março, eu acabei ficando mais um mês e meio, pois como minha coorientadora já me alertará, o campo com os Kaiowá e Guarani não acontece quando nós queremos, mas sim quando eles querem.

Além disso, outros antropólogos, interlocutores fundamentais no meu trabalho, como Lévi Pereira, me chamavam a atenção sobre como os Kaiowá são desconfiados tendo também uma temporalidade própria para estabelecer relações de confiança. Ficava claro, que o tempo da pesquisa e o tempo dos meus interlocutores não era o mesmo, com certeza. Lidar com as expectativas do que será o campo – no início imaginava que estaria todos os dias nos acampamentos, mas prontamente os Kaiowá me

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mostraram que não funcionava bem assim - e de como o campo realmente se mostra, leva, muitas vezes, o pesquisador a ficar apreensivo e ansioso, é quando o sentimento de desânimo invade. E não foi diferente comigo. A esse respeito, Malinowski (1922) já havia escrito como o trabalho etnográfico passa por momentos de desânimo e muitas vezes por “sentimentos de desespero e desalento” (1922, 23).

No entanto, fui percebendo que meu campo estava sendo o tempo todo e não acontecia apenas quando visitava as áreas de retomadas. Assim, me atentei mais aos diálogos com amigos e pesquisadores, a relação com a cidade, com a Funai e MPF e com interlocutores das universidades.

Por outro lado, aprenderá também a importância de cada uma das visitas realizadas nas áreas de retomada. As lideranças indígenas e os seus parentes foram as pessoas com quem eu tive mais contato em campo, toda vez que visitava a liderança do Tekoha 1, e a vice-liderança do Tekoha 2, essas idas se transformavam sempre numa nova chegada.

O conflito

Como mencionei antes, as escolhas pelas áreas trabalhadas, em diferentes etapas da pesquisa, sempre levaram em conta a questão do conflito e da violência intrínseca a ele. Essa preocupação, não apenas minha, mas, de amigos, de pesquisadores, de funcionários da FUNAI e do MPF, bem como dos Kaiowá e Guarani me acompanharam em campo e chegavam até a mim na forma de orientações e pedidos de cautela. Recordo uma vez, no final de fevereiro de 2016, logo após uma ocupação indígena nas proximidades do Tekoha 2, em que uma funcionária da Funai entrará em contato comigo pedindo para que naquela semana eu evitasse ir ao acampamento, pois como o clima estava tenso por causa da nova ocupação, uma pessoa estranha, não indígena, circulando nas proximidades seria um tanto perigoso.

No entanto, o conflito não se dava apenas em relação às escolhas pelas áreas trabalhadas, ou no adiamento de uma visita, por exemplo. O conflito está sempre presente e tem efeitos na vida dos Kaiowá e Guarani, bem como das pessoas que se encontram trabalhando ou pesquisando com eles.

No meu caso, não foram poucas vezes que senti medo, mesmo sem um motivo aparente. Esse medo vinha sempre quando estava a caminho dos acampamentos: achava que alguém podia me parar e perguntar o que estava fazendo por aquelas regiões. Mesmo andando pela cidade, as vezes acreditava que alguém estava me observando, ou, se um carro se aproximasse, pensava que poderia ser alguém que ficou sabendo que eu

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estava frequentando os acampamentos Guarani e Kaiowá. Esse relato pode parecer estranho para as pessoas que não conhecem o contexto do MS, acontece que o conflito entre indígenas e proprietários de terras reverbera nas cidades, nos espaços públicos e privados. Um exemplo concreto disso pode ser expresso nos acontecimentos que se iniciaram no fim de fevereiro de 2016 em Dourados, quando aconteceu uma retomada ao lado do Bairro 3, bem próximo ao Tekoha 2 e ao Tekoha 313. A retomada, que semanas depois foi desfeita, parece, por outro lado, ter disparado outras retomadas por áreas próximas, que ficam ao lado do Tekoha 3, nas proximidades com a Reserva de Dourados. A primeira, aconteceu num sábado, no dia 05 de março de 2016. Essas novas retomadas causaram um furor na cidade, pois os indígenas ocuparam uma região de chácaras e os proprietários ficaram muito preocupados e nervosos com a ação dos índios.

