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Identidades de fronteiras: escrituras híbridas

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Academic year: 2020

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E S C R I T U R A S HÍBRIDAS

Maria Nazareth Soares F O N S E C A1

• RESUMO: O trabalho propõe uma discussão sobre imagens da América Latina, construídas por movimentos de nomeação da identidade do continente, e procura esta-belecer a aproximação entre o real maravilhoso, de Alejo Carpentier, as sonoridades

criollas da poesia de Nicolas Guillen e a pintura de Wifredo Lam. Essas diferentes

visões da cultura latino-americana são associadas às metamorfoses de Caliban, visto como símbolo da "nossa América mestiça", e à energia de Exu, o orixá das encruzilha-das. Todos esses movimentos são considerados processos de r e s i s t ê n c i a à descaracterização, fortalecidos na era das grandes redes de contato do mundo globalizado.

• PALAVRAS-CHAVE: Identidade cultural; mestiçagem cultural; metamorfose; resistência.

Mediante os cruzamentos entre sincretismos, dialógica e polifonia, a identidade nunca é idêntica a si própria. Ela varia constantemente: a viagem é a grande metáfora da identidade, e ao seu fim não voltamos à forma anterior.

(Massimo Canevacci)

Uma das questões que têm freqüentado os debates dos Estudos Culturais ressalta a mudança de focalização dos estudos latino-americanos que se transferem dos chamados centros h e g e m ô n i c o s para a circulação em "novas avenidas crítico-deológicas", como bem o assinalou Mabel Moraria (1995). Novos mapas de investigação teórica se traçam, procurando alcançar territórios que, de algum modo, pareciam ter ficado à deriva enquanto se discutiam, do exterior, imagens do continente pensado sempre como uma totalidade. Uma das marcas desses novos estudos seria a preocupação com as chamadas identidades localizadas ainda que j á integradas à consciência de que, cada vez mais, nos situamos em encruzilhadas em que o local se confronta com o geral.

Nesse processo de afirmação de movimentos redefinidos pela globalização, de insistência nos aspectos que configuraram os fenômenos de (des)territorialidade, parece ser pertinente voltar a refletir sobre este processo mesmo de pensar o continente, reafirmando suas particularidades. Talvez assim se possa compreender que muitos dos valores defendidos como padrão de uma especificidade latino-americana continuam a circular, fundando, no entanto, uma nova maneira de estar no mundo. D a í que o mesmo movimento de mundialização, que elimina fronteiras e alarga territórios antes bem demarcados, não consegue evitar que questões localizadas exponham a urgência de uma reestruturação territorial e apontem as fraturas que se e x p õ e m no paradigma da era atual. Nesse sentido, atento às complexidades do novo modelo seletivo de 1 Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/Minas Gerais.

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incorporação/exclusão de áreas, Pablo Ciccollela chama a atenção para o fato de que o fenômeno da globalização deve ser pensado como plural, ainda que aspire a construir redes mundializadas:

...este proceso de transformación acelerada (globalización-modernización via integración) no es homogéneo, sino que estaria produciendo una nueva fragmentación social-territorial, donde aparecen regiones, sectores sociales

y sectores productivos que se modernizan, que se incorporan al sistema mundializado de relaciones económicas y culturales, que en términos reales se integran con economias vecinas; y regiones, sectores sociales y productivos que quedan excluídos de este processo. (Ciccolella, 1997, p.60)

