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O Curso de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e a sua Revista

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Philosophica, 50, Lisboa, 2017, pp. 7-19.

e a sua Revista

Joaquim Cerqueira Gonçalves1

(Director Honorário / Fundador de Philosophica)

Philosophica – um título suficientemente simples para ser acolhido sem relutâncias, tal como para ser interminavelmente discutido. Tudo faremos para o merecer. (Philosophica, n.º 1, “Apresentação”)

1. A versatilidade de uma promessa – O movimento de longo per-curso pede tranquila intercepção para saborear, em retrospectiva, o espa-ço já vencido e também para o avaliar criticamente, em jeito de balanespa-ço. Para melhor compreender e celebrar a edição do número 50.º da revista Philosophica (1993), no qual se insere o presente texto, torna-se obriga-tório regressar à “Apresentação”, inserta no n.º 1, para a qual, posterior-mente, se vai remetendo, diversas vezes. É de conjecturar que a procura de um título para uma publicação, com desígnios de futuro, tenha a sua própria história, como de facto, no presente caso, sucedeu, mas, não se pretendendo retomar, em pormenor, os meandros do trajecto que condu-ziu à Philosophica, menos ainda à sua proto-história, presume-se que a revisitação dos seus 49 números justifique, a posteriori, o acerto da al-ternativa optada – Philosophica –, a par de algumas outras que estiveram em perspectiva.

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Todavia, o exergo acima exibido, seleccionado dessa originária “Apresentação”, refere-se a um compromisso estabelecido com o título da Revista, isto é, com o significado dele – a filosofia –, exprimindo a preo-cupação de se vir a ser merecedor do discurso filosófico. É, todavia, uma promessa hesitante, formulada em termos de desejo, prevendo tarefa difí-cil, inesgotável, antegostando, porém, gratificante exercício, se possível o mais filosófico de todo o Curso de Filosofia2. Assim teria que ser essa in-tencionalidade: ter mérito em filosofia e poder desejá‑lo em promessa sig-nifica estar aberto ao dom da racionalidade, à manifestação da realidade, no seu acontecer, no tempo. Tomando, aqui, essa significativa e numerada quantidade, isto é, a safra de 49 números, como símbolo de qualidade – a perseverança é valor já garantido –, não parecerá desmesura reconhecer que o desafio filosófico foi positivamente correspondido, legitimando novo alento para prosseguir.

2. Entre o dom e o mérito – Em toda a actividade especulativa, so-bretudo na da filosofia, vive‑se sempre no cruzamento entre receber e dar. “A cada um o que lhe pertence”, lema gravado, em latim, em sincopa-da expressão jurídica – unicuique suum… –, se pretende salvaguarsincopa-dar a justiça de uma posse, ele faz, todavia, parte da fenomenologia do dom: quem gratuitamente recebe não só gratuitamente deve distribuir, como ainda agradecer, em simultâneo, a tarefa dos mediadores dele, louvando, de modo explícito, a sua disponibilidade na recepção e na transmissão. Philosophica é talvez o produto mais gratuito do Curso de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, pois, mais do que exigência e imperativo institucionais, representa um generoso excesso, bem condizente com a ac-tividade que alimenta a filosofia, uma constante ultrapassagem de limites de sentido. Empilhados à nossa frente os volumes da Revista (já consul-táveis online), muita coisa há, nela, para agradecer – inspirações, labores, preocupações, vigílias, dúvidas, desânim os… Recean do, ao não explicitar protagoniza ções pessoais, expor mo-nos a injustiças quer de omissão, quer de comissão, tal não significa que as escamoteemos no anonimato de um limbo colectivo, nem, menos ainda, as rasuremos. É, entretanto, oportu-no observar, ainda que obliquamente, algumas características da aquisição 2 De entre os documentos escritos disponíveis para poderem servir de testemunho, no

presente e no futuro, quer do Curso de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, quer do saber filosófico aí praticado, recorrer‑se‑ia certamente aos chamados Livros de Ponto e a Philosophica: mas, se os registos do Livro de Ponto elucidam sobre o funcionamento escolar do Curso, Philosophica é elemento privilegiado para aferir a qualidade do exercício filosófico.