Com as retomadas ocorrendo o clima na cidade ficou mais tenso14. Muitas pessoas falavam sobre o assunto, e faziam comentários de que haveria enfrentamento entre os proprietários e os indígenas. Nas semanas seguintes às retomadas era frequente aparecerem algumas notícias nos jornais locais falando das novas ocupações, havia, por exemplo, uma notícia sobre uma senhora que abandou sua chácara com medo do conflito15. Nas notícias sempre era relatado o fato dos índios estarem nervosos e armados com facões e enxadas e, por isso, foram pedidos reforços policiais. Mas, na cidade, também ouvíamos que os chacareiros estavam revoltados com as ocupações e que estavam se armando para expulsar os indígenas de suas terras16. O temor do acirramento do conflito se concretizou no dia 12 de março, quando um indígena foi baleado num confronto com fazendeiros em uma das áreas recém retomadas17.

É comum, entre os moradores da cidade, principalmente daqueles contrários às retomadas, a reprodução de um discurso que enfatiza uma legitimidade da manutenção da

13 A retomada citada é a mesma que me referi, quando a funcionária da FUNAI me alertou para não ir a campo, naquele período, por causa do clima de tensão instaurado com a retomada.

14 Como venho apresentando, o clima de tensão, vivenciado pelos meus interlocutores é algo cotidiano, mas, determinados acontecimentos, como novas retomadas, ou atentados aos acampamentos Guarani e Kaiowá, parecem intensificar a tensão e o conflito.

15http://www.folhadedourados.com.br/noticias/dourados/indiosocupamsitioedeixaproprietariaassustada 16 Seguem alguns títulos de notícias que circularam na época:

- PF investiga conflito indígena em Dourados – Jornal o Progresso

http://www.progresso.com.br/policia/pfinvestigaconflitoindigenaemdourados

- Clima é tenso em área invadida por índios e polícia teme conflito – Dourados News

http://www.douradosnews.com.br/dourados/climaetensoemareainvadidaporindiosepoliciatemeconflito

- Tensão toma conta em região invadida por famílias indígenas – Dourados News

http://www.douradosnews.com.br/dourados/tensaotomacontadeareainvadidaporindigenasepoliciaeacionada ateolocal

17 Indígena é baleado em área de conflito em Dourados - MS Notícias http://www.msnoticias.com.br/editorias/interior-mato-grosso-sul/indigena-e-baleado-em-area-de-conflito-em-dourados/66218/

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terra por parte dos proprietários, alvo das retomadas, pelo trabalho realizado na propriedade, sendo muitas vezes, fonte de renda. Esse discurso, ao mesmo tempo é uma forma de deslegitimar as ocupações e os acampamentos indígenas, vistos pela maioria como de “desocupados”. Ao discutir o conceito de terra, tendo como pano de fundo os sem-terra, Borges (2014) mostra exatamente, como a terra é fundamentalmente pensada enquanto propriedade privada, fortalecida pelo discurso da produtividade e, ainda acrescenta, que no Brasil, como em outros países, está concepção de terra é intimamente ligada ao passado colonial, e expressa a relação de poder entre os que tem a propriedade de um lado, e por outro, os que tem a posse ou, na maioria dos casos, nem isso. Por outro lado, pontua como, no cenário brasileiro, as reivindicações indígenas aparecem na contramão do discurso da propriedade, chamando a atenção para outros conceitos, outras formas de pensar e agir referente a terra.

