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Por uma historiografia insubordinada nos domínios da Educação Matemática: a Hermenêutica de Profundidade como exemplo

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Academic year: 2022

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Por uma historiografia insubordinada nos domínios da Educação Matemática:

a Hermenêutica de Profundidade como exemplo

Antonio Vicente Marafioti Garnica1

Insubordinação Criativa e Historiografia Insubordinada

Ainda que o conceito de insubordinação criativa seja bastante recente na literatura em Educação Matemática, penso que ele, introduzido entre nós por Bia D’Ambrósio e Celi Lopes (D’AMBRÓSIO; LOPES, 2014), já tem sido praticado, de um modo ou outro, por alguns pesquisadores da área. Essa minha perspectiva assenta-se no fato de D’Ambrósio e Lopes terem convidado vários autores reconhecidos no campo da Educação Matemática para elaborarem capítulos, a partir de suas práticas de pesquisa atuais, para os volumes que comporão uma coleção de textos que, tematizando essa insubordinação, tem como primeiro tomo o livro no qual essas duas autoras apresentam e exploram esse conceito a partir dos depoimentos de nove professoras de Matemática.

A insubordinação criativa é vista “como uma ação de oposição e, geralmente, de desafio à autoridade estabelecida quando esta se contrapõe ao bem do outro, mesmo que não intencional, por meio de determinações incoerentes, excludentes e/ou discriminatórias.

Insubordinação criativa é ter consciência sobre quando, como e por que agir contra procedimentos ou diretrizes estabelecidas. Ser subversivamente responsável requer assumir-se como ser inconcluso que toma a curiosidade como alicerce da produção de conhecimento e faz de seu inacabamento um permanente movimento de busca”. Celi e Beatriz nos trazem, portanto, uma rubrica nova, mas uma rubrica que, ao contrário do que ocorre às rubricas, é potencialmente libertadora. Tal insubordinação, como a penso, no rastro dessas autoras, implica uma irreverência com um estado de coisas que toma como

1 Departamento de Matemática-Faculdade de Ciências, UNESP-Bauru, Programas de Pós- graduação em Educação Matemática (UNESP-Rio Claro) e Educação para a Ciência (UNESP- Bauru). E-mail: vgarnica@fc.unesp.br

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“natural” um cotidiano que promove irreflexão, no qual “é assim” torna-se “tem que ser assim”. Insubordinação implica subversão, implica aposta no novo, no diferente e na insatisfação tanto com relação ao que é quanto com o que pode ser, aquilo que, tendo sido criado por ações insubordinadas, não pode ser aceito como natural e permanente. Uma insubordinação criativa, portanto, exige uma postura alerta pois tudo que se faz novo pode – ou deve – se desfazer nesse nosso mundo de constantes mudanças. Talvez um insubordinado criativo nunca seja, em definitivo, insubordinado criativo: num perigoso gerúndio, ele deve sempre “estar sendo”. Num mundo em que tudo tende a se tornar opaco e contaminado pelas restrições, normas, exigências, legislações, poderes e instituições que controlam o dia-a-dia, o insubordinado criativo deve sempre estar alerta, colocando sob suspeição até mesmo o caráter subversivo de suas insubordinações.

Tendo migrado das ciências médicas para a Educação Matemática, penso ser possível também promover uma migração do conceito de insubordinação criativa para campos da Educação Matemática. Assim, este texto pretende defender a possibilidade e a potencialidade de uma agenda de insubordinação para os estudos que, em nossa área, aliam historiografia e Educação Matemática.

Talvez, antes, eu deva afirmar que falo de e para uma comunidade de pesquisa e, portanto, tenho como um dos eixos centrais a essa perspectiva de defendo a formação de pesquisadores na área em Programas de Pós-graduação. Essa profissão de fé justifica-se ainda mais pela defesa que farei logo adiante da necessidade de naturalizar, no campo das tantas histórias que frequentam o domínio da Educação Matemática, os estudos sobre metodologia de pesquisa ou, mais propria e especificamente, os estudos sobre as metodologias para a elaboração historiográfica.