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dos saberes escolarizados: sem o envolvimento pessoal de alguns, o pro-duto agora em apreço, isto é, a meia centena de volumes de Philosophica, não seria possível; no entanto, o mérito a enaltecer, fácil de apor a in-confundíveis e dedicados voluntários, abrange também, aliás em contexto decisivo, mesmo que raramente explicitado, a atmosfera de pertença que se foi progressiva mente criando na comunidade do Curso de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde, pelo empenhamen-to de poucos, transita, empenhamen-todavia, a presença cúmplice e colaborante de empenhamen-todos. Sem esse pressuposto de sentido e de consentida atmosfera comunitária, que uma definição técnica de curso científico e mesmo académico não contempla, a iniciativa e a realização de Philosophica seriam impensáveis. De facto, a Revista representa um contin gen te excesso, se conectada ape-nas com o que é exigido, em estrita legalidade, às cláusulas para obter um diploma que abra as portas de tarefas sociais de alcance profissional. No entanto, esse órgão editorial, a existir com dignidade, passa, felizmente, a poder tornar-se objectivo critério para ponderar, qualitativa mente, o valor do certificado do Curso, a que não pode ser indiferente a associação deste à época da produção de Philosophica: “…é diploma do tempo em que se pu-blicava Philosophica”. Os factores culturais condicionantes desta publica-ção não são simetricamente articulados com o brilho puramente científico do Curso, nem nele condensáveis, pois outro espírito, dir-se-ia, outra filo‑ sofia, os gerou, o da participação, não quantificável, numa tarefa que não se confina à página do haver científico, a preencher por candidatos a um enquadramento profissional. Essa marca de excesso com que, há momen-tos, se etiquetou a Revista irá ser particularmente assinalável no modo de transmitir o saber, função que não costuma ser associada à ciência, sobre-tudo se esta for considerada apenas como apropriação competitiva de um ter, em vez de partilha de um benefício, em que a percentagem de generosa actividade ultrapassa os esforços, mesmo que obrigatórios, de aquisição do saber. Em liberdade de expressão académica de corredor, ousar-se-ia afirmar que os pilares e as mais‑valias das institui ções escolares vivem da dedicação e da disponibilidade de “carolas” que, confirma‑o a história, são indispensáveis ao exercício do saber filosófico institucionalizado.

3. Um pouco de história – No oceano do tempo, navega-se sem-pre no intervalo entre as nunca ultrapassáveis margens. No caso vertente, esse meio corresponde aos espaços adjacentes onde se situa Philosophica, procurando as razões mais ou menos próximas que possibilitaram a sua existência, porque, sendo embora uma iniciativa do Curso de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, ela não é caucionada por estruturais

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requi-sitos desse Curso, já que este não seria formalmente invalidado pela ausên-cia dela. Tanto a existênausên-cia desta Revista como até e sobretudo os conteú-dos que preencheram as páginas conteú-dos seus 49 números seriam implausíveis antes de 19573, data de uma importante alteração das Faculdades de Letras do País, ainda hoje conhecida como a reforma de 1957. A partir daí, na Universidade, a Filosofia que, anteriormente, figurava em articulação com a História – Ciências Históricas e Filosóficas –, logrou, por um lado, auto-nomia de curso e de título, Curso de Filosofia, que já conhecera entre 1911 e 1926 e, por outro, ficou inserida em um conjunto de outros Cursos da área de Humanidades, entre os quais, além de diversos factores de recíprocas aproximações, se abriam porosidades de frequência de disciplinas comuns, algumas obrigatórias para quase todos os Cursos, e outras apenas suscep-tíveis de poderem ser optadas por todos os Cursos da Faculdade de Letras. Mais importante, contudo, do que este mosaico organizativo, foi a doutrina subjacente a esta esta nova configuração de saberes: o enraizamento destes no denso solo da cultura, em direcção oposta à predominante atmosfera anterior, que apontava para o que se considerava o vértice da cultura, a ciência, o ideal da chamada cultura iluminista, a reclamar e a garantir au-tonomização e transparência4. Nos meios cultos e escolares portugueses, esta orientação cientificista traduzia‑se, com assaz entusiasmo dogmático, no consabido ideal positivista da cultura moderna do País, cuja dimensão ainda hoje alimenta assinaláveis controvérsias, mas, de qualquer modo, a reforma das Faculdades de Letras, em 1957, bem como o modo de articular os Cursos e o teor dos seus conteúdos passaram a contrastar flagrante-mente com os modelos precedentes, diferenças nem sempre consignadas em pertinentes títulos, devido à tendência conservadora das instituições escolares. Philosophica respira tranquilamente esse novo rumo cultural da reforma de 1957, embora seja de salientar, particularmente dentro da Faculdade de Letras de Lisboa, o paradoxo que a sua existência suscita: se o raizame cultural da nova reforma aproxima os saberes, porque gera-dos no mesmo húmus, Philosophica e outras publicações congéneres, de recorte sectorial, parecem prejudicar o que podia já representar, na história da Faculdade de Letras de Lisboa, uma expressão de unidade, a Revista da Faculdade de Letras, já de longa data editada (1933). Todavia, esse para-doxo ficará pelo menos atenuado se se acrescentar que a complexidade da 3 Decreto 41 341, de 30 de Outubro de 1957.