Em momentos de intensos conflitos como esses, não é difícil que antropólogos que já realizaram pesquisas ou laudos antropológicos entre os Guarani e Kaiowá, sejam identificados, pelo senso comum, como articuladores e incitadores das retomadas no MS. Como vimos recentemente pela CPI do INCRA e da FUNAI 18, e a PEC 215, junto com o marco temporal19, muitas vezes, esse senso comum, tomado como base de um processo jurídico, tem implicações e afeta a vida dessas pessoas, que por sua vez, também se veem vivenciando um clima de insegurança constante e, às vezes, de ameaças, como é o caso de colegas que residem no estado de MS20.

Para os Guarani e Kaiowá a violência marca seu o cotidiano. Seja através de ameaças, atentados, assassinatos, ou aparece de maneira não tão direta, como o problema do alcoolismo, o preconceito que os indígenas enfrentam nas idas as cidades, o impedimento de fazer roças no Tekoha 1, propostas de acordos para remover os índios da área de retomada, a construção de um muro numa área de ocupação indígena, ou o

18 Em 30 de março de 2017 o relatório da CPI foi concluído e pediu o indiciamento de mais de 60 pessoas entre lideranças indígenas e quilombolas, antropólogos e servidores, incluído o antropólogo Levi Marques Pereira.

19 A PEC 215 prevê alterar os procedimentos para demarcação de terras indígenas no Brasil. Entre as modificações propostas está a implantação da tese do marco temporal, como principal critério para demarcação. Segundo a tese passariam a ter direito a terras apenas os povos indígenas que as estivessem ocupando em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição de 1988, desconsiderando o processo histórico de esbulho do território indígena pela qual passou povos como os Guarani e Kaiowá. 20 No dia 17 de março de 2016, tomei conhecimento de uma notícia que circulou no site do MPF. Nela o MPF requisitava que a Polícia Federal abrisse inquérito para averiguar ameaças de fazendeiros ao antropólogo Lévi Marques Pereira, segundo a notícia, os fazendeiros acreditavam que o antropólogo era o responsável pelo laudo das áreas que haviam sido ocupadas. Consultar notícia em:

http://www.mpf.mp.br/ms/sala-de-imprensa/noticias-ms/mpf-ms-requisita-a-pf-investigacao-sobre-ameaca-a-antropologo-em-dourados

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próprio discurso do avanço da modernidade onde o crescimento da agroindústria e o crescimento urbano são expoentes. A violência mais explícita ou mais velada tem, como denominador comum, efeitos devastadores na vida dos meus interlocutores.

Um caso, que exemplifica o que estou querendo dizer, foi a situação recente pela qual passou o Tekoha 1. O Tekoha 1 localiza-se na região metropolitana de Dourados, nos limites da cidade e com o avanço urbano vem sofrendo com a especulação imobiliária21. Em junho de 2016 tomei conhecimento de uma proposta feita a liderança da área. Na ocasião uma “antropóloga”, que não se tinha informações de onde vinha, havia visitado o acampamento e durante uma reunião com a liderança propôs que a comunidade do Tekoha 1 deixasse a área que ocupam há mais de 40 anos e em troca eles ganhariam um outro lugar, onde conforme ela prometia teriam casas, poços artesianos, energia elétrica, entre outras promessas. A liderança chamou esse acordo de "a trocação". Mas tarde, ficamos sabendo, que essa proposta veio por parte da Incorporadora Colombo - dona de parte do território, reivindicado pelo Tekoha 1- que, com esse acordo, poderia dar continuidade ao loteamento João Carneiro Alves, loteamento esse que se sobrepõe a área do Tekoha 1 e, por esse motivo, teve seu avanço barrado por recomendação do MPF. A proposta passou a ser investigada pelo MPF e acabou não sendo aceita pela comunidade. No entanto, o que gostaria de destacar é que a palavra, especificamente sob a forma de promessa, da ‘trocação’ teve efeitos no acampamento, desequilibrando a comunidade do Tekoha 1, uma vez que nem todos os moradores queriam aderir ao acordo. Assim, essa proposta é um caso concreto que reflete a disputa pelos espaços de vida e que tem como efeitos o conflito, a violência e a precariedade.

