Anarquismo,
anarquistas e
Semana de Arte
Moderna: o papel
dos intelectuais
Maria Auxiliadora Tamiasso Ferreira
*
I INTRODUÇÃO
Este trabalho tem por referência a cidade de São Paulo durante os anos de 1917 a 1922. A razão da escolha desses recortes espacial e temporal se prende ao fato de serem representativos da fase de gestação da Semana de Arte Moderna e, também, por corresponderem ao auge do Movimento Anarquista no Brasil. Essa simultaneidade leva ao questionamento das possibilidades de mútuas relações e
influências entre esses movimentos.
Por ter sido privilegiada como palco de importantes mudanças sociais, far-se-á uma breve análise dos processos de industrialização e de urbanização, que conseguiram transformar a São Paulo provinciana em um cenário cosmopolita, abrangendo não só o espaço físico, mas também as relações sociais. Essas transformações e a inquietação social
eram, então, denunciadas pelos
anarquistas e também pelos modernistas!,
"BacharelcZicenciadDlt'mHi&t6ritJpaaUniuesidGtú Fadeal
(ÚJuizdeForo(UFJF).
lOs termos ~anarquista~. ~anaTqw.rno~ • Hmovimento
anarquista", rursU trabaiho, vinculam-.. ao conta::to brasileiro. Caso seia neeu8Ório u;n.cuU·Io. o outro.! palMa,
far-Sft-á adevidareseolea.Quantoaostermo.nmod.trn.ista~ iIl' "movimento modernistaH
, ligam-seaD8 intclcctutJi.pordi&tG8e
cariocasq!Ultomaramparten4preparat;iiotinoapr«Rntação da Semanad.eA1U Modenanão tendo,portanto, nenhuma ligação com os participantalJ do Modernismo ~
pQsteriormente.
108
que delas falariam de outro modo e de forma aparentemente independente.
Essas transformações encontram-se permeadas por diferentes ideologias e projetas, que se expressam através dos vários tipos de discurso. A "fala" dos modernistas se assemelha. em alguns pontos, à dos anarquistas, embora todo
cuidado seja pouco ao estudá-Ias, uma vez
que, quando menos se espera, surgem contradições gritantes na retórica
modernista.
A análise do Movimento
Anarquista e da Semana de Arte Moderna exige que se responda a uma série de questões ainda em aberto na historiografia
dos movimentos culturais, políticos e sociais. Considera-se que a Semana de Arte Moderna não pode ser vista apenas
como um momento deafirmação pessoal de ousadia de alguns intelectuais da classe média e da pequena burguesia paulistana
e carioca. Ela foi mais que isso:
motivaram-na outros interesses. Quais? O que estava por trás da exposição de artes plásticas e das conferências literárias?
Para alguns dos participantes da Semana de Arte Moderna ela foi uma reação. A quê? A quem? Por quê? No
entanto, há contradições em seus
discursos. E essas contradições provocam
interrogações cada vez mais insistentes, porém poucas afirmações.
Para grande parte dos
historiadores da literatura brasileira, a Semana de Arte Moderna foi fundamental
para o Modernismo; e, para os críticos das
artes plásticas, a Semana apresentou ao público as novas tendências européias.
Porém, de modo geral, os estudiosos da Semana de Arte Moderna não fazem uma
análise mais ampla do evento,
restringindo-se ao literário, ao estético, às ligações com as vanguardas culturais
européias. Não há uma abordagem sobre o
papel do grupo de 22 no contexto
político-social do momento. Dessa forma, existe
uma lacuna ao não se estabelecerem as
relações entre as vanguardas culturais .
futurismo, expressionismo, cubismo, dadaísmo etc.. e os movimentar. políticos
Parece, no entanto, ser impossível dissociar os movimentos culturais do contexto socicpclítico em que são produzidos. Assim, certamente, os modernistas percebiam a agitação social e política que sacudia a cidade de São Paulo,
cujo apogeu coincide com a fase
preparatória da Semana. Não se pode esquecer de que os anarquistas e os socialistas, notadamente os primeiros, estiveram à frente dessa agitação, constituindo o núcleo dirigente do movimento operário.
Montado O quadro, 05 objetivos da
pesquisa se defmem:
a) detectar e avaliar os pontos em comum entre o Movimento Anarquista e a Semana de Arte Moderna (inclusive o período que a antecede), uma vez que os referenciais de que se dispõe para a compreensão de uma possível interação entre os dois movimentos são vagose raros;
b) comparar as posturas dos anarquistas e dos modernistas de 22 em seus aspectos ideológicos, seus projetos e suas trajetórías;
c) dar nova abordagem a esses
movimentos, através de estudo de seus respectivos intelectuais.
Para concretizar tais objetivos, procede-se à investigação das funções desempenhadas pelos intelectuais pertencentes a09 dois movimentos,
ufilizando-se, para isso, as categorias de análise desenvolvidas por Antônio Gramsci e Lucien Goldmann, "intelectuais orgânicos" e "consciência possível", categorias que compõem o quadro de referência teórica.2
Hipoteticamente, trabalha-se com a suposição de que houve espaços de interação entre os dais movimentos, embora não se possa precisar o nível das relações mantidas entre seus membros. É possível se afirmar, no entanto, que anarquistas e modernistas se conheciam
2A ca"KarM "in.UkctutzJ orgdnico" i i4ilizado para definir o
tipocUint.z.ctual lJinculado~ furu;ãopráticacUorgan.izodcr.
con.tltTutore"pe-..uasor permancnt."cUum ddtn7ninadogrupo .wcial. (Gramsci, 1978, p.343451). "Coruciincia po8iÁlJel" é
enfocadacomoW1I;a~tJisão cUmundo~. masdentrodoslimita
depucqJÇÕOdat:klsu.sem abalar asutruturaBl!'8NI'ICiaiBdo grupo: (Goldmann, 1980, p.86-lIO;1972,p. 7-17).
Fundação Joio Pinheiro. Belo Horizonte, v. 7, n" 1.janJabr. 1992
mutuamente, através da atuação de seus respectivos intelectuais. Supõe-se, ainda, que os modernistas atuavam no princípio como "intelectuais tradicionais",3 mas transformam-se, no decorrer do processo
de preparação da Semana de Arte
Moderna, talvez sem o perceberem, em "intelectuais orgânicos", vinculados a uma fração da burguesia paulistana. Os in telectuais anarquistas atuam como "intelectuais orgânicos" durante todo o período estudado.
Àfalta de referências já elaboradas sobre o assunto, que sirvam de parâmetro, monta-se um mosaico de informações "garimpadas" em fontes secundárias. Tais informações são interpretadas à luz do
referencial teórico mencionado,
entendendo-se os intelectuais como representantes de grupos sociais e cujo papel deve ser percebido "no conjunto de relações em que eles (os grupos sociais e, portanto, os grupos que os personificam) se vêm a encontrar no conjunto geral das relações sociais" (Grarnsei, 1978, p.345).
O tema é desenvolvido sob os novos aspectos cultural e mental da sociedade paulistana, resultantes da industrialização e da urbanização. Com base nesse quadro são estudadas as diversas classes sociais, enfatizando-se seus anseios ante uma questão que se impõe - a modernização. Em seguida analisa-se a atuação dos intelectuais anarquistas e modernistas, buscando-se os possíveis pontos em comum entre eles. Com esse intuito, são levantados os perfis do núcleo dirigente anarquista e de alguns dos principais personagens da Semana de Arte Moderna.