Ora, defender a necessidade de tematizar metodologia, ainda que possa não parecer, é já, entre nós, uma insubordinação, posto que os trabalhos que temos desenvolvido – e talvez essa crítica aplique-se mais, nos dias de hoje, aos trabalhos em História da Matemática na Educação Matemática e menos ao campo da História da Educação Matemática, que aparentemente tem enfrentado essa que até pouco tempo era também uma negligência sensível em suas searas –, muito frequentemente, se mostram refratários, ou pelo menos, parecem ser lacunares, quanto às questões metodológicas. A ausência – ou, quando muito,

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3 a tímida presença – dessa reflexão nos trabalhos que nós, pesquisadores, temos desenvolvido, traz implicações nítidas na formação de pesquisadores pela qual também somos responsáveis. Apenas dominando do modo mais pleno possível o discurso e as práticas – os modos de fazer, pensar e comunicar – do nosso campo, poderemos ter pesquisadores efetivamente preparados para atuar como pesquisadores. Do contrário, apenas casualmente teremos elaborações substanciais, ficando as práticas de investigação reduzidas ao fazer acrítico, pobremente criativo e muito pouco formativo, do que resultará a transformação – já em andamento – de nossos programas de pós-graduação em meros produtores de dissertações e teses, sem que tenham em seu horizonte a necessidade, a importância e a potencialidade de formar pesquisadores que, segundo penso, deveria ser o objetivo precípuo desses cursos acadêmicos.

Numa síntese provisória, podemos considerar como princípios: (a) a necessidade de uma reflexão metodológica como vital a um campo de conhecimento; (b) o discurso metodológico como necessidade visceral para a formação de pesquisadores; (c) metodologia não apenas como listagem de processos, passos, procedimentos, mas como procedimentos que, fundamentados, visam a um fim específico e pedem abordagens diferenciadas (exigidas não pelo pesquisador, mas DO pesquisador POR seu objeto) e (d) que metodologia e reflexão metodológica devem ser concebidas como exercícios que promovam liberdade, e não como engessamentos sem significado que o pesquisador coloca em movimento por uma necessidade que é alheia a seu objeto, à sua pesquisa e a si próprio.

Se pensar metodologia e propor, em meio tão seleto quanto o é a comunidade dos Seminários Nacionais de História da Matemática, que essa reflexão metodológica é vital para a continuidade de nossas práticas de pesquisa já soam como insubordinações, pretendo ir além. Como o título já adianta, pretendo propor, para os domínios da Educação Matemática, uma historiografia insubordinada, tenha ela como objeto a produção, os produtores e os produtos/objetos matemáticos (temas mais próprios a uma História da Matemática que, no caso, pode aliar-se às práticas de ensinar e aprender Matemática),

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4 tenha ela como tema as práticas escolares vinculadas à Matemática, à cultura matemática escolar (instância mais própria aos que operam em História da Educação Matemática)2. Talvez uma historiografia insubordinada não fizesse sentido se estivéssemos transitando por um campo – aquele que vincula, de algum modo, historiografia e Educação Matemática – em que fosse menos nítida uma tendência conservadora quanto aos métodos (nem sempre tematizados), os objetos de estudo e as teorias de fundamentação. Essa é, já o dissemos, uma perspectiva própria à insubordinação: ela diz de um meio específico, de um tempo específico, de condições específicas. Daí uma insubordinação ser, sempre, insubordinação localizada e, de certo modo, luta contra si própria, esforço de auto-extinção que a fará, idealmente, desaparecer como “essa” insubordinação em favor de outras insubordinações que os meios, tempos e condições futuros impuserem como necessárias.

Nesse nosso horizonte, uma historiografia subversiva ou insubordinada pauta-se3 (a) no conhecimento da história da historiografia, que pode (a1) promover a familiarização com as várias linhas que têm sido sugeridas pela historiografia contemporânea, visando a ultrapassar o discurso da mera aceitação (ou da autoridade) de uma tendência ou outra por uma defesa honesta dentre daqueles que, dentre elas, se tornaria, então, uma tendência

“própria”; e (a2) pautar a defesa por uma ou outra concepção de historiografia; (b) na negação de preconceitos quanto à legitimidade de fontes tendo em mente o alcance de cada uma delas e as intenções do pesquisador em mobilizá-las; (c) na aceitação de uma diversificação quanto aos temas, objetos, tempos/períodos e formas de problematização;

(d) na efetivação, tanto quanto for possível, de um diálogo entre as várias áreas que compõem o acervo dos conhecimentos humanos; ou seja, na luta pela pulverização das fronteiras que apartam essas áreas e negam os vários significados e tensões das coisas do mundo que, na vida “real”, transitam por terrenos que desconhecem essas regiões artificialmente criadas pelo discurso científico.