Desse m o d o , o mesmo m o v i m e n t o que v i s a a e d i f i c a r a nation-ness g l o b a l i z a d a n ã o pode i m p e d i r que as identidades emergentes e os novos m o v i m e n t o s de cunho social i n t e n s i f i q u e m os c o n f l i t o s do m u n d o em que v i v e m o s , i m p u l s i o n a n d o processos de r e d e f i n i ç ã o de fronteiras e uma n o v a t e r r i t o r i a l i d a d e para os f e n ô m e n o s s ó c i o c u l t u r a i s . E certo que as m a c r o -identidades, de alguma forma, e s g a r ç a m - s e nas malhas da g l o b a l i z a ç ã o , mesmo que o f i m das barreiras ao l i v r e c o m é r c i o n ã o m o d i f i q u e o c a r á t e r n a c i o n a l da propriedade das empresas transnacionais ( L a h o r g u e , 1997). Paralelamente, u m m o v i m e n t o de a f i r m a ç ã o de m i c r o identidades se a f i r m a em busca da r e f u n c i o n a l i z a ç ã o de lugares e da r e d e f i n i ç ã o de e s p a ç o s . Sobre esse processo, é interessante l e m b r a r que M i c h e l F o u c a u l t , j á na d é c a d a de o i t e n t a , r e f e r i a -se às heterotipias, aos e s p a ç o s h e t e r o g ê n e o s de l o c a l i z a ç õ e s e r e l a ç õ e s , e d e s t a c a v a o p a p e l dos m i c r o e s p a ç o s , v i s t o s c o m o u m a e s p a c i a l i d a d e efetivamente v i v i d a e socialmente criada, na c o n c r e t i z a ç ã o de mecanismos de v i g i l â n c i a e poder d i s c i p l i n a r ( A p u d Soya, 1993). O u mesmo perceber os movimentos que se a f i r m a m em r e g i õ e s f r o n t e i r i ç a s c o m o as zonas de c o m é r c i o entre duas margens, duas r e g i õ e s , dois p a í s e s ou nos processos de r e v i t a l i z a ç ã o de movimentos de f e i ç ã o i d e n t i t á r i a que se c o n s t r ó e m no l i m i a r entre o p r i v a d o e o p ú b l i c o . E o caso bem p a r t i c u l a r da a f l u ê n c i a de q u e s t õ e s localizadas no e s p a ç o dos media onde se e x i b e m os problemas particulares, sem nenhuma p r o f u n d i d a d e , sem nenhuma r e f l e x ã o . Somos cada vez mais p r i s i o n e i r o s dos mecanismos da v e l o c i d a d e que nos impede de d i s t i n g u i r o que é e o que n ã o é. N a tela de T V ou na p á g i n a do j o r n a l as imagens cada vez mais p e r d e m a i n t e n s i d a d e , p o i s n ã o p r o v o c a m n e m e s p a n t o n e m g r a n d e i n t e r e s s e (Sarlo,1997).

E com a i n t e n ç ã o de refletir sobre a diferença cultural mais do que reconhecer a diversidade do continente latino-americano que o presente trabalho procura retomar alguns textos considerados fundantes da identidade do continente, buscando inseri-los em percursos mais amplos, abertos por novos i t i n e r á r i o s t r a ç a d o s na é p o c a atual. A proposta é mapear algumas p r o d u ç õ e s - t e ó r i c a s ,

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artísticas, culturais - significativas em momentos decisivos do processo de busca da identidade latino-americana e c o m elas refletir sobre as novas identidades culturais que se configuram por encontros, choques e t r a n s i ç õ e s . C o m alguns textos revisitam-se pontos de vista e e s p a ç o s em t r a n s f o r m a ç ã o e indaga-se sobre processos de d e s c a r a c t e r i z a ç ã o / c a r a t e r i z a ç ã o de novas identidades que se efetivam no mundo atual, quando se acirram os conflitos i n e v i t á v e i s no aparato dos Estados-nacionais. A o se repensar a d i f e r e n ç a cultural pelo v i é s dos atuais processos de t r a n s f o r m a ç ã o dos e s p a ç o s , toma-se a impureza como significante de entrecruzamentos e inter-relacionamentos que e x p l i c i t a m os atuais " e s p a ç o s vivenciais de h i b r i d a ç ã o cultural" bem caracterizados por Ciccolella, quando reflete sobre as m u t a ç õ e s da economia capitalista tal como se mostra no momento atual (Ciccolella, 1997, p.62).