4 O entendimento da cultura, sobretudo no propósito de articular a filosofia com ela, é

preocupação recorrente na Revista, merecendo referência explícita o seu n.º 46, que publica os textos apresentados ao “Seminário Internacional: A Tragédia da Cultura: Nietzsche – Simmel – Benjamin”.

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cultura tanto estimula a unidade em dimensões de profundidade, como a diferenciação histórica, isenta de ideais convertidos em ideologias, compa-tibilidade que se manifesta flagrantemente no contraste entre a linguagem científica, de efeitos uniformizantes, e a linguagem natural, com dinâmica diferenciante, aquela convocada pelas chamadas ciências da natureza, a segunda desenvolvida nas ciências humanas, cultivadas nas instituições de Humanidades. Na história dos saberes, dá-se por vezes mais impor-tância à história das instituições, em que se integram, do que à vida deles, à sua evolução, mas os órgãos editoriais, como as revistas, porta-vozes sectoriais, a existirem, constituem elementos privilegiados para a vida do saber, inclusivamente para verificar como, não raro, é a instituição que peia o desenvolvimento do saber. É todo este contexto que pode esclarecer o significado do aparecimento de uma publicação como Philosophica que, pela sua própria existência, até por não ser exigida pela estrutura geral da instituição, é já sinal de uma dinâmica inspiração.

4. Da explicação à compreensão – Passando de algumas condi-cionantes, tarefa de explicação, que se consideram propícias à criação de Philosophica, entremos na análise, tanto quanto possível em acto de compreensão, dos textos dos 49 números da Revista, envolvendo‑nos no centro gerador da racionalidade filosófica aí expressa. Propósito certa-mente difícil, porque abrangente e inesgotável, além de ter de lidar com dispersões, diferenças, hiatos, paradoxos e oposições. O afã de interpre-tação, todavia, sem escamotear esses escolhos, sente-se compensado se ao menos vislumbrar a orientação da sua seta de sentido, mostrando-nos caminhos de tendências e preferências, enfim, seguindo sequenciais de-terminações, rasgando possíveis movimentos circulares e vencendo even-tuais bloqueamentos. Esta é a signa da filosofia, de toda a filosofia, que tem em Philosophica uma significativa e provocadora concretização. Antes, porém, de articular a Revista com a filosofia, partindo dos textos por aquela acolhidos, alinhem-se algumas observações de índole escolar que, não sendo indispensáveis condições para cultivar o discurso filosófi-co, o têm, contudo, marcado, desde longa data, também ainda sentidos em Philosophica, embora, neste caso, sirvam mais para registar o que se vai ultrapassando do que para descrever rectilineamente o que aí se estrutura. Independentemente da questão filosófica da temporalidade, que a Revista tematiza repetidamente5,o estudo escolar da filosofia, ao ordenar, geral-mente, as suas próprias manifestações na seriação cronológica, mediante 5 A questão da temporalidade e da história, inclusive para esclarecer a articulação entre

