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Traição ou tradição?: Trump, populismo e a Ordem Internacional em xeque

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Academic year: 2021

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FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS

CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL – CPDOC

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS

MESTRADO ACADÊMICO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS

TRAIÇÃO OU TRADIÇÃO? TRUMP, POPULISMO E A ORDEM INTERNACIONAL EM XEQUE

APRESENTADO POR

FELIPE AUGUSTO CHAGAS NACIF DE MORAES

PROFESSOR ORIENTADOR ACADÊMICO JAN OLIVER DELLA COSTA STUENKEL

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FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS

CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL – CPDOC

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS

MESTRADO ACADÊMICO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS

TRAIÇÃO OU TRADIÇÃO? TRUMP, POPULISMO E A ORDEM INTERNACIONAL EM XEQUE

APRESENTADO POR

FELIPE AUGUSTO CHAGAS NACIF DE MORAES

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FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS

CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL – CPDOC

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS

MESTRADO ACADÊMICO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS

TRAIÇÃO OU TRADIÇÃO? TRUMP, POPULISMO E A ORDEM INTERNACIONAL EM XEQUE

APRESENTADO POR

FELIPE AUGUSTO CHAGAS NACIF DE MORAES

Dissertação de Mestrado Acadêmico apresentada ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil – CPDOC como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em História, Política e Bens Culturais.

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Ficha catalográfica elaborada pelo Sistema de Bibliotecas/FGV

Moraes, Felipe Augusto Chagas Nacif de

Traição ou tradição? : Trump, populismo e a ordem internacional em xeque / Felipe Augusto Chagas Nacif de Moraes. – 2019.

166 f.

Dissertação (mestrado) – Escola de Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas, Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais. Orientador: Jan Oliver Della Costa Stuenkel. 


Inclui bibliografia.

1. Populismo – Estados Unidos. 2. Estados Unidos – Relações exteriores. 3. Política internacional. 4. Democracia. 5. Liberalismo. I. Stuenkel, Oliver. II. Escola de Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas. Programa de Pós- Graduação em História, Política e Bens Culturais. III.Título.

CDD – 320.973

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Resumo

Criado no pós-Segunda Guerra Mundial, o sistema internacional contemporâneo está assentado no compartilhamento de valores, práticas e normas entre seus membros, formando a assim denominada ordem internacional liberal, liderada pelos Estados Unidos, que atuam há mais de setenta anos comprometidos com o multilateralismo, de modo a evitar novas guerras e perpetuar o seu poder no tempo. Contudo, é a contestação desse sistema por seu próprio administrador que motiva o desenvolvimento deste trabalho. A década de 2010 testemunhou a emergência de movimentos e líderes autoritários, antielitistas e antipluralistas em diferentes regiões do globo, inclusive nos Estados Unidos, provocando problemas no que tange à administração da ordem global. O presente estudo investiga o fenômeno do populismo e sua ascensão nesse país, o que teria culminado com a chegada de Donald Trump ao poder. Com base nisso, também buscamos compreender essa manifestação nas relações internacionais, assim como a influência do populismo trumpista sobre a política externa e a política comercial dos Estados Unidos. Questionamos, assim, o que as ações empreendidas pelo novo governo republicano podem significar para a posição que seu país ocupa no mundo.

Palavras-chave: Populismo; Estados Unidos; Política Internacional; Ordem Internacional.

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Abstract

Established in the aftermath of World War II, the contemporary international system is based on the sharing of values, practices and norms among its members, forming the US-led liberal international order. The United States has been committed to multilateralism for over seventy years in order to prevent wars and perpetuate its power over time. Nevertheless, this work is motivated by the contestation of this system by its own manager. During the 2010s, authoritarian, anti-elitist and anti-pluralist movements and leaders have emerged in various regions of the globe, including the United States, originating some issues concerning the global order. This study investigates the phenomenon of populism and its rise in this State, culminating with Donald Trump’s accession to power. Based on this, we also seek to understand this manifestation in international relations, as well as the influence of trumpist populism on US foreign policy and trade policy. We thus analyse what the decisions made by the new republican government may represent to the position that its country occupies in the world.

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Agradecimentos

Ao professor Oliver Stuenkel, por acreditar em meu potencial e se disponibilizar a me orientar. Nossas trocas me deram a confiança necessária não somente para me aventurar no campo da pesquisa, mas também para a escolha de um tema muito recente nas relações internacionais contemporâneas, o que trouxe desafios e incentivos para o desenvolvimento desta dissertação.

Aos professores Matias Spektor e Guilherme Casarões, pelos preciosos comentários e observações que contribuíram para a elaboração do presente trabalho.

Aos professores Paulo Velasco e Paula Vedoveli, que até o presente momento não tivera a honra de conhecer, pela disponibilidade e gentileza demonstradas para compor minha banca avaliadora.

Aos professores do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, da Fundação Getúlio Vargas, cuja influência foi muito positiva no sentido de embasar as abordagens e argumentos apresentados nesta pesquisa. Agradeço nominalmente aos professores Alexandre Moreli, Marcio Vilarouca e João Marcelo Maia, pelas aulas e incentivo para a consecução deste trabalho.

À Universidade do Estado do Rio de Janeiro, particularmente ao professor Honorio Kume, da Faculdade de Ciências Econômicas. Suas aulas e a bibliografia trabalhada trouxeram aporte essencial para o desenvolvimento do terceiro capítulo desta dissertação.

A meus professores do Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, pela formação de excelência que tive o privilégio de receber. Seus ensinamentos foram determinantes na minha maneira de pensar e despertaram meu interesse pela investigação da política internacional. Agradeço especialmente aos professores Alexandra Silva, Diego Jesus, Fernando Maia, Leane Naidin e Márcio Scalercio: suas aulas e indicações de leitura foram muito

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importantes para a pesquisa que desenvolvi e para o caminho profissional que espero seguir.

A meus professores do Colégio São Vicente de Paulo, pela formação cidadã que me propiciaram. Agradeço particularmente aos professores Emir Portella, Luiz Cláudio Gomes e Ligia Coutinho, a quem devo a descoberta da História e da Geografia.

A meus pais, Othon Moraes e Stela Moraes, sem quem este trabalho simplesmente não teria sido possível. Sua contribuição passa não somente pelo amor e apoio a mim dedicados, mas também pelo modelo ético e profissional que neles encontro para minha vida.

Aos demais membros de minha família, cujo apoio foi igualmente importante para o caminho que percorri até aqui. De maneira especial, agradeço a minha avó, Walderez Moraes, a minha avó do coração, Irandê Ribeiro, a meus tios, Ângelo Chagas, Marta Chagas e Angela Moraes, bem como a meu primo, Bruno Rego, pelo carinho e pelas conversas que direta ou indiretamente influenciaram as escolhas referentes ao caminho que venho trilhando.

Aos amigos e colegas, antigos e novos, que também acompanharam minha trajetória durante a faculdade e a pós-graduação. Agradeço em especial a Bruna Gonçalves, pelo apoio e pela ajuda na logística dos gráficos e tabelas, aqui apresentados, e a Andréa Faria, pelas frutíferas discussões em torno de meu mestrado.

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A meus avós e a minha tia-avó,

Anicse Rodrigues de Moraes, Ataliba Belleza Chagas, Maria Magdalena Sardinha Chagas e Theresinha Barros Nacif.