Abrindo caminhos

Nem todas as questões abordadas nesse trabalho foram desenhadas durante o processo do trabalho de campo, de estar no local, existem aquelas que se tornaram mais claras e relevantes no processo da escrita pois, como Strathern (2014) salientou, a escrita cria um segundo campo, que do mesmo modo que o trabalho de campo, também tem dinâmicas e trajetórias próprias. A violência dos conflitos, por exemplo, não afetará por tanto, apenas o meu trabalho de campo, ele também afetou a própria escrita deste trabalho, finalizado num período de intensa crise política a nível nacional e num momento em que os direitos dos povos indígenas vêm sofrendo violentos ataques.

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Nessa conjuntura, faz-se cada vez mais necessário uma discussão ampla acerca do conflito vivenciado pelos grupos indígenas, entre eles os Guarani e Kaiowá no Mato Grosso do Sul que estão reivindicando novas demarcações de terra através das retomadas. Questão que envolve uma discussão sobre o contexto e a ameaça a direitos fundamentais dos povos indígenas. Ademais, ressalto que existiam poucas pesquisas antropológicas sobre acampamentos Guarani e Kaiowá, situação essa que vem mudando nos últimos dez anos, quando a literatura sobre esse grupo indígena vem aumentando. Meu trabalho vem integrar essa parcela de trabalhos recentes que busca abrir caminhos e trazer contribuições efetivas sobre as dinâmicas e os sentidos das áreas de retomadas Kaiowá e Guarani e, por conseguinte, colaborando para dar contornos concretos aos conflitos territoriais no MS.

Cabe agora apresentar a estrutura da dissertação. A dissertação foi dívida em três capítulos, o primeiro dele aborda, brevemente o contexto histórico de divisão e disputa territorial indígena no MS que permite situar o processo atual de reservamento das populações indígenas no estado, bem como o processo de reivindicação e ocupação de áreas consideradas tradicionais pelos povos Kaiowá e Guarani. Também é apresentado um levantamento atual dos acampamentos indígenas na região da Grande Dourados, baseado em bibliografias recentes que trataram sobre o tema e nos dados etnográficos.

O segundo capítulo trata especificamente da etnografia realizada nos Tekoha 1 e Tekoha 2, tendo como foco a organização social e a mobilidade nessas áreas, passando pelos conflitos e pelo espaço no interior das áreas de retomada como parte também daquilo que movimenta e produz vínculos e relações entre seus moradores, com a reserva, e com outras áreas de retomada.

O terceiro capítulo, tem como objetivo refletir sobre as áreas de retomadas como uma possibilidade de retorno ao tekoha, que se soma à possibilidade de fortalecimento das mobilidades tradicionais Guarani e Kaiowá bem como uma das maneiras desses povos lidarem com o que eles consideram um excesso de mistura (com brancos e índios de outras etnias) apontada pelos Kaiowá como um dos maiores problemas dentro das reservas, e um dos fatores que favorece a desarticulação da parentela. Sendo assim, esse capítulo é dedicado a pensar sobre os sentidos que as áreas de retomadas têm para os Kaiowá e Guarani.

Por fim é pertinente explicar, porque, na maior parte desse trabalho utilizo Kaiowá e Guarani, ou apenas Kaiowá. Primeiro, as duas áreas lócus da pesquisa etnográfica eram de maioria Kaiowá. O segundo motivo e, que complementa o primeiro,

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é que durante meu campo, em diferentes momentos, tanto os Kaiowá como os Guarani apresentavam distinções entre eles, seja na forma de cantar, no jeito de ser como também na utilização de algumas expressões linguísticas. Dessa forma, achei que não fazia sentido, inclusive para meus interlocutores, usar a designação Guarani-Kaiowá, que passa a impressão de que eles sejam o mesmo povo e não como povos que pertencem à mesma família linguística Tupi-Guarani. Porém, é importante ressaltar que tanto para os indígenas, como para alguns pesquisadores é relevante a utilização do termo Guarani e Kaiowá para assinalar que são aliados políticos, por esse motivo, quando me referir ao movimento de retomada no sentido mais geral, optei por usar o termo Guarani e Kaiowá.