U m traço dessa impureza, todavia, j á se mostra na pintura do cubano Wifredo Lam, no entrecruzamento das h e r a n ç a s advindas de sua identidade "criolla" e de sua f o r m a ç ã o européia, perceptível, em muitos de seus quadros, no forte apelo à linguagem surrealista. Nessa encruzilhada é p o s s í v e l perceberem-se diversos elementos da ritualidade atávica de a s c e n d ê n c i a africana, vivida na pequena aldeia cubana onde nascera o pintor, sob a tutela de curanderos y sacerdotes de la santería, para compor outros diálogos, novas transgressões. Deixando aflorar, em sua pintura, o componente africano, este ganha outra d i m e n s ã o e ultrapassa tanto os estratos populares negros cubanos, como a ruptura surrealista de que f r e q ü e n t e m e n t e se vale. E sobretudo por explorar as metamorfoses e os hibridismos t ã o peculiares à cultura latino-americana que os quadros de L a m criam, como observa Fernando Ortiz, "un nuevo g é n e r o " , o da "naturaleza viva", muito claro em criações como " L a Jungla"(fig.01), com seus seres h í b r i d o s nos quais a s e p a r a ç ã o entre o vegetal, o animal e o humano mostra-se dissolvida, deixando aflorar o repertório das tradições culturais de o r i g e m africana. L a m transfere para seus quadros a r e t ó r i c a da proliferação típica do real maravilhoso, visto por Alejo Carpentier como u m recurso estético capaz de reproduzir a especificidade da cultura americana e de salientar os seus contrastes com relação à Europa. O conceito em Carpentier procura identificar a profusão de elementos díspares, p r ó p r i o s de culturas h e t e r o g ê n e a s , e o potencial de prodígios que se fazem refração à lógica cartesiana. Essas mesclas podem ser certamente encontradas em v á r i o s quadros de L a m , quando m e r g u l h a m na diversidade americana e dissolvem os traços rígidos, inadequados à figuração do real maravilhoso, para apreender as p u l s a ç õ e s da natureza, vista como u m e s p a ç o de concretudes místicas e m i t o l ó g i c a s . Por essa via muitos quadros do pintor cubano fazem-se "narrativas da identidade híbrida americana" porque neles estão em interação - n ã o distanciados mas interrelacionados - diferentes significantes culturais.

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Figura 1. Wifredo Lam. La jungia, 1942-1944 (detalhe).

U m contraponto aos painéis híbridos de L a m poderia ser buscado no " r é a l i s m e merveilleux" haitiano, visto por Jacques Stéphen Aléxis como uma estética intuitiva, assumida pelo povo para apreender a realidade, filtrada j á por t e n d ê n c i a s p r ó p r i a s às culturas americanas. A i n d a que essas t e n d ê n c i a s apontem para a i n t e n ç ã o de (re)nomear e s p a ç o s do Novo Mundo a partir da diferença que os constitui, cada uma delas enfatiza significantes múltiplos e feições plurais, pois o ideologema buscado é sem d ú v i d a o da m e s t i ç a g e m .

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O mesmo ideologema configuraria a " e x p r e s s ã o americana", de Lezama Lima, principalmente quando o teórico cubano acentua, no barroco americano, as feições índia e n e g r ó i d e , vendo-as enquanto reterritorialização de traços culturais trazidos pelos colonizadores ou como uma apetência diabólico-simbólica, conforme expressão de Irlemar Chiampi (1998, p.7). T a m b é m as sonoras criações da poesia afro-cubana de Nicolas

Guillen,

evidentes em poemas de Motivos de son (1930) e em outros de

Sóngoro cosongo (1931) feitos com a recolha de elementos do substrato africano j á

transculturados na ilha de Cuba, para explorar as potencialidades sonoras da língua oral. Vejam-se os versos de "Negro b e m b ó n " : "Po q u é te pone tan brabo,/ cuando te disen negro bembón,/si tiene la boa santa,/negro b e n b ó n " e outros construídos com a apropriação de ritmos e sonoridades próprios às camadas populares em Cuba, para ressaltar o legado musical advindo das t r a d i ç õ e s africanas, em processo de t r a n s f o r m a ç ã o , todavia. Por isso seus "versos mulatos" produzem-se com os significantes que entram na c o m p o s i ç ã o étnica de Cuba, pensada j á como m e t o n í m i a da A m é r i c a mestiça, da "nuestra América mestiza", como bem denominou José Marti, para acentuar as transformações, as m u t a ç õ e s culturais híbridas do continente.