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Sumário

Introdução 7

Capítulo 1 – Populismo: conceito, antecedentes e conjuntura atual 14

1.1 – Qual populismo? 14

1.2 – A ascensão do populismo no mundo contemporâneo 32

1.3 – Donald Trump como ator populista 42

Capítulo 2 – Ordem internacional liberal e política externa norte-americana 53

2.1 – A preponderância dos Estados Unidos na ordem global 53

2.2 – A grande estratégia norte-americana 71

2.3 – Populismo e política externa: o governo Donald Trump 78

Capítulo 3 – A ordem liberal em xeque: Donald Trump e o comércio internacional 93

3.1 – O fenômeno da globalização e o comércio internacional 93

3.2 – O desenvolvimento do sistema multilateral de comércio 100

3.3 – A política comercial norte-americana e o populismo trumpista 107

Considerações finais 132

Referências bibliográficas 150

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Introdução

Fundada no pós-Segunda Guerra Mundial, a arquitetura do sistema internacional está assentada em um conjunto de valores, práticas e normas compartilhados por seus membros. Desde então, os Estados Unidos assumiriam definitivamente a posição que o Reino Unido ocupara até o início do século XX, outorgando para si o papel de principais administradores da ordem mundial, através da criação ou reativação de instituições de caráter liberal, com o objetivo de promover a cooperação entre os Estados e evitar guerras futuras. Esse ator, inicialmente através da liderança econômica, criou um sistema orientado por regras que permitiu a reconstrução de seus aliados e a reabilitação de seus antigos inimigos.

Assim, por mais diferentes que as sucessivas administrações americanas sejam entre si, desde o início da Guerra Fria, entende-se que a política externa norte-americana apresenta variações na forma e na ênfase, mas, não na substância. Esta última caracterizaria o seu modelo de inserção internacional, que combina recursos de poder brando e de poder bruto e admite que o país opere dentro ou fora do âmbito multilateral, mas, sempre comprometida com a manutenção das instituições vigentes e de suas alianças, bem como a expansão de valores e princípios liberais, como democracia, direitos humanos e livre-comércio, representativos da própria ordem em curso.

O motivo que sustenta e justifica o desenvolvimento da atual pesquisa, entretanto, é a contestação da arquitetura internacional por seus próprios administradores. O colapso da União Soviética associado ao desenvolvimento da globalização, a reemergência da Ásia, a ocorrência de crises econômicas e migratórias e a crise das democracias representativas contribuíram, direta ou indiretamente, para a ascensão de movimentos ou partidos e a formação de governos extremistas, de identidade autoritária, antielitista e antipluralista, por nós definidos como populistas. Críticos do liberalismo e suas instituições, os populistas pregam a unidade nacional a partir da negação e da demonização do outro. Nesse sentido, a resposta do populismo para os desafios da realidade internacional contemporânea, seja como instrumento para

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a instauração de um projeto de desenvolvimento autárquico, seja como justificativa para a busca de um passado idílico, ainda que legitimamente buscando denunciar problemas e projetar as aflições e demandas de quem o apoia, parece apontar para o fechamento em relação ao mundo exterior nas esferas econômica, política e, por vezes, cultural.

O governo Donald Trump representa de modo singular essa questão, dados os traços distintivos do novo presidente enquanto figura pública, dentre eles, as visões de mundo que defende, sua plataforma eleitoral e sua agenda política, resumida nos

slogans de campanha, “America First” e “Make America Great Again”. Não obstante

figuras populistas como Trump não serem raras na política estadunidense, somente em 2016 é que um ator com esse perfil chegou à chefia do Poder Executivo de seu país. Por esse motivo, desde então, os novos rumos da democracia americana têm sido debatidos em vários âmbitos, passando por governos, pela imprensa e pela academia. Se as razões para esse acontecimento costumam ser buscadas em problemas de ordem econômica e social (automação, migração de firmas e indústrias para outros países, perda de bem-estar), também percebemos o elemento demográfico-cultural (aumento na proporção de imigrantes e minorias raciais e sociais no perfil demográfico dos países desenvolvidos), passando pela tecnologia da informação (massificação das redes sociais; manipulação de dados pessoais na internet) e pela questão das instituições políticas (fragilidade ou fragilização das regras e normas formais e informais dos sistemas políticos) como componentes impulsionadores desse fenômeno.

Como bem se pode depreender, a associação entre populismo, política internacional e Estados Unidos, portanto, é uma questão de grande relevância no mundo contemporâneo e merece a atenção do observador porque denota o desenvolvimento de um conflito de identidade política no berço das democracias modernas e o questionamento do papel internacional desse ator, que é também a maior potência mundial e o fundador e principal administrador da assim denominada ordem internacional liberal.

Isto posto, justificam-se as seguintes indagações: a política externa norte-americana sob Donald Trump representa uma ameaça à ordem internacional vigente? E

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de que maneira o populismo trumpista coloca em risco a posição dos Estados Unidos como player global? Parte-se da hipótese de que a denúncia de valores liberais pela atual administração estadunidense objetiva moldar as relações internacionais do país em questão de modo a afastá-lo dos arranjos multilaterais globais, que, por sua vez, representariam um projeto político incompatível com o nacionalismo posto em prática por Washington a partir de 2017.

É importante ressaltar que, como no caso do populismo, o termo ordem internacional é algo que carece de uma definição consensual na academia, podendo ser problematizado e desconstruído – parafraseando Wendt (1992), a ordem internacional é o que os Estados fazem dela. Nesse sentido, o referido objeto de análise é uma construção social, que só existe a partir do reconhecimento e compartilhamento de sua identidade entre os atores. Como ressalta Jervis (2018), muitos críticos veem o estabelecimento de um sistema interligado de instituições internacionais e reforçado pelo direito internacional como um projeto de dominação global, ao passo que, para outros, a ideia de ordem servia como uma ferramenta para frear o poder norte-americano. Há que se considerar, também, as perspectivas que concebem a atual ordem global como resultado do compartilhamento de valores e normas pelos Estados, como sustenta Bull (2002), assim como os que percebem esse processo como resultado de disputas e negociações ao longo do tempo entre grandes potências e Estados desprovidos de capacidades materiais, em diferentes regiões do planeta, para o estabelecimento dos parâmetros de conduta na governança internacional, como o faz Stuenkel (2018). Em todos esses casos, a investigação da política exterior de Trump mostra-se relevante, uma vez que o discurso e as ações empreendidas pelo mandatário americano apontam para um ataque à ideia de cooperação internacional e à confiança que os atores cultivariam entre si no âmbito institucional.

O recorte proposto pela atual pesquisa circunscreve-se aos Estados Unidos, no período 2016-2018, especificamente partindo da atuação de Donald Trump enquanto candidato presidencial, passando por sua posse, em 20 de janeiro de 2017, até as

midterms – eleições legislativas de meio de mandato –, em 6 de novembro de 2018. O

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variáveis que o cercam em três momentos distintos, portanto: a ascensão do populismo de Trump, compreendendo as eleições presidenciais de 2016; a execução das políticas externa e comercial pela administração estadunidense, a partir de 2017; a evolução das decisões nessas áreas, já na iminência da segunda metade do governo, em novembro de 2018.

Reconhecemos que a principal dificuldade para a realização da presente dissertação é, justamente, o timing. Examinar um evento que ainda não se encerrou é uma tarefa arriscada, uma vez que não é possível prever com total exatidão o comportamento do objeto de pesquisa, como é o caso do atual governo dos Estados Unidos, que pode mudar a direção de suas políticas por diferentes motivos e com base em diferentes incentivos e constragimentos, internos ou externos, que, eventualmente, venham a emergir no horizonte de seus tomadores de decisão – sobretudo do presidente americano, que é o comandante em chefe das forças armadas e principal responsável pelas políticas doméstica e externa de seu país. Ademais, desde o início de nossa pesquisa, nunca desconsideramos a possibilidade de um fim abrupto ao projeto trumpista, uma vez que sua administração, em menos de três anos de atividade, já se deparou com o risco de impeachment mais de uma vez.

