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Cad. CRH vol.28 número74

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Academic year: 2018

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ROCHA, Lia de Mattos. Uma favela “diferente” das outras? Rotina, silenciamento e ação coletiva na favela do Pereirão, Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Quartet/FAPERJ, 2013, 292 p.

Frank Andrew Davies

http://dx.doi.org/10.1590/S0103-49792015000200014

Ainda que seis anos depois do seu lan-çamento, o projeto das “UPPs” (Unidades de Polícia Pacificadora) não tem silenciado as situações de abuso, extorsão, tortura e assas-sinato cometidas por policiais nas favelas. Es-ses episódios, tão comumente noticiados nos jornais, põem em xeque o que seria o objetivo oficial das UPPs: “devolver à população local a paz e a tranquilidade públicas necessárias ao exercício da cidadania plena” dos moradores de favelas.

A despeito dos sintomas de “crise” da política de “pacificação”, não é essa a primeira ação governamental que visa articular polícia e “ocupação social” nas franjas da cidade ca-rioca. O projeto “Mutirão pela Paz”, realizado também pelo governo estadual em 1999, na fa-vela Vila Pereira da Silva, o “Pereirão”, é uma dessas iniciativas que antecedem as UPPs e nos ajudam a entender o projeto e antever suas possíveis falhas, limites e efeitos.

Tanto no “Pereirão” como em favelas com UPPs, as dinâmicas entre policiais e trafi-cantes deslizaram (ao menos em alguns casos) do confronto direto e ostensivo para modos menos letais de conflito, figurando um coti-diano de relativa “tranquilidade” aos morado-res. A pesquisa de Lia Rocha persegue, entre personagens do “Pereirão”, os elementos que sustentam o discurso da “paz” e da “tranquili-dade” e, em simultâneo, observa uma série de práticas que reforça a ideia de que ali é “um lugar diferente”.

Os dados que obtém na localidade são

apresentados em contraste com os que a au-tora acessa através da pesquisa “Rompendo o cerceamento da palavra: a voz dos favelados em busca de reconhecimento”, realizada entre 2005 e 2007, e que envolveu 150 moradores de 45 favelas cariocas (Cf. Referências Biblio-gráficas, ao fim do texto). Lia participou dessa investigação e, em parte, sua tese de doutora-mento defendida em 2009 e esse livro são des-dobramentos desses esforços analíticos empre-endidos no mesmo período sob a coordenação de Luiz Antonio Machado da Silva.

Entre nuances que diferenciam as falas dos moradores do Pereirão e de outras favelas – em sua maioria subjugada pelos domínios do narcotráfico –, a autora inquire, em especial, a respeito das condições de manutenção da rotina e as possibilidades de “fala” nos espaços públi-cos, a ver se existiriam diferenças ou não entre a “favela tranquila” e outras localidades, também abordadas pela literatura especializada.

Ao se afirmar “diferente”, o Pereirão mo-vimenta um conjunto de termos, categorias e sentidos habitualmente atribuídos às favelas e que assim as definem no imaginário social da cidade. Ser “diferente”, nesse sentido, é ser uma localidade afastada da imagem da crimi-nalidade, ou seja, do enquadramento da favela como um “problema” de violência urbana.

Nesse caso, a “tranquilidade” não é ques-tionada pela pesquisadora como fato; em outras palavras, não há preocupação em comprovar a existência ou não de conflitos ou de bandos ar-mados no local. Ao contrário disso, a “tranquili-dade” é tomada como uma ideia sobre si e sobre o lugar onde se mora.

O primeiro capítulo do livro joga luz à rotina dos moradores do Pereirão e à ence-nação da ideia de que ali é “uma favela onde reina a paz”. A pouca ou nenhuma ocorrência de conflitos armados é sublinhada nas falas dos entrevistados e apropriada como capital simbólico. Em alguns momentos, em especial entre os mais velhos, essa tranquilidade é asso-ciada à ideia de comunidade.