Na conclusão verifica-se que: a) Houve espaços de interaçãc entre os dois movimentos, a partir da atuação de seus respectivos intelectuais no contexto da crise que caracterizou a fase final da República Velha.
b) Os participantes da Semana de Arte Moderna, que, no princípio, atuavam como "intelectuais tradicionais", transfonnaram-se no decorrer do processo
3"1~ tTadi.cional~ i dMfinidacomo otipouulgariza,d,o dtJintelectual. qwt H apTelMn/aconto liUrato, filósofo ou
artista(Gramsci,1978,p.346).
de preparação do evento em "intelectuais
orgânicos"; e os anarquistas atuaram como
"intelectuais orgãnicos" durante todo o período estudado. Os dois grupos, a partir
de percepções diferenciadas e, às vezes,
conflitantes da realidade brasileira,
procuraram disseminar suas visões de
mundo através da organização do
movimento operário e da Semana de Arte Moderna;
c) O estudo dos movimentos políticos, sociais e culturais exige que se
considere o contexto histórico em que se verificam. Impõe-se urna revisão da
historiografia hoje existente sobre o Movimento Anarquista e a Semana de Arte Moderna. Não se pode aceitar uma
abordagem que os apresentem
simplesmente como uma manifestação
espontânea da classe operária, ou como
uma manifestação de audácia estético-literária de alguns jovens bem informados.
A contrário, eles foram orientados através
'> da ação de seus intelectuais, por projetos e interesses de grupos sociais bem definidos.
2 SÃo PAULO (1917-1922): PALCO DO ANARQUISMO E DA SEMANA DE ARTE MODERNA
Faz-se a montagem do cenário de
múltiplas transformações que se
desenrolaram na cidade de São Paulo. Descrevem-se as metamorfoses que ocorrem, com o objetivo de contextualizar
historicamente os movimentos anarquista e modernista.
2.1 Metamorfose urbana
Durante o período ora estudado, a cidade de São Paulo passa por várias e
sucessivas transfonnações, representadas
pelo crescimento da indústria e pela expansão urbana, conseqüências diretas do progresso e do desenvolvimento regional. Uma nova sociedade de caráter urbano-social se sobrepõe à anterior, de cunho agrícola-latifundiário (Carvalhal, 1970, p.164). A ãnsis de modernidade provoca
inquietação, fazendo com que se
verifiquem cheques de idéias, com tomada de consciência e de posição (Pontual, 1981, p.115). Os grupos sociais mais importantes - operariado e burguesis - engendram,
110
então, seus respectivos intelectuais, que
atuam no sentido de organização do grupo
e da formação de sua "consciência
possível".
São Paulo, devido à
industrialização, se projeta como um
grande centro, e irradia para o resto do
Brasil o movimento operário, sob a
orientação dos intelectuais anarquistas e
socialistas. Politicamente, as classes
dominantes detêm todo o aparato do poder,
deixando, entretanto, algumas brechas,
visto que o anarquismo é divulgado por
José Oiticica através de jornais burgueses
(Martins, 1978, v.6, p.162l.
As greves operárias testemunham a agitação social da época, em que os imigrantes, bastante numerosos, participam do movimento anarquista
(Horta, 1981, v.3, p.352).
Os imigrantes compõem a maior parte da mão-de-obra industrial e se caracterizam por dois traços fundamentais:
o desejo de ascensão social e o elevado
nível de politização, a par da experiência
que o proletariado europeu vem
acumulando desde o século XIX. Essa bagagem política dos imigrantes se
expressa nas ünúr.neras organizações
anarquistas surgidas nas primeiras duas
décadasdeste século, nos diversos jornais e
panfletos operários de caráter anarquista e
socialista, nas ações políticas, assim como
nas atividades culturais e de lazer da classe operária. Frustrados os anseios de
ascensão social de muitos desses
imigrantes, os quais, vendo-se submetidos ao trabalho sem futuro nas fábricas, e destituídos de seus direitos sociais, passam
a alimentar um estado pennanente de
revolta durante o final da década de 1910 e o começo da década de 1920, o qual se
concretiza nas greves, nas manifestações
populares, na intensa propaganda e na imprensa operária. A toda essa agitação político-social se contrapõe a repressão dos poderes constituídos (Tolípan, 1983, p.10).
Marco importante para o
paulistano é o ano de 1917. Há a greve
geral, que se situa no limiar de uma
conjuntura histórica que se estende até 1920 ou 1930, capaz de fazer emergir
diariamente (Pinheiro, 1979, v.1, p.231).
Por sua vez, os intelectuais modernistas se preocupam em afirmar a arte moderna no
Brasil (Zilio, 1982, p.48).
2.2 Industrialização e urbanização O desenvolvimento industrial de
São Paulo acarreta o crescimento do
mercado de trabalho e da população
urbana. O mumcipic, de 239 820
habitantes em 1900, salta para 580 000 em 1920. Além disso, o desenvolvimento
industrial, propiciando maior concentração urbana, dinamiza o setor terciário, no qual
se verifica grande expansão (Leonardi, 1981, v.3, p.215-216).
À época, a indústria produz, essencialmente, bens de consumo, importando máquinas e equipamentos
(bens de capital). Sua capitalização se dá, principalmente, pelo deslocamento de recursos provenientes da acumulação do
setor cafeeiro e de investimentos
estrangeiros. A partir de 1918, o Estado de São Paulo passa a liderar a produção industrial brasileira (Gorender, 1983, p.36), e por volta de 1919 ali se inicia a montagem de automóveis (Haddad, 1981, v.â, p.255).
Até. a Primeira Guerra Mundial, o
crescimento industrial se processa
lentamente em todo o País. Durante a guerra, o desenvolvimento do setor de
produção se acentua em razão da escassez
ou mesmo da ausência de determinados produtos anteriormente importados dos países envolvidos no conflito mundial. Mas o Brasil enfrenta graves problemas internos: mercado fraco, falta de mão-de-obra capacitada para a indústria e uma
tímida acumulação de capital.
Aproximadamente em 1920, verifica-se
certa autonomía na produção de
determinados bens de consumo (alimentos e têxteis). De qualquer forma, a indústria não detém tecnologia nem capital capazes de renová-la. Para a substituição e reprodução dos meios de produção os industriais transformam em capital a força de trabalho do operariado, mediante a politica de salário baixo e de carga horária elevada (Tolipan, 1983, p.l0).
111
urbanização, laços à industrialização e à
Quanto à
intrínsecos a ligam Os anos seguintes, bastante
agitados, são marcados pelo
aprofundamento da crise. Tomando impulso, o jornal anarquista A Plebe, fundado em 1917, dois anos depois circula
Fundação João Pinheiro. Belo Horizonte,v.7.n' 1, janJabr. 1992
dentro da classe operarra um movimento que abrange os principais centros urbanos
do País (Fausto, 1983, p.158). Essa greve repercute tanto no Estado quanto nos setores dominantes (Coutinho, 1986, v.5,
p.lO).
Culturalmente, entre outros eventos, ocorrem a publicação do primeiro livro de Mário de Andrade - Há uma gota de sangue em cada poema - e a segunda exposição de Anita Malfatti, considerada
pela imprensa, em princípio, expressão da
arte desenvolvida em países de cultura mais adiantada. Mais tarde, Monteiro
Lobato, através de uma crítica
contundente feita à pintora em O Estado de S. Paulo, promove, por um lado, o afastamento do público e, por outro, involuntariamente, a aproximação de
alguns dos componentes do grupo
modernista, em fase de formação (Amaral, 1979, p.93).
Toma corpo na consciência dos
trabalhadores a possibilidade de mudança
política através de um processo revolucionário, a exemplo do caso da
Rússia (Ferreira, 1978, p.78), em que os
operários lutam por conquistas sociais e
politicas enfrentando a classe dominante (Brandão, 1978, p.170; Coutinho, 1986, v.5, p.10; Chacon, 1985, p.92; Franco, 1980, p.93; Vinhas, 1982, p.20). Essa tomada de
consciência.se dá a partir da ação, dentro do movimento operário, de um grupo de
intelectuais, criando e fundamentando não
só uma "visão do mundo", uma nova concepção de vida, como também novos valores sociais originados no
desenvolvimento do modo de produção capitalista.
Em 1917, o Brasil entra
efetivamente na guerra, despertando o nacionalismo adormecido dos brasileiros.
Jovens quatrocentões pertencentes à
imigração, situações marcantes no processo de transfonnação social que agita as
grandes cidades. Nesse sentido, salienta-se
a importância das capitais, locais em que ocorrem as rupturas que marcam todas as
transfonnações (Schwartz, 1983, p.5).