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a divisão em períodos – antigo, medieval, moderno, contemporâneo –, é tentada a ver as diferenças do discurso, não pela intrínseca dinâmica deste, mas por divisões estabelecidas por critérios que lhe são exteriores, acaban-do por identificar, ainda que implicitamente, o progresso da manifestação de sentido com a progressão acumuladora de momentos. De facto, essa distribuição da actividade filosófica em períodos, que os planos de cursos escolares têm preservado com especial complacência, sente-se também em Philosophica, embora não já no pressuposto de que ao avatar cronológico corresponde uma inexorável intensificação de sentido gerado pelo tempo. A periodização filosófica é ainda uma forma de conciliar a unidade com a diversidade, embora, presentemente, indique apenas a conformação com mosaicos mais guardados pelas instituições escolares do que pela própria filosofia. De qualquer modo, sem se recorrer a exigentes critérios de aferi-ção, uma leitura global da Revista tende a sentir na leitura dos seus textos o predomínio do período moderno6, com uma pequena inflexão circuns-tancial que deve ser registada. Se, em tempos mais recuados, o peso da especulação moderna francesa, lida na respectiva língua, se sobrepunha a qualquer outra, nas dezenas de anos da segunda metade do século XX deu‑se uma inversão dessa influência, a favor do pensamento alemão, lido também na respectiva língua, transformação que, sendo circunstancial, não deixa de ter sensíveis repercussões na Revista. Essa inflexão ficou a dever--se à leccionação, na Faculdade de Letras de Lisboa, desde 1963, do Prof. Oswaldo Market Garcia, de nacionalidade espanhola, mas profundamente sintonizado com o idealismo alemão7, para cujo horizonte orientou mui-tos dos seus alunos, ao qual aderiram com entusiasmo, inclusive com a aprendizagem da língua alemã8. Mantendo-se, por economia de espaço, a ponderação por tendências e sintomas, sente-se, em segundo lugar, na Revista, o relevo dispensado ao período antigo, com o seu prestígio de mo-mento originário, como é frequentemente considerado, sobretudo se lido em função do desenvolvimento dos períodos posteriores, como fonte deles 6 Embora se possa tomar, na Revista, a obra kantiana como a atmosfera envolvente do

período moderno, os estudos sobre Leibniz, Espinosa e Nietzsche ocupam, no entanto, lugares cimeiros na estatística das preferências.

7 Comentando uma obra de O. Market, A Revolução kantiana e o Idealismo Alemão,

Ed. C.F.U.L, Lisboa, 2011, escreveu G. Albiac um significativo texto, publicado em Philosophica: “Voz de um Maestro: Oswaldo Market“ (n.º 40).

8 A relação entre língua e filosofia é formulada, como vem sucedendo nos nossos dias, na

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próprios9. Menor incidência têm o período medieval, embora em movi-mento de ascendência10, e o período contemporâneo, o qual, por um lado, carece de distanciamento suficiente para ser alcançado em muitas das suas virtualidades e, por outro lado, se manifesta em múltiplas temáticas, fora já da linha da sequência temporal, contribuindo, desse modo, para esbater a força escolar do mosaico cronológico11. De registar também o crescendo da especulação filosófica de obras e autores portugueses, que se vão impondo, não obstante a vexata quaestio sobre “se há uma filosofia portuguesa” que, nos nossos dias, ainda se repercute, embora mais por atitude silenciosa de reserva – ou complexo cultural – sobre o valor da literatura especulativa portuguesa do que por militância contra esta12.

Não obstante o que acaba de ser referido, a nota dominante da dução inserta, em Philosophica, é de pluralidade de questões, temas, pro-blemas e tendências, compensando significativamente o inevitável empa-cotamento uniformizante que costuma enformar um curso escolar, a ponto de se tornar legítimo interrogar se o Curso de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa e a Revista com ele conexa coabitam os mesmos espaços e tempos.

9 Acima de tudo Platão e Aristóteles, se bem que o projecto de tradução em curso da obra

aristotélica ofereça, em Philosophica, um relevo palpável ao Filósofo (n.º 26).

10 Época histórica que, devido a preconceitos de exacerbados racionalismos, foi sendo

eliminada da sequência da história da filosofia, situação que vai sendo justamente rectificada, ainda não conquistou, em Philosophica, um lugar de paridade com os outros períodos, mas muitas das questões que conheceram grande desenvolvimento na Idade Média ocupam já na Revista significativo espaço.

11 Fora dessa contextualização de enquadramentos periódicos, são múltiplos os estudos,

por assim, avulsos, de pensadores e de temas, muitas deles voltados para a nossa contemporaneidade.

