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Educação para a justiça social, agentes insurgentes e a crise do instituído

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Academic year: 2020

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ISSN 1518-3483 Licenciado sob uma Licença Creative Commons

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Educação para a justiça social, agentes

insurgentes e a crise do instituído

Education for social justice, insurgent agents and the

established crisis

Educación para la justicia social, agentes insurgentes y

la crisis del establecido

Lindomar Wessler Boneti* Pontifícia Universidade Católica do Paraná, (PUCPR), Curitiba, PR, Brasil

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Resumo

Este texto tem como objetivo analisar uma problemática típica da contemporaneidade, envolvendo o universo social e, explicitamente, o escolar. Trata-se de uma tensão entre a expressão do mundo da vida, expressa pela insurgência e transgressão, e o instituído (o conjunto de regras, normas e valores). Argumenta-se que esta tensão se explica pelo

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distanciamento entre a epistemologia do instituído, a qual não contempla o mundo da vida, e, portanto, não atribui racionalidade à expressão da insurgência e da transgressão. Esta tensão pode se encontrar justamente no descompasso entre a expressão do ser, da emoção, do desejo, do querer, do sonho e a epistemologia do instituído. Isto é, a episte-mologia do instituído continua assentado na razão moderna, a qual distancia-se do mundo da vida considerando apenas racional a obediência às regras e normas instituídas e a ca-pacidade de evolução. Entende-se que uma educação comprometida com a justiça social não comporta desvincular da sua institucionalidade a expressão da vida no mundo real.

Palavras-chave: Insurgência. Instituído. Educação. Justiça Social.

Abstract

This text aims to analyze a typical contemporary problem, involving the social universe and explicitly, the school. There is a tension between the expression of the world of life, expres-sed by the insurgency and transgression, and the established (the set of rules, norms and values). It is argued that this tension is explained by the gap between the epistemology of the established, which does not include the world of life, and therefore does not attribute rationality to the expression of the insurgency and transgression. This tension can be found in the gap between the expression of the self, emotion, desire, dream and epistemology of the established. Namely, the established epistemology continues anchored in the modern reason, which distances itself from the world of life considering only rational the obedience of the established rules and standards and the ability to evolve. It is understood that an education committed to social justice does not admit the detachment of its institutional side the expression of life in the real world.

Keywords: Insurgency. Established. Education. Social Justice.

Resumen

Este texto tiene como objetivo analizar un problema típico de la contemporaneidad, envol-viendo el universo social y, de forma explícita, el escolar. Hay una tensión entre la expresión

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del mundo de la vida, expresada por la insurgencia y la transgresión, y el establecido (el conjunto de reglas, normas y valores). Se argumenta que esta tensión se explica por la diferencia entre la epistemología de lo establecido, que no incluye el mundo de la vida, y por lo tanto no da a la racionalidad la expresión de la insurgencia y de la transgresión. Esta tensión puede encontrarse en la diferencia entre la expresión de uno mismo, de la emoción, el deseo, la necesidad, el sueño y la epistemología del establecido. Es decir, la epistemolo-gía del establecido sigue apoyada en la razón moderna, que se distancia del mundo de la vida considerando sólo la obediencia racional a las reglas y normas establecidas y la capa-cidad de evolucionar. Se entiende que una educación comprometida con la justicia social no compuerta desvincular de su parte institucional la expresión de la vida en el mundo real. Palabras clave: Insurgencia. Establecido. Educación. Justicia Social.

Introdução

Este texto tem como objetivo analisar uma temática que se ex-pressa na contemporaneidade e caracteriza tanto o mundo social quanto o institucional, como é o caso da escola. Trata-se de uma tensão entre o instituído e a expressão do mundo da vida. Entende-se que uma educação comprometida com a justiça social não pode desvincular a sua institucio-nalidade — o conjunto de regras e normas — da expressão da vida social. Entende-se como instituído o conjunto de normas, regras e va-lores que regulamenta o convivio social, as relações econômicas e política. Assim, pode-se considerar a insurgência como uma força que se origina com posturas e ideias diferentes do convencional do instituído, e que nes-te caso se apresentam como “rebeldes”.