São Paulo, capital, começaa definir seu espaço urbano por volta de 1970. No princípio a urbanização se desenvolve em
função da economia cafeeira. Com o advento da indústria, a paisagem urbanaé
alterada, passando a existir bairros
industriais, onde as fábricas são cercadas
por pequenos núcleos urbanos, que
comportam as vilas operárias. Para a
instalação fabril, é de fundamental importãncia a utilização de locais próximos
às vias férreas e aos rios. Por isso, a classe operária ocupa as áreas de várzea(baixas,
úmidas e irregulares), ao passo que as classes economicamente mais elevadas habitam as partes altas da cidade. Estabelece-se, portanto, nítida distinção entre os bairros operários e os bairros burgueses (Hardman, 1981b, v.3, p.276).
Nesse contexto urbano-industrial surgem e se desenvolvem os intelectuais ligados ao Movimento Anarquista e à Semana de Arte Moderna.
2.3 Ideologias e classes sociais
No tratamento das diversas ideologias que penneiam o Movimento Anarquiata e a Semana de Arte Moderna opta-se por analisá-las dentro da concepção gramsciana de "ideologias historicamente
orgânicas". Na acepção de Gramsci, as
ideologias,
enquanto historicamente
necessárias, têm uma validade que é validade 'psicológica', 'organizam' as
massas humanas, formam o terreno em
que os homens se movem, adquirem
consciêncía de sua posição, lutam etc. (Gramsci, 1978, p.65).
Ainda em Gramsci (1978),
resgatando as afirmações de Marx sobre a
" 'solidez das crenças populares' como
elemento necessário de uma determinada situação" e sobre a "persuasão popular", que "tem muitas vezes a mesma energia
112
que uma força material ou algo de semelhante e que é muito significativo"
(p.65-66), tem-se:
A análise destas afirmações creio que leva a reforçar a concepção de 'bloco histórico', em que precisamente as forças materiais são o conteúdo e as ideologias, a
forma, distinção de forma e conteúdo meramente didática, porque as forças
materiais não seriam concebíveis historicamente sem forma, e as ideologias seriam caprichos individuais sem as forças
materiais (Gramsci, 1978, p.66).
A partir da maciça imigração, o brasileiro é levado a uma tomada de
posição no sentido de igualar-se aos
imigrantes que se fixam no País. Ele desenvolve todo um sentimento de brasilidade, fazendo com que, em atitude de defesa, passe a valorizar o nacional. Por
concentrar o progresso, a cidade de São
Paulo é o cenário das transformações
ocorridas no período, local propício ao
aparecimento de novas idéias, as quais são
captadas e expressas pelos artistas e intelectuais paulistas (Carvalhal, 1970, p.l64) oriundos da classe média e da
pequena burguesia urbanas. Essa
intelectualidade pode-se classificar na categoria dos "intelelectuais tradicionais" (no sentido da idéia vulgar de intelectual, vinculado ao discurso polémico e exacerbado), pretende romper, através de movimentos de renovação cultural, com o "passadismo" até então vigente de exaltação das classes dominantes (Barros, 1981, v.3, p.335). Segundo Cassiano Ricardo, integrante do grupo, a atuação desses intelectuais é uma "reação nativista em face das correntes imigratórias" (Coutinho, 1986, v.5, p.601-602). Além disso, os membros da Liga Nacionalista se opõem à expansão do socialismo entre as nações e se voltam contra a anarquia social interna (Carone, 1973, p.276-277).
A ideologia nacionalista favorece a
restauração católica, que revaloriza os
monumentos e obras do passado. Em 1920, Mário de Andrade publica na Revista do Brasll uma série de artigos intitulada "A arte religiosa no Brasil" (Martins, 1978, v.6, p.189).
Vinculada ao nacionalismo,
desenvolve-se a alegoria da "planta exótica", criada pelo imaginário burguês, com a finalidade de rotular as vanguardas politicas de contestação que aqui se fixaram, O setor dominante propaga a
idéia de que no Brasil não existe conflito entre as classes) que o povo não tem condições de assimilar doutrinas complicadas anarquismo e socialismo -deslocadas de seus países de origem onde
melhor se desenvolveriam (Fausto, 1983, p.62; Magnani, 1982, p.14; Hardman, 1983, p.86).
Entretanto, a rotulação de "planta exótica" talvez melhor se adequasse à Semana de Arte Moderna, pelo seu aspecto paradoxal. Por um lado, representa um estado de espírito contestador, por outro
não propõe alterações significativas na estrutura social. Essa contradição permeia o interior do grupo e parece se explicar
pela passagem, consciente ou inconsciente,
de uma condição de "intelectuais tradicionais" à condição de "intelectuais orgânícos", vinculados ao grupo social
dominante, e que assume, na prática, a
fun ção de organizar a hegemonia desse grupo.
É necessarro, pois, revolver o
passado em busca das origens da cultura brasileira. Os críticos do anarquismo e do
socialismo assumem a ideologia liberal, adaptando-ade acordo com seus interesses.
Um liberalismo paradoxal foi capaz, no
século passado, de conviver com (e
absorver) o modo de produção escravista (Schvarz, 1981, p.16-l7; Saes, 1985, p.345-354). Nos campos artístico e cultural os setores dominantes importam modelos estrangeiros, principalmente o francês e o italiano, que prevalecem até a década de
20, com remanescentes posteriores.
Aos imigrantes, sim, cabe um papel
significativo de contestação ao sistema vigente no período e de organização da
classe operária, o que pressupõe a atuação
prática de intelectuais capazes de organizar e mobilizar o operariado, que executam, dessa forma, sua função. Assim,
"a crítica a posteriori às concepções
anarquistas, predominantes entre os trabalhadores organizados nos primeiros
vinte anos deste século, não pode obscurecer a sua importância na aparição
Fundação Joio Pinheiro, Belo Horizonte, v. 7, n' l,janJabr. 1992
de novas formas de luta e de uma visao
crítica radical da sociedade" (Fausto, 1983, p.32).
Além da tecnologia, os imigrantes trazem a reivindicação social, experiência trazida de seus países de origem
(especialmente o anarquismo), suporte para suas lutas até 1930 (iglésias, 1975,
p.19). A Europa exportou tanto
trabalhadores quanto ativistas, profissionais intelectuais anarquistas e
socialistas (Amaral, 1984, p.37). Muitos dos quais, de origem italiana, receberam influência dos intelectuais de seu pais, sobretudo pela sua função internacional ou cosmopolita (Grarnsci, 1978, p.352-353).
Com a movimentação da classe
operária, alteram-se as relações entre as classes e os grupos sociais, visto que se coloca a questão social, pela primeira vez, na cena política. Não é mais possível ao
Estado, aos industriais e aos demais
segmentos da sociedade ignorar o conflito
de classes, em que o proletariado, até então marginalizado, procura converter-se em força social. Retoma-se a discussão da questão social, de interesse do Estado e da sociedade, atingindo o Parlamento que volta a debatê-Is. O Estado .deepende esforços contínuos na repressão, cujo alvo principal é o Movimento Anarquista. Na imprensa, o conflito de classes ganha
destaque inusitado, passando a compor as
manchetes de primeira página, assim como
a ser caricaturado em capas de revistas
humorísticas (Fausto, 1983, p.159 e 217), Entretanto, sob a proteção da burguesia
agroexportadora, os industriais se abstêm
de atender as reivindicaçães operárias até a explosão das greves (Gorender, 1983, p.50).
Em 1917 as greves recrudescem.
Circulam inúmeros jornais operários, sob a
direção dos anarquistas, dos socialistas e
dos comunistas. Esses fatos influenciam os intelectuais da pequena burguesia e d'c' classe operária (Amaral, 1984, p.33-34), E interessante destacar que a solução da greve de 1917, negociada entre seis representantes dos grevistas (dos quais
três são diretores de jornais operários,
sendo dois anarquistas e um socialista) e o governo do Estado (representante dos industriais), é intermediada por uma
comissão de jornalistas composta por
profissionais pertencentes aos quadros de jornais conservadores, como O Combate e
O Estado de S. Paulo (Pinheiro, 1979, v.1, p.229; Martins, 1978, v.6, p.98).