12 Deve‑se muito ao Curso de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, sobretudo a

alguns dos seus docentes, o esclarecimento e superação dessa vexata quaestio, embora tal contribuição não se reflicta suficientemente em Philosophica. De assinalar, entretanto o estudo sobre algumas vertentes da chamada expansão portuguesa (n.º 14). Registe-se também o facto de o n.º 49 da Revista ser dedicado ao Prof. Vasco Magalhães Vilhena que, na mesma instituição, leccionou entre 1974 e 1979, sendo desse modo lembrado o centenário de nascimento (1916-2016) desse pensador (n.º 49).

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No entanto, reveste‑se de especial significado a amplitude que na Revista logra a especulação estética, cuja presença é susceptível de diver-sos entendimentos, uns herdados da tradição, outros indicando sensibiliza-ção a questões do momento actual, carecidas ainda de reflexão filosófica. Pela via da forte convocação da especulação estética em Philosophica, a filosofia é poupada a algumas clássicas censuras que a esta são dirigidas, muitas delas explicitamente desde sempre, condenando a actividade inútil e desfasada dos problemas da época em que decorre, já que a ambição de constituir – a – reflexão radical e abrangente, chega, por isso mesmo, tardiamente. Se a especulação estética nem sempre encontrou, com faci-lidade, no campo filosófico, pólo que lhe fornecesse consistente suporte, tal como teve dificuldade de ela própria se impor como solo fundamental de toda a racionalidade, todavia, no acolhimento que lhe é franqueado, em Philosophica, a estética aglutinou múltiplos desenvol vimentos es-peculativos: desde logo o da própria justificação do seu campo, com di-versas ramificações, como a da estética/ética, a da arte, a da paisagem, a dos jardins, a da bioética, a da ecologia, enfim, mas só embrionariamente tematizada, a questão do ambiente, Essa amplitude conferida à estética, nos textos publicados na Revista, tenta recuperar categorias que a ciência moderna havia dispensado, em parte devido a preconceitos anti-ontológi-cos, na ausência das quais se geraram enormes consequências negativas, com que a sociedade actual tem de enfrentar, principalmente na órbita das preocupações resultantes da degradação do planeta. Não obstante haver, na Revista, particularmente nessa atenção dirigida à estética, observações correctas e oportunas, em termos de diagnóstico, não parece aí existir, con-tudo, abordagem compensatória da insuficiente fundamentação filosófica que tem acompanhado a história da estética. Se a nova reforma (1957) das Faculdades de Letras contribuiu para valorizar a complexidade cul-tural, antes adelgaçada pela deriva positivista, os remanescentes traços desta continuaram a favorecer um antropocentrismo mental, prolongando a rejeição de um saber de dimensões ontológicas. Além disso, se o recur-so à estética representou uma pertinente consequência da insuficiência do cientificismo, os cursos que compõem a grelha dos saberes cultivados nas escolas de Humanidades não progrediram, no entendimento epistemológi-co, na via do diálogo com as ciências desenvolvidas na área das Técnicas, onde predomina a linguagem científica. Actualmente, mesmo no âmbito da filosofia, a humanidade é assolada por magnas questões suscitadas pela Tecnociência, mas a Revista, não obstante aflorar sensibilizações impor-tantes, que contribuem, pelo menos, para erradicar obstruções perniciosas, carece, porém, de aprofundar o processo epistemológico que conduziu à

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Tecnociência, pelo que esta continua a pedir o empenhamento próprio de uma situação‑limite13.

5. Curso de Filosofia e Philosophica – Ao insistir-se no carácter con-tingente de Philosophica, relativamente ao Curso de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, porque este estatutariamente a não exige, a força de tal observação parece, todavia, menos válida, se a conexão for estabelecida entre a Revista e o próprio exercício filosófico, em que a articulação entre filosofia e discurso escrito poderá ter uma função constitutiva. Sirva a na-tureza da linguagem de mediação para esclarecer essa proximidade entre a Revista e a filosofia. Sem a pretensão de discutir prioridades, no caso entre oralidade e escrita, uma questão de múltiplas leituras, é para a importância da forma escrita na actividade filosófica que se detém agora esta reflexão. Aparentemente, estamos a vogar em um paradoxo: além de outros argu-mentos, reconhece-se que na escola de Humanidades prepondera o discur-so oralizado, maximamente o da filodiscur-sofia, esgrimindo‑se, nesta, asserções opostas, à procura da vitória de um dos contendores sobre o outro. Além de se verificar, de facto e frequentemente, este aparatoso cenário, é também com ele que se costuma identificar o diálogo, reconhecido, aliás, como