Considera-se que o instituído é estipulado a partir de princí-pios epistemológicos, em que se estabelece parâmetros de reconheci-mento racional dos conhecireconheci-mentos produzidos no âmbito da produção da vida, das regras e relações sociais. Pode-se garantir que na contem-poraneidade, os princípios epistemológicos que dão guarida teórica ao

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instituído têm afinidade com a realidade do mundo da vida? Esta ques-tão traduz a inquietação fundante, a qual motiva a análise que se produz neste texto. Ou seja, parte-se da desconfiança de que os parâmetros de cientificidade praticados nos dias atuais, ou seja, a institucionalização, o conjunto de regras, normas e valores, do conhecimento e o que se en-tende como verdade hoje ao avaliar o comportamento individual, tem ainda como fundamento a epistemologia moderna, a qual não dá conta de atribuir racionalidade e veracidade científica ao conhecimento sin-gular produzido no âmbito do mundo da vida. Assim, cria-se um dis-tanciamento entre os princípios epistemológicos que fundam as regras sociais, o instituído e o real do mundo da vida, de onde tem origem a expressão da insurgência.

Ou seja, considerando que no contexto atual, se tem uma nova configuração social, quando múltiplas dinâmicas sociais, culturais e polí-ticas se apresentam, com o advento de novos saberes e novos parâmetros de verdade, impõe-se a necessidade de reavaliar a conexão entre o novo mundo da vida neste momento existente e o fundamento teórico da ins-titucionalização das práticas sociais.

Dedica-se neste artigo, analisar esta relação entre aquilo que se pode considerar de instituído, o conjunto de regras e valores, com o ad-vento da insurgência, buscando compreender o que diferencia o momen-to histórico atual que justifique uma maior intensidade da expressão da insurgência, como é o caso do universo escolar.

Busca-se uma análise desta tensão a partir do argumento que se de um lado no último século avançou a perspectiva do reconhecimento do indivíduo com base nas suas subjetividades, diferenciações e singulari-dades. Existe uma posição epistemológica, uma teoria do conhecimento, que rege, regulamente, fundamenta teoricamente a institucionalidade (o conjunto de regras, normas, valores...) e que esta institucionalidade, não comporta, não abriga e não compreende a expressão da individualidade, do desejo, da emoção... como racional.

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A epistemologia do instituído

O primeiro aspecto a recordar em relação à epistemologia clás-sica das ciências do homem diz respeito ao seu vínculo com as ciências naturais. Como bem salienta Grinevald (1975, p. 40), com o avanço da ciência do domínio da natureza, a partir do método experimental, a física parece ser o primeiro ingrediente a se integrar no processo da formação das ciências humanas. A economia política foi constituída na Inglaterra no decorrer da Revolução Industrial e da glória de Newton, quando se tinha uma influência considerável da epistemologia positivista. A partir de en-tão, grandes teóricos das ciências do desenvolvimento econômico, como Adam Smith, Walras, Pareto e Saint-Simon, desejavam ser o Newton da mecânica social da produção e do consumo de riquezas. A construção das ideias das ciências humanas, a partir das ciências da natureza, fez com que estas, as ciências humanas, fossem assumindo ingredientes típicos das ciências naturais.

Para a análise que aqui se faz, é importante recordar alguns momentos chaves no processo histórico da construção da epistemolo-gia moderna, dando especial atenção ao período a partir do século XVII quando, no dizer de Boaventura de Souza Santos (1987, p. 17) a reflexão epistemológica moderna tem as suas origens e atinge um dos seus pontos altos em finais do século XIX, ou seja, no período que acompanha a emer-gência e a consolidação da sociedade industrial e assiste ao desenvolvi-mento espetacular da ciência e da técnica. Neste período histórico alguns ingredientes epistemológicos de ciência e conhecimento se consolidam, e, importante se faz recordá-los e compará-los com a dimensão do mundo da vida, por exemplo: a) O preceito da mensuração e da universalização dos parâmetros da verdade e de cientificidade. Pode-se considerar que os preceitos da mensuração e da universalização apresentam-se como vede-tes da epistemologia moderna, como parâmetros de verdade e de cienti-ficidade, abrindo caminho para os demais. Mensuração e universalização apresentam características que somente eles vedariam atribuir razão ao conhecimento singular fruto do mundo da vida.