Osjornais operários desagradam os
poderes públicos e a burguesia,
especialmente em São Paulo (Dias, 1977, p.56). Nesse Estado, uma fração da classe dominante resolve apoiar o grupo de intelectuais paulistano denominado
"futurista", isto é, os modernistas,
simpáticos ao governo paulista (Horta, 1981, p.352-353). Na verdade, o grupo paulista capitaliza a inquietação social,
mas seus integrantes se contentam em
perturbar a ordem estética. Aceitam a denominação de "futuristas' e se intitulam 'bolchevistas da inteligência", o que, em
ambos os casos, significa contestação
(Coutinho, 1986, v.5, p.12l. Do outro lado, os anarquistas, partidários da ação direta, se propõem a perturbar a ordem politica.
Assim, anarquistas e modernistas
produzem os seus próprios grupos de
"intelectuais orgânicos", devidamente
especializados para o cumprimento de suas
respectivas funções.
2.4 Projetos dos anarquistas
e dos modernistas
O projeto anarquista de
transformação da sociedade pressupõe interação constante entre a cultura e a
política operária, e consta, em linhas
gerais, da recusa da necessidade de organização do proletariado contra o Estado, da recusa em participar do sietema politico através de partidos, da recusa em tomar o poder; da pregação da luta pela
ação direta, da resistência ao capitalismo,
da atuação sindical, da espontaneidade, e da valorização das ações individuais. Privilegiada pelos anarquistas como instrumento de transformação, a luta cultural abala a ideologia dominante. Entretanto, ela não é canalizada em toda sua potencialidade pelos libertário.s (Hardman, 1981, p.320-321l.
De qualquer modo, os anarquistas se apresentam como os "depositários das esperanças de realizações dosansei,s de indivíduos negados e oprimidos em todos 114
os momentos de sua vida cotidiana e que se
unem numa solidariedade de classe, a
partir de uma experiência comum" (Rago, 1985, p.Lâ), Demonstrando certa utopia, pregam a possibilidade de "um mundo livre e justo, do fim da exploração do trabalho e da dominação política, da autogestão da produção, do fim do Estado, de uma nova proposta educacional, do amor livre C,.)" (Rago, 1985, p.Ld). Seus projetos e anseios se contrapõem à imagem que deles se
fizera:
"Desde cedo, afinal, os dominantes
vêem desmoronar a imagem disciplinada e
laboriosa que haviam projetado sobre o
imigrante europeu. (...) os trabalhadores provenientes do sul da Europa, brancos e
civilizados, como se desejara, trazem
consigo não apenas uma força de trabalho,
mas todo um conjunto de expectativas, de
valores e de tradições culturais. Ao entrar no país, fazem explodir todas as projeções
continuamente lançadas sobre seus
ombros, procurando cada vez mais
incisivamente afirmar sua própria
identidade. Indolentes, preguiçosos,
boêmios, grevistas e anarquistas, segundo
a representação imaginária construida pela sociedade burguesa, lutam para definir sUa nova identidade, a partir de
representações, dos valores e das crenças
que lhes são próprios (...) os imigrantes
aparecem aos olhos dos setores privilegiados da sociedade, imersos num
estágio ameaçador de transição:
recém-saldos de seus países, de suas regiões de
origem, ainda não definiram o novo modo de vida. Como será ele? O desconhecido
assusta: é preciso que se ensine aos
trabalhadores ignorantes uma nova forma de vida, mais higiência e adequada, antes que eles mesmos o façam" (Rago, 1985,
p.17J.
Quanto aOB modernistas, não se
pode atribuir-lhes um projeto definido. Retomando as posições assumidads por Euclides da Cunha, Lima Barreto, Graça Aranha e Monteiro Lobato, aprofundam as denúncias do Brasil arcaico, regido por instituições já ultrapassadas(Lafetá, 1974, p.17).
Já em 1913, em Paris, Graça Aranha incumbe Tristão de Athayde de,
junto com seus companheiros, agitar a escola, fazer loucura, espanar as teias de
aranha (Coutinho, 1986, v.4, p.348 e 389). A Semana de Arte Moderna é
projetada de forma a coincidir com as
comemorações do Centenário da
Independência, a fim de evidenciar a intenção do grupo modernista de tornar a cultura livre de seu caráter tradicional (Zilio, 1982, p.53).
Esses primeiros modernistas crêem
no progresso, na técnica e na constante transformação do mundo. Embora não questionem a ordem institucional, demonstram preocupação em transformar
a literatura em um bem comum a todos (Cândido, 1985, p.164), pois vivem em um momento socialista. "Éuma geração crítica e anarquista, uma geração de combate, cujas armas foram a piada, o ridículo, o escândalo, a agitação C,.)"(Coutinho, 1986, v.4, p.360-361).
Concomitantemente à preparação da Semana de Arte Moderna, jovens escritores pequeno-burgueses e operários fundam, em 1919, o Grupo Brasileiro
Zumbi, cujo programase pauta naoposição
à ditadura republicana, ao predominio da burguesia sobre as outras classes, ao culto
às incompetências, à exploração
organizada, à mentira oficial. Ligado ao Grupo Clarté, de Paris, o Zumbi encampa uma tendência renovadora na literatura e chega a encontrar eco na Europa. Em São Paulo, desperta a atenção dos intelectuais da classe média e da pequena burguesia, que, na visão de Afonso Schmidt, se encontram "do outro lado da barricada" e também realizam o seu movimento - a Semana de Arte Modema - que "pode ser
tomado como uma reação contra o
movimento Carté" (Carone, 1984, p.334-336; Amaral, 1984, p.34-35).
Assim, no periodo de 1917 a 1922, observa-se que são as classes baixas que abrem, por seus próprios meios, os caminhos para a conquista da cidadania (Hardman, 1983, p.86).
3 ANARQUISMO E SEMANA DE
ARTE MODERNA: OS DISCURSOS E OS INTELECTUAIS EM CENA
Fundação João Pinheiro, Belo Hcríecnte, v. 7, nr 1,janJabT. 1992
Privilegiando-se a análise da
atuação dos intelectuais anarquistas e modernistas, procura-se detectar seus pontos em comum e entenderoprocesso de
constituição de seus respectivos grupos de
"intelectuais orgânicos". 3.1 Considerações iniciais
À prímeíra vista, o Movimento Anarquista e a Semana de Arte Moderna parecem ter existências independentes e, apesar de praticamente simultâneos, não se percebem muitas referências diretas en tre eles, exceto em alguns poucos casos, como o do Grupo Clarté, anteriormente mencionado, do qual Afonso Schmidt, escritor anarquista (Fausto, 1983, p.238), é um dos fundadores.
Aparentemente, há divergências entre os dois discursos, embora ao estudá-los fiquem claros alguns pontos em comum - o mesmo dinamismo, a mesma exaltação. Dominando as novas técnicas, a produção dos modernistas é complexa, dificil de ser apreendida, ao passo que a retórica anarquista é objetiva, com lances insólitos
einovadores.
o
discurso anarquista, emotivo e simbólico, pretende divulgar um projeto político-social profundamente marcado pelo sindicalismo e pela valorização da cultura. Suas proposições ultrapassam o imediato, destinando-se à formação de uma nova consciência sociopolítica do homem, o que demonstra o caráter internacionalista de seus intelectuais, os quais pregam o fim das pátrias, a anarquia.No momento em que aderem às vanguardas artísticas e literárias européias (futurismo, expressionismo, cubismo, dadaísmc), os modernistas rompem, através do discurso, com o passado, com
°
academicismo, com a arte copiada. Observa-se, no movimento modernista, clara contradição, poisenquanto na vanguarda estão os
movimentos europeus de ponta, na retaguarda encontra-se o patrocínio de uma parcela da classe dominante (grupo tradicional paulista), enaltecida por Mário de Andrade: afinal, trata-se de nobreza 'Justificada no trabalho secular da terra" (Andrade, 1974, p.236-237). Esse modernista somente se esquece de dizer
quem trabalhava aquela terra e em que
condições.