2 Essa caracterização da História da Educação Matemática e da História da Matemática (vinculada à Educação Matemática) é assumidamente parcial e insuficiente, e precisa ser continuamente problematizada. A não problematização desse tema e até mesmo a ignorância total das aproximações e distinções entre esses campos é alarmante entre os pesquisadores principiantes, mesmo entre aqueles que, por um motivo ou outro, encontram-se inscritos em um deles.

3 Essa listagem é, obviamente, vaga e insuficiente. Ela atende mais às intenções deste texto do que a um mapeamento mais completo do que constituiria uma tal insubordinação historiográfica no campo da Educação Matemática.

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5 Apresentados – ainda que de forma breve – os princípios que regem as intenções deste texto, passo a focar mais especificamente o referencial teórico metodológico conhecido como Hermenêutica de Profundidade (HP). Essa opção justifica-se, do meu ponto de vista, por ser esse referencial uma estratégia interessante tanto àqueles que trabalham com História da Matemática (de modo vinculado ou não à Educação Matemática) quanto àqueles do campo da História da Educação Matemática, podendo, assim, promover um debate – já em curso, mas ainda pouco aprofundado – entre essas duas frentes de pesquisa.

Além disso, os termos gerais da HP e os exercícios já realizados tendo por fundamentação este referencial parecem ser adequados como um exemplo da possibilidade de efetivar a historiografia insubordinada aqui defendida. Por fim, trata-se de um referencial METODOLÓGICO em constituição e que, portanto, exige uma reflexão metodológica constante e contínua – que já defendi, aqui, como essencial aos pesquisadores e à formação de pesquisadores – daqueles que o mobilizam.

Hermenêutica de Profundidade: princípios, exemplos e problematização

As disposições sobre Hermenêutica de Profundidade em que nos apoiamos estão dadas principalmente por John Thompson, sociólogo inglês, assumidamente influenciado por Paul Ricoeur, em sua obra Ideologia e Cultura Moderna: Teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa (THOMPSON, 1995) e por alguns (ainda poucos) pesquisadores brasileiros, dentre os quais ressalto Rolkouski (2006); Oliveira (2008);

Cardoso (2009); Andrade (2012); Pardim (2013) e Silva (2013), que têm mobilizado esse referencial em suas pesquisas.

A Hermenêutica de Profundidade é um referencial teórico metodológico plasmado sobre o conceito de formas simbólicas. Formas simbólicas são, em linhas gerais, as construções humanas intencionais que, presentes no mundo, servem para criar e manter relações (assimétricas) de poder. Em síntese, a HP é um modo de analisar/interpretar/compreender

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6 formas simbólicas que envolve, num processo de retroalimentações, uma hermenêutica do texto4 e do contexto5.

Segundo Oliveira (2008, p. 37) “[...] as formas simbólicas são construções carregadas de registros de significados produzidos em condições espaço-psíquico-temporais específicas – e impossíveis de serem identicamente reproduzidas – de um autor” e podem ser caracterizadas a partir de cinco aspectos: (a) formas simbólicas são constituídas com uma intenção (aspecto intencional). Os livros didáticos, por exemplo, são produzidos por um autor com uma determinada finalidade, que pode ser a de auxiliar no processo de ensino e aprendizagem, apresentando aos professores como, por que e em qual momento abordar um conteúdo em sala de aula; (b) uma forma simbólica é produzida de acordo com alguns pressupostos que possibilitam que outras pessoas as compreendam, permitindo, assim, uma

“comunicação” entre a forma simbólica e o hermeneuta (aspecto convencional). Nos livros didáticos de matemática, por exemplo, a própria linguagem matemática possui sua convenção bem estruturada que requer certa habilidade para ser interpretada; (c) os elementos internos de uma forma simbólica são estruturados de uma forma conexa, para que se possa compreender e relacionar os elementos que a compõem (aspecto estrutural).