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Como diz Jacob Bronowski (1978) no livro “As origens do co-nhecimento e da imaginação”:

Galileu e seus sucessores pensam a ciência como capaz de descobrir a verdade global da natureza. Não somente a natureza é escrita numa linguagem matemática decifrável pela experimentação, como essa lin-guagem é única; o mundo é homogêneo: a experimentação descobre uma verdade geral. Os fenômenos simples que a ciência estuda podem desde logo entregar a chave do conjunto da natureza, cuja complexida-de não é mais que aparente: o diverso reduz-se à verdacomplexida-de única das leis matemáticas do movimento.

Isto é, o pressuposto da homogeneidade e o da mensuração do mundo real leva ao desconhecer e não se considerar as complexidades, particularidades, singularidades e contradições dialéticas do mundo real. b) Adoção do modelo matemático das ciências naturais na compreensão do mundo social. Como já se fez referência acima, o modelo matemático, junto com o da universalidade, apresentaram-se como ingredientes pais na construção da trajetória da construção da epistemologia moderna. Mas é importante ressaltar um marco importante na história, o século XVIII, quando este princípio passa a ser adotado como modelo também para as ciências do homem, a matemática e a técnica como sinônimo de Razão no mundo social.

Este argumento é salientado por Habermas (1987, p. 161) no livro Teoria do Agir Comunicacional, Tome 1, ao lembrar que os princi-pais pressupostos filosóficos da razão moderna se encontram na obra de Condorcet (2004), escrito em 1794, “Esboço de um Quadro Histórico do Progresso do Espírito Humano” onde o modelo de racionalidade é repre-sentado pelas ciências matemáticas da natureza: observação, experimen-tação e cálculo. Neste livro a construção do modelo de racionalidade, se apresenta a partir de quatro caminhos: associando o conceito de perfeição (arte, psicologia, etc.) ao modelo do progresso científico; enfocando a su-pertição e pré-julgamento como elementos opositores do progresso cien-tífico, com isto cortando as representações religiosas, filosóficas, morais

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e políticas vindas da tradição; ressaltando a convicção que as ciências da natureza servem igualmente ao aperfeiçoamento moral do homem; o pro-gresso do conhecimento, que assumido pelas ciências humanas da mesma forma que os do conhecimento da natureza, contribuirá para o desenvol-vimento do indivíduo e da coletividade.

Este preceito tem importância na análise que aqui se faz em dois aspectos: O primeiro refere-se ao fato de se associar “normalidade” ao movimento evolutivo individual. Em outras palavras, o “normal” é o que “progride”, “evolui”, movimenta positivamente a vida. O segundo aspec-to, como se dá na indústria, a força que impulsiona o desenvolvimento não nasce do mesmo corpo (comunidade ou indivíduo, por exemplo), mas de uma força externa. É mesmo que dizer que existe um centro onde se encontra a verdade científica o qual impõe um padrão homogêneo a partir do qual devem se adaptar as singularidades.

Mas um detalhe pouco salientado nos estudos da trajetória da construção da racionalidade moderna diz respeito à noção de movimento nos estudos físicos e sociais. O pensamento dialético de considerar a rea-lidade, quer seja natural ou social, em permanente movimento e contra-dição, mesmo com origem no mundo grego, foi suprimido pela concepção teológica da Idade Média. Porém, esta premissa é resgatada no debate que deu origem à ciência moderna, apresentando-se por exemplo, nas obras de Francis Bacon, René Descartes, etc. assim como as premissas teóricas utilizadas por Galilei Galileu. Mas, tal premissa dialética de ver a realidade na perspectiva da transformação e contradição toma outra perspectiva no contexto da consolidação do modo de produção capitalista assim como da burguesia como classe dominante. Como exemplo é possível citar a proposta de Saint-Simon, um dos pensadores mais importantes do positi-vismo clássico, de se abandonar a crítica e perspectiva da mudança para a concretização da ordem, conforme observa Pièrre Ansart (1970). Assim, o ver o real na perspectiva da ordem, no positivismo clássico o movimento toma outra conotação, a da evolução e progressão. Isto significa dizer que abandona-se a ideia dialética de ver o real como essencialmente contra-ditório, em conflito e transformação para a adotar o conceito de evolução

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e progresso, com um olhar nos fenômenos sociais como leis naturais, ca-bendo â ciência somente interpretá-los, adota-se a obediência às regras e a capacidade de movimento linear (evolução) como sinônimo de razão

Em síntese, alguns elementos importantes institucionalizam a noção de verdade, a qual fundamenta um pseudo “modelo civilizatório” constituindo-se base do instituído, o conjunto de normas, regras, valores sociais: os saberes oriundos da ciência são inquestionáveis, são infalíveis e universais, independentemente do universo cultural e geográfico; o saber técnico, o que constitui funcionalidade do sujeito, é sinônimo de raciona-lidade; uma verdadeira ação racional guarda distanciamento da tradição e da expressão cultural, salvo quando esta se apresenta na perspectiva do show; a predominância da utilização da mensuração como parâmetro de verdade em todos os sentidos; a utilização de “modelos” de organização social e/ou comportamento individual como parâmetro de verdade e da noção de sucesso; a evolução e progresso como parâmetro de avaliação da verdade e do verdadeiro comportamento individual.

A crise do instituído a partir da razão técnica

Dois fatores justificam um momento de crise da epistemologia clássica da ciência moderna, os seus próprios fundamentos teóricos e o advento de uma nova configuração do mundo originada a partir de even-tos históricos envolvendo o mundo social. Com isto colocando em ques-tionamento a própria institucionalização social.

A crítica à epistemologia clássica das ciências sociais do homem diz respeito, fundamentalmente, à alienação do mundo da vida na medida em que utiliza como parâmetro de cientificidade a mensuração e a isenção à tradição, traços culturais e religiosos. Entre inúmeros pensadores que fundamentam a crítica è epistemologia clássica da racionalidade moder-na, Habermas (1987, p.159-160, tome I), resume a essência desta crítica ao considerar que entre os pensadores clássicos, o que mais aproxima a razão ao mundo da vida seria Max Weber em decorrência da estrutura

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de símbolos contemplada por este pensador, mas Habermas o questiona pela fragmentação da sua teorização em tono da razão ao se limitar a as-sociar a razão à racionalidade capitalista: forma capitalista das atividades econômicas. Dando continuidade, em outra obra, “Técnica e Ciência como Ideologia” Habermas (2001, p. 46), dialogando com Marcuse afirma que:

Marcuse está convencido de que, naquilo que Max Weber chamou de “racionalização”, não se implanta a “racionalidade” como tal, mas em nome da racionalidade, uma forma determinada de dominação políti-ca oculta... Marcuse chega a esta conclusão: O conceito de razão técnipolíti-ca é talvez também em si mesmo ideologia. Não só a aplicação mas já a própria técnica é dominação metódica, científica, calculada e calculan-te (sobre a natureza e sobre o homem).

Mas, o advento da crise da Razão Moderna se deve muito mais ao próprio contexto social a partir de uma nova configuração da expres-são do mundo da vida. Especialmente no final do século XIX e início do século XX afloram contradições em relação ao advento da razão moderna, particularmente em relação ao pressuposto iluminista associando a téc-nica à redenção humana. As contradições teóricas do movimento revolu-cionário alemão, particularmente o marxismo, a ascensão do Nazismo, a primeira e segunda guerra mundial, a destruição humana e ambiental são fatores que explicitam estas contradições. Como diz Boaventura de Souza Santos (1987, p. 139) no que se refere ao uso político da ciência: “A nível internacional, procedia-se na Alemanha, desde 1933, a uma política de aviltamento da ciência, da submissão desta ao objetivos sociais e políticos do nazismo”.