13 A presença privilegiada da estética no conjunto dos textos publicados em Philosophica

é de grande alcance, directo ou indirecto para a especulação filosófica: representa, por um lado, a assunção de uma questão de referência na história da filosofia, sobretudo na modernidade (o n.º 44 celebra os 300 anos do nascimento de Alexander Gottlieb Baumgarten (1714-1762), um marco da história da estética); a consciência da complexidade polarizada na estética, a mesma que permeia toda a filosofia; a inquietação diante de grandes desafios da época actual, tentando ora integrá‑los no espaço da estética, ora mostrando a necessidade de ultrapassar o horizonte dela, conduzindo à amplificação da questão, transformando-a na questão da própria racionalidade, contrariando a tentação de circularidade, a qual pretende oferecer como solução precisamente o que importa questionar. De qualquer modo, mais do que recuperar uma questão importante da história da filosofia, voltada para o passado, trata‑se de dirigir a atenção, por vezes quase somente em pressentimento, para problemas da nossa época, com que o exercício da filosofia no passado não se confrontava. É significativa a confluência da cópia dos temas abordados: natureza, arte, ética, interdisciplinaridade, bioética, ecologia, paisagem, jardins, música, morte, vida humana/animal (indicação de alguns números entre muitos outros possíveis: 16, 17, 18, 19, 20, 25, 29, 31, 40, 42, 47).

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articulação estruturante do discurso filosófico14. O paradoxo avoluma-se se se contrastar a reinante expressão oral da filosofia nas escolas com a exi-gência de textos escritos, por vezes na caricatura de um discurso, em testes, para efeitos de provas de classificação, que nada tem a ver com a filosofia. O desconcerto adensa-se, ao serem exigidas, também para efeitos de ava-liação escolar, dissertações15 – textos estes compatíveis com a expressão filosófica –, mas para cuja redacção não há um exercício habitual, como se fosse possível que o desenho emergisse perfeito na primeira tentativa. Tais paradoxos repousam em equívocos que os tempos não têm conseguido ex-tirpar: a noção de escola como instituição de ensino, sobreposto à ideia de escola/aprendizagem, ficando esta limitada à recepção de uma mensagem previamente composta por outrem; o exercício do saber subordinado ao destino profissional; a caricatura da estrutura do diálogo, reduzido a uma justa binária de opostas opiniões.

Para o efeito da presente reflexão, a melhor forma de atenuar os paradoxos e a ambiguidades há momentos elencados estará no esclareci-mento das componentes e da estrutura do diálogo, colocando neste, devi-damente interpretado, a nervura do discurso. Distende-se este na unidade diferenciada dos enunciados, rumo à manifestação de sentido – a raciona-lidade – que, no saber filosófico, deve ser o maior possível, em que podem participar, nesse processo de desvendamento/constituição, diversos inter-locutores, cujo papel é mais de abertura ao sentido que se vai impondo do que de domínio dos interventores sobre este, aos quais cabe somente o papel de mediação, acolhendo uma herança, na senda da qual é preciso dissipar possíveis obstruções, sobretudo as que são constituídas pela apro-priação da racionalidade por parte de alguém, impedindo-a de prosseguir a sua infindável epifania. Ora é precisamente nesta acção – categoria de en-globância –, que se manifesta a filosofia, validando, ampliando e mantendo o discurso, em que o movimento da escrita exerce uma função privilegiada. Esta observação, todavia, não rejeita a conhecida advertência de Platão16,

14 Com alguma razão se costuma afirmar, insinuando por vezes estéril movimento circular,

que a filosofia nada mais é do que a pergunta sobre a sua própria natureza. Philosophica regressa frequentemente quer à natureza desse saber, quer ao modo de o adquirir (Ensino da Filosofia e Filosofia do Ensino, a que dedica o n.º 6; Ensinar/Aprender Filosofia num Mundo em Rede, n.º 39). Além de muitas outras formulações (n.ºs 3, 4, 45), a questão do ensino/aprendizagem da filosofia recebeu grande estímulo a partir do momento em que a Faculdade de Letras de Lisboa assumiu a tarefa de preparar e acompanhar a docência desse saber no Ensino Secundário.