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Capítulo I

A espiral das retomadas:

contextualizando os acampamentos indígenas na região sul de Mato

Grosso do Sul.

Embora meu lócus empírico sejam dois acampamentos indígenas, as questões que os envolvem são mais amplas, pois, como bem pontuou Joan Vincent (1977) os limites da observação e os limites da investigação são distintos. Buscando apresentar as questões mais amplas, esse capítulo se debruça na descrição das condições históricas de divisão e disputa territorial indígena no MS que permite situar o processo atual de reservamento das populações indígenas no sul do MS, bem como o processo de reivindicação e ocupação de áreas consideradas tradicionais pelos povos Kaiowá e Guarani. Nesse sentido, a dimensão histórica é abordada aqui, porque, compreendo as retomadas indígenas fazendo parte de um quadro mais amplo, tanto histórico, como social. Juntamente com a problematização, pretende-se apresentar um levantamento atual dos acampamentos indígenas na região da Grande Dourados, baseado em bibliografias recentes que trataram sobre o tema.

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O estado de Mato Grosso do Sul – MS concentra 56,3% da população indígena da região Centro Oeste do Brasil, são 51.801 indivíduos22, 37% dessa população vive em áreas de reservas demarcadas pelo o Serviço de Proteção aos Índios – SPI, entre 1915 e 192823. Somente na Reserva Indígena de Dourados vive 18% dessa população, numa área de 3.539 hectares, sendo a reserva com maior densidade populacional do estado. A população Kaiowá, da família linguística Tupi-Guarani, no MS é a segunda maior do país: são 43. 401 indivíduos, garantindo à região Centro Oeste o terceiro lugar com a maior concentração de indígenas, segundo informações da FUNAI24 e do Censo Demográfico de 2010. Ainda, segundos dados do IBGE de 2010, a população autodeclarada indígena vivendo na área urbana no MS é de 2.803 indivíduos, só em

22 Para Cavalcante (2013) o número da população Guarani e Kaiowá pode chegar a cerca de 60.000 indivíduos, por levar em consideração que, boa parte dos índios que vivem nos centros urbanos, não foram contabilizados.

23 Apesar da reserva englobar a categoria jurídica de Terra Indígena, isto é, uma terra demarcada, faço a distinção entre essas duas categorias, optando por usar reserva para mencionar as áreas criadas pelo SPI até 1928 no MS e que não levaram em consideração as especificidades de uma terra indígena, como as questões de reprodução física e cultural do grupo.

24 Disponível em: <http://www.funai.gov.br/index.php/indios-no-brasil/quem-sao?limitstart=0#>. Acesso em 01 de jun 2017.

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Dourados são 688. Também estima-se que 2.630 indígenas vivam em acampamentos no MS25.

Embora esses dados sejam expressivos para dar um panorama da situação atual dos Kaiowá e Guarani, eles não refletem, por si só os processos por trás dos números e o que eles representam para as pessoas de carne e osso. É na compreensão desses processos que me detenho a seguir.

1.1 O processo de esbulho das terras dos Guarani e Kaiowá no sul do

Mato Grosso do Sul

Os contatos com os Kaiowá e Guarani, por parte dos brancos26, no contexto da colonização, segundo fontes históricas, datam de meados do século XVII com a presença das reduções jesuíticas e de viajantes. No entanto, o processo histórico de esbulho do território Kaiowá e Guarani no sul do MS27 e o contato interétnico mais intensivo iniciaram no final do século XIX. Esse momento pode ser descrito por três diferentes e subsequentes fases.