Trata-se de uma crise que dá origem a uma inquietação que se expressa no mundo acadêmico. Um exemplo desta inquietação pode-se citar a Escola de Frankfurt. Como diz Matos (1995, p. 6), “A ascensão do nazismo, a Segunda Guerra, o “milagre econômico” no pós-guerra e o sta-nilismo foram os fatores que marcaram a Teoria Crítica da Sociedade, tal como esta se desenvolveu dos anos 20 até meados dos anos 70”, ou ainda da mesma autora (p. 7): “Em nome de uma racionalidade crescente, os

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processos sociais são dominados pela ótica da racionalidade científica, ca-racterísticas da filosofia positivista.”. Certamente que Habermas (2001) no seu livro Técnica e Ciência como Ideologia exprime com nitidez o foco central da preocupação dos pensadores desta escola, o de questionar a premissa aliando a técnica à Razão.

O advento da insurgência

Este conjunto de regras e normas se fundamente em algumas categorias epistemológica da Razão Moderna, como o de ver o compor-tamento correto associada à institucionalidade jurídica, na ausência da tradição, na ausência da vontade individual, na mensuração e na homo-geneidade. Este olhar epistemológico do instituido impõe dificuldades de lidar e entender um novo momento, o da isurgência da expressão do desejo, da emoção, da expressão do “ilegal” como sinônimo racionalidade. Em outras palavras, argumenta-se que o instituído tem base epistemoló-gica na ciência moderna a qual gerou um conceito de verdade associada à ação pública e ao comportamento do indivíduo.

A insurgência pode se manifestar através do comportamento considerado fora do conjunto de regras institucionais, do convenciona-lismo social distanciando-se assim dos valores sociais e culturais, como é o caso da expressão da homosexualidade, do advento das diferenças etni-cas, etc. e a luta pelo respeito e direitos das singularidades e diferenças sociais. Mas a insurgência pode também se expressar com manifestações de ideias conservadoras reagentes à luta pelo reconhecimento das dife-renças e desigualdades sociais. A insurgência pode se constituir da ex-pressão de “rebeldia” e/ou descontentamento à organização política e so-cial do momento histórico. Isto é, neste momento histórico a insurgência tem-se manifestado, em geral, como força oponente, forças que excitam a origem de outras forças, que se contrariam.

A insurgência não se apresenta necessariamente representan-do a instituição, uma organização, tampouco um físico, mas, em geral, se

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apresenta num contexto de desajuste social, expressando a vontade, o de-sejo e as subjetividades individuais, para além do instituído. Neste caso, a insurgência se apresenta como uma ação pública manifestada em público, no espaço público das cidades, nas esferas públicas, nas redes sociais, com notoriedade no espaço escolar, etc.

No geral, o advento de um novo contexto social suscita a neces-sidade da reconstrução da razão a partir do mundo da vida. Entende-se que o processo da globalização pode se constituir em processo de inte-ração (mudança) ou de disjunção (conflito). Isto significa dizer que nem sempre um processo social traga resultados positivos para a população, pode trazer para algumas pessoas, mas para outras não. O processo social altera a forma de vida social e com isto, altera a trajetória de vida das pessoas. A produção de novos conhecimentos, por exemplo, pode trazer grandes benefícios para as pessoas que tem acesso a estes conhecimentos produzidos recentemente. Porém, para as pessoas que não têm acesso a tal conhecimento podem sofrer um processo de disjunção, de exclusão, isto porque, o conhecimento que estas dispõem não mais é válido para o novo momento social.