Um livro didático, por exemplo, é estruturado quanto ao modo de apresentar os conteúdos, organizando os momentos em que são propostos exercícios, problemas, usadas metáforas e ilustrações, mobilizados métodos didáticos e pedagógicos etc, (d) uma forma simbólica sempre se refere a algo (aspecto referencial). O livro didático se refere ao conteúdo matemático e às possibilidades metodológicas para o seu ensino, seu objeto referencial é, em suma, a Educação Matemática; (e) o contexto social no qual que a forma simbólica está inserida influencia na sua produção (aspecto contextual). Isso implica que para fazer uma leitura plausível de uma forma simbólica precisamos considerar o contexto em que ela foi produzida e/ou apropriada. No caso dos livros didáticos, além dos aspectos social, político

4 Texto, segundo Paul Ricoeur (1969), é tudo aquilo fixado pela escrita, mas essa é já uma apreensão um tanto quanto limitada, posto que diz apenas de textos escritos. Numa apreensão mais geral, texto é a compreensão resultante de uma leitura. Para nossas intenções, entretanto, essa apreensão primeira, de uma das obras de Ricoeur, é suficiente, ainda que, no conjunto de sua filosofia – cuja intenção é desenvolver uma hermenêutica da existência – a noção de texto seja bastante estendida para abarcar outras formas além da escrita.

5 Contexto, para simplificação, será tomado aqui como tudo aquilo que cerca o texto, dentre o que estão as dinâmicas de sua elaboração e apropriação, os espaços e os agentes envolvidos em sua produção e circulação etc.

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7 e cultural, devem ser consideradas, por exemplo, as teorias e políticas educacionais da época em que a obra foi elaborada e/ou publicada.

A trajetória de interpretação de uma forma simbólica pela HP é feita, segundo a proposta de Thompson, em três momentos analíticos (uma análise formal – ou discursiva –, uma análise sócio-histórica e um momento de interpretação/reinterpretação da forma) que, certamente, não são estanques nem autosuficientes: é na retroalimentação entre esses momentos que a hermenêutica da forma se dá. Na análise formal, o hermeneuta volta seu olhar para os conteúdos internos da forma simbólica, descreve detalhada e criteriosamente o objeto analisado. Bastar-se à análise formal, entretanto, não configura o todo da hermenêutica: a investigação sobre os elementos “internos” à forma é apenas parte da hermenêutica, ainda que seja instância inequivocamente necessária e muitas vezes inicial, dependendo da habilidade do hermeneuta em trabalhar com formas simbólicas similares.

Segundo Thompson (1995), “embora vários tipos de análise formal /.../ sejam perfeitamente apropriadas e até mesmo vitais [...] esses tipos de análise constituem, na melhor das hipóteses, um enfoque parcial ao estudo” (p.358). Para efetivar a HP o hermeneuta apoia-se, quando julga necessário, em indicadores, teorias e procedimentos complementares além das formas propostas por Thompson6. Para a análise formal de uma hermenêutica a uma forma simbólica escrita – um livro, um manuscrito por exemplo – temos buscado apoio na noção de paratextos, como apresentada por Gérard Genette (GENETTE, 2009). Este autor define paratexto como “[...] aquilo por meio de que um texto se torna livro e se propõe como tal a seus leitores, e de maneira mais geral ao público” (p.09). Dentre outros, podem ser considerados como paratextos o nome do autor, os títulos, os subtítulos, prefácio, dedicatórias, ilustrações, anexos, o material do livro, da

6 Segundo Thompson (1995), a análise formal pode compreender uma análise narrativa, argumentativa e sintática. Uma análise sintática foca-se em características gramaticais do discurso, buscando “marcadores de modalidade, através dos quais os locutores indicam os graus de certeza ou realidade ligados com a preposição (por exemplo, ‘pode ser’, ‘talvez’, ‘possivelmente’), o sistema de pronomes empregado [...], marcadores associados às diferenças de gênero”

(THOMPSON, 1995, p. 373). No que se refere à análise narrativa, considerando narrativa como expressão de um discurso que “conta uma história”, analisa-se o conjunto de elementos que constituem essa história. A análise argumentativa pretende “reconstruir e tornar explícitos os padrões de inferência que caracterizam o discurso” (THOMPSON, 1995, p. 374). Trata-se, segundo Andrade (2012), de tentar compreender o que o texto diz e como diz, como as linhas, palavras, referências, articulações, citações etc (no caso de um texto escrito), constroem a trama de modo a explicitar coerentemente algumas intenções tomadas, então, como as intenções do autor (do ponto de vista de um leitor específico – aquele que se propõe a analisar hermeneuticamente o texto).