A primeira delas é iniciada, após a Guerra do Paraguai (1864-1870)28, ainda no século XIX com a instalação da Companhia Matte Laranjeira em 1882, quando Thomaz Laranjeira29 conseguiu a concessão para explorar a erva mate, em terras brasileiras30. A Companhia se estabeleceu em território indígena e durante o tempo que realizou a atividade de extração e exportação da erva nativa se utilizou da mão de obra indígena (BRAND, 1997). O monopólio da Companhia Matte Laranjeira chegou a ter cinco milhões de hectares (CAVALCANTE 2013, 22) e atuou na região até 1943. A

25 Os dados apresentados acima constam no Censo Populacional do IBGE de 2010, na SESAI e na FUNAI. Para mais informações também consultar Cavalcante, 2013.

26 Branco é uma das categorias utilizadas pelos Guarani e Kaiowá (como por outros povos indígenas) para se referir aos não indígenas, embora em campo também tenha ouvido os termos como bahiano, paraguaio, maranhense para fazer essa distinção. O termo nativo Karaí também é usado para se referir aos não indígenas, mas ele, da mesma forma, pode ser usado para falar de índios de outras etnias. De modo geral, a categoria branco é utilizada com mais frequência, principalmente quando os indígenas falam dos fazendeiros. Essa categoria e seus diversos sentidos, mereceria um estudo específico e um investimento etnográfico e reflexão mais aprofundada inclusive, trazendo uma contextualização histórica, uma vez que contribui também para discutir temas como da mistura entre as sociedades indígenas, temática já tratada por uma ampla bibliografia da etnologia indígena. Me limito, neste trabalho a mobilizá-la conforme meus interlocutores a acionavam quando se tratava dos sentidos dados aos acampamentos.

27 Vale ressaltar que até 1978 só existia o estado do Mato Grosso. O estado de Mato Grosso do Sul foi desmembrado e oficializado em 1º de janeiro de 1979. Sem desconsiderar esse fato histórico, mas, com uma finalidade prática, nesse trabalho sempre será feita referência ao estado de MS.

28 A Guerra do Paraguai ou da Tríplice Aliança, também impactou a vida do Kaiowá e Guarani, pois grande parte das áreas onde se travou a guerra, ocorreram no território ocupado pelos indígenas, afetando principalmente a mobilidade desses povos.

29 Thomaz Laranjeira, também atuou na comissão de demarcação de fronteiras entre Brasil e Paraguai. 30 Do lado paraguaio, Thomaz Laranjeira já fazia a exploração dos ervais desde 1877.

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Companhia é apontada por vários autores por ter preservado as áreas sobre o seu domínio, visto seu caráter extrativista, garantindo que os Guarani e Kaiowá, nesse momento, não fossem expulsos e continuassem a viver em seus territórios. Em contrapartida, outro elemento unânime entre os pesquisadores, é quanto a exploração da mão de obra indígena, sendo muitas vezes caracterizado como um regime de escravidão ou semiescravidão, que acabou contribuindo para a desagregação social dessa população. A esse respeito Crespe escreveu:

Se a companhia teve pouco impacto sobre os territórios, o mesmo não pode ser afirmado no que se refere à mobilidade indígena. À época muitos homens saíram para trabalhar nos ervais, promovendo o deslocamento de muitas famílias, ou parte delas, para os acampamentos de trabalhadores da companhia (2015, 95).

Nesse mesmo sentindo, Chamorro (2015) afirma que uma das principais consequências da atuação da Companhia para os Kaiowá da região foi o fim do isolamento dessa população, uma vez que favoreceu o crescimento de centros populacionais - muitas pessoas vinham em busca de trabalho nos ervais. Os deslocamentos dos Kaiowá, é apontado pela autora como uma “mobilidade forçada, que dispersou as comunidades indígenas e perturbou as suas formas de produção, consumo e sociabilidades tradicionais” (2015, 122).