Conforme a análise feita por Tavares dos Santos (2015, p. 19), o processo da globalização pode derivar simultaneamente: a) integração através da homogeneização. Na ótica da produção econômica mundial exis-te uma perspectiva de processo de inexis-tegração através da homogeneização, especialmente de hábitos cultuais de consumo e de habilidades para o tra-balho; b)Tensões, Desigualdades, Diferenciações e Exclusões. Ao mesmo tempo que este processo de expansão das relações econômicas globais se constitui de outro processo de integração através da homogeneização de hábitos culturais e de habilidades para o trabalho, provoca uma outra força na sociedade, aquela que trás tensão, desigualdades e exclusão social. Todo processo de homogeneização social provoca desintegração. Isto porque, en-tre outros fatores, o processo de homogeneização implica na aquisição de novos conhecimentos, novas habilidades para o trabalho, etc. desvalorizan-do habilidades e saberes anteriores; c) Modificações nas noções de espaço/ tempo. As novas tecnologias, especialmente a rede mundial de computação,

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aproximou as pessoas no sentido da simples comunicação, criando uma nova dinâmica na produção econômica, de pesquisas, de estudos, etc.; d) No plano da organização do trabalho. Sem dúvida que uma das maiores mu-danças ocorridas nas últimas décadas tenha sido em relação à organização do trabalho, o que se constituiu um processo social de grande impacto, em grande parte disjuntivo, isto é, provocando desemprego e exclusão social; e) Mutação nas relações de sociabilidade. O conjunto das transformações eco-nômicas, políticas, culturais e sociais as quais caracterizam a sociedade glo-bal hoje, provocaram mudanças nas relações de sociabilidade, provocando um processo simultâneo de integração comunitária e fragmentação social, de massificação e individualização.

A partir desta nova configuração da expressão do social exposta acima, pode-se indagar se a epistemologia clássica da razão moderna, tal como foi também exposta, se apresenta em condições de absorver de forma justa os novos conhecimentos advindo deste novo mundo da vida?

No caso brasileiro este novo contexto tem início com a própria “revolução burguesa”, como expressa Florestan Fernandes (1976), des-tituindo-se o modelo cultural burguês como sinônimo de civilidade, de verdade e de comportamento individual. Com advento de uma nova no-ção de cultura, daquela associada à acumulado de saberes escolarizados e eruditos, conforme observações de Denys Cuche (2002), em “A Noção de Cultura nas Ciências Sociais” para a noção antropológica, o da expressão da vida, nos moldes de Clifford Geertz (1989) tem origem um novo olhar para o contexto social.

Contribui com este evento a chegada ao Brasil de estudos cien-tíficos etnográficos, sociológicos e antropológicos para os quais o mundo cultural passou a ter outro enfoque. Como exemplo pode-se citar os es-tudos estruturais de cultura de Lévi-Strauss e a análise funcionalista da cultura de Malinowski, como expressão da vida no presente, destituindo a relação histórica entre cultura e evolução social. Estes fatos se fizeram importantes na destituição de um modelo cultural burguês como sinôni-mo de civilidade.

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Sem dúvida que a Semana de Arte Moderna de 1922 contribuiu significativamente com a quebra do preceito de formalidade como sinôni-mo de cultura e de distinção de classe no Brasil.

Contribuíram também com este movimento em torno de uma nova noção de cultura a chegada no Brasil da repercussão dos movimentos sociais tipicamente urbanos, produtos no contexto da revolução industrial e da urbanização, como foi o caso do movimento “hip-hop”, as artes, a mú-sica, a literatura, como expressão contestatória às práticas de aniquilação do negro. Exemplo disso o movimento musical gerado nos EUA sob a in-fluência de raízes africanas, jamaicanas, latinas, derivando especialmente o Blues e o Jazz, com fortes influências sobre as periferias urbanas brasi-leiras. Estes movimentos musicais tinham sincronias políticas, como por exemplo, na década de sessenta, o movimento liderado por Luther King. Trata-se de um novo contexto cultural brasileiro conforme analisa Carlos Guilherme Mota (1980) no livro Ideologia da Cultura Brasileira.

Assim, aflora a insurgência a partir do advento de processos so-ciais novos, do resgate do sujeito no lugar da técnica, o reconhecimento do singular e do diferente no lugar do homogêneo, o reconhecimento do desejo e da emoção no lugar da neutralidade como sinônimo de racional. Com isto, se faz importante ressaltar que a insurgência pode se traduzir através de movimentos institucionalizados ou não, através da expressão da individualidade, através da emoção, desejo e opinião.