Por esse motivo, não buscamos caracterizar de modo definitivo a política externa norte-americana sob Trump, menos ainda prever o destino inexorável do sistema internacional como resultado exclusivo das ações de Washington durante a vigência do governo em questão.

Nosso objetivo geral é oferecer uma perspectiva ao observador sobre: 1º) O que significa o populismo enquanto fenômeno político;

2º) Como Donald Trump e seu governo se encaixam nessa categoria;

3º) De que forma esse ator, nessa condição, busca modificar as estruturas da ordem internacional vigente.

Estabelecemos a relação entre as três questões tendo como foco as áreas da política externa e do comércio internacional, demonstrando com maior aprofundamento

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o que as ações empreendidas por Washington, no espaço de tempo anunciado, podem significar para o futuro da ordem global e de que forma isto pode influenciar o comportamento dos demais atores na política internacional.

Assim, temos por objetivos específicos:

1º) Contextualizar as diferentes concepções de populismo, sugerindo um conceito que entendemos ser o mais adequado para analisar o referido fenômeno no mundo contemporâneo, para, dessa forma, investigar a ascensão de Trump na política americana e a inserção internacional do país sob seu governo;

2º) Analisar o conceito de ordem internacional, de modo a caracterizar a configuração do sistema em que os atores interagem para além de suas fronteiras nacionais, e decompor a política externa trumpista, discutindo a possibilidade de esta representar uma mudança de rumos dos Estados Unidos no tangente às ações que implementam e aos valores que defendem historicamente;

3º) Expor o funcionamento da ordem internacional liberal à luz da globalização e dos principais mecanismos de governança na área comercial, discutindo e avaliando os possíveis impactos da política comercial de Trump para o futuro da política internacional e a posição ocupada pelos Estados Unidos na ordem que construíram e lideram.

A estrutura desta dissertação segue a organização dos objetivos anteriormente elencados. O primeiro capítulo discute o que significa o conceito de populismo e por que este fenômeno ocorre nos países desenvolvidos, notadamente, nos Estados Unidos. Apresentamos as abordagens de autores que vêm das áreas da Ciência Política, da Sociologia, da História e da Economia, demonstrando que não existe uma única definição amplamente aceita na academia a esse respeito, ao mesmo tempo que tentamos estabelecer um diálogo entre todas essas perspectivas. Nossas referências principais nessa primeira seção são Müller (2016), Mudde e Kaltwasser (2017) e Levitsky e Ziblatt (2018) e, com base nelas, sugerimos quais seriam os denominadores comuns do populismo, quais as principais ameaças identificadas e atacadas por esses

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atores e como isso se traduziria em termos de agenda, em perspectiva comparada. Em seguida, discutimos os elementos que impulsionam a ascensão de populistas no mundo contemporâneo e explicamos porque Donald Trump deve ser considerado um ator populista pela definição que avançamos.

O segundo capítulo explora a política externa norte-americana. Abrimos a seção apresentando os conceitos de grande estratégia segundo Brands (2014) e Gaddis (2018) e recorremos às formulações de Art (1998/1999; 2003) para discutir a tese segundo a qual a política externa dos Estados Unidos é historicamente marcada por mais continuidades do que rupturas, adotando sua abordagem sobre o engajamento seletivo como parâmetro para o modelo de inserção internacional utilizado por Washington, baseado na sua presença militar no mundo e em uma ordem econômica aberta. Ikenberry (2001; 2002/2003; 2003; 2006; 2014; 2018) e Anderson (2015) permeiam nossas considerações sobre as características permanentes do poder americano e como ele se projeta no plano internacional, além de nos auxiliarem a expor a relação existente entre a inserção internacional dos Estados Unidos e a área de comércio internacional. Na segunda seção desse capítulo, também aplicamos abordagens das Relações Internacionais e de Análise de Política Externa, como Jervis (2017; 2018), a fim de examinar a política externa do governo Donald Trump, questionando se o novo comportamento internacional desse ator aponta efetivamente para uma mudança de política, ou, ao contrário, indica alterações na política externa, mantendo inalterada a estratégia de inserção internacional. Ao apresentar as principais medidas do governo Trump na política internacional, discutimos a possibilidade de uma guinada isolacionista nos termos de Art para, dessa forma, questionar como o populismo se expressa na política internacional.

A terceira e última parte da dissertação examina os impactos da política externa e comercial dos Estados Unidos de Trump sobre o mundo e discute os possíveis efeitos das medidas anunciadas na área comercial para o futuro da ordem global e a posição que os Estados Unidos ocupam nela. Debruçamo-nos sobre este tema partindo de Bergsten (1971; 2003), Frieden (2008) e Ravenhill (2011), desvendando a evolução da ordem econômica mundial e como ela está assentada em valores liberais, bem como

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discutindo a possibilidade e de que maneira os seus mecanismos podem ser prejudicados, dependendo dos cursos de ação seguidos pelo principal ator que administra esse sistema. As contribuições de Scalercio (2007) nos auxiliarão a colocar em perspectiva histórica a política comercial estadunidense, ao passo que estudos e artigos do Peterson Institute for International Economics auxiliarão a nossa análise do comércio global à luz da escalada protecionista norte-americana.

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Capítulo 1 – Populismo: conceito, antecedentes e conjuntura atual

O início do século XXI tem sido marcado pela ascensão de movimentos, partidos e governos antissistema, de diferentes orientações ideológicas, sobretudo nos países desenvolvidos. É o que se observa, nos Estados Unidos, com a chegada ao poder de Donald Trump. Esta conjuntura motiva a investigação do populismo, fenômeno que dá nome a este primeiro capítulo, e dos atores aqui considerados. Na primeira seção, contextualizaremos historicamente o populismo, tendo como base seu surgimento em diferentes regiões, enquanto também apresentaremos suas diferentes concepções nos âmbitos acadêmico e não-acadêmico. Sugerimos uma abordagem que contempla as características comuns aos populistas contemporâneos, o que será o fio condutor do presente trabalho e auxiliará a estabelecer a relação entre populismo, democracia e a assim denominada ordem internacional liberal. A segunda seção centra-se no malaise de diferentes sociedades em relação aos rumos empreendidos por seus países nas últimas décadas e nos fatores que contribuem para a força e propagação do populismo, ao passo que a última parte do capítulo 1 aborda a emergência de Donald Trump no cenário político norte-americano em sua condição de político populista.

1.1. Qual populismo?

O termo populismo, amplamente utilizado em meios acadêmicos e não-acadêmicos, é desprovido de uma definição geral, mas conta com grande número de acepções, não necessariamente excludentes entre si, que podem variar em função de áreas de conhecimento, tempo histórico e região política e geográfica. Pátria originaria do populismo, na Rússia oitocentista nasceu o primeiro movimento do gênero,

Narodnik. Este era composto por jovens pertencentes à elite urbana intelectual do

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uma sorte de socialismo avant la lettre, voltado para o campesinato daquele país (MUDDE, 2004, p. 560).

As Américas constituem o terreno em que o populismo melhor se disseminou ao longo dos últimos dois séculos. No caso dos Estados Unidos, Kazin (2016) identifica duas tradições ditas populistas pela historiografia norte-americana, uma, liberal-progressista; outra, conservadora e excludente em termos raciais e culturais. Quanto à primeira, este termo teria começado a ser utilizado especificamente por volta de 1890, pela imprensa do estado do Kansas, como forma de caracterizar o People’s Party – mais tarde também chamado Populist Party (idem, 2010, p. 582). No contexto da primeira grande onda de globalização, marcada pela elevação do comércio internacional, pela aceleração dos fluxos de capital e de pessoas, pela industrialização acelerada e por crises econômicas recorrentes, surgem, assim, os populistas americanos. Grupo composto e voltado para os agricultores e demais trabalhadores das zonas rural e urbana, os populistas revoltavam-se contra o padrão-ouro e as elites do Nordeste estadunidense, que conspirariam a favor de seus próprios interesses (RODRIK, 2018). Os referidos atores pregavam que seu país crescia em detrimento das pessoas simples e propunham “protegê-las” através da estatização de setores econômicos e de mudanças no sistema tributário (KAZIN, 2010, p. 582), além de reformas no sistema político, como a eleição direta para senadores (MÜLLER, 2016, p. 136). O desconforto agremiado por esse grupo permitiu sua ascensão, atingindo os partidos Republicano e Democrata da época – e, mais tarde, influenciando mudanças nas agendas desses dois últimos. O movimento populista estadunidense, em última análise, teria contribuído para uma certa regulação econômica do Estado e uma maior representação popular na política nacional.

A segunda tradição populista norte-americana ganha força à mesma época da primeira onda de globalização, também atacando as elites dirigentes de seu país, traidoras dos interesses populares. Este grupo, contudo, era definido em termos étnicos e culturais, primordialmente: os “real Americans” seriam apenas aqueles que possuíam descendência europeia, em contraponto a minorias já estabelecidas ou que integravam os fluxos migratórios para os Estados Unidos. Já nos anos 1850, emergia no horizonte

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político daquele país o Know Nothing Movement, mais tarde chamado American Party (MÜLLER, 2016, p. 131-132), partido nativista, autoproclamado representante exclusivo dos interesses dos americanos protestantes e contrário a uma suposta ameaça aos valores nacionais, representada pela imigração de irlandeses católicos para seu território. No fim do século, o racismo e a xenofobia foram amplamente usados por esses atores para avançarem suas pautas: o Workingmen’s Party of California (WPC) promoveu-se com base no estímulo ao ódio contra os imigrantes chineses, mão de obra barata que estaria inundando o mercado de trabalho e destruindo a renda e o padrão de vida dos americanos . Mas o maior e mais famoso movimento pertencente a essa linha 1

populista foi criado nos anos 1920, com origens que remontam ao período pós-Guerra de Secessão, A Ku Klux Klan (KKK). Essa organização nacionalista, nativista e supremacista branca nasce buscando, principalmente, impedir a equiparação dos cidadãos afro-descendentes aos americanos brancos e cristãos em termos jurídicos, políticos e sociais, além de posicionar-se contra a imigração de pessoas provenientes de países e regiões que não se enquadrariam em suas concepções culturais e religiosas (KAZIN, 2016).

Na América Latina, as origens do populismo também remontam ao século XIX, principalmente na América Hispânica, misturando-se com o desenvolvimento do caudilhismo. Nesta tradição regional, a figura do caudilho é caracterizada por uma liderança forte e autoritária por excelência (ENCARNACIÓN, 2016), que utiliza seu próprio carisma como capital político, agrupando em torno de si um conjunto de atores como forma de viabilizar o exercício do poder. Mas o populismo na região ganhou mais visibilidade a partir do século XX, com os governos de Rafael Trujillo, na República Dominicana, Lázaro Cárdenas, no México, Juan Domingo Perón, na Argentina e

Kazin argumenta ainda que o WPC conheceu um sucesso eleitoral importante, a ponto de possibilitar o 1

controle da cidade de São Francisco e de outras regiões da Califórnia, alterar a constituição desse estado, banindo os chineses de várias atividades e setores econômicos e, por fim, fazer o Congresso americano aprovar o Chinese Exclusion Act, que proibia a imigração chinesa para os Estados Unidos – primeira lei a discriminar e impedir a imigração de pessoas de uma nacionalidade específica para aquele país. Esse tipo de atuação influenciou, também, os movimentos de trabalhadores americanos contrários à imigração japonesa, além de determinar as realocações forçadas de cidadãos americanos de origem japonesa para campos de concentração, durante a Segunda Guerra Mundial. Ver em: Kazin, Michael. Trump and American populism: old wine, new bottles. Foreign Affairs, out 2016. Disponível em: https:// www.foreignaffairs.com/articles/united-states/2016-10-06/trump-and-american-populism . Acesso em: 28 maio 2018.

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Getúlio Vargas, no Brasil (O’NEIL, 2016): estes associaram, em diferentes intensidades, autoritarismo político e nacionalismo econômico. Ainda que a opção pelo desenvolvimento autárquico tenha levado a desequilíbrios macroeconômicos e retrocessos sociais nefastos, no curto prazo, ela foi bem sucedida no tangente à inclusão de alguns setores marginalizados de suas sociedades, como os trabalhadores urbanos, nos casos brasileiro e argentino . 2

Sendo assim, como compreender o fenômeno do populismo? E em que medida podemos classificar um partido, movimento político ou governo como populista? Kazin (2016) classifica o conceito como ambíguo e questiona se este seria uma seita, um estilo, uma estratégia política ou apenas uma questão de marketing, dada a sua maleabilidade. Para Mudde e Kaltwasser (2017), este é um dos principais chavões políticos do século XXI, ao mesmo tempo que seu uso indiscriminado causa frustração e confusão. Seu sentido pode ser positivamente identificado com maior representatividade política e inclusão social, da mesma forma que também pode estar negativamente associado a discursos demagógicos de lideranças políticas específicas, assim como ao desmantelamento de instituições democráticas.

Em 2017, o Cambridge Dictionary (Blog About Words, 2017) elegeu populismo como palavra do ano, confirmando a relevância desse tema na seara política contemporânea e definindo-a como “political ideas and activities that are intended to get the support of ordinary people by giving them what they want”. Essa escolha teve como base o elevado número de vezes em que a palavra em questão foi procurada pelos usuários do dicionário na versão on-line ao longo do ano e em datas ou momentos

Há que se considerar que o grau de sucesso dessas políticas variou de acordo com os países, sendo 2

Brasil e Argentina os casos mais relevantes. A Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), implementada pela administração Getúlio Vargas e inspirada no corporativismo da Itália Fascista, criou um sistema de proteção para o trabalhador urbano, ao mesmo tempo que reprimiu o sindicalismo autônomo e os demais esforços de organização de trabalhadores fora do alcance estatal. Na Argentina, emprega-se o termo

cabecitas negras para indicar as populações pobres das províncias do norte do país que migraram para

Buenos Aires, sob Juan Domingo Perón. Estas massas trabalhadoras, pela tutela do Estado, foram incorporadas ao universo dos direitos trabalhistas, do consumo e da cultura, e contribuíram definitivamente para a urbanização em seus países. Por outro lado, o aparato repressor estatal, a alocação de recursos para punir inimigos e beneficiar aliados, o controle artificial de preços, o estabelecimento de partidos políticos supervisionados pelo governo e o culto à personalidade do líder populista são alguns dos pontos negativos característicos desse processo histórico e político regional, com consequências importantes sobre o sistema democrático, o bem-estar social e o desenvolvimento econômico dos países em questão.

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específicos, como no dia em que Donald Trump foi empossado presidente dos Estados Unidos, em 20 de janeiro de 2017. A página na internet do Cambridge Dictionary, no entanto, também aponta para os problemas de compreensão – e, consequentemente, do uso – da palavra populismo:

“What sets populism apart from all these other words is that it represents a phenomenon that’s both truly local and truly global, as populations and their leaders across the world wrestle with issues of immigration and trade, resurgent nationalism, and economic discontent. […] It includes the usage label ‘mainly disapproving’. Populism has a taint of disapproval because the –ism ending often indicates a philosophy or ideology that is being approached either uncritically (liberalism, conservatism, jingoism) or cynically (tokenism). Evidence from the Cambridge English Corpus […] reveals that people tend to use the term populism when they think it’s a political ploy instead of genuine. Both aspects of –ism are evident in the use of populism in 2017: the implied lack of critical thinking on the part of the populace, and the implied cynicism on the part of the leaders who exploit it” (ibid).

A definição exposta anteriormente, entretanto, parece aproximar-se mais das tendências de direita do populismo do que das de esquerda, uma vez que trata de questões relacionadas a ideias de identidade nacional, ligadas a atores que buscariam a restauração de um passado mítico, como será visto a seguir. Mudde e Kaltwasser identificam as principais abordagens conceituais que tratam da análise do populismo na academia. O chamado popular agency approach sugere que o populismo é a expressão máxima do engajamento popular na política, visando a integração dos movimentos de massa na arena política para o desenvolvimento de um modelo comunitário de democracia. Próximo a este está o Laclauan approach que, partindo do trabalho desenvolvido por Ernesto Laclau, considera o populismo como força emancipatória, na condição de quintessência da política. Neste caso, o populismo democratizaria a própria democracia, desdobrando-se na superação da democracia liberal representativa por uma

democracia radical. Se a primeira abordagem é mais utilizada pelos historiadores

norte-americanos, focados no desenvolvimento do populismo nos Estados Unidos dos séculos XIX e XX, a segunda predominaria na América Latina e na Europa, no campo da Filosofia Política.

(24)

Por outro lado, outros enfoques partem das características e do comportamento das lideranças políticas para explicar o que diferenciaria o populismo de formas convencionais de se fazer política. A perspectiva predominante na área da Comunicação e da mídia profissional olha para o populismo como uma forma folclórica de exercício da política, centrada no objetivo de mobilizar as massas: “In this understanding, populism alludes to amateurish and unprofessional political behavior that aims to maximize media attention and popular support” (MUDDE & KALTWASSER, 2017, p. 4). Outra visão, mais abrangente que a anterior, percebe o populismo como uma estratégia para se governar com o apoio direto e imediato da população, necessariamente gravitando em torno de um líder forte e carismático. O caso do governo Donald Trump adequa-se às duas análises, o que se confirma em sua personalidade forte, na sua forma de se dirigir e veicular suas ideias ao público e nos meios de comunicação que ele utiliza.

Isto posto, a nosso ver, o termo populismo parece ser utilizado com mais recorrência em dois sentidos principais. Primeiramente, como forma de caracterizar políticas irresponsáveis , com impactos importantes sobre o sistema econômico e o 3

bem-estar da sociedade em que tais cursos de ação são colocados em prática . Em 4

segundo lugar, o termo designa movimentos que têm surgido tanto nas democracias tradicionalmente estabelecidas, quanto nas mais recentes. Este último prisma denuncia o caráter autoritário, antielitista e antipluralista do fenômeno em questão, sendo os atores que assumem esse discurso autointitulados representantes da essência do povo.

No que tange ao primeiro sentido, de fato, políticas desprovidas de legitimidade por especialistas ou empreendidas de forma a ignorar suas consequências no longo prazo podem levar a resultados distantes dos (ou mesmo contrários aos) pretendidos

Irresponsabilidade, nesse caso, diz respeito à formulação e implementação de políticas econômicas que 3

desconsideram as condições de sustentabilidade para o seu próprio funcionamento. Müller expande essa noção para além do plano econômico, compreendendo a irracionalidade de algumas políticas que visam beneficiar parcelas da população ou o próprio líder político no curto prazo.

Ver em: MÜLLER, Jan-Werner. What is Populism? Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2016, p. 27.

Nota do autor: este argumento está relacionado à ideia segundo a qual o populismo oferece soluções 4

simples e, normalmente, erradas para problemas complexos, o que também é abordado ao fim desta primeira seção.

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pelo próprio governo – entendimento que, somado às abordagens anteriormente 5

apresentadas, relaciona-se ao caso norte-americano, no governo Donald Trump. Esse aspecto será abordado nas próximas seções, ao examinarmos a influência dos sistemas de crença e visões de mundo sobre o processo decisório dos formuladores da política externa e comercial.

Como explicado anteriormente na presente seção, as diferentes categorias explicativas do populismo também variam em função do espaço geográfico. A percepção de certa ligação entre políticas econômicas expansionistas, demagogia e favorecimento político, por exemplo, seria mais comum na Europa do que em outras regiões. Nesse sentido, um governo populista poderia levar seu país ao endividamento, à não-observação de acordos previamente firmados e ao desrespeito às instituições. Efetivamente, desde a crise do euro, muitos países europeus têm experimentado a ascensão de movimentos e partidos com propostas nesse sentido, sendo a Grécia, com a chegada ao poder de Alexis Tsipras, em 2015, um exemplo emblemático. Por outro lado, Müller (2016, p. 24-25) chama a atenção para a fragilidade desse tipo de discussão, uma vez que a diferenciação entre responsabilidade e irresponsabilidade é uma construção que pode ser arbitrária e, por vezes, instrumentalizada no debate público por atores que desejam rebater críticas de opositores a suas próprias políticas:

“Still, we cannot generate a criterion for what constitutes populism this way. For in most areas of public life, there simply is no absolutely clear, uncontested line between responsibility and irresponsibility. Often enough, charges of irresponsibility are themselves highly partisan (and the irresponsible policies most frequently denounced almost always benefit the worst-off). In any case, making a political debate a matter of ‘responsible’ versus ‘irresponsible’ poses the question, responsible according to which values or larger commitments?” (ibid).

Ainda que estratégias econômicas curto-prazistas levem à deterioração do quadro econômico e social 5

nos lugares em que tais medidas são colocadas em prática, num período inicial pode ocorrer melhora efetiva do bem-estar ou da sensação de bem-estar entre a sociedade, beneficiando o populista em termos de popularidade, o que explica a reincidência de políticas desse gênero ao longo da história – especialmente nos países latino-americanos. O mesmo se aplica ao protecionismo, no âmbito do comércio internacional, e será analisado nos próximos capítulos.

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Dornbusch e Edwards (1991), por sua vez, compreendem o populismo como um fenômeno econômico, latino-americano por excelência, tendo surgido em muitos países da região no período entreguerras, como resposta às transformações causadas pela industrialização e pela urbanização. O receituário populista enfatizaria o crescimento do produto doméstico e a distribuição de renda na mesma medida em que desconsidera o risco de inflação e os constrangimentos externos à aplicação indiscriminada de políticas fiscais expansionistas e práticas comerciais protecionistas, por vezes associadas ao modelo de industrialização por substituição de importações. Esses cursos de ação, argumentam os autores, costumam fracassar no longo prazo, prejudicando especialmente as camadas mais pobres da sociedade, a quem os líderes populistas outorgam-se a missão de proteger. A insustentabilidade de tais práticas, em última análise, levaria à queda do salário real, crises na balança de pagamentos, inflação galopante e, finalmente, ao colapso do sistema econômico dos países em que programas desse gênero são implementados (ibid, p. 7). Entendemos o caso venezuelano como um 6

exemplo fundamental do argumento de Dornbusch e Edwards: membro fundador do cartel da OPEP e um dos mais prósperos países latino-americanos até os anos 1990, a Venezuela passou por retrocessos institucionais importantes com a chegada de Hugo Chávez ao poder e, sob Nicolás Maduro, sua guinada autoritária levaria à implosão dos sistemas econômico e político daquele país, coroada pela alta repressão estatal, uma das maiores taxas de inflação do mundo, aumento expressivo da miséria, e um número de deslocados e refugiados comparável a níveis sírios . Por esse motivo o populismo é 7

apontado como responsável por boicotar a sociedade e destruir o sistema econômico nacional:

Algumas das características gerais do populismo econômico na América Latina estabelecidas pelos 6

autores, sobretudo o protecionismo, apresentam traços comuns com políticas e o discurso do governo Donald Trump, o que é explorado de forma aprofundada nas seções do presente trabalho sobre política externa e comercial dos Estados Unidos.

A situação venezuelana sob Nicolás Maduro é calamitosa: entre 2013 e 2018 seu PIB recuou mais de 50 7

%, acumulando no fim de 2018 doze trimestres consecutivos de retração da atividade econômica. Essa questão se agrava ainda mais com a miséria crescente, uma taxa de inflação superior a 1.000.000 % e o colapso dos serviços públicos, provocando uma crise humanitária de grandes proporções. Em 2019, o número de refugiados e migrantes da Venezuela já ultrapassava quatro milhões de pessoas. Ver em: LAMUCCI, Sergio. FMI estima que inflação na Venezuela vai chegar a 10.000.000 % em 2019. Disponível em: https://valor.globo.com/mundo/noticia/2019/04/09/fmi-estima-que-inflacao-na-venezuela-vai-chegar-a-10-000-000-em-2019-1.ghtml . Acesso em: 7 jun. 2019;

Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/2019/06/07/numero-de-refugiados-e-migrantes-da-venezuela-ultrapassa-4-milhoes-segundo-o-acnur-e-a-oim/ . Acesso em: 7 jun. 2019.

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“Economists and political scientists from right and left have emphasized the negative sides of populism. The right attacks populists as demagogues who fuel inflation, frighten capital, and provoke political instability. The left accuses them of betraying the masses” (CARDOSO & HELWEGE, in: DORNBUSCH & EDWARDS, 1991, p. 47).

Fora do campo estritamente econômico, retomando o segundo prisma através do qual o populismo pode ser compreendido hoje, este fenômeno é uma ideologia rala , 8

um conjunto de demandas e afirmações com dinâmica própria que considera a divisão da sociedade entre dois grupos homogêneos e antagônicos – “o povo” versus “a elite” –, e prega que a política seja expressão da vontade geral do povo, na concepção rousseauniana do termo (MUDDE & KALTWASSER, 2017, p. 5-6), abordado a seguir. Müller (2016, p. 34) segue a mesma linha de raciocínio ao argumentar que o populismo é uma expressão degradada de democracia, que tem por objetivo aprimorá-la dentro de seus próprios parâmetros, permitindo que “o povo” participe de seus processos. Ou seja, esta é uma forma particular de perceber o mundo político, dividindo e contrapondo o que na verdade se configura como uma abstração – povo – a elites percebidas como inferiores em termos morais. Adotamos estas definições para o desenvolvimento do presente trabalho, demostrando a abrangência global do populismo no início do século XXI, analisando os seus reflexos no processo político e na política externa dos Estados Unidos, bem como avaliando os possíveis impactos desta última sobre a ordem global vigente.

Uma consequência do que foi acima postulado diz respeito a novas perplexidades que podem despontar no horizonte do observador no que tange à análise deste fenômeno. Populismo, na forma que compreendemos ser aplicável ao mundo contemporâneo, pode surgir associado a diferentes ideologias, em função do contexto doméstico de cada Estado, como o socialismo, o liberalismo e o fascismo (ibid, p. 160-161). O populismo é uma ideologia rala, como já indicado, o que denota a capacidade – e por vezes a necessidade – de sua fusão com filosofias mais consistentes, a fim de poder oferecer cursos de ação distintos aos praticados ou propostos pelos governos e partidos tradicionais:

Tradução livre do inglês thin-centered ideology. 8

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“Defining populism as a ‘thin-centered ideology’ is helpful for understanding the oft-alleged malleability of the concept in question. An ideology is a body of normative ideas about the nature of man and society as well as the organization and purposes of society. Simply stated, it is a view of how the world is and should be. Unlike ‘thick-centered’ or ‘full’ ideologies (e.g., fascism, liberalism, socialism), thin-centered ideologies such as populism have a restricted morphology, which necessarily appears attached to – and sometimes is even assimilated into – other ideologies. In fact, populism almost always appears attached to other ideological elements, which are crucial for the promotion of political projects that are appealing to a broader public. Consequently, by itself populism can offer neither complex nor comprehensive answers to the political questions that modern societies generate” (MUDDE & KALTWASSER, 2017, p. 6).

Isto posto, ainda que ideologias robustas possam ser compreendidas como uma 9

expressão do populismo – porque inspiram suas lideranças e orientam sua existência –, entendemos que a recíproca não é verdadeira. Fascismo, socialismo e liberalismo são constituídos de uma série de ideias e crenças que, por sua vez, não são plenamente compatíveis com o populismo propriamente dito. No caso do fascismo, alguns de seus traços fundamentais são o corporativismo, o racismo, a glorificação da violência e a instauração de uma linha de ação baseada na luta contra as instituições estabelecidas, apoiada por meios paramilitares. Já o socialismo carrega em sua identidade a revolução social e a consequente subversão da autoridade instituída, buscando a transformação da organização econômica como forma de viabilizar o desenvolvimento para os setores mais desassistidos da população. Tanto a implementação de uma agenda política fascista quanto a de um programa socialista, no limite, levariam o Estado a direções diferentes ao que prega o populismo. Entendemos que o populismo joga as regras do jogo democrático estabelecido, buscando reformá-lo de acordo com seus próprios parâmetros, e não superá-lo. Ao mesmo tempo, nosso esforço de reflexão nos leva à hipótese de que, uma vez no poder e ao tentar transformar o sistema político, o ator populista acaba por degradá-lo, abrindo caminho, em última instância, para outros projetos, com agendas mais exaltadas e definidas, tal qual o fascismo.

Tradução livre do inglês thick-centered ideologies. 9

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Ademais, percebemos que o populismo não se confunde com o liberalismo, questão essa que fundamenta os aspectos constitutivos do fenômeno considerado. Se, por um lado, ainda que algumas formas de populismo admitam a implementação de políticas econômicas de corte liberal – segundo Weyland (1996), caso da América Latina –, por outro, o referido fenômeno entra em rota de colisão com o liberalismo e 10

suas instituições em sentindo mais amplo: a democracia representativa. Isso poderia levar, em última análise, também à supressão das liberdades econômicas, denotando uma condição classificada como iliberalismo. Assim, o primeiro elemento definidor do populismo consistiria em seus líderes tenderem ao autoritarismo, levando-os a se distanciarem ou minarem a capacidade e a credibilidade dos mecanismos que constrangem a atuação do chefe de Governo e de Estado, tais como a imprensa, os partidos políticos, os poderes Legislativo e Judiciário. Levitsky e Ziblatt (2018) compreendem que, em caso de mal funcionamento dos freios e contrapesos institucionais, ou em momentos em que a própria sociedade se comporta de modo a colocar em risco a democracia, apoiando políticos potencialmente autocráticos, a conduta responsável por parte dos partidos e atores políticos moderados e tradicionais deve servir como uma espécie de barreira ao elemento autoritário. Muitos Estados com sistemas políticos mais fracos falharam nesse sentido, tendo presenciado a chegada ao poder de políticos que lentamente vêm depauperando suas democracias – com diferentes graus de sucesso –, ainda que buscando manter um verniz semi-democrático para governar, como na Rússia de Vladimir Putin, na Turquia de Recep Tayyip Erdoğan, na Hungria de Viktor Orbán e na Bolívia de Evo Morales . Já outros não apenas 11

alteraram o funcionamento de seu regime político, mas mudaram de regime, como

A coexistência entre populismo e liberalismo econômico fez-se presente de forma notória no Peru, na 10

Argentina e no Brasil, entre as décadas de 1980 e 1990, mas sempre em um contexto de fragilidade institucional ou de transição de regime político. Weyland sustenta que tanto o neopopulismo quanto o

neoliberalismo buscam obter apoio das massas do setor informal, ao passo que marginalizam

organizações autônomas de estratos mais abastados e atacam a classe política estabelecida. Esta estratégia política levaria à concentração do poder do Estado, impulsionando a agenda de reformas advogada pelo liberalismo econômico, ao mesmo tempo que favorece o líder populista, que utiliza o discurso pró-reforma como justificativa para sua “fome de poder”.

Se nos casos russo e turco a reversão democrática é mais evidente, na Bolívia e na Hungria esse 11

processo tem-se mostrado mais difuso, uma vez que os governos Morales e Orbán inicialmente teriam contribuído para o desenvolvimento das instituições políticas de seus países, mas, com o tempo, mobilizaram o Poder Executivo para enfraquecê-las, buscando perpetuar o seu poder dessa maneira. Ver em: MAINWARING, Scott e BIZZARRO, Fernando. O que aconteceu com as democracias da terceira onda? Journal of Democracy em Português, v. 8, n. 1, maio 2019, p. 18-19.

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Nicolás Maduro, na Venezuela . Finalmente, em sistemas considerados sólidos, os 12

populistas teriam mais dificuldade para perseverar, como se observou na França e na Alemanha; mas, em caso de chegar ao poder, como na Itália e nos Estados Unidos, assunto das seções 1.2 e 1.3, esses atores ainda assim buscam realizar seu propósito, confrontando instituições e cultivando um discurso necessariamente antielitista e antipluralista, como se vê na sequência.

O populismo também deve ser identificado, então, a partir de outros recursos de que suas lideranças lançam mão, seja no exercício do poder, seja na tentativa de alcançá-lo. Retomando as reflexões de Müller, Mudde e Kaltwasser, a divisão da sociedade entre dois grupos internamente coesos e antagônicos entre si – duas generalizações desprovidas de materialidade, normalmente um “povo” e uma “elite degenerada” – é a resultante do antielitismo, segundo aspecto constitutivo dessa manifestação de ordem política, sempre presente nas diversas narrativas elaboradas por seus líderes. Estes tendem a denunciar grupos dominantes tradicionais em seus países, como, no caso do populismo de esquerda, o conjunto de grandes empresários, especialistas, oligarcas e plutocratas que se beneficiam da exploração do sistema econômico nacional e da sociedade. Na narrativa do populismo de direita, esse mesmo grupo, também agregado por acadêmicos e profissionais da comunicação, é responsável por trazer para dentro de suas fronteiras valores estranhos aos seus cidadãos ou por formular ou influenciar políticas incompatíveis com o interesse nacional. Para tanto, os atores combatidos pelos populistas de esquerda são fundamentalmente classificados, ora como corruptos, ora como “neoliberais”. Nos países em desenvolvimento, os termos “submissão” e “servilismo” também podem ser empregados de modo recorrente no

Segundo Stuenkel, Nicolás Maduro pode ser considerado um ditador desde 2017, uma vez que passou a 12

se apoiar nas Forças Armadas para governar. Naquele ano, sofrendo com protestos populares constantes e um Parlamento legitimamente controlado pela oposição, Maduro convocou a chamada Asamblea

Nacional Constituyente de Venezuela, que supostamente teria como objetivo reforçar a Carta Magna

vigente desde 1999, após a chegada de Hugo Chávez ao poder. Na realidade, o que se observou foi a instauração de uma nova instituição que se sobrepunha aos demais poderes, como forma de conter pressões de grupos contrários ao governo, perpetuando, assim, o seu poder. Ver em: Globonews Painel. Globonews. A crise da Venezuela e o papel do Brasil na América latina. Disponível em: https:// globosatplay.globo.com/globonews/v/6027024/ . Acesso em: 23 maio 2019.

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âmbito do debate público , num contexto de repulsa à globalização e às estratégias de 13

desenvolvimento embasadas na economia de mercado. No populismo de direita, as elites tradicionais costumam ser taxadas de globalistas / internacionalistas e apontadas seja como corruptas, seja como incompetentes, e, em outros casos, como “comunistas”. Quando bem explorados, antagonismos desse gênero, chamando a atenção do público para o que (ou quem) não é moralmente aceitável, possuem papel importante na ascensão dos políticos em questão. Sob essa ótica, as elites dirigentes tradicionais, em última instância, por serem degeneradas, não representam a vontade popular. Isso explicaria inclusive o fato de os políticos populistas normalmente não se referirem a suas próprias agremiações como partidos: estes, por definição, buscam representar parte do povo e reconhecem a legitimidade dos demais partidos, o que entra em contradição com a narrativa segundo a qual essa massa homogênea só poderia responder a um único grupo político (MÜLLER, 2016 p. 67). 14

Não obstante este movimento ter caráter plural e diverso, como argumenta Rosanvallon (2011), o terceiro elemento constitutivo do populismo e comum a todos os países em que ele ocorre é o antipluralismo (MÜLLER, 2016, p. 38), somando-se ao autoritarismo e ao antielitismo anteriormente explicitados. Além de combaterem as elites tradicionais de seus países, os populistas o fazem outorgando para si o papel de representantes exclusivos e morais do povo. Entendemos essa postura como uma

generalização excludente: ao afirmar defender os interesses do povo, o populista

classifica e define quem integra esse grupo e quem a ele não pertence. Essa forma de agir vai de encontro à definição tradicional de Estado para as áreas de Direito e Relações Internacionais: sujeito originário do sistema internacional, o Estado é normalmente definido a partir da ideia de soberania (autonomia externa e controle interno), bem como dos seus elementos constitutivos principais, a saber, comunidade de indivíduos; território fixo e determinado; governo autônomo e independente; e

No Brasil, o termo entreguismo compõe esse conjunto de adjetivações pejorativas e é utilizado desde a 13

década de 1940, quando da campanha para a exploração do petróleo, defendida pelos setores civis e militares autointitulados nacionalistas do país. Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/ dicionarios/verbete-tematico/entreguismo . Acesso em: 23 maio 2019.

Uma característica fundamental da democracia é, justamente, a oposição partidária, sendo a sua 14

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finalidade. Entre a comunidade de indivíduos que o compõe, distinguem-se povo e população, uma vez que o primeiro diria respeito somente aos nacionais, natos e naturalizados que, por definição, têm vínculo jurídico com o Estado, ao passo que o segundo engloba o povo e os estrangeiros e apátridas radicados no território nacional (MAZZUOLI, 2012, p. 448-457).

Isto posto, entendemos que o “povo” na concepção populista não significa todo o conjunto de nacionais, natos e naturalizados de um Estado, mas uma parcela da sociedade que seria percebida como a única parte relevante, autêntica ou verdadeira da comunidade política. Os seus integrantes variam em função do contexto e da posição que o partido ou o movimento populista ocupa no espectro político. Além da já mencionada desconsideração das elites dirigentes tradicionais (que não só não representam o povo, como também não o integram), outras parcelas da população podem tornar-se alvo do discurso antipluarlista, como os imigrantes (legalizados e não legalizados) ou até grupos étnicos, religiosos e culturais já estabelecidos em dada sociedade , acentuando conflitos sociais ou causando o recrudescimento do racismo e 15

da xenofobia na localidade considerada.

Ainda seguindo essa lógica, aqueles que não apoiam os atores populistas tampouco poderiam ser considerados integrantes do povo porque, para um ator específico autoproclamar-se seu único e legítimo representante, é preciso que seja materializada uma imagem dessa entidade como uma massa uniforme e coesa internamente. A frase pronunciada por Juan Domingo Perón, em mensagem ao Congresso, por ocasião do Dia Internacional dos Trabalhadores, em 1950, é um exemplo histórico que confirma nossa hipótese:

“Nenhum argentino pode deixar de querer, sem negar seu nome de argentino, o que nós queremos. Por isso, afirmamos que a nossa doutrina é a de todos os argentinos, e que, pela coincidência dos seus

Nos Estados Unidos de Trump, por exemplo, as famílias e os trabalhadores majoritariamente brancos, 15

de cidades e antigas áreas industriais empobrecidas, insatisfeitos com a queda em sua qualidade de vida e com os supostos efeitos das políticas adotadas pelas elites cosmopolitas de Washington são considerados por muitos uma das únicas partes do povo americano com que o presidente realmente se identifica. Essa questão pode ser ilustrada pelas polêmicas em que Trump se envolveu, com declarações e postagens em redes sociais consideradas por seus críticos como discriminatórias, discutidos na seção 1.3.

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princípios essenciais, irá se consolidar definitivamente a unidade nacional” (FRANCO, 2015, p. 126).

É a tríade autoritarismo-antielitismo-antipluralismo como característica definidora do populismo que leva Mudde e Kaltwasser a entenderem que esse fenômeno reivindica que a política seja resultado da vontade geral rousseauniana, porque confere soberania a uma abstração interpretada de forma particular – “povo” – e, em nome disso, pode acabar impactando os sistemas organizacionais e administrativos das democracias representativas, ou mesmo desestabilizar os próprios regimes. Ao analisar a contribuição das ideias de Jean-Jacques Rousseau para a Revolução Francesa, Kissinger (2015) afirma que, se no plano doméstico da França a volonté générale autorizou a supressão da propriedade privada, a abolição das classes sociais e da religião e a contestação e a condenação da autoridade governamental, no plano internacional, ela legitimou o universalismo da Revolução, que, por sua vez, se converteu em uma “cruzada” para combater governos estrangeiros com regimes políticos incompatíveis com seus parâmetros antiabsolutistas e seculares. As ideias avançadas pelo filósofo iluminista, por fim, entravam em choque com o majoritarismo inglês e o sistema de freios e contrapesos norte-americano, tendo influenciado diretamente os totalitarismos do século XX (e também os governos populistas da época, como no já mencionado caso argentino):

“Essas teorias prefiguravam o moderno regime totalitário, no qual a vontade popular irá ratificar decisões já anunciadas pela encenação de manifestações de massa” (KISSINGER, 2015, p. 49).

A consequência de se concordar com essa visão que percebe o populismo como um fenômeno autoritário, antielitista e antipluralista manifesta-se quando alguns grupos ou atores considerados integrantes desse conceito por outras perspectivas ficam excluídos automaticamente da apreciação tal como descrita por nosso trabalho, como aqueles que isoladamente abraçam políticas econômicas insustentáveis (praticantes do chamado populismo fiscal), os atores que possuem uma retórica puramente inflamada

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ou demagógica, mas não se adequam às características anteriores ou, ainda, os que denunciam elites dirigentes estabelecidas, mas não são antipluralistas . 16

Além disso, outro aspecto importante a respeito dos populistas refere-se ao fato de que eles não reconhecem a mídia tradicional como canal de intermediação com a população, buscando reduzir sua dependência estabelecendo contato direto com ela através de meios não convencionais, como as redes sociais. O caso estadunidense ilustra essa questão: desde a campanha presidencial de 2016, Donald Trump recorre à rede social Twitter como ferramenta política, atacando líderes e instituições e, depois que assumiu o poder, já chegou a anunciar decisões que ainda não tinham sido oficialmente tomadas pelo governo. É o que se observa, igualmente, na Itália, onde o MoVimento 5 Estrelas, de Beppe Grillo, ganhou alcance nacional e tornou-se uma das maiores forças políticas do país a partir do blog mantido desde o início por esse ex-comediante (MÜLLER, 2016, p. 63-64).

Os populistas, enfim, associam seus candidatos preferenciais a “vilão” a uma crítica contundente contra a globalização e à contestação do globalismo – que, nessa visão, seria a marca definidora da própria política internacional desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Não nos parece, contudo, que o ataque ao globalismo constitua uma característica aplicável a todos os populistas de diferentes tendências ideológicas, sendo mais comum entre atores de extrema direita. Percebemos que setores populistas de direita atacam a ideia de que um sistema de interdependência em escala planetária geraria prosperidade aos Estados e reduziria o risco de conflitos futuros , pois 17

enxergam nisso uma sorte de conspiração costurada em nível internacional entre elites progressistas, comprometidas com outros interesses que não os do “povo”. Ou seja, por essa ótica, os dirigentes do establishment trabalhariam em benefício próprio e, com isso, permitiriam que as forças disruptivas e malignas da globalização (a imigração, a financeirização, a abertura ao comércio) sobrepusessem-se à soberania de seus

Note-se que os chamados populistas americanos do século XIX, da linha liberal-progressista, também 16

são exemplo disso, não podendo ser considerados populistas por nossa métrica.

Visão historicamente compartilhada pelos Estados desde o pós Segunda Guerra, o globalismo precede a 17

globalização e orienta seu funcionamento, advogando a necessidade de se pensar as práticas humanas e fazer política em escala global. Esse tema é desenvolvido nos próximos capítulos, que tratam da política externa americana e da ordem global em sua relação com a área do comércio internacional.

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respectivos países. Donald Trump personifica de forma singular essa questão, como será abordado nas próximas seções.

Os atores populistas, então, apresentam-se contrários a regras, procedimentos, instituições políticas, noções historicamente estabelecidas e compartilhadas pelos países e, nos casos como o acima descrito, o próprio modus operandi da ordem internacional, procurando deixar seus respectivos cidadãos ou eleitores constantemente em alerta, a fim de tirar proveito da sensação de insegurança fabricada por eles mesmos. Isso facilita a construção de muros (HASSNER & WITTENBERG, 2016), imaginários e por vezes físicos, entre os integrantes de uma mesma comunidade nacional ou em relação ao mundo exterior. Nessa estratégia de ação política, os aspectos autoritário, antielitista, antipluralista do populismo se manifestam de forma evidente, além de exporem uma questão relevante para o trato do fenômeno Trump (e de outros atores populistas em seus respectivos países): a concorrência da clivagem cosmopolitismo versus nacionalismo em relação à da esquerda versus direita, o que estaria transformando a percepção do eleitorado na hora de votar e os arranjos partidários e alianças eleitorais e governamentais no mundo. No caso norte-americano, a alta rejeição da então candidata Hillary Clinton e a confluência de alguns pontos programáticos de Bernie Sanders com os de Donald Trump (ZEILER, in: JERVIS et alii, 2018, cap. 10) levaram à transição de parcelas do eleitorado democrata para o campo republicano após a vitória de Hillary nas primárias de seu partido . Ou seja, ala mais exaltada à esquerda e outras faixas do 18

eleitorado democrata com perfil distante do mainstream centrista dos Clinton migraram

O discurso antielitista de Sanders e sua visão sobre o comércio internacional combinam em grande 18

medida com Trump: quando da campanha presidencial de 2016, ambos atores criticavam a “elite corrupta” de Washington e repudiavam a globalização, prometendo rever o papel dos Estados Unidos nas instituições internacionais e mesmo retirar seu país de acordos comerciais em vigor ou em vias de implementação, como o TPP. Sobre o posicionamento de Sanders em relação a esse tema, ver em: STRAUSS, Daniel. What Sanders wants on trade. Disponível em: https://www.politico.com/blogs/2016-dem-primary-live-updates-and-results/2016/07/bernie-sanders-trade-platform-225133 . Acesso em: 28 maio 2018.

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Tabela 2: Acordos preferenciais de comércio dos Estados Unidos:
Gráfico 2: Partido Republicano domina a maioria das fases de negociação e  implementação de acordos comerciais:

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