A segunda fase, faz referência ao período entre os anos de 1915 a 1928, quando o Serviço de Proteção ao Índio (doravante SPI) 31 criou oito reservas no sul de MS destinadas aos índios dos povos Guarani Kaiowá, Guarani Ñandeva (ambos da família linguística Tupi-Guarani) e Terena (pertencentes à família linguística Aruak). De 1915 a 1924 foram criadas as seguintes reservas: Benjamin Constant (1915), atualmente TI Amambaí; Francisco Horta (1917), TI Dourados e a reserva José Bonifácio (1924), TI Caarapó. Em 1928 foram criadas mais cinco reservas: TI Aldeia Limão Verde, no município de Amambaí; TI Pirajuy em Sete Quedas; Porto Lindo, hoje, TI Yvy-Katu, em Japorã; TI Sossoró em Tacuru e TI Takuapiry em Coronel Sapucaia. É flagrante mencionar que destas oito Terra Indígenas, apenas a Takuapiry, não teve sua área reduzida no processo de demarcação (Crespe, 2015: 112).

31 O Serviço de Proteção ao Índio (SPI), foi criado em 1910 pelo tenente-coronel Cândido Marino Rondon, visando não apenas a proteção dos povos indígenas, mas também a garantia do processo de integração dos índios. No início dos anos 1960, o SPI foi abalado por denúncias de corrupção e genocídio das populações indígenas. E em 1967 ele é extinto para dar lugar à recém-criada Fundação Nacional do Índio - FUNAI, órgão que perdura até os dias atuais.

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Figura 2. Reserva Indígenas criadas pelo SPI em MS entre 1924 e 1928. Fonte: MORAIS (2016, 48).

Segundo Souza Lima (2002) o SPI, se utilizava da forma de atuação de tradição sertanista, isto é, as populações indígenas, assim como ocorria no período colonial, foram atraídas e pacificadas – no período colonial, o processo de reservamento da população indígena contou com a ajuda das missões jesuíticas e com a catequização dessa população. Contudo, no tempo do SPI, a política sertanista apareceu também com o rótulo de proteção dessas populações, se veicula essa imagem ao mesmo tempo em que liberavam as terras indígenas para o “interesse nacional” e ocupação colonial. A criação dessas reservas são, portanto, reflexo de uma política indigenista que, tinha como objetivo a integração e a tutela dos povos indígenas, esses últimos usurpados de suas terras, sempre que havia interesses econômicos pelo território, com a finalidade de abrir novas fronteiras de colonização agrícola, como o caso do MS.

Com a criação das reservas, a população indígena no sul do MS sentiu o impacto da colonização. Diversas famílias destas etnias foram retiradas do seu território e “confinadas” nas reservas, como defendeu o historiador Antônio Brand (1993; 1997). As reservas se tratavam de pequenas unidades administrativas que não levavam em consideração a organização social dos diferentes grupos étnicos relacionados. Assim, esses espaços não apresentavam as condições necessárias para a reprodução física e cultural das sociedades em questão (PEREIRA, 2014; BARBOSA da SILVA, 2007; CRESPE, 2009). Segundo Barbosa da Silva, “o SPI territorializaria os indígenas,

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obrigando-os a residir em espaços restritos, com fronteiras fixas. Tal processo, obviamente tinha como corolário a liberação de terras para a colonização da região” (2007:46).

Anteriormente a isso, os Kaiowá nunca haviam vivido a experiência da reserva e nem concebiam a existência das fronteiras em seu território, estas fronteiras tomaram contornos concretos ao serem instituídas pelo órgão indigenista oficial e pelas cercas das fazendas. As oito reservas demarcadas no MS se localizavam perto de cidades e/ou vilarejos, mais uma estratégia que destinava aos Kaiowá o papel de mão de obra barata para agricultura e pecuária na região. Para Antônio Brand, o processo de esbulho das terras Kaiowá e a violência contra essa população indígena aconteceu com a omissão e a conveniência do SPI, que estava a serviço da terra produtiva (1993:68).

Outra estratégia praticada pelo SPI no estado de MS foi a de inserir alguns grupos de indígenas da etnia Terena, principalmente na reserva de Dourados, para acelerar o processo de integração dos Kaiowá à sociedade, pois os Terena eram vistos pelos indigenistas, que instituíam as políticas de Estado, como um povo pacificado e mais “civilizado”.