O descompasso entre a insurgência e o engesso conceitual de democracia e esfera pública

A questão é: identificar como concretamente se expressa este descompasso entre o instituído e a expressão do mundo da vida, ou mais particularmente a expressão do sujeito. Apresentamos dois aspectos que podem abrir caminhos para se pensar esta questão: como se apresenta para o mundo social e político, do ponto não apenas epistemológico mas

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o delineamento da prática, o Estado e as políticas públicas; Cidadania e Esfera Pública.

O primeiro aspecto que identifica este descompasso entre o ins-tituído e a expressão do sujeito do mundo da vida diz respeito à utiliza-ção do preceito de associar políticas públicas a ações de governo, centra-lizando as análises às avaliações de resultados e do gerenciamento dos recursos públicos. Com isto não se considera de que o estudo das políticas públicas implica no entendimento da existência de uma complexidade te-órica, metodológicas, políticas e ideológica. Adota-se o princípio episte-mológico da Razão Moderna, especialmente a técnica como parâmetro de referência de verdade e de saber, quando apresentavam-se como agentes definidores basicamente o meio produtivo e Estado, ignorando que na contemporaneidade, destitui-se o absolutismo da verdade técnica como parâmetro, apresentando-se ao lado do Estado e do meio produtivo a di-mensão do sujeito trazendo ao debate novas lutas sociais como é o caso, das identidades, da diferença e das desigualdades sociais. Este olhar sobre as políticas públicas vem associada ao pensamento que se tem sobre o Estado, um olhar simplista, com fundamento no pensamento positivo de entender o Estado como uma instituição regida pela lei, a serviço de to-dos os segmentos sociais, como se o Estado fosse uma instituição neutra. Neste caso, as políticas públicas seriam definidas tendo como parâmetro unicamente o bem comum e este bem comum seria entendido como de interesse de todos os segmentos sociais. Este entendimento nega a possi-bilidade do aparecimento de uma dinâmica conflitante, envolvendo uma correlação de forças entre interesses de diferentes segmentos sociais ou classes. Este olhar positivo sobre a instituição Estado desconsidera a in-terelação entre o Estado e sociedade civil, considerando-se duas instân-cias, o instituído e o mundo social, a expressão do real, a sociedade civil. Assim, a concretude de uma política pública está associada a uma outorga do Estado, do instituído à sociedade civil, sem contar com a participação do sujeito. Certamente que esta posição epistemológica se expressa no dia a dia da relação da instituição/sujeito, tal como ocorre no mundo educa-cional e tantos outros. Esta interpretação não oferece espaço à expressão

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do sujeito, na medida em que este sujeito se insere numa dimensão de Contrato, apresentando-se o Estado como uma figura “Leviatã” (HOBBES 2002), utilizando-se a expressão do “ter direito” como elemento de liga-ção entre uma e outra instância. Thomas Hobbes publicou “O Leviatã: ou a Matéria, Forma e Poder de uma República Eclesiástico e Civil” em 1651, no âmbito do momento histórico da discussão da construção das bases epistemológicas da Razão Moderna, cujos princípios perduram como fun-damento da institucionalização no atual momento histórico.

Frente a esta conceituação de Estado e políticas públicas, emer-ge um conceito de cidadania a partir do direito passivo. Trata-se do con-ceito clássico de cidadania originado com o advento do Estado Moderno, explicitado como exemplo, por Thomas Marshall (1988), em um dos seus livros mais conhecidos, o Cidadania e Classe Social, publicado em 1950, sustentando que a plenitude da cidadania se encontra na adoção de três tipos de direitos: políticos, civis e sociais, e que esta condição está ligada à classe social. O que se pode compreender esta noção de cidadania está ainda engessado na institucionalidade, designar cidadania aos direitos institucionais, o que coloca o indivíduo como tal em posição de passivida-de, ou melhor, Direito como outorga e não como construção social a partir da própria expressão da insurgência.