Percebe-se que os modernistas deixam, aos poucos, de serem simples "intelectuais tradicionais" e vão sendo assimilados e conquistados por uma fração
da classe dominante . à frente, Paulo
Prado - que se prepara para o exercício da
dominação. Interessa a esse grupo
promover transformações em varras esferas, notadamente na esfera política,
como prova a criação do Partido
Democrático em 1926. Apesar de
extrapolar o período ora estudado, é
necessário e importante chamar a atenção para o fato de que, nas reuniões
preliminares para a formação desse
partido, acorreram quase que
exclusivamente os participantes e os promotores da Semana de Arte Moderna (Andrade, 1972, p.23-24, 187-188).
Na visão de Mário de Andrade, a Semana de Arte Moderna foi o evento preparador e provocador de "um espírito
inexistente então, de caráter
revolucionários e libertários" (Coutinho, 1986, v.6, p.179). Afirma ele que, desde seis anos antes da Semana, um grupo de
intelectuais já tinha consciência de um
espírito novo, de uma arte nova (Andrade, 1972, p.187; Chaves, 1970, p.9). Entretanto, esse período de gestação da
Semana de Arte Modema (e de
Modernismo) coincide com o auge do Movimento Anarquista.
Esse posicionamento de Mário de Andrade sugere duas hipóteses: ou ele desconhecia o Movimento Anarquista -revolucinário e libertário - ou decidiu ignorá-lo. A segunda possibilidade parece ser a mais provável, visto que publica em A Gazeta, de 4 de fevereiro de 1922, um artigo no qual explica a reunião dos intelectuais da Semana argumentando que, "nestes tempos de sindicalismo", "união é força" (Amaral, 1979, p.137). No perícdo, o movimento sindical encontrava-se sob a direção ideológica dos anarquistas.
Pode-se aceitar que a Semana de Arte Moderna refletiu o descnntentamento
e as aspirações reprimidas da sociedade'
(Pereira, 1952, p.19). No entanto, tal 118
situação já era denunciada pela imprensa anarquista desde o começo do século. Otávio Brandão, anarquista nos anos de 1919 a 1921, atacava o academicismo e os literatos burgueses (Brandão, 1978, p.170, 203), bem antes da publicação da série de artigos de Mário de Andrade sobre os mestres do passado (Martins, 1978, v.6, p.134, 218).
Como se pode perceber, tanto o
movimento modernista anterior à Semana de Arte Moderna quanto o anarquismo fazem parte do processo histórico como um todo, apesar de não poder definir
claramente os canais de articulações existentes entre eles.
3.2 Artes plásticas,
literatura e imprensa
Os modernistas se inspiram, em
parte, no futurismo de Marinetti (Grarnsci, 1978, p.301), no qual Apollinaire - leitura obrigatória desses intelectuais - ve um anarquismo quando não o caos". Embora criticando esse anarquismo (caos) marinettiano, Apollinaire se utiliza de suas
inovações e fórmulas, como as "palavras
em liberdade" e a "imaginação sem fios" (Schwartz, 1983, p.57). Em suas pesquisas
formais, os· modernistas vão-se
fundamentar, parcial e um tanto
desordenadamente, nas vanguardas da França e da Itália (Cândido, 1985, p.120). Essas vanguardas têm, segundo Gramsci, características bem diversas: a francesa apresenta caráter nacionalista, enquanto a italiana é internacionalista ou cosmopolita (Gramsci, 1978, p.352-353).
A influência francesa acaba por
prevalecerno movimento modernista. Seus
intelectuais aSSUInern um discurso de exaltação da nação, imprimindo-lhe um colorido nacionalista, o que toma sua "fala"
mais abrangente, sobrepondo-se aos
conflitos entre as classes sociais. Nesse
sentido, diferenciam-se dos anarquistas,
cujo discurso, internacionalista, faz a apologia do fim das pátrias e das nacionalidades e se volta especificamente
para a classe operária.
É preciso considerar que a arte e a
literatura anarquistas vinculam-se
intrinsecamente à atividade política. Há manifestações culturais, algumas ligadas
às festas tradicionais brasileiras e outras
ligadas às tradições estrangeiras,
comemoradas pelos trabalhadores
imigrantes sob a orientação dos anarquistas e dos socialistas. Impregnam as artes e as letras proletárias às ideologias desses militantes, conferindo-lhes um caráter social. A imprensa, de tendência anarco-sindicalista, constitui-se
em atividade político-cultural, sendo
utilizada como mecanismo de organização
da classe operária (Hardman, 1981b, p.293-294).
Circulam evidentemente, através
dos jornais operários, a ideologia construída pelos intelectuais vinculados ao movimento operário. A própria
"espontaneidade", tão propalada no interior do Movimento Anarquista, não teria ocorrido sem a "direção consciente" de
elementos que a orientassem.
Mesmo submetido a controle social e ideológico pelos patrões, o operariado desenvolve uma cultura coletiva até certo ponto autonoma em relação à ordem social
vigente. Assim. essa produção cultural,
vinculada ao surgimento do proletariado, é representada pela literatura de cunho anarquista. Normalmente os autores libertários estão ausentes da história da literatura oficial, embora tenham atuado
nos campos da poesia, do teatro e da prosa
(Hardman, 1981b, p.292).
O..anarquistas tentam, através da criação de uma nova cultura, "modelar um
novo homem em contraposição ao que é
fruto da sociedade de classes, abrangendo aspectos tão amplos como a educação ou um código moral" (Hardman, 1981b, p.296; Fausto, 1983, p.80). Eles tentam trabalhar
o "máximo de consciência possível" da
classe operária.
De notória postura anticlerical, defendem. uma escola laica, livre e moderna. Nesse sentido, os anarquistas dão grande importãncia à escola na formação ds seus intelectuais, cientes da urr;ência de se ampliar esse grupo para a
expansão do' movimento. As classes dominantes se apercebem do risco
representado pelo modelo anarquista de educação e a ele se contrapõem.
FundaçãoJoão Pinheiro. Belo Horizonte, v. 7, n' l,janJabr. 1992
Embora sempre se dê maior
destaque ao papel da imprensa operária no contexto cultural da época, deve-se fazer
menção aos demais eventos patrocinados pela classe operária ~ saraus literários e artísticos, concertos e conferências . que ocorrem, principalmente, entre os imigrantes europeus aqui radicados, as
quais conservam suas tradições de origem (Amaral, 1984, p.37). Dessa maneira,
interferem efetivamente na sociedade, alterando não apenas comportamento e
tradições como também a própria
linguagem.
Assim, o regionalismo urbano
paulistano na literatura, denominado estilo
"macarrônico" ou "dialetal", tem sua origem vinculada à imigração italiana e
pautada no linguajar popular, prova a transformação social que se processa no período (Martins, 1978, v.6, p.111),
confirmada, sem ser mencionada pelos modernistas.
Não se pretende, aqui, discutir os
numerosos precursores da literatura modernista. Entretanto, não se pode deixar
de mencionar o caso específico de Monteiro
Lobato que, em 1919, em Idéias de Jeca Tatu, traz à tona todo o ideário do movimento modernista, exaltando o escultor Victor Brecheret, um dos modernistas mais representativos (Martins, 1978, v.6, p.149). Vale a pena observar que Brecheret somente seria descoberto pelo grupo modernista em 1920 (Amaral, 1979, p.240).
Com propósito desafiador, a arte
modema, em todas as suas formas, se caracteriza pela subversão às normas
estéticas, religiosas e morais (Martins,
1978, v.6, p.62). Mas a arte, nas tendências
estéticas de vanguarda, se apresenta como
uma atividade descompromissada com os
problemas sociais e, inclusive, alardeia sua
autenticidade em função dessa postura (Gullar, 1978, p.109).