O passado “rural” e “comunitário” é

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contrastado com os anos 1980 e 1990, período de maior predomínio dos grupos de narcotrafi-cantes. Os anos entre 1994 e 1998 teriam sido os mais problemáticos de todos, chegando ao ponto de se ordenar o fechamento do comércio de Laranjeiras (bairro nobre onde se localiza o Pereirão e também a sede do governo estadual) em retaliação ao assassinato do chefe da qua-drilha local.

Em 1999, o “Mutirão pela Paz” toma esse evento violento como mote para a ocupação po-licial e “social” do Pereirão. No ano seguinte o BOPE (Batalhão de Operações Especiais, da Po-licia Militar) instala sua nova sede em terreno vizinho, contribuindo para o controle policial da área. Contudo, em 2005, ano em que a autora inicia a pesquisa, só havia sobrado do primeiro projeto o trailer da Polícia Militar estacionado na entrada da favela, tendo sido retirado já no ano seguinte. Nesse sentido, o “Mutirão” ficou pouco registrado entre os residentes, sendo o BOPE uma referência mais marcante.

Lia acredita que as falas que sustentam e legitimam a “tranquilidade” são resultantes de uma combinação de eventos encadeados. O assassinato do traficante local, a vizinhança do batalhão policial e o esforço constante pela manutenção da coesão interna dos moradores são alguns dos elementos garantidores desse nexo discursivo.

Tais narrativas deixam em evidência que a “comunidade tranquila” não dispen-sa esforços para resdispen-saltar uma conduta moral interna com base no rígido controle social. É uma tranquilidade sustentada por tensões e que convive lado a lado com o medo e o si-lêncio que fazem parte desse controle que são, em muitos sentidos, as “formas de coerção que se assemelham às vividas pela maior parte dos moradores de favelas cariocas” (p. 81).

Tal situação fica clara nos modos de atu-ação da associatu-ação de moradores, que, em cer-tos contexcer-tos, afirma que o “Pereirão” é como “qualquer outra favela”, dando ao interlocutor a ideia de que há controle por parte do narco-tráfico. Em outra circunstância, um jovem

mo-rador lamenta que não pode conhecer favelas vizinhas, marcando a existência de fronteiras simbólicas entre as quadrilhas locais que ins-crevem também a localidade. Acontecimentos mais evidentes, como a troca de tiros entre po-liciais e traficantes em março de 2007, deixam à vista que a “tranquilidade” não é um fato a se comprovar pela investigação, mas um dis-curso a se considerar como possível no caso do “Pereirão”.

Perseguindo as possibilidades de fala e agenciamento dos residentes, a autora analisa a rotina das organizações da vida coletiva, ten-do como foco, no segunten-do capítulo, a associa-ção de moradores. Pontua ela que, em sentido geral, os anos atuais são de “crise” desses co-letivos de favelas, que têm encontrado grande dificuldade para atuar no espaço público. Par-te dessa dificuldade se justifica pelas suspeitas de envolvimento de líderes locais com grupos criminosos. À primeira vista, essa “crise” de legitimidade não se vê diferente na vida “tran-quila” do Pereirão.

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sobre a submissão vivenciada perpetua seus mecanismos de atuação, criando um disposi-tivo que funciona em moto-perpétuo” (p. 151). No terceiro capítulo do livro, é posta em destaque a atuação da TV Morrinho, ONG de onde se origina a dirigente do segundo man-dato da associação de moradores, responsável por uma gestão mais arrojada nos tempos atu-ais das “parcerias” e dos “projetos”. Matu-ais uma vez, Lia revela o nome da ONG pela mesma razão que a faz nomear explicitamente o “Pe-reirão”: trata-se de locais e situações únicas e reconhecidas e que, por isso, “não revelar seu nome não teria o efeito desejável de proteger a identidade dos informantes” (p. 156).

O Morrinho é uma maquete de 300 me-tros quadrados que representa diversas favelas sob a encosta de um mesmo morro. É possível localizar prédios, ruas e personagens. O que estranha a autora é “o fato de a maior parte da produção do grupo fazer referência aos trafi-cantes de drogas” (p. 158).

Entre os anos de campo, o grupo de jovens em torno da brincadeira encontrou “homens do asfalto” que propiciaram a trans-formação da maquete em instalação artística reproduzível em outros espaços. Com isso, o “encontro” fomentou viagens para exposições e encenações, promoveu o aumento e a con-versão do grupo em ONG (especializada na produção audiovisual) e deu um pontapé em projetos de turismo sustentável no local, vin-culado à visita a maquete original.

Na sua origem, a “brincadeira” se ini-cia no quintal de um dos jovens fundadores do grupo, recém-chegado à cidade e que teria estranhado o cotidiano de armas, tiros e con-flitos. Outras razões, como o excesso de tem-po livre, a falta de dinheiro e “a necessidade de encontrar espaços de lazer seguros em um território que era, naquele momento, palco de frequentes conflitos armados” são explicações sobre o começo da “brincadeira” (p. 161).

O protagonismo dos traficantes de dro-gas, seus agenciamentos e tramas deixam questionamentos sobre a quase inexistência de

moradores “ordinários”, isto é, não envolvidos nas dinâmicas da criminalidade violenta. A pesquisadora aposta que, mais do que um re-flexo do cotidiano, a encenação da violência é resultado de certo “encantamento” com a “vida bandida”, uma experimentação que os coloca “não mais como vítimas – o que é comum na experiência dos moradores de favela – e sim como protagonistas” da violência (p. 207).

A autora admite que ela mesma teve dificuldades em assimilar que a reverência à atividade criminosa no “Morrinho” não repre-sentava uma adesão dos jovens – ou dos mo-radores – ao tráfico de drogas, mas uma forma de falar sobre algo que ali era “tabu, o que, por si só, indica uma quebra (ainda que pequena) no silenciamento sobre a criminalidade que incide sobre o local e sobre outras favelas ca-riocas” (p. 209).

O último capítulo se dedica a maiores aproximações analíticas entre os modos de dis-curso e atuação da associação de moradores do Pereirão e a ONG “TV Morrinho”. A investigação da pesquisadora caminha em busca dos limites da “tranquilidade”, em especial mantendo em vista as possibilidades de “fala” dos moradores.

Em sentido geral, as ONGs e as associa-ções possuem naturezas diferentes, sendo es-sas últimas entidades representativas, ao pas-so que as primeiras costumam se engajar em discussões e conflitos nos campos identitários e simbólicos de outros matizes. Em uma aná-lise das justificativas discursivas dessas duas formas associativas, a autora constata que as ONGs estariam mais “ajustadas”, ou seja, en-contrariam melhores justificativas morais para atuar sobre o “problema da favela”.

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as “vozes da favela”, mas “vozes ajustadas”, li-mitadas por estigmas e ambivalências na sua capacidade de formular críticas e desconten-tamentos. Em sentido negativo, reificam esses estereótipos ao confirmá-los em seus relatórios.

Os moradores, no cotidiano ou na ins-tância de representação local, não tematizam e, pior, preferem evitar o tema da ordem vio-lenta do tráfico. Comungam do silenciamen-to de modo diresilenciamen-to ou indiresilenciamen-to ao acionarem o discurso da excepcionalidade de que “aqui não tem tráfico”, ou “aqui é uma favela tranquila”. Já o projeto Morrinho faria “uma representa-ção estética da realidade, sem questionamen-to, reflexão ou crítica sobre ela”; “são apenas ‘espelho’ e constatação de um estado de coi-sas”. Desse modo, diferenciam-se da “tomada de voz”, sendo um mero “ajustamento” à re-presentação corrente (p. 265).

Como sublinha a autora, a fala sobre a “tranquilidade” local independe do fato de existir ou não tráfico de drogas no local; os conflitos entre criminosos e entre eles e a polí-cia são tomados pelos moradores como “extra-ordinários”, quando falam das suas rotinas. O fato de o “Pereirão” ser “diferente das outras” favelas é mais uma forma nativa de se referir à configuração do tráfico naquele espaço.

“No entanto, no que diz respeito à con-fiança e à possibilidade de expressão no espa-ço público, os moradores dessa localidade es-tão semelhantes aos outros favelados” (p. 258). Todos estão submetidos a uma ordem violenta, que, por sua vez, limita as possibilidades de agir e lutar politicamente.

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