Uma discussão mais recente da m e s t i ç a g e m cultural foi encaminhada por José Fernandes Retamar, quando retoma a figura do Caliban, criada por Shakespeare para nomear o escravo selvagem e deformado em The Tempest (1611). Essa figura disforme, em diversas releituras da peça, passa a simbolizar o mundo americano e, principalmente, os movimentos em defesa de traços de sua diferença cultural. O corpo deformado de Caliban, em criações de autores como Renan, {Caliban, 1878), Jean G u é h e n n o ,

{Caliban habla, de 1928), ou na identificação, feita pelo argentino Anibal Ponce, de

Caliban com as massas sofridas do continente latino-americano, transita entre versões que degradam ou supervalorizam a diferença, pensando-a sempre em c o m p a r a ç ã o com a Europa.

É importante, nesse sentido, rever, j á sem as paixões políticas que marcaram a sua p u b l i c a ç ã o , o texto Psychologie de la colonisation, de Octave Mannoni, escrito em 1950. Nessa obra, Mannoni salienta o que chama de disposições neuróticas

inconscientes que induzem o dependente a se adequar à imagem que dele faz o

opressor. A o cunhar a expressão "Complexo de P r ó s p e r o " e nomear com ela o desejo do dominado de se submeter ao poder do dominador, Mannoni acaba por patologicizar as relações colonizador/colonizado e alocar, no colonizado, o que poderia ser definido como um g é r m e n de inferioridade. Essa visão determinista é r e c h a ç a d a por Frantz Fanon no célebre " D u prétendu complexe de d é p e n d a n c e du c o l o n i s é " (1952) e t a m b é m , de maneira indireta, pela reflexão atual de H o m i Bhabha (1990), quando explicita os processos de p r o d u ç ã o do discurso colonial e os aparatos que legitimam esse discurso, acentuando o caráter de recusa de diferenças raciais/culturais/históricas desse discurso.

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Noutra direção, fortalecendo-se a identificação da mestiçagem cultural pelos traços de Caliban, o livro Los placeres dei exílio, de 1960, de George Lamming, destaca alguns movimentos de afirmação da identidade calibanesca da América. O traçado da identidade americana pelas feições de Caliban assume os pressupostos da negritude com a peça Une

tempête; adaptationpour un théâtre nègre, de A i m ê Césaire, escrita em 1969, a qual traz

para a cena a figura de um Caliban negro e insere, na história criada por Shakespeare, a figura de Exu, atribuindo a esse orixá a energia advinda dos negros marrons, que constmíram com seus atos uma forma de resistência à opressão colonial, na história das Antilhas francesas. Essa energia própria de um Caliban-Exu pode ser percebida no texto de José Fernandez Retamar, "Caliban", publicado na Revista Casa de las Américas, de 1971. Retomando diversos movimentos de afirmação da identidade do continente, Retamar reafirma com a figura de Caliban as expressões culturais que expressam modos de ser do continente e, ao mesmo tempo, faz da personagem emblema da transgressão que desloca o ato de Próspero - que deu a palavra e um nome a Caliban - e o silenciamento imposto à expressão natural do escravo. Assim Caliban, como j á apontaram vários críticos, falou antes mesmo de ganhar de Próspero o direito à palavra pois sempre se mostrou resistente ao controle que o dominador lhe impôs.

Pode-se dizer, portanto, que em todos esses textos onde se discute a q u e s t ã o identitária tal como se mostra em diferentes reflexões produzidas na A m é r i c a Latina, delineia-se j á uma visão em que limites e fronteiras mostram-se e s g a r ç a d o s por significantes de culturas c o m p ó s i t a s , detalhadas em mosaico. Tomados como indicadores de transgressão, ainda que se quisessem fixados numa tradição, viabilizam interações e ressemantizam traçados de uma ordem consolidada em pontos fixos. A

poética da Relação (1990), de Edouard Glissant, da Martinica, retoma esses pontos

numa construção em rede, rizomática, para aludir às interrelações culturais. A metáfora do rizoma, em seu pensamento minimiza a idéia de enraizamento porque acentua os deslocamentos em direção ao outro, as ligações, os contatos intra e interculturais: "É

com a imagem do rizoma que se pode descrever a identidade, que não se relaciona com raiz, mas com a relação" (Glissant, 1990, p.31).