No campo da literatura, o período de 1917 a 1922 é marcado pela emergência de Mário de Andrade, cujas obras têm
significado especial entre os modernistas:
em 1917 se dá o lançamento de Há uma
gota de sangue em cada poema e, em 1922, de Paulicéia desvairada. Também
são publicados livros de Manuel Bandeira, Guilherme de Almeida, Menotti dei Picchia, Cassiano Ricardo e Murilo Araújo (Iglésias, 1975, p.13).
De acordo com Mário de Andrade,
a poética modernista expressou a nacionalização da arte. Ocorre que a
nacionalização da arte era uma exigência
dos acadêmicos do tão criticado
"passadismo"; era um "imperativo tradicional das literaturas ocidentais periféricas" (Merquior, 1974, p.79-80).
No campo das artes plásticas acontecem exposições de Anita Malfatti e de Di Cavalcanti (1glésias, 1975, p.14). Torna-se conhecimento da escultura de Victor Brecheret, que retorna da Itália em 1919 e novamente deixa o país em 1921, para urna temporada em Paris (Amaral, 1979, p.240).
Expondo obras executadas segundo as novas tendências européias, esses artistas realmente inovam, quer com
Anita, precursora no Brasil do
expressionismo, quer com Di Cavalcanti, com suas ilustrações, caricaturas e pinturas (Amaral, 1979, p.74, 87), quer com Brecheret, com suas esculturas.
categoria que detém a função de manter a
ordem social, visto que, sob as vistas do
Estado, eles deixam de lado a sua pr6pria ideologia para assumir a função de conciliadores dos antagonismos socrats
(Fausto, 1983, p.208-209). Logicamente,
esses "intelectuais orgânicos" personificam um poderoso grupo social, historicamente
definido, detentor dos meios de
comunicação.
3.3 Os participantes dos movimentos Centrado no antagonismo de classes, o período de 1917 a 1922 é marcado pelo grande impulso dado pela classe operária à luta pela conquista de seus direitos sociais e políticos.É, também, um período de intensa propaganda
nacionalista, ao qual os modernistas
pretendem conjugar o espírito moderno ao projeto geral de exaltação do nacional. A Semana de Arte Moderna reflete o nacionalismo despertado pela Primeira Guerra Mundial e as transformações SOCllllS decorrentes do processo de industrialização.
Entram em cena os "intelectuais orgânicos" dos grupos ora estudados: os
anarquistas e os modernistas.
Os trabalhos expostos por Anita Malfatti em 1917 são severamente criticados por Monteiro Lobato, através de artigo publicado em O Estado de S. Paulo, no qual o jornalista assegura que as telas não refletem o sentimento de nacionalidade do momento (Amaral, 1979, p.72). Essa atitude de Monteiro Lobato é
condenada por grande número de
intelectuais. No entanto, a reação de Mário de Andrade diante dos quadros externa-se numa gargalhada, substituída mais tarde "pela reinvindicação te6rica, quando percebeu o partido polêmico que ele e os demaís modernos poderiam tirar do incidente". E Tarsila do Amaral, pintora representativa da tendência nacionalista da fase de 1922 a 1930 do Modernismo, não se entuaiasmou diante das 53 telas expostas por Anita Malfatti (Martins, 1978, v.6, p.67-68).
·No tradicional, 118
contexto da imprensa
os jornalistas constituem a
3.3.1 O núcleo dirigenteanarquista Em sua maior parte, a vanguarda operária é constituída por anarquistas, figuras respeitadas pelas massas. Normalmente, o dirigente libertário é um homem s6brio, tanto na vida particular quanto na vida pública (Fausto, 1983, p.94).
Responsáveis pela construção de
um sindicalismo operante, os anarquistas
se integram às mobilizações operárias do período, direcionando-as principalmente nos anos de 1917 a 1920, período de apogeu do Movimento Anarquista no Brasil (Fausto, 1983, p.94, 247).
operária, e também por se constituírem em alvo da repressão (Fausto, 1983, p.94; Rodrigues, 1988, p.216, 254).
De acordo com Gramsci,
"Cada grupo social, nascendo sobre
o terreno originário de uma função
essencial no mundo da produção
económica, cria para si, ao mesmo tempoe
organicamente, um ou mais grupos de intelectuais que lhe dão homogeneidade e
consciência da própria função não só no campo econõmico, mas também no campo social epolítico(...) "(1978, p.343).
o
núcleo dirigente anarquista funciona como os "intelectuais orgânicos" da classe operária; de tipo urbano, surgem e se desenvolvem com a indústria (Gramsci, 1978, p.349), e a ela vinculam seu futuro.o
discurso dos intelectuais anarquistas confirma a idéia de uma postura autônoma e independente dogrupo, desvinculada das classes
dominantes - posição autoconstruída pelo próprio grupo, em virtude da apologia da
ação direta, do apartídarísmo, da negação
do Estado etc. No entanto, sua atuação
expressa todo um conjunto de relações
mantidoscomas demais classes sociais.
Recebendo influências da
intelectualidade de outros países, principalmente da
Itália -
voltada para sua função internacional ou cosmopolita (Gramsci, 1978, p.352·353) aqui o movimento anarquista adquire aspectos que referendam aquela orientação, pois os seus "intelectuais orgânicos" pregam ofim das pátrias e das nacionalidades.3.3.2 Os modernistas
A arte moderna, no Brasil, nasce e se desenvolve fechada no interior de uma pequena elite (Zilio, 1982, p.54), patrocinada por uma fração da classe dominante paulista (Andrade, 1974, p.238). Concebida há mais tempo, a mostra modernista sô se define realmente em
novembro de 1921, pouco depois da chegada de Graça Aranha da Europa (Teles, 1985, p.32).
FundaçioJoãt:lPinheiro, Belo Horizonte. v. 7, n!1,janJabr. 1992
Com toda a sua bagagem
modernista - Urupês, Idéias de -Ieca Tatu-, o chefe natural da movimenta modernista seria Monteiro Lobato.
Entretanto, é Graça Aranha quem
encabeça o movimento. Várias
circunstâncias explicam esse fato; mas
para os objetivos deste trabalho
destacam-se duas: a primeira refere-se à
incompatibilidade entre o nacionalismo de Monteiro Lobato e as fontes de inspiração importadas pelos modernistas (Martins, 1978, v.6, p.169); a segunda diz respeito à
maior afinidade intelectual entre os modernistas e Graça Aranha, o que facilitaria sua integração ao grupo dos intelectuais já constituído.
Aderindo a Graça Aranha, o grupo
modernista passa a contar com a
intervenção de um grande nome da intelectualidade brasileira, capaz de levar o espírito moderno até a Academia Brasileira de Letras, fazendo com que o movimento se transforme em algo mais que uma simples "tentativa de sistematização de idéias" (Coutinho, 1986, v.6, p.170·171). Configura-se, assim, a intenção dos intelectuais modernistas em
assumir funções que ultrapassem a mera
situação de "intelectuaistradicionais".
Atente-se, ainda, para o fato de que, ideologicamente, o próprio Graça Aranha se define como anarquista e revolucionário (Coutinho, 1986, v.6, p.170; Martins, 1978, v.B, p.184). Merece registro o fato de ter sido Graça Aranha o escritor a produzir o primeiro romance social brasileiro, O Canaã, em 1902 (Pereira, 1952, p.ll). Mesmo assim, não consegue ver a relação entre a situação do Pais e os problemas políticos, sociais e econômicos da época, preferindo creditar a crise à "invasão" dos estrangeiros e à incapacidade dos "mestiços" na condução do Pais. Tal postura se choca com a preocupação dos brasileiros que, voltados para a contrução
de uma identidade nacional, abrem mão, teoricamente, de parte dos preconceitos
étnicos. Em termos práticos, o
nacionalismo de Graça Aranha inexiste, ou, pelo menos, sendo retórico, tem pouco alcance (Leonel, 1984, p.48, 113).