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8 capa, as artes gráficas nele presentes, as indicações iniciais (como nome da editora, endereços, tamanho de margens, a tipologia das letras e espaços em branco, por exemplo), os materiais usados para a divulgação do livro etc. Genette nos dá não apenas uma listagem dos paratextos que devem/podem estar na mira do hermenêuta, mas discorre sobre cada um deles, contextualizando-os historicamente e provendo seu leitor de inúmeros exemplos e

“chaves analíticas”. A operacionalização dessa concepção de paratexto junto à HP, porém, deve ser vista com cautela pois não é tão direto o diálogo entre os dois referenciais.

Genette quando fala “texto”, fala “texto escrito”, isto é, uma forma simbólica multifacetada, mas específica, ao passo que Thompson quando fala “texto”, fala “forma simbólica” e, portanto, de algo mais geral que um discurso fixado pela escrita. Entretanto, conciliar os referenciais de Genette e Thompson, interconectar análise de paratextos e HP, não trará problema algum se pretendemos nos deter a formas simbólicas escritas.

Formas simbólicas, reiteramos, estão inseridas em contextos sociais que influenciam sua produção e o modo como são mobilizadas. Dessa forma, para uma maior plausibilidade à interpretação desses materiais, Thompson propõe que na análise sócio-histórica o foco da investigação seja o contexto em que as formas simbólicas foram elaboradas e/ou apropriadas. Segundo Cardoso (2009, p. 30) a análise sócio-histórica tem como objetivo identificar e descrever as situações espaço-temporais em que as formas simbólicas são produzidas e recebidas; analisar o campo de interação das formas simbólicas: trajetórias que determinam como as pessoas têm acesso às oportunidades de usá-las - emprego dos recursos disponíveis, esquemas tácitos de conduta, convenções, conhecimento próprio inculcado nas atividades cotidianas; analisar as instituições sociais, isto é, as regras e os recursos em uso nas relações sociais; examinar as práticas e as atitudes das pessoas que agem em favor da instituição social; considerar o papel das estruturas sociais para a criação e divulgação da forma simbólica; e, por fim, conhecer os meios técnicos de constituição de mensagens e como eles são inseridos na sociedade. Assim, a análise sócio-histórica extrapola a obra “em si”, pois exige do hermeneuta um mergulho nos aspectos sócio- político-econômico-culturais da época, cujos resíduos podem ser acessados/interpretados.

A Interpretação/Reinterpretação, o “terceiro” momento analítico da HP, desenvolve-se com o estudo das aproximações e divergências detectadas num cotejamento entre os elementos que os momentos “anteriores” de análise permitiram construir. Para Oliveira

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9 (2008), esse momento de análise evoca “[...] a reflexão sobre os dados obtidos anteriormente, relacionando contextos e elementos de modo a construir um significado à forma simbólica” (p.43). No caso dos textos escritos, é quando são evidenciadas, segundo a perspectiva do hermenêuta, as intenções manifestadas pelo autor e o modo como essas intenções podem ter sido apreendidas pelos seus leitores e como se transformaram em práticas escolares. A análise da forma simbólica, no movimento metodológico da HP, constitui-se quando olhamos para os seus aspectos internos e contextuais e conseguimos tecer relações entre esses momentos, valendo-nos de um para compreender o outro. A análise desenvolve-se durante a Interpretação/Reinterpretação, que, por sua vez, não ocorre de forma independente dos outros movimentos, nem é meramente posterior a eles, mas percorre todo o processo analítico7. Dessa forma, a Interpretação/Reinterpretação é um momento da análise que se faz na relação entre as análises formal e sócio-histórica, quando se tenta compreender as relações entre a produção, as formas de produção e a interferência do contexto sócio-político na elaboração e permanência da forma simbólica, podendo ser, ainda, um arremate do processo interpretativo.

É certo que nenhuma fonte, tomada isoladamente, dá conta de compreender uma forma simbólica qualquer que seja ela. Assim, exercitar a HP implica mobilizar outras tantas formas simbólicas além daquela à qual o hermeneuta se dirige mais propriamente:

documentos produzidos à época e sobre a época, entrevistas, cartas, fotografias, legislações, depoimentos de pessoas que têm ou tiveram alguma experiência em relação à forma simbólica, sua produção e/ou utilização e/ou divulgação etc, pois as formas simbólicas são produzidas para atender a diversos interesses, e compreender como a forma simbólica impõe uma determinada ideologia, como mantém ou tenta subverter relações de poder, é, em essência, o objetivo de toda HP.