Os anos de 1930 é marcado pela chegada de Getúlio Vargas ao poder, depois da Revolução de 30. Durante o Estado Novo, entre os projetos de maior destaque desse período está o da política intitulada Marcha para o Oeste. O governo, neste momento, volta seu interesse aos interiores do país, principalmente a região central, com o intuito de povoar, colonizar e aumentar as fronteiras agrícolas no interior. Essa política atingiu diferentes populações indígenas, como os Kaiowá no MS, dado que, esses povos, na maior parte das vezes, eram obrigados a deixar suas terras, sendo levados para as áreas de reservas criadas pelo órgão indigenista oficial - SPI.

É nessa conjuntura que em 1948 é criada a Colônia Agrícola Nacional de Dourados (CAND). A CAND tinha como plano a instalação de colonos em pequenas propriedades estimulando a agricultura (BARBOSA da SILVA, 2007). Essa política representou um aumento demográfico na região da grande Dourados, principalmente nos anos 1950 com a chegada de migrantes vindos, principalmente, do Nordeste e nos anos 1960 e 1970, vindo do Sul do país. As áreas das colônias destinadas aos migrantes/colonos, foram implementadas em território indígena - embora isso não tenha sido levado em consideração pelo governo. Por isso, a terceira fase do processo de colonização do MS foi marcada pela chegada da CAND, que representou o aumento de fazendas na região e o avanço das atividades agropecuárias, agravando ainda mais a

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situação dos Kaiowá e Guarani, expulsos de suas terras e coagidos pelas cercas das fazendas.

Nos anos de 1970 o MS vive um grande período de desmatamento, reflexo do aumento das plantações de soja e cana-de-açúcar no estado, gerando um impacto ambiental com a consequente destruição dos restos de mata que ainda existiam nas fazendas. Muitas famílias indígenas conseguiram permanecer nestas áreas de mata, ou escondidos do fazendeiro, ou mantendo com ele vínculos de trabalho. Esses índios ficaram conhecidos na literatura como índios de “fundos de fazenda” (BRAND, 1997; PEREIRA, 2004; CRESPE, 2009). Essas áreas eram habitadas por índios que além de resistirem ao modelo de aldeamento, permaneciam nesses espaços de mata em troca de trabalho, como uma maneira de não se afastar de seus locais de origens (BRAND, 1997; PEREIRA, 2004; CRESPE, 2009 e 2015). Circular pelas mediações do seu antigo território era uma possibilidade de manter viva a esperança de retorno ao seu lugar. Acontece que, o desmatamento quase total do sul do MS completou o processo de “expulsão dos índios das suas terras tradicionais, intensificando o confinamento nas reservas” (BRAND, 1997:88).

Observa-se, que as transformações do modo de vida dos Kaiowá estão intimamente relacionadas com o processo de colonização do sul do MS, bem como com o projeto indigenista, ambos adotados num determinado contexto, amparados por um discurso teórico e por estratégias políticas que deram sustentação para tais ações. As retomadas e os acampamentos indígenas não podem ser compreendidos fora dessa lógica, pois eles são reflexos desses mesmos processos (CRESPE e CORRADO, 2012).

1.2 A vida na aldeia antiga

A situação de contato e o interesse pela “terra produtiva” atingiram os Kaiowá e Guarani promovendo alterações nas suas formas de vida, principalmente no que se refere a sua territorialidade32. Além do mais, não foram apenas as fronteiras que as reservas instituíram na vida desses povos. O processo, quase sempre violento de ida para esses espaços, causou a dispersão de famílias e a dissolução de alianças. Novos padrões de ocupação, convivências e o e surgimento de novos tipos de lideranças foram instituídos.

Cardoso de Oliveira (1968), ao estudar o “processo de assimilação” entre os Terena, identifica a constituição das reservas como potentes para desencadear o que

Referências

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