Apesar de ser italiano, Victor Brecheret consegue registrar-se como Brasileiro Nato (arnaral, 1979, p.240). Não
se tem conhecimento de vinculações metas desse artista com o anarquismo, porém parentes de sua mulher são
anarquistas (Gattai, 1985, p.270).
Di Cavalcanti, em depoimento posterior à Semana de Arte Moderna,
considera que seu modernismo se coloria
do "anarquismo cultural" brasileiro.
Reconhece, também, que a "revolução artística e literária" dos modernistas não
teve o sentido de transformação social que o momento exigia (Amaral, 1979, p.95, 118), pois não houve envolvimento nas lutas populares - nem urbanas, nem rurais (Zilio, 1982, p.56). Segundo Di Cavalcanti,
os demais modernistas não demonstravam interesse em conhecer o teor das conversas
por ele mantidas com os intelectuais da classe operária (Zilio, 1982, p.56).
Oswald de Andrade tem formação
anárquico-boêmia e o espírito decrítica ao
capitalismo. Ele tende para a esquerda e tem, anos depois, rápida passagem pelo Partido Comunista Brasileiro (Bosi, 1981, p.402; Coutinho, 1986, v.5, p.302; Zilio, 1982, p.1l4; Jackson, 1978, p.97; Iglésias, 1975, p.23). Embora queira a libertação do academicismo, do "passadismo", através da
modernização e da inovação, preconiza, aprioristicarnente, a conservação das raízes
nacionais, uma vez que tanto o produto artístico quanto o seu autor são brasileiros (Brito, 1971, p.33).
Anita Malfattí, por sua vez, é filha de um italiano naturalizado brasileiro. Durante sua estada na Alemanha (1912· 1914), estabelece ligações com o expressionismo daquele pais. Mais tarde (1915-1916), estuda nos Estados Unidos
com Homer Boas, professor do "tipo
romântico e libertário, individualista e anárquico" (Brito, 1971, p.40).
Como se pode perceber, todos esses
modernistas têm alguma vinculação com o
anarquismo, ainda que, em alguns eascs, essa ligação seja bastante tênue.
Situação diferente e contradit6ria se verifica em Mário de Andrade. Ao
mesmo tempo que se proclama apolítíco (Andrade, 1972, p.24), não admite a
existência de uma arte desinteressada
(Kíefer, 1970, p.88). Assumindo, às vezes,
120
posturas controvertidas, Mário de Andrade se apresenta como uma das grandes figuras do movimento modernista, haja
vista as inúmeras referências que lhe são
feitas no decorrer deste trabalho.
Outros personagens merecem
destaque, como Alcântara Machado, Cassiano Ricardo, Manuel Bandeira, Men otti del Piechia, Rubens Borba de Moraes, Plínio Salgado, Heitor Vila-Lobos,
Guilherme de Almeida, entre outros.
Grande parte dos intelectuais
modernistas tiveram sua formação
acadêmica nos bancos das faculdades de Direito, notadamente as de São Paulo. Se,
como afirma Grarnsci, "a escola é o
instrumento para elaborar os intelectuais de diversos graus" (Gramsci, 1978, p.347), não se pode menosprezar o fato de que as faculdades de Direito ocupavam, no periodo, o topo da hierarquia intelectual (Basbaum, 1976, p.196).
Originariamente, os intelectuais ligados à Semana de Arte Moderna podem ser considerados como "intelectuais
tradicionais". Sua passagem para a
categoria de "intelectuais orgânicos"
ocorre, provavelmente, sem que muitos desses modernistas se dessem conta do
fato.
Vinculando-se a um segmento da
classe dominante paulistana
notadamente o grupo liderado por Paulo Prado • os intelectuais modernistas, no periodo de 1917 a 1922, desenvolvem um "intimismo à sombra do poder" (Coutinho, 1984, p.136), porém, não ainda, à sombra do poder do Estado, o que s6 se dará
posterionnente.
3.3.3 Os promotores da
Semana de Arte Moderna
Promovendo a Semana de Arte
Modema encontra-se uma comissão
formada por elementos pertencentes à camada social mais tradicional de São Paulo, pessoas cuja "visão de mundo"
pouco ou nada tem a ver com a dos
modernistas, mas que desconfiam da importância do. movimento. Esses
elementos se encarregam da organização
do evento
"pela fato de que é dirigida par
eles, no gosto de domínio em que afirmam sua suposta superioridade) como protetores de jovens que fazem sua festa, exibem
talento e não afetam. em nada a ordem
estabelecida" (Iglésias, 1975,p.14-15).
Configura-se, assim, um grupo social que,
"(,..) emergindo na história a partir da
precedente estrutura econõmica e como expressão de um seu desenvolvimento
[desta estrutura], encontrou (...) categorias
intelectuais preexistentes) e que) pelo contrário, apareciam como representantes de uma continuidade histórica
ininterrupta(...)"(Gramsci, 1978,p.344).
Interessado em se desenvolver para o exercício de dominação econâmica
-conservação de posições já conquistadas - e política, esse grupo
"luta pela assimilação e pela
conquista 'ideológica' dos intelectuais
tradicionais, assimilação e conquista queé
tanto mais rápida e eficaz quanto mais esse grupo elabora simultaneamente os próprios intelectuais orgânicos" (Gramsci,
1978, p.347).
Em balanços posteriores à Semana de Arte Moderna, Mário e Oswald de Andrade reconheceriam terem estado a serviço da burguesia (Amaral, 1984, p.l07; Coutinho, 1986, v.ã, p.302-303; Andrade, 1974, p.238). Mário Pedrosa, critico de arte, chega a classificar Olívia Guedes Penteado, figura de destaque da burguesia
paulistana, eomo a "patroa dos
modernistas" (Pedrosa, 1975, p.272).
Encerrando várias contradições em si mesmo, Paulo Prado é figura importante no contexto da Semana de Arte Moderna, de cuja articulação participa objetivando promover a reunião (Amaral, 1979, p.17).
É um dos expoentes da burguesia
intelectual paulista, tradicional e quatrocentão, que, segundo Mário de Andrade, arrisca muito de seu prestígio
patrocinando a aventura modernista
(Andrade, 1974, p.236-237). Há
referências, entretanto, "de que Paulo
Fundação João Pinheiro, &10 Horizonte. v. 7, nl l,ianJabr. 1992
Prado teria promovido a Semana como parte de um esquema para realizar negócios de café" (Martins, 1978, v.6, p.239; Coutinho, 1986, v.õ, p.22J. Filho de grande produtor de café e um dos maiores proprietários de terras do Estado de São Paulo, Paulo Prado tem, além disso, negócios próprios de exportação. Quando
da morte de seu pai, assume a chefia da
familia Prado. Intelectualmente, pode ser considerado discípula de Graça Aranha (Coutinho, 1986, v.6, p.171). Considera a
arte moderna como reação contra as
oligarquias políticas e artisticas, contra a
má política e o mau gosto, contra os
"Bernardes e os Pachecos" (Amaral, 1979, p.215-216). Em síntese, pode ser
considerado um inovador, na medida em
que, compreendendo a amplitude da crise
no setor dominante, assume a vanguarda de um movimento que lhe permite, e aos seus pares, preservar e expandir seu
espaço de dominação.
Mesmo garantida por esse poderoso grupo social, a Semana de Arte Moderna tem pouca penetração junto à sociedade paulistana.
3.4 Balanço
Introduzido na problemática do século XX. através da Semana de Arte Moderna e do movimento operário, o Brasil
se integra aos novos horizontes culturais, políticos, sociais e econômicos.
o
movimento operárío, por estarintrinsecamente ligado à industrialização,
um processo de alcance nacional, se
antecipa e se difunde de maneira mais rápida e ampla que a Semana de Arte Moderna, a qual tem sua difusão bastante restrita, ficando limitada quase que somente à capital paulista. Em Minas Gerais, a Semana de Arte Moderna não teve repercussão imediata, pois em Belo Horizonte os futuros intelectuais locais do Modernismo não tinham acesso a jornais paulistas, e os jornais do Rio de Janeiro,
que liam, não noticiaram o evento (Dias,
1971, p.35). No entanto, como comenta Wilson Martins, anarquista havia até em "cidadezinha mineira" (Martins, 1978, v.6, p.163).