Exercícios mais detalhados da HP aplicada a formas simbólicas escritas – livros e legislações, particularmente, podem ser buscados em Garnica e Salandim (2014). Nesta obra, o conjunto de seus autores analisa desde o Ensaios sobre o Ensino em Geral e o de Matemática em particular, de Lacroix, publicado em 1805 – o trabalho mais antigo analisado – até a Coleção Matemática Ginasial, do SMSG e o Metodologia do Ensino

7 Essa afirmação justifica termos optado por colocar entre aspas os termos “terceiro” e “anteriores”.

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10 Primário, de Theobaldo Miranda Santos, passando ainda pelos Parâmetros Curriculares Nacionais de Matemática para o Ensino Médio, os livros de Jácomo Stávale, o Lição de Coisas de Calkins e o Euclides e Seus Rivais Modernos, de Lewis Carroll8.

Essas disposições gerais sobre as potencialidades da HP e os exemplos de estudos já realizados segundo essa abordagem a mim parecem suficientes para afirmá-la como possibilidade para uma historiografia insubordinada, principalmente pela interlocução entre áreas que ela promove, pela reflexão metodológica que ela exige (posto que devem ser agregados continuamente, nesses exercícios hermenêuticos, novos procedimentos e teorias de apoio) e pela variedade de fontes que devem ser mobilizadas, considerando que um texto, uma forma simbólica, não é, “em si”, texto, mas se faz texto exatamente a partir de um exame hermenêutico. Desse modo, nada estará pronto ou será definitivo, mas é sempre inacabamento em vias de compreensões outras, o que implica, num panorama mais geral, tomar a historiografia, ao fim e ao cabo, como um registro em construção, uma coleção de versões (eis, pois, uma concepção de historiografia9). Cumpre ainda ressaltar a natureza filosófica dessa proposta, radicada em teorias da linguagem, o que é um fator em nada desprezível e que, por isso, deve ser criteriosamente considerado pelo hermeneuta.

Essa sua natureza filosófica alimenta, ainda, a reflexão metodológica. Vejamos: nos trabalhos que temos desenvolvido com a HP frequentemente tomamos uma forma simbólica e passamos a analisá-la formal e sócio-historicamente, buscando registrar uma sua (re)interpretação. Mais recentemente, porém, passamos à tentativa de ampliar as perspectivas de nossos trabalhos – que até então tinham como forma simbólica apenas materiais escritos – considerando outras formas simbólicas como, por exemplo, as instituições que formaram professores que ensinam/ensinaram Matemática em determinado período ou local, ou seja, passamos a considerar a própria formação de professores como uma forma simbólica que, para ser interpretada, exigia uma enorme diversidade de fontes.

8 Há ainda, disponível em Garnica e Salandim (2014), uma tradução integral e inédita (mas não analisada) de Lacroix (o Introdução ao conhecimento da esfera, publicado originalmente em 1828), deixada para que o leitor possa exercitar-se num exame hermenêutico sobre ela.

9 “/.../ uma perspectiva historiográfica que não entende os acontecimentos como algo passível de ser narrado de uma única forma, o que amputaria a possibilidade de pensar a multiplicidade e a heterogeneidade, ‘reduzindo coexistências simultâneas a um lugar na fila da história’ (MASSEY, 2008, p. 23). A existência de uma história ‘dominante’ ou ‘única’, expressa numa sequência linearizada, não reconhece a coexistência de histórias diferentes e simultâneas, nem reconhece o futuro como devir”. (MORAIS e GARNICA, 2014)

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11 Esse exercício – que se faz ao mesmo tempo em que se aprofundam as compreensões sobre o método que sustenta o exercício – nos levou a propor uma alteração nos procedimentos.

Se antes tomávamos uma determinada forma simbólica – já concebida como forma simbólica – para iniciar os momentos de análise formal e sócio-histórica, passamos a nos questionar sobre a forma simbólica, ela própria. Isso implica não considerar a forma simbólica como forma simbólica, mas questionar sua natureza de forma simbólica.

Passamos, então, a acolher algo – nosso objeto – como uma “possível” forma simbólica (no caso, a formação de professores em determinado tempo/espaço10) e questioná-la sobre sua natureza (de que modo nela se manifestam os aspectos intencional, convencional, estrutural, referencial e contextual que a caracterizariam como forma simbólica?). Essa problematização da forma simbólica até então “provisória” a transformaria, no movimento hermenêutico de investigação (no qual estariam interpenetradas análises formais e sócio- históricas desenvolvidas a partir de variadas fontes) numa forma simbólica “mais plena”.