15 A Revista vai dando notícia sobre as dissertações elaboradas pelos estudantes do Curso

de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, reconhecendo‑lhe, desse modo, ímpar valor.

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em defesa do texto oral que, segundo ele, salvaguarda, em contraste com a forma escrita, a dinâmica do discurso que naquela se petrificaria. O filó-sofo grego, porém, para garantir esse dinamismo, que é certamente funda-mental, não recorreu à abrangência da categoria da acção, apontando antes para a tendência dualista da cultura grega, aliás tenazmente perseverante, na especulação ocidental – as filosofias do cogito –, afastando o mais pos-sível, do caminho da verdade, alegadas contaminações sensíveis, para se fixar apenas na dialéctica mental, que a agilidade do texto oral prejudicaria menos do que a sua capturação no texto escrito.

Ora, se procurarmos, mesmo que somente em termos pragmáticos, o processo de garantir a unidade diferenciada do discurso com as dimensões sempre abertas que lhe exige a filosofia, não as encontraremos nas constan-tes intercepções da oralidade, onde essa unidade se esfarrapa, ainda que pos-sa dispor, desde há muito tempo, de múltiplas soluções técnicas de retenção. É que a forma escrita do texto não é prioritariamente um recurso para a sua preservação, mas, sim, para a acção de abrangência da sua própria constitui-ção, que o dualismo grego, há pouco lembrado, diminuiria. O discurso, em forma escrita desenhado, não é somente a materialização do discurso mental – tal como a obra de arte não é reprodução exterior de um desenho mental –, oralmente constituído ou não, mas a expressão de toda a realidade envol-vente, nunca redutível a uma hipotética construção mental asséptica. Essa característica abrangente do discurso escrito será mais facilmente apreendi-da no exercício apreendi-da sua acção, se se der a deviapreendi-da atenção às suas virtualiapreendi-dades heurísticas. A discussão, em redor das faculdades humanas, quando se ana-lisa o papel de cada uma delas, por vezes em jeito de competição entre elas, no exercício filosófico, não pode contentar‑se, como habitualmente sucede, com o instantâneo relâmpago da inteligência que, sem a memória, não cons-tituiria o discurso, tal como não pode considerar indiferente a constitutiva racionalidade do mundo em que se situa, bem como a mediação do organis-mo humano, em todas as suas dimensões considerado.

Para lá da natureza do discurso escrito e em decorrência dele, não parece ser tema cuja importância teve o seu tempo de validade, mas que estaria hoje ultrapassado: os textos dos livros e das bibliotecas17. É verdade que a revolução digital modificou, em pouco tempo, a nossa relação com o livros e com as bibliotecas, todavia a duração dessa experiência não é ain-17 O timbre de cada escola pode aferir-se pela sua biblioteca, que se enriquece ao mesmo

tempo com a presença de textos de bibliotecas de instituições congéneres, aspecto que Philosophica contempla ao referir a vantagem de a sua própria existência facilitar o contacto, mediante permutas, com publicações afins (n.º 39, “Editorial”). Vai‑se assim criando uma unidade diferenciada, que contribui para a conciliação da unidade/ pluralidade do saber, bem como para a unidade/pluralidade da universidade.