As artes plásticas e a literatura
revelam as agitações sociais e refletem ae
aspirações reprimidas tanto no setor
operário quanto no setor burguês. Essa tensão social se externa nas greves de 1917 a 1920; na criação, em 1922, do Partido
Comunista do Brasil; na realização da
Semana de Arte Moderna; e na deflagração do movimento militar dos tenentes (Cândido, 1985, p.120-12ll.
o
período de 1917 a 1922 pode ser tomado como o começo da crise final da República Velha. Percebe-se já relativo fortalecimento do poder central eacentuada disputa entre os setores
dominantes estaduais. O Estado de São Paulo, por concentrar parte significativa
da produção nacional, ocupa, nessa
disputa, posição privilegiada em relação aos demais estados.
Nessa competição encontra-se o
processo de sucessão presidencial de 1921-1922, no qual as classes dominantes mineiras e paulista mantêm o pacto de dominação da "política do café-com-leite", que garantia a solidez do regime, enquanto as classes dominantes dos demais estados fortes do Pais - Rio Grande do Sul, Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro - até então afinados com São Paulo e Minas Gerais, promovem uma dissidência lançando um candidato próprio à Presidência. O sistema de dominação política também se reflete
nos quartéis, desencadeando em seu
interior o movimento tenentista.
A divergência política no setor
burguês rompe o equilíbrio econômico,
cujos pilares se assentavam na produção e na exportação de café. O desequilíbrio da balança comercial brasileira, nos anos de 1920 e 1921, torna-se cronico (Haddad, 1981, p.262).
Em defesa dos interesses de sua burguesia, o Estado de São Paulo reivindica, desde o começo da década de 1920, a defesa permanente do café; reivindicação que se consolidaria em junho de 1922, fortalecendo a região. De acordo com Boris Fausto, "a disputa pelo controle da União, por parte dos setores divergentes no interior da classe dominante, em
1921-1922, é um indicio da crescente
importância do poder centrae" (Haddad, 1981, p.262).
122
O período de 1917 a 1922 assiste,
também, ao processo de desenvolvimento das novas classes sociais: a burguesia industrial, a classe média urbana e a classe operária. Desses segmentos sociais, a
classe média urbana e os operários estão excluídos de qualquer possibilidade de participação na vida política. No entanto,
reivindicam espaços de ação no sistema.
o
movimento modernista, iniciado em meados dos anos dez, convivendo comintensa agitação anarquiata, influi em
todas as artes maiores. Porém em
nenhuma seu papel é tão decisivo quanto na literatura. Dentre os diversos grupos
surgidos, convém citar não só os
vanguardistas, que seguiram "um estilo experimental primitivista de talhe
cosmopolita e inspiração social
anticonservadora de fundo anarquista" (corrente anarco-experimentalista), como também os que desenvolveriam "um estilo primitivista de sentido anticosmopolita e
visão social conservadora" (corrente
nacional-primitivista, que daria corpo aos
movimentos Verde-Amarelo e Anita, precursores do Integralismo). (Merquior, 1974, p.77 e 88-89).
Apesar de usarem a mesma
retórica dos anarquistas - expressivamente simbolizada na apologia da liberdade, do moderno, da transformação social, da ação
autônoma . os modernistassecontradizem: o discurso é revolucionário (como o dos anarquistas), mas, na prática, se amparam
nas figuras da alta burguesia pau1istana. Assim, a tão propalada ruptura com o passadoéapenas uma fachada a reforçar a aparência de modernidade do grupo, não representando um real desejo de ruptura da estrutura social e política vigente.
Como "intelectuais orgânicos" vinculados aos patrocinadores da Semana
de Arte Moderna, sobre a qual
desenvolvem seu "intimismo", não
poderiam agir de outra forma, visto que sua função, diferentemente da função doa
intelectuais anarquistas, se sobrepõe aos
conflitos de classes e se pauta na
necessidade de persuasão do maior número
poesívelde outros grupos sociais.
Instável e transitório, o período de 1917 a 1922 não pode ser considerado como
momento exclusivo de divulgação da
modernidade. Nesse clima de crise e de instabilidade é complicado conciliar os
diversos discursos. Se por um lado as
culturas anarquista e burguesa seguem paralelas. por outro verificam-se
influências recíprocas entre elas, talvez
com maior ascendência das classes baixas sobre o setor dominante (Hardman, 1983, p.79).
4 CONCLUSÃO
Durante o desenvolvimento deste trabalho, agruparam-se inúmeros indícios que possibilitaram o estabelecimento de pontos em comum entre o Movimento Anarquista e a Semana de Arte Moderna.
Embora não tenha sido possível, somente
comasfontes secundárias utilizadas nesta pesquisa, verificar as relações diretas entre os anarquistas e os modernistas, pode-se
dizer que seus respectivos intelectuais se conheciam mutuamente e cada grupo sabia da atuação do outro.
Através de algumas alusões diretas, percebem-se evidências de recíprocas influências entre os dois movimentos. Por exemplo, Afonso Schmidt, anarquista, comenta que a SemanadeArte Moderna - movimento de um grupo de intelectuais paulistas e cariocas - foi uma reação ao grupo Zumbi; Mário de Andrade, modernista, em artigo de 4 de fevereiro de 1922, faz menção ao sindicalismo do período, ao argumentar que "união é força" para explicar a formação do grupo participante da Semana de Arte Moderna.
Entretanto, ao final da análise, entende-se que a procura de relações factuais entre os dois movimentos ou de eventuais relações individuais entre seus membros não se pode constituir no eixo principal de um estudo que pretende
compreender a essência desses
movimentos. O Movimento Anarquista e a Semana de Arte Moderna estão inseridos em um contexto de relações sociais que englobam todos os grupos que compõem a sociedade. Analisá-los, portanto,
isoladamente desse conjunto de relações, não possibilita uma real compreensão de seus papéis.
FundaçaoJoãoPinheiro,BeloHorizonte,v.7, nr 1,janJabr.1992
Nesse sentido, percebe-se que o espaço de interação entre os dois movimentos repousa nesse conjunto de relações sociais, uma vez que ambos atuavam em função da conjuntura de crise que caracterizou a fase final da República Velha. Todavia, comprometendo-se, antagonicamente, com distintas classes sociais operariado e burguesia, as posturas assumidas pOT seus intelectuais foram diferentes e, às vezes, divergentes.
Os intelectuais anarquistas desempenharam, junto ao seu grupo, função orgânica durante todo o período enfocado. Já os modernistas, em princípio "tradicionais" e dispersos, foram, aos poucos e talvez sem o perceberem, passando à condição de "intelectuais orgânicos", sendo aglutinados em torno de um evento . a Semana de Arte Moderna, em que se evidencia o caráter inovador e precursor de Paulo Prado.
Assim, é na função de seus intelectuais que se deve procurar detectar os pontos em comum entre os dois movimentos. Os "intelectuais orgânicos", tanto anarquistas quanto modernistas,
desenvolveram funções práticas:
construção de novas visões de mundo, a partir da organização de movimentos (operário e Semana de Arte Moderna), cujo principio básico se pautou na "persuasão permanente", nos limites da "consciência possível" de seus respectivos grupos.
Esses intelectuais, ainda em termos de função, desempenharam-na de
forma semelhante, uma vez que a
especialização intelectual foi acoplada à
direção dos movimentos, cuja função política melhor executaram-na os anarquistas.
Nem sempre esses intelectuais estiveram ligados diretamente ao mundo da produção. Entre os anarquistas, alguns eram realmente operários, enquanto outros eram diretores de jornais da classe operária. No caso dos modernistas, parece que todos se ligavam no setor terciário da economia.
O Movimento Anarquista e a Semana-deArte Moderna - e os respectivos grupos que os personificam - surgiram e se desenvolveram a partir de um contexto histórico específico, caracterizado pela