Desse modo, caberia a uma Hermenêutica de Produndidade estabelecer, de modo mais denso, mais estável, menos provisório, uma forma simbólica como forma simbólica. Esta concepção está assentada na ideia de que um texto (uma forma simbólica) nunca está pronto, e nada mais é senão o resultado de um exercício de leitura, de um exame hermenêutico. Toda forma simbólica é processualidade. E esses nossos questionamentos mais recentes servem, aqui, de exemplo à potencialidade de uma reflexão metodológica para a formação de pesquisadores nesse horizonte em que história e Educação Matemática se aproximam, chamando tantas outras áreas à discussão. É exemplo de que há espaço para insubordinações historiográficas em nosso meio.

10 Uma das compreensões surgidas na esteira desse exercício é a de que tempo e espaço estão historicamente amalgamados, sendo um criação e extensão do outro. “Entendemos, com Massey (2008), o espaço como resultado de inter-relações, possibilitando a, e existindo por conta da, multiplicidade, em constante processo de formação. Corroborando essa perspectiva, compreendemos o espaço “não mais como um processo de fixação, mas um elemento em uma produção contínua, parte de toda ela, e ela própria, constantemente, em devir” (MASSEY, 2008, p.

54). Assim, entendemos o espaço como o tempo: múltiplo, mutável, possibilitando o acontecer histórico. O espaço muda constantemente e de modo fugaz. Espaço e Tempo não seriam, portanto, independentes: um existiria com o – e em função do – outro” (MORAIS e GARNICA, 2014). Essa perspectiva, porém, exige outros e mais aprofundados estudos sendo, portanto, ainda, uma disposição teórica a ser mais adequadamente investigada.

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12 Referências

ANDRADE, M. M. Ensaios sobre o Ensino em geral e o de Matemática em particular, de Lacroix: Análise de uma forma simbólica à luz do Referencial Metodológico da Hermenêutica de Profundidade. 2012. 281 f. Tese (Doutorado em Educação Matemática), Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 2012.

CARDOSO, V. C. A cigarra e a formiga: uma reflexão sobre educação matemática brasileira na primeira década do século XXI. 2009. 212 f. Tese (Doutorado em Educação), Universidade de Campinas – UNICAMP, 2009.

D’AMBRÓSIO, B. e LOPES, C. E. Trajetórias Profissionais de Educadoras Matemáticas.

Coleção Insubordinações Criativas. Campinas: Mercado de Letras, 2014.

GARNICA, A.V.M. e SALANDIM, M.E.M. (orgs.). Livros, Leis, Leituras e Leitores:

exercícios de interpretação para a História da Educação Matemática. Curitiba: Appris, 2014.

GENETTE, G. Paratextos Editoriais. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009.

MASSEY, D. Pelo Espaço: uma nova política da espacialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.

MORAIS, M.B. de. E GARNICA, A.V.M. Mapear a Formação de Professores de Matemática no Brasil: uma proposta, alguns exercícios. Anais. II Encontro Nacional de Pesquisa em História da Educação Matemática. Bauru-SP, 2014.

OLIVEIRA, F. D. Análise de textos didáticos: três estudos. Dissertação (Mestrado em Educação Matemática). Universidade Estadual Paulista – UNESP, Rio Claro, 2008.

PARDIM, C. S. Orientações pedagógicas nas escolas normais de Campo Grande: um olhar sobre o manual Metodologia do Ensino Primário. 2013. Dissertação (Mestrado) - Curso de Educação Matemática, Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, Campo Grande, 2013.

RICOEUR, P. O Conflito das Interpretações. Porto: Rés Editora, 1969.

ROLKOUSKI. E. Vidas de professores de Matemática: (im)possibilidades de leitura. Tese.

Doutorado em Educação Matemática. IGCE, UNESP, Rio Claro, 2006.

SILVA, T. T. P. da. Os Movimentos Matemática Moderna: compreensões a partir da análise da obra Matemática-Curso Ginasial, do SMSG. 2013. 171 f. Dissertação (Mestrado em Educação Matemática) – IGCE – UNESP – Rio Claro, 2013.

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13 THOMPSON, J. B. Ideologia e Cultura Moderna: Teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. (Tradução do Grupo de Estudos sobre Ideologia, Comunicação e Representações Sociais). Petrópolis: Vozes, 1995.

Referências

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