Muitos dos textos referidos até aqui e que de algum modo foram entendidos apenas enquanto valorização das origens culturais do continente americano podem ser relidos a partir de uma abordagem mais propícia à interlocução, à percepção de identidades de fronteiras que circunscrevem uma espacialidade multilingue, multirracial, multi-histórica. Essa intenção fica evidente no romance Texaco (1992), do martinicano Patrick Chamoiseau, quando procura apreender as manifestações culturais como um sistema em rede, em que vários pontos indiciam o trânsito, os deslizamentos. É interessante perceberem-se os deslocamentos como marcadores da "sintaxe créole" do romance, e como desconstrução dos pontos característicos dos sistemas de compartimentação herdados do colonialismo. Por outro lado, mescladas são t a m b é m as expressões de alguns remanescentes de quilombos, no Brasil, em que a tradição, recuperada por rituais que procuram reestabelecer

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a ordem dos ancestrais, é t a m b é m atravessada por injunções do mundo atual que impõe às consagrações do grupo uma coreografia de espetáculo para propiciar o consumo esperado pelos turistas. Esses movimentos inter-relacionais são percebidos por Nestor Canclini (1996) como próprios das culturas híbridas, nas quais a "a identidade, mesmo

em amplos setores populares, é poliglota, multi-ética, migrante, feita de elementos mesclados de várias culturas" (p.142).

Talvez por isso seja pertinente retomar alguns dos movimentos aqui nomeados para apreendê-los em novas formas de interação produzidas pelo mundo globalizado, nas quais Caliban, em transformação constante, expõe uma identidade mutante que corporifica esforços de manutenção de alianças de grupos: Caliban transmudando-se em Exu, metaforiza a força que resiste à completa descaracterização. Muito dessa energia de Exu traduz esforços de m a n u t e n ç ã o da identidade de grupo e persiste em várias comunidades de negros, emergentes quilombos contemporâneos, que, no Brasil, v ê m sendo estudados por pesquisadores brasileiros e estrangeiros empenhados em melhor conhecer os processos de transmutação cultural aqui desenvolvidos. Sirva de referência a pesquisa intensa realizada na comunidade dos Arturos, de Minas Gerais, definida pelos estudiosos Edimilson de Almeida Pereira e Núbia Pereira de Magalhães Gomes como

aqueles que resistem cultivando o legado dos antecessores (1988, p.13), para n ã o

perderem inteiramente a tradição. Os estudiosos, na introdução do livro que dissemina a longa pesquisa realizada por eles, chamam a atenção para a dupla condição dos habitantes da Comunidades dos Arturos que, sendo mineiros e brasileiros, vão se transformando em assalariados, pois muitos j á trabalham nas indústrias da região de Contagem, na grande Belo Horizonte, em Minas Gerais. Os habitantes da Comunidade esforçam-se por manter viva "a moral ligada aos interesses do grupo familiar" (p.13), sem acreditar, todavia que possam se manter imunes às assimilações e transformações. Algumas tradições cultivadas por essa Comunidade, como o ritual de capina ou o João do Mato, a celebração do Camdombe , a Libertação, e a festa de Nossa Senhora do Rosário são adaptadas aos tempos novos que forçam a abertura a inovações e transformações. Mesmo a presença constante entre eles de visitantes e pesquisadores expõe as tradições ao risco de se transformarem em e s p e t á c u l o para os consumidores que afluem à comunidade, desconhecendo os mandamentos do sagrado que aí se ritualiza.

E possível pensar esta força que impulsiona os movimentos de resistência à descaracterização como integrada aos movimentos de Exu, tomado aqui como um princípio dinâmico da tensão que caracteriza os modos de inserção da herança africana no continente latino-americano e particularmente no Brasil, mesmo quando acuada por m u d a n ç a s i n e v i t á v e i s e vivendo de forma aguda a t e n s ã o entre p r e s e r v a ç ã o e transformação. A esse movimento de transmutação se refere o antropólogo Edimilson de Almeida Pereira (1998), quando analisa as transformações impostas às comunidades tradicionais como a dos Arturos, em Minas Gerais, para salientar o que nelas se mostra como um quadro de inter-relações culturais, como mecanismos que compatibilizam a vivência do tradicional com os hábitos ditado pela era do consumismo desenfreado.