A expressão da insurgência, certamente está relacionada ao mundo público ou ao próprio conceito de esfera pública. Porém, no senti-do clássico senti-do conceito de esfera pública, esta é entendida como atrelada ao institucional. Isto é, a expressão da individualidade no público é racio-nal quando atrelado a um conjunto de regras, normas e valores associados à racionalidade burguesa. Neste sentido a expressão da insurgência não seria considerada racional.

Habermas (1987b), no livro Mudança Estrutural da Esfera Pú-blica, ao rediscutir tal conceito avança um pouco de forma a se aproximar a dar guarida à insurgência no âmbito da esfera pública, ao associar a esfera pública uma categoria histórica que teve origem no contexto do advento da família burguesa e sua privacidade em relação ao público. Porém, que se tra-ta de uma noção que avança na medida em que apresentra-ta a possibilidade de

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se dar status de razão à expressão do público o qual desvincula-se do priva-do e priva-do privativo, consideranpriva-do que fazer parte de uma esfera pública impli-ca na expressão da opinião públiimpli-ca. Neste sentido Habermas considera que um público é sempre um público que julga. Mas por outro lado, esta noção ainda permanece engessada no conjunto de regras (institucionalização) do público. Veja o que diz Habermas: A esfera pública burguesa pode ser en-tendida inicialmente como a esfera das pessoas privadas reunidas em um público, elas reivindicam esta esfera púbica regulamentada pela autoridade, mas diretamente contra a própria autoridade, a fim de discutir com ela as leis gerais da troca na esfera fundamentalmente privada, mas publicamente relevante, as leis do intercambio de mercadorias e do trabalho social (p. 42). No entanto, Hannah Arendt (2002, p. 62), em A Condição Huma­

na ao discutir a questão do público e da esfera pública abre possiblidades

de se construir uma nova noção deste conceito de forma a absorver neste universo a expressão da insurgência. Diz ela: “em primeiro lugar, que tudo o que vem a público, pode ser visto e ouvido por todos e tem a maior di-vulgação possível...”. Em segundo lugar, ainda segundo Arendt, o termo “público, significa o próprio mundo na medida em que é comum a todos nós e diferente do lugar que nos cabe dentro dele”.

Assim, mesmo considerando o processo de transformação do ter-mo privado (ARENDT, 2002, HABERMAS, 1984), da conotação do parti-cular no sentido da propriedade privada, para a conotação da privacidade, especialmente com o advento da família burguesa, poderia se considerar, na perspectiva de oferecer legitimidade racional à insurgência e à própria trans-gressão, que o público é constituído pelo privado, não apenas no sentido da propriedade privada, mas especialmente pelas subjetividades individuais no âmbito da sua privacidade, com as quais o indivíduo se apresenta no público. Considerações Finais

Conclui-se portanto, que o mundo social na contemporaneidade expressa uma tensão na perspectiva de se construir legitimidade, a partir

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do entendimento do ser racional, especialmente no que se refere à in-surgência e à transgressão. Esta tensão pode se encontrar justamente no descompasso entre a expressão do ser, da emoção, do desejo, do querer, do sonho e a epistemologia do instituído. Isto é, a epistemologia do ins-tituído continua acentado na razão moderna, a qual, como foi analisa-do acima, distancia-se analisa-do munanalisa-do da vida considerananalisa-do apenas racional a obediênia às regras e normas instituídas e a capacidade de evolução.

Isto é, se de um lado no último século avançou-se na pespectiva do reconhecimento do indivíduo a partir das suas subjetividades, dife-renciações e singularidades, existe uma posição epistemológica, uma teo-ria do conhecimento, que rege, regulamente, fundamenta teoricamente a institucionalidade (o conjunto de regras, normas, valores...) e que esta institucionalidade, não comporta, não abriga e não compreende a ex-pressão da individualidade, do desejo, da emoção... como racional. Isto significa dizer que, especialmente no universo escolar, educação para a justiça social significa romper com este preceito na perspectiva de atribuir racionalidade à própria insurgência por se considerar que esta traduz a legitimidade do mundo da vida.

Referências

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Recebido: 09/12/2015 Received: 12/09/2015 Aprovado: 12/02/2016 Approved: 02/12/2016

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