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O procedimento administrativo da regularização fundiária urbana de interesse social como garantia do direito à moradia

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RAFAEL TARANTO MALHEIROS

O PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO DA REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA DE INTERESSE SOCIAL COMO GARANTIA DO DIREITO À MORADIA

São Paulo 2018

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O PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO DA REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA DE INTERESSE SOCIAL COMO GARANTIA DO DIREITