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O que é a Música?

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Academic year: 2019

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Texto

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www.lusosofia.net

QUE ´

E A M ´

USICA?

Hans Heinrich Eggebrecht

Carl Dahlhaus

Tradutor: Artur Mor˜ao

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Covilh˜a, 2011

FICHAT ´ECNICA

T´ıtulo:Que ´e a M´usica?

Autor: Hans Heinrich Eggebrecht / Carl Dahlhaus Colecc¸˜ao: Artigos LUSOSOFIA

Direcc¸˜ao: Jos´e Rosa & Artur Mor˜ao Design da Capa: Ant´onio Rodrigues Tom´e Composic¸˜ao & Paginac¸˜ao: Jos´e M. S. Rosa Universidade da Beira Interior

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Agradecimento

Agradece-se ao editor, Joaquim Soares da Costa, da Texto & Grafia, a am´avel autorizac¸˜ao para aqui se oferecer aos cultores e apreci-adores da filosofia e da m´usica, portugueses e outros, a ocasi˜ao de libar estes textos de dois dos maiores music´ologos alem˜aes do s´eculo XX e da cena internacional.

Trata-se do Cap´ıtulo X da obra a duas vozesQue ´e a m´usica?, que saiu na vers˜ao portuguesa em Abril de 2009.

Eis o rol dos outros cap´ıtulos: I – Existe “a” m´usica?; II – Conceito de m´usica e tradic¸˜ao europeia; III – Que quer dizer “ex-tramusical”?; IV – M´usica boa e m´usica m´a; V – M´usica antiga e M´usica Nova; VI – M´usica antiga e M´usica Nova; VII – Conte´udo musical; VIII – Do belo musical; IX – M´usica e tempo.

A traduc¸˜ao tem por base o texto original – Was ist Musik? – publicado pela casa Florian Noetzel, Verlag der Heinrichshofen-B¨ucher, Wilhelmshaven 2001 (4.a

edic¸˜ao).

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Que ´e a M ´usica?

Hans Heinrich Eggebrecht / Carl Dahlhaus

Hans Heinrich Eggebrecht

N˜ao esperemos que, no fim deste livro, surja uma definic¸˜ao. ´E j´a rara uma definic¸˜ao de m´usica respeitante s´o ao presente e nisto condicionada, eventualmente de modo inconsciente, pela posic¸˜ao de observac¸˜ao. Pois, como definic¸˜ao em sentido estrito, n˜ao se encontra em lado algum. E uma definic¸˜ao de orientac¸˜ao hist´orica, mesmo quando pretendesse referir-se “s´o” `a m´usica europeia, reve-lar-se-ia, se ela fosse poss´ıvel, talvez t˜ao aproximada e p´alida que nos levaria a perguntar se valer´a a pena.

Nem sequer me propus enquadrar nos textos anteriores – em-bora eles contenham uma perspectiva – a pergunta do t´ıtulo e do cap´ıtulo conclusivo do nosso livro de modo a limitar-me a recolher aqui o que foi dito e de modo que, adicionando o todo, se obtenha como resultado o que ´e a m´usica.

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escolhidas deveriam ser menos importantes do que aquilo a que aludem.

Sem d´uvida, as caracter´ısticas constantes da m´usica europeia n˜ao se esgotam nas trˆes que mencionei, e pode duvidar-se que aquelas que aqui tenho por essenciais sejam verdadeiramente as mais essenciais.

Em primeiro lugar, poderia citar-se tamb´em “a audibilidade”; a esse respeito, na vertente do “material sonoro” importa distinguir, na l´ıngua alem˜a, entreGer¨ausch,KlangeTon. Mas a audibilidade (incluindo as suas negac¸˜oes intencionais) pode aqui, por um lado, pressupor-se como evidente e, por outro, n˜ao ´e uma caracter´ıstica espec´ıfica da m´usica europeia. ´E, pelo contr´ario, uma caracter´ıstica europeia o facto de, no centro da m´usica, estar o som [Ton] como som “musical” (gr. phtongos, lat. sonus musicus), isto ´e, como uma entidade sonora da qual se quer saber e se sabe – embora de modo sempre novo – o que ela ´e. Chameimathesis`a instˆancia que cria esta consciˆencia e institui assim o som como “musical”; pode tamb´em definir-se de outro modo, por ex. logosouratioou teoria, ou ainda a inteligˆencia que sistematiza, o pensamento cient´ıfico. E se se afirmasse que o som, hoje, j´a n˜ao ´e o elemento essencial da m´usica (asserc¸˜ao que seria contestada com forc¸a), o pensamento te´orico continuaria a ser sempre a instˆancia essencial, mesmo a respeito de tudo o mais que pode ser ouvido, na medida em que este chega `a m´usica. (Isto vale tamb´em, por ex., para o sector da m´usica ligeira epop, porque ela utiliza apenas um material produzido com base te´orica.)

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Que ´e a M´usica? 5

de operac¸˜oes “instrumentais” que lhe conferem a faculdade de dar vida `a m´usica como forma dotada de sentido, que consta de ele-mentos aconceptuais e pode ser artificialmente produzida. Tentei aprofundar noutros lugares estas quest˜oes, sempre em relac¸˜ao ao confronto entre palavra e som, l´ıngua e m´usica, m´usica vocal e instrumental, aos impulsos e `as tendˆencias que emergem do par-alelismo e da polaridade existentes entre l´ıngua e m´usica. Aqui bastar´a repetir que – tamb´em na m´usica vocal – o espec´ıfico da m´usica, o car´acter que no reino do sonoro e do aud´ıvel possui exclusivamente por si mesma, ´e de natureza instrumental, porque ele surge e tem hist´oria em virtude da actividade mental que ex-plora, ordena e sistematiza o material sonoro a n´ıvel “matem´atico” e “f´ısico”, tornando-o assim dispon´ıvel para o pensamento musical. Poderia talvez dizer-se que, como caracter´ıstica essencial da m´usica, tamb´em o aspecto da forma, o acto de formar e estruturar deveria ter sido mencionado e discutido. O ser-aud´ıvel e ter-forma s˜ao qualidades de toda a manifestac¸˜ao e mensagem, para que se possam definir como musicais no sentido mais amplo da palavra; e tamb´em a peculiaridade da forma na m´usica europeia ´e dada au-tomaticamente pela mathesis. O especificamente musical do som pode dizer-se aut´onomo sob a condic¸˜ao de que o som musical se re-alize como resultado de um reconhecimento cient´ıfico da natureza do sonoro, e por isso em virtude do pr´oprio sonoro, por outras palavras, que seja caracterizado por si mesmo. Corresponde ao es-pecificamente musical da forma, que ´e aut´onomo, porque desdobra o espec´ıfico do som musical em forma: em estruturas (qualidades dos intervalos, sistemas tonais, modalidade, qualidade e sistemas do som) que chegam na pr´atica a uma forma temporal muito mais concreta. A tal respeito a m´usica no sentido europeu do conceito ´e – como j´a foi dito – sempre aut´onoma, mesmo quando a palavra cantada e as func¸˜oes parecem tudo dominar. E, no entanto, nunca ´e aut´onoma, se a forma – mesmo quando idealizada enfaticamente

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como aut´onoma – for determinada ao mesmo tempo por conte´udos, um dos quais, e essencial, definimos como emoc¸˜ao.

Mesmo se houvesse outras caracter´ısticas essenciais para l´a das trˆes aqui mencionadas, emoc¸˜ao, mathesise tempo, estas s˜ao sem-pre suficientes para gerar uma s´erie de princ´ıpios que – condicionan-do-se reciprocamente na constante junc¸˜ao – caracterizam a m´usica (no sentido europeu). Citamos aqui, de seguida, apenas sete.

As trˆes caracter´ısticas dizem todas respeito ao homem no cen-tro da sua existˆencia. A emoc¸˜ao ´e, por assim dizer, o cencen-tro da natureza sens´ıvel do homem. Amathesis´e o instrumento capaz de descobrir e constituir aharmonia(ordenac¸˜ao), ou seja, a dimens˜ao que se encontra perante este centro e se lhe contrap˜oe, embora seja por ele constantemente ansiada. Mas o tempo ´e aquilo em que as outras duas se tornam realidade como m´usica, e ´e para o homem a mais real de todas as realidades.

As trˆes caracter´ısticas s˜ao todas imediatas para a m´usica (em-bora mediadas): n˜ao designam o que significam, s˜ao-no. A emoc¸˜ao ´e inerente `a manifestac¸˜ao sonora como exclamac¸˜ao do ˆanimo, activa-se imediatamente em face da produc¸˜ao e (tamb´em isto ´e claro) da reproduc¸˜ao de m´usica. Aharmonia ´e, como elemento sonoro, a natureza do som seleccionada pela mathesis; a m´usica ´e a sua aparic¸˜ao sens´ıvel. E o tempo ´e uma qualidade essencial do pr´oprio som, que enquanto tal faz surgir a m´usica como jogo temporal e torna musical o tempo.

Estas trˆes caracter´ısticas enquanto tais, e tamb´em o alto grau de imediatidade com que constituem a m´usica e nela aparecem como conte´udo (j´a com o simples ser da m´usica) qualificam a peculiari-dade da m´usica em relac¸˜ao `as outras artes. O seu elemento pecu-liar ´e a determinac¸˜ao abstracta e aconceptual com que consegue acolher em si e fazer compreender com potencialidade infinita o existencial do ser humano, sendo ela pr´opria existencial.

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Que ´e a M´usica? 7

A m´usica ´e – de modo incompar´avel no seu g´enero e na sua am-bivalˆencia – imagem do cosmos e quinta-essˆencia da representac¸˜ao da paix˜ao humana, voz ang´elica em louvor de Deus e instrumento do dem´onio, promotora e destruidora do bem e do mal. Como nenhuma outra arte, ela pode sarar e consolar, embelezar e exaltar, estimular e pacificar, seduzir e fortificar. Sendo existencial neste sentido, consegue obter em grau m´aximo o efeito geral da arte: atrair a si e ao seu mundo – um outro mundo – o homem na sua esfera de existencial.

O car´acter essencial que o conceito de mathesis define pode tornar-se respons´avel pela historicidade da m´usica europeia – uma capacidade de se fazer hist´oria, que se apresenta como forte inclina-c¸˜ao hist´orica, como ritmo veloz (embora de modo historicamente diferenciado) da hist´oria. De facto, o pensamento musicol´ogico, que examina a mat´eria sonora sob o aspecto das relac¸˜oes instau-radas, uma e outra vez, com a m´usica, torna poss´ıvel o pensa-mento musicalmente poi´etico. E este ´e caracterizado pela cont´ınua concepc¸˜ao de m´usica sempre diferente e nova – um pensar em m´usica que apresenta um desenvolvimento coerente nos proces-sos de ligac¸˜ao `a tradic¸˜ao e de renovac¸˜ao, e faz aparecer portanto a hist´oria da m´usica n˜ao s´o como sucess˜ao de m´usica sempre nova, mas tamb´em como continuumde fases e est´adios que s˜ao sempre deriv´aveis um do outro, mesmo no seio da m´usica.

O pensamento musical, como pensamento te´orico, est´a sempre entrosado com o pensamento geral: a capacidade de a m´usica se fazer hist´oria no seu seio torna poss´ıvel ao pr´oprio tempo a sua participac¸˜ao na hist´oria geral e cria os pressupostos de tal implica-c¸˜ao. Al´em disso, a m´usica, no concurso de emoc¸˜ao, mathesis e tempo, ´e um instrumento que reage ao material com a sensibili-dade de um sism´ografo: ela est´a assim predestinada a representar e a exprimir com grande precis˜ao o que implica e concerne ao ser humano, ao homem na sua historicidade e `a hist´oria dos homens.

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Que ´e a M´usica? 9

Carl Dahlhaus

A reflex˜ao sobre o que ´e a m´usica, perante o facto de que uma abor-dagem directa e intuitiva s´o poderia descrever-se de modo vago e em termos metaf´oricos, pode partir da escrita usada para a notac¸˜ao musical e da linguagem que usamos connosco mesmos e com os outros para a entender.

Na interpretac¸˜ao da escrita, embatemos, por´em, num singular dilema. O toposliter´ario da inefabilidade, a declarac¸˜ao formal de que com as palavras seria imposs´ıvel expressar justamente o que ´e decisivo, constitui o modelo de um lugar comum an´alogo da est´etica musical: a ideia de que os momentos a que est´a ligado o “verdadeiro” significado de uma obra musical n˜ao podem ser fix-ados pelas notas. O que ´e escrito torna-se letra morta, o esp´ırito da obra – afirma-se – n˜ao ´e fixado e preservado pela notac¸˜ao, mas s´o se revela numa comunicac¸˜ao entre compositor e int´erprete, e que utiliza o texto musical como simples ve´ıculo.

Na concepc¸˜ao segundo a qual na m´usica conta aquilo que n˜ao pode ser transcrito pelas notas confluem, por´em, dois elementos, que, para evitar equ´ıvocos, importa distinguir: por um lado, os desvios da representac¸˜ao ac´ustica relativamente ao texto musical; por outro, as diferenc¸as entre o que ´e acusticamente dado e o seu significado musical. A mescla destes dois elementos n˜ao ´e um facto puramente casual e expressa antes a convicc¸˜ao de que o sen-tido da m´usica – entendido como parecenc¸a lingu´ıstica – consistiria justamente nas diferenc¸as entre o texto escrito e a sua representac¸˜ao

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ac´ustica, ou seja, nos matizes da dinˆamica e da articulac¸˜ao, nas alterac¸˜oes ag´ogicas do ritmo. O costume de apreender uma relac¸˜ao estreita entre os desvios do texto – as pequenas variantes que de-finem o car´acter de uma interpretac¸˜ao – e o significado musical funda-se na sensac¸˜ao de que a m´usica diz alguma coisa, sem que seja claro e inequ´ıvoco o que ela realmente expressa. Numa formu-lac¸˜ao paradoxal, ela surge como linguagem expressiva, sem conte´udo e objecto bem delimitados. Mas se o significado da m´usica – o seu sentido espec´ıfico, aconceptual e n˜ao figur´avel – n˜ao ´e tanto o que ´e expresso quanto a pr´opria express˜ao, ent˜ao o modo de execuc¸˜ao, as diferenciac¸˜oes ag´ogicas e dinˆamicas introduzidas, ganham um acento grac¸as ao qual a forma existencial est´etica de uma obra musical se distingue, em princ´ıpio, da de uma obra po´etica – ab-straindo das formas extremas da l´ırica que tendem a anular os sig-nificados das palavras.

Se, por um lado, a obra musical – entendida como associac¸˜ao de sons com sentido – parece, pois, constituir-se s´o para l´a do texto, por outro, o conceito de obra musical, tal como se foi formando en-tre os s´eculos XIV e XVIII, implica a ideia de que uma composic¸˜ao fixa em notas n˜ao ´e um simples documento de pr´atica musical, mas – em analogia com um poema – ´e um texto no significado enf´atico do termo: uma estrutura que d´a forma a um significado expressivo e cuja exposic¸˜ao ac´ustica desempenha uma func¸˜ao puramente in-terpretativa. A obra, que como tal existe tamb´em quando n˜ao ´e tocada, estaria portanto contida, em primeiro lugar, no texto e n˜ao na execuc¸˜ao.

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E poss´ıvel, portanto, acentuar de modo diferenciado e at´e con-tradit´orio a relac¸˜ao entre composic¸˜ao escrita e exposic¸˜ao ac´ustica.

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sub-Que ´e a M´usica? 11

ordina e cujo significado tenta manifestar: um significado que est´a, em primeiro lugar, ligado `a notac¸˜ao, e n˜ao ao modo de execuc¸˜ao ou `as diferenc¸as existentes entre a realizac¸˜ao ac´ustica e o texto escrito. E na medida em que a execuc¸˜ao se concebe como meio delineia-se mais claramente o car´acter de obra da composic¸˜ao. O que se fixou pela notac¸˜ao surge como substˆancia ou essˆencia da m´usica, o n˜ao registado como acidente.

Ao longo da mesma linha de evoluc¸˜ao hist´orica em que a composic¸˜ao escrita, de simples esboc¸o, que como um esquema coreogr´afico delineou os contornos de um processo, se consolidou num texto, que surge como an´alogo de um texto liter´ario, afirmou-se cada vez mais, por outro lado, a convicc¸˜ao est´etica de que, na m´usica, o n˜ao registado em notas ´e o elemento decisivo. (O crit´erio da musical-idade ´e justamente a capacmusical-idade de fazer justic¸a ao n˜ao registado em notas.) Contudo, a contradic¸˜ao que os separa, a acentuac¸˜ao da notac¸˜ao e, ao inv´es, a sua minorac¸˜ao, portanto, o conceito enf´atico de texto e de obra e a opini˜ao de que, por mor do esp´ırito, se podem ou at´e devem alterar as notas de um texto musical, s˜ao entre si complementares. No s´eculo XIX, a justeza da notac¸˜ao – uma justeza que se deve entender no plano est´etico como ten-tativa de consolidar o significado de cariz lingu´ıstico da m´usica atrav´es da escrita, isto ´e, atrav´es de um complexo de signos que expressam a sua dinˆamica, ag´ogica e articulac¸˜ao, portanto de ano-tar igualmente aquilo que se subtrai `a notac¸˜ao musical – foi igual-mente elevada a postulado; o mesmo aconteceu, ali´as, com a liber-dade da representac¸˜ao ac´ustica frente ao texto escrito, o qual, as-sim se pensava, em vez de falar a partir de si, deveria ser levado `a linguagem atrav´es da interpretac¸˜ao. A relac¸˜ao entre notac¸˜ao e realizac¸˜ao ac´ustica pode, pois, descrever-se em termos de dial´ectica de consolidac¸˜ao e emancipac¸˜ao: quanto mais circunstanciada e pedante se tornava a notac¸˜ao musical, tanto mais radical surgia a afirmac¸˜ao da autonomia do int´erprete. Tentava-se consolidar o

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emento n˜ao regist´avel em notas e, ao mesmo tempo, insistia-se na sua irracionalidade.

O “significado”, que se subtrai `a notac¸˜ao, n˜ao se entende apenas como a essˆencia expressiva da m´usica – dependente da interpretac¸˜ao –, mas tamb´em como a sua estrutura l´ogica, n˜ao directamente ex-pressa pela escrita: nem a func¸˜ao tonal de um acorde nem a defini-c¸˜ao de um motivo – para n˜ao falar da dedudefini-c¸˜ao de um motivo a partir de outro – se podem ler a partir das notas, as quais repre-sentam uma escrita sonora e n˜ao semˆantica. (Podemos unificar a codificac¸˜ao de func¸˜oes tonais proposta por Hugo Riemann, por ele chamada “an´alise”, com os seus manuais sobre “fraseado” e enten-der o todo como uma tentativa de integrar a notac¸˜ao dos sons por meio de uma notac¸˜ao dos significados.)

No entanto, sem termos de renunciar `a terminologia estabele-cida, n˜ao devemos iludir-nos sobre o facto de que a asserc¸˜ao, se-gundo a qual a m´usica ´e desprovida de objecto, mas expressa um significado, ´e necessariamente confusa sob o ponto de vista da teo-ria lingu´ıstica. A referˆencia a uma palavra como “unic´ornio”, cujo significado ´e un´ıvoco, embora privado de qualquer referente real, ´e t˜ao in´util como o recurso a um operador l´ogico como a palavrinha “ou”, que desempenha uma func¸˜ao semˆantica, sem designar uma coisa ou uma propriedade; o conceito de unic´ornio ´e, de facto, uma variante imagin´aria de algo que realmente existe e portanto, mesmo indirectamente, refere-se `a realidade, e os operadores s˜ao elemen-tos de proposic¸˜oes, cuja substˆancia ´e formada por palavras com um conte´udo de realidade. Mas o significado da m´usica, entendido no sentido da l´ogica harm´onica e mot´ıvica, n˜ao est´a ancorado, de modo directo ou indirecto, na realidade objectiva.

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Que ´e a M´usica? 13

apenas uma s´ıntese de momentos sint´acticos, e a expressividade – por exemplo, o car´acter expressivo de uma marcha f´unebre – se-ria uma consequˆencia do uso que da m´usica se faz. (Que func¸˜oes externas, desempenhadas pela m´usica, imigrem gradualmente, por assim dizer, como caracteres para o ˆamago das obras ´e um processo hist´orico que decerto parece tornar dif´ıcil uma an´alise pragm´atica; mas n˜ao prejudica seriamente a tese que, em princ´ıpio, reduz a hermenˆeutica musical `a pragm´atica e, portanto – a interpretac¸˜ao de significac¸˜oes, em ´ultima instˆancia, `a an´alise de func¸˜oes).

Afigura-se improv´avel, por´em, que se possa efectivamente re-duzir a l´ogica musical a simples sintaxe. O problema complica-se depois porque, segundo parece, os pr´oprios linguistas n˜ao est˜ao de acordo quanto a estabelecer em que medida as regras sint´acticas implicam momentos semˆanticos. Para os fins da teoria musical – sem termos de nos enredar nas dificuldades n˜ao resolvidas de outra disciplina – basta, pois, adoptar por agora a obsoleta distinc¸˜ao entre l´ogica e gram´atica, que est´a documentada por exemplo na diferenc¸a entre sujeito l´ogico e sujeito gramatical de uma proposic¸˜ao lingu´ısti-ca. Na transformac¸˜ao de uma proposic¸˜ao da voz activa em pas-siva muda o sujeito gramatical, mas o l´ogico permanece o mesmo. Afigura-se razoavelmente poss´ıvel fazer tamb´em na m´usica uma distinc¸˜ao semelhante entre l´ogica e gram´atica.

Desde 1788, ano em que foi cunhado por Johann Nikolaus Forkel, o termo “l´ogica musical” indicou, em primeiro lugar, a l´ogica harm´onico-tonal e, em seguida, tamb´em a tem´atico-mot´ıvica, que `a primeira est´a interactivamente ligada. Hugo Riemann desve-lou a essˆencia da l´ogica harm´onica, e portanto do nexo sistem´atico dos acordes, nas func¸˜oes tonais de t´onica, dominante e subdomi-nante. Segundo Riemann, no entanto, o significado de um acorde, a sua func¸˜ao dominante ou subdominante, ´e em princ´ıpio inde-pendente da posic¸˜ao que ele assume no contexto da frase musical. Pode, sem mais, postular-se – com Kirnberger – que na cadˆencia a subdominante deve preceder e seguir-se `a dominante; todavia,

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uma dominante n˜ao deixa de ser dominante pelo facto de se en-contrar numa posic¸˜ao inabitual. A regra em cuja base a progress˜ao subdominante-dominante n˜ao ´e invert´ıvel em dominante-subdomi-nante sem perda de efeito torna-se aqui uma regra sint´actica; mas a l´ogica, o nexo interno dos acordes com o centro tonal, distingue-se substancialmente da sintaxe (apesar das influˆencias rec´ıprocas): uma transformac¸˜ao gramatical, a transposic¸˜ao dos acordes na cadˆen-cia, deixa inalterado, pelo menos na substˆancadˆen-cia, o seu sentido tonal, como Riemann o definira. (Sem d´uvida, este sentido surge a uma luz diferente, mas isto vale tamb´em para as transformac¸˜oes lingu´ıs-ticas: ao modificar-se uma frase da voz activa para a passiva, varia a ˆenfase dada `as palavras e a consequente modificac¸˜ao semˆantica pode ler-se no facto de que a forma activa sugere uma continuac¸˜ao diferente da passiva.)

Que a l´ogica musical n˜ao se deixe diluir inteiramente em regras sint´acticas n˜ao constitui, por´em, um motivo suficiente para cair no extremo oposto e supor que tamb´em na m´usica privada de texto, n˜ao program´atica, existe um estrato semˆantico, presente em cada instante. (Os s´ımbolos musicais e as alegorias n˜ao constituem um “estrato”, como o entendeu Roman Ingarden, uma vez que eles n˜ao se manifestam regularmente, mas s´o de forma intermitente.)

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Que ´e a M´usica? 15

como mo lingu´ıstico podemos distinguir entre presente e represen-tado: entre o que ´e dado a n´ıvel sens´ıvel e aquilo a que ele alude. Contra a tese de Roman Ingarden da “mono-estratificac¸˜ao” [ Ein-schichtigkeit] da m´usica, uma an´alise fenomenol´ogica que n˜ao se deixe alarmar pelo modelo da l´ıngua e que n˜ao negue, sem mais, a presenc¸a de um significado quando este se n˜ao encontra em sen-tido lingu´ıstico, dever´a insistir no facto de que na m´usica ´e poss´ıvel separar do substrato ac´ustico um segundo substrato, compar´avel na l´ıngua ao som das palavras; este segundo estrato – e decerto como estrato universal – constitui-se nos s´eculos XVIII e XIX atrav´es das func¸˜oes tonais e dos nexos mot´ıvicos; a partir do momento em que ele n˜ao se resolve em regras sinnt´acticas pode, sem mais, definir-se como estrado de “significados” embora, como j´a se afir-mou, seja pouco oportuno falar de semˆantica musical e sugerir falsas analogias lingu´ısticas ou misturar de modo inadmiss´ıvel o estrato semˆantico mot´ıvico-tonal com inclus˜oes de simbologia e alegorismo. Decisivo ´e que exista uma contraparte para a sintaxe musical que, de outro modo, se deveria conceber ambiguamente como desprovida de correlato (que na l´ıngua ´e constitu´ıdo, pelo contr´ario, pela semˆantica).

O conceito de linguagem musical, cunhado no s´eculo XVIII, visava a concatenac¸˜ao de momentos l´ogicos e expressivos: a evolu-c¸˜ao ao longo da qual, a partir da m´usica vocal, ligada `a linguagem, nasceu a m´usica instrumental que constitui tamb´em uma linguagem, ´e um dos processos fundamentais da hist´oria da m´usica.

Entre os problemas em que nos enredamos, ao reflectir sobre a relac¸˜ao entre m´usica e linguagem, um dos principais, embora tenha sido descurado ou, tanto quanto parece, de todo ignorado ´e a quest˜ao da influˆencia exercida no car´acter lingu´ıstico da m´usica pela linguagem que se utiliza, ao falar de m´usica. Jamais algu´em duvidou de que a m´usica como linguagem deve elementos deci-sivos `a m´usica com linguagem ou relativa `a linguagem; menos evidentes parecem ser, pelo contr´ario, os efeitos que, a partir do

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discurso sobre m´usica, tˆem ressonˆancia na coisa em si. Por outras palavras, que influˆencia exerce sobre o estrato semˆantico, que sug-ere ou permite definir a m´usica como linguagem, o facto de o trato com a m´usica ser, em parte, mediado pela l´ıngua?

Para em geral se reconhecer o problema e n˜ao se ter por insen-sata a quest˜ao, importa todavia libertar-se de um preconceito que, durante muito tempo, dominou de modo prejudicial as ciˆencias do esp´ırito: o preconceito de que uma terminologia – um modo de falar – ´e apenas uma forma expressiva secund´aria para ligar a palavras estados de coisas que, para a consciˆencia, est˜ao j´a definidos atrav´es da intuic¸˜ao imediata dos fen´omenos. Como a filosofia re-conheceu, com clareza crescente, nestas ´ultimas d´ecadas, a lin-guagem n˜ao ´e um simples sistema semiol´ogico que exprime poste-riormente factos dados de modo pr´e-lingu´ıstico, mas um meio que, acima de tudo, abre um acesso `as coisas. Os fen´omenos s˜ao sem-pre dados “como algo”: um objecto ´e em geral um objecto s´o no recinto de um significado determinado. Mas o significado por cuja mediac¸˜ao ele se constitui nunca ´e independente da linguagem em que este significado surge articulado. O mundo em que vivemos ´e linguisticamente constitu´ıdo.

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acto de se formar atrav´es das categorias de um ac´ustico, as quais interagem com as categorias de um sujeito musical, em vez de estarem a estas pr´e- ordenadas).

Mas a formac¸˜ao categorial, grac¸as `a qual a m´usica se constitui como tal, ´e sempre linguisticamente determinada – e isto significa que ela ´e modelada por uma determinada linguagem. O elemento constitutivo da m´usica n˜ao ´e dado por uma “consciˆencia em geral”, mas por uma consciˆencia que existe na linguagem e a ela est´a acor-rentada. Que a m´usica seja hist´orica e linguisticamente formada representa as duas faces da mesma realidade.

N˜ao ´e dif´ıcil demonstrar, com base nos conceitos de consonˆancia e dissonˆancia, cuja importˆancia fundamental ´e indiscut´ıvel, o facto de que a formac¸˜ao categorial da m´usica depende da linguagem. A dicotomia expressa por estes dois termos antag´onicos ´e um dado da natureza, mas tem um car´acter hist´orico. A psicologia do som, que busca extrair dados de facto naturais, fala – desde Carl Stumpf em diante – de “graus de sonˆancia” para clarificar que “em rigor” (isto ´e, no natural equipamento ps´ıquico do homem) subsistem apenas diferenc¸as de grau entre os acordes e que a diferenc¸a de princ´ıpio, a subdivis˜ao dos intervalos na classe das consonˆancias e na oposta das dissonˆancias, representa uma sobreformac¸˜ao hist´orica. Mas, como Stumpf admitia sem dificuldade, a psicologia do som n˜ao ´e a mesma coisa que a teoria musical; e a cunhagem de neologis-mos como “sonˆancia” e “grau de sonˆancia”´e apenas um salto da terminologia musical para a extramusical. (Na m´usica do s´eculo XIX, de que partiu Stumpf, os “graus de sonˆancia” n˜ao eram um facto musical com um papel activo na t´ecnica compositiva). Mas no momento em que a linguagem da teoria musical, que trabalha com a dicotomia consonˆancia-dissonˆancia, pode ser observada a partir de fora, na sua transposic¸˜ao para a linguagem da psicolo-gia do som, surgem caracter´ısticas estruturais que n˜ao se tornavam conscientes, enquanto se permanecesse ligado `a tradicional ter-minologia musical, como se esta fosse a linguagem das pr´oprias

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coisas. A diferenc¸a de princ´ıpio entre consonˆancia e dissonˆancia – uma diferenc¸a que de nenhum modo foi anulada como forma in-tuitiva em virtude da deslocac¸˜ao da fronteira entre as classes de intervalos – deixa de ser ´obvia, ap´os as descobertas da psicolo-gia do som e revela-se como uma formac¸˜ao categorial de origem hist´orica. Desde o s´eculo XII ao s´eculo XIX compˆos-se m´usica com a dicotomia, sem encarar a possibilidade de se partir apenas de diferenc¸as de grau, uma possibilidade que no s´eculo XX foi definida como “gradiente harm´onico”. A formac¸˜ao categorial era, por´em, linguisticamente determinada ou, pelo menos, delineada; de facto, a tradic¸˜ao lingu´ıstica da dicotomia entre consonˆancia e dissonˆancia era mais antiga do que a ideia compositiva de estabele-cer – por meio de uma mudanc¸a das qualidades tonais, entendida como tendˆencia da dissonˆancia para a consonˆancia – nexos que representam um fragmento de l´ogica musical. A t´ecnica sonora da polifonia n˜ao se baseava numa intuic¸˜ao musical independente da linguagem, mas numa forma de pensamento modelada pela lin-guagem – pela tradic¸˜ao lingu´ıstica greco-latina.

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difer-Que ´e a M´usica? 19

entes formulac¸˜oes lingu´ısticas da mesma coisa n˜ao poderiam se-quer relacionar-se entre si, porque para l´a das mut´aveis formulac¸˜oes n˜ao existiria a “mesma coisa”; eliminar-se-ia a identidade do fen´o-meno, no qual por uma troca da nomenclatura surgiriam sempre novos trac¸os. Mas se n˜ao quisermos renunciar a esta identidade – e n˜ao h´a motivo para fazer de outro modo – ´e necess´ario ad-mitir a existˆencia de um substrato comum `as diversas explicac¸˜oes lingu´ısticas.

Os graus de sonˆancia, que Stumpf trouxe `a consciˆencia, eram um momento integrante do fen´omeno consonˆancia que a tradic¸˜ao lingu´ıstica da teoria musical europeia ocultara. E se se afirmou que eles no s´eculo XIX, quando foram descobertos pela psicolo-gia do som, em rigor n˜ao faziam parte dos factos musicais – ou dos factos pelos quais se organiza a composic¸˜ao – tal n˜ao significa, efectivamente, que eles devam, por princ´ıpio e para sempre, ficar exclu´ıdos do ˆambito do “musical” (no sentido estrito do termo). No s´eculo XX, ap´os a emancipac¸˜ao da dissonˆancia (como passo com-positivo e te´orico-musical para o qual Arnold Sch¨onberg encon-trou ulteriormente uma confirmac¸˜ao na psicologia do som de Carl Stumpf), os graus de sonˆancia tornaram-se objecto de uma con-sciente disposic¸˜ao composicional, como sublinhou Ernst Krenek nos seus estudos sobre o contraponto dodecaf´onico. Foram, desde sempre, uma realidade psicol´ogica, mesmo na latˆencia musical e te´orico-musical; mas tornaram-se um facto musical, tal como a di-cotomia entre consonˆancia e dissonˆancia – s´o mediante uma de-cis˜ao compositiva, ou seja, hist´orica, em que se inseria uma an´alise lingu´ıstica do fen´omeno. Entre a graduac¸˜ao e a dicotomia existe, pois, uma relac¸˜ao de “sobreposic¸˜ao” ou “sobreformac¸˜ao”: o que ´e dado a n´ıvel psicol´ogico, a s´erie dos graus de sonˆancia, constitui o substrato da ideia de compor, utilizando a diferenc¸a entre duas classes de intervalos, a qual, de certo modo, ´e catapultada para o estado-de-coisas psicol´ogico (no s´eculo XIV, as classes de inter-valos eram trˆes: consonantia perfecta, consonantia imperfecta e

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dissonantia). Por outro lado, a pr´opria graduac¸˜ao pode elevar-se a princ´ıpio sint´actico: o n´umero das classes de intervalo com cujas diferenc¸as se comp˜oe ´e ent˜ao igual ao n´umero dos pr´oprios inter-valos.

Referências

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