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da suficiente para se poder imaginar que a alteração havida faz parte de um processo que conduzirá à substituição do texto grafado em suporte de papel ou de uma biblioteca reduzida a uma minúscula pen. Mesmo nestas subs-tituições, persevera o acto da escrita, podendo estar salvaguardado, desse modo, o valor intrínseco da escrita, passando, então, o livros e as bibliote-cas a ter um valor temporal, secundário e circunstancial. Neste contexto, ao celebrar a edição do 50.º número de Philosophica, nos termos em que esta vem existindo, não faltará quem considere que está a concluir-se um ciclo que, na melhor das hipóteses, será seguido – não apenas continuado por – de um outro, com existência online ou, em concomitância, no todo ou em parte, nas duas formas. Embora todas estas observações, suscitadas por transformações técnicas dos nossos dias, sejam pertinentes, se bem que precisando, para uma justa ponderação, da prova do tempo, para já insuficiente, resta, porém, como vem sendo insinuado, a importância do exercício da escrita, a primeira observação/conclusão, a ser explicitada, a favor da Revista, enquanto texto escrito, numa instituição de aprendiza-gem/ensino. Há certamente outros benefícios garantidos pela existência da Revista, de que se destacam dois: a amplificação da vida da escola, instituição que tende a fechar-se em si mesma, passando a ter na Revista um meio de aproximação das outras áreas do saber, quer dentro da mesma escola quer fora dela, além de poder constituir uma presença nos meios so-ciais não escolares, os quais, sendo, a diversos títulos, a garantia, inclusive financeira, da sua publicação, quase nunca conhecem, de forma sensível, o retorno de tal investimento.

Não obstante Philosophica não constituir elemento formal do Curso de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, embora passe pelas suas páginas uma importante manifestação da actividade filosófica, ela, além de ser mediadora de informação das iniciativas desse Curso, cruzou-se com um outro elemento, também este não constitutivo desse mesmo Curso, o qual tem representado uma contingente mais-valia, tanto para o Curso como também para Philosophica18. Trata-se do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, fundado em 1989. Graças à sua regular

publica-18 Tem subsistido uma certa ambiguidade, relativamente à entidade a que Philosophica

está anexada, que se verifica nos subtítulos da Revista, registados no interior da sua capa: Revista Semestral de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa/Revista Semestral do Centro e Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa/ Revista Semestral do Departamento e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa/Revista do Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa. Tal diversidade de designações acaba por confirmar o nexo não constitutivo de Philosophica com essas entidades, mantendo, porém, a centralidade da articulação Revista/Filosofia.

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ção, Philosophica tem assumido funções de órgão quer do Curso, quer do Departamento, quer do Centro, passando pela Revista a informação das iniciativas dessas diversas entidades. Acrescente-se que o apoio do Centro é prioritariamente orientado para iniciativas que, em boa parte, se transfor-mam em conteúdos escritos da Revista, favorecendo, desse modo, a palavra escrita, inclusive no enriquecimento bibliográfico do Curso de Filosofia.

Para terminar estas observações sobre o cruzamento que, insista-se, é contingente, entre Curso de Filosofia, Centro de Filosofia e Philosophica, aproveita-se o ensejo e um pequeno espaço restante para formular algumas reflexões sobre a aprendizagem da filosofia, que tem sido, afinal, o grande horizonte do presente texto. A actividade filosófica de uma instituição não decorre do cumprimento da letra do decreto em que o Curso se enquadra, no qual estão fundamentalmente em jogo intuitos e requisitos profissio-nais. O Curso de Filosofia é somente uma oportunidade, mais ou menos feliz, da actividade filosófica, nessa aventura de chegar ao máximo sentido possível, sendo este, contudo, na terminologia que se vem usando, um ex-cesso, vivido pelo ser humano, que pode encontrar, contudo, na instituição escolar, um travão a esse fundamental exercício. Um rápido comentário sobre a articulação entre escola e investigação ajudará, possivelmente, a esclarecer algumas das ambiguidades que afectam o saber praticado nas instituições escolares, sobretudo na área de Humanidades. É sintomático que, no enquadramento jurídico escolar, a investigação tenha uma função suplementar, altamente contingente, até para efeitos de remuneração de docentes. Esta conexão artificiosa é já resultado ora da noção de escola, ora da de saber, ora da de investigação, mas, de qualquer modo, esta não seria elemento constitutivo quer da escola, sobretudo porque a função des-ta pende mais para o ensino do que para a aprendizagem, quer do saber. Embora não seja unívoca a ideia de investigação, se se perguntar quais têm sido no Curso de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa os factores que mais directa e exteriormente indiciam actividade de investigação, a resposta inclui inequivocamente Philosophica e Centro de Filosofia, que, pelas suas práticas, têm introduzido no Curso de Filosofia, uma conatural característica de investigação, sendo esta, por sua vez, a actividade que, dentro das instituições, menos condicionada está pelos espartilhos destas.

Referências

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