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É interessante observar que por essas rotas migrantes E x u reassume as metamorfoses, p e r c e p t í v e i s nas f i g u r a ç õ e s de plantas e animais em quadros de W i f r e d o L a m ou mesmo nas linhas retas de esculturas de E m a n o e l A r a ú j o que, ao relerem o barroco, traduzem a i n s p i r a ç ã o africana da c u l t u r a b r a s i l e i r a ( f i g . 2 ) . E o horror vacui, t ã o presente nos romances de Carpentier, e x p õ e - s e nos o r a t ó r i o s de Ronaldo Rego quando r o m p e m c o m a t r a d i ç ã o c a t ó l i c a para registrar a p r e s e n ç a dos deuses do p a n t e ã o africano na c u l t u r a do p a í s ( f i g . 3 ) . E nos detalhes da l i n g u a g e m p l á s t i c a dos anjos negros de M a u r í n i o A r a ú j o ( f i g . 4 ) , herdeiros de Alejadinho e de M a n u e l da Costa A t a í d e , e t a m b é m imersos na realidade p l u r i é t n i c a do B r a s i l .

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Todas essas formas de t r a n s g r e s s õ e s j á prenunciadas nos versos negros de

Guillen,

nos quadros de L a m , na t e n s ã o entre o real maravilhoso de Carpentier e o

devir " p l u t ô n i c o " de Lezama L i m a , e mais recentemente nos i n t e r c â m b i o s e h i b r i d a ç õ e s característicos dos tempos de m u n d i a l i z a ç ã o cultural, s ã o e x p r e s s õ e s calibanescas que, assumindo a energia de E x u , funcionam como m e t á f o r a s da "encruzilhada semiótica das culturas negras nas A m é r i c a s " (Martins, 1995, p.56).

Torna-se necessário considerar que a r e c u p e r a ç ã o de textos e m a n i f e s t a ç õ e s que expressam o desejo de definição da identidade pluriétnica do continente latino-americano pode fazer a v a n ç a r a reflexão sobre os processos de t r a n s c u l t u r a ç ã o , de c r i o u l i z a ç ã o - c o m o defendem os t e ó r i c o s das A n t i l h a s - e descrever uma espacialidade de fronteiras p r o v i s ó r i a s , flutuantes, que intenta recontar outros processos de significação, uma história que ficou soterrada pela p r e p o n d e r â n c i a dos nobres relatos de culturas pensadas como uma totalidade.

Essa indagação, ao se situar no processo atual de novas configurações territoriais, nos processos de circulação dos bens simbólicos vistos como mercadoria com p r e ç o dado pelo mercado, p o d e r á nos informar sobre os modos como se reinstala a q u e s t ã o da identidade em culturas que t ê m de enfrentar a precariedade de suas fronteiras e as t r a n s f o r m a ç õ e s inevitáveis de seus valores e tradições.

Resta saber se essas reflexões que procuram fazer da impureza o significante das "feições dúcteis e m a l e á v e i s " das culturas e dos bens produzidos por elas, p o d e r ã o dialogar com os chamados discursos fundadores da identidade latino-americana e com eles repensar os modos como as feições localizadas integram-se aos novos cenários propostos e impostos pela globalização

FONSECA, M . N . S. F. L'Identités de frontières: écritures hybrides. Itinerários, Araraquara, n.15/16, p. 109-120,2000.

• RESUME: Cet article propose une discussion sur les images de l'Amérique Latine que les différentes manifestations de la quête d'identité du continent ont construites. On y essaie d'établir des rapports entre le réel merveilleux d'Alejo Carpentier, les sonorités créoles de la poésie de Nicolas Guillén et la peinture de Wifredo Lam. Ces visions de la culture de l'Amérique Latine sont associées aux métamorphoses de Caliban, symbole de "notre Amérique métisse" et à l'énergie de Exu, l'orishas des carrefours. Tous ces mouvements sont considérés des procès de résistance contre la perte d'identité surtout à l'époque de la mondialisation.

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Créditos das ilustrações

Figura 1 - La jungia - quadro de Wifredo L a m (Cuba). Figura 2 - Ritoexu - escultura de Emanoel Araújo (Brasil).

Figura 3 - Oratório - c o m p o s i ç ã o em madeira policromada de Ronaldo R ê g o (Brasil). Figura 4 - Anjos negros - esculturas em madeiras de Maurino Araújo (Brasil).

Imagem

Figura 1. Wifredo Lam. La jungia, 1942-1944 (detalhe).
Figura 2. Emanoel Araújo. Ritoexu, 1986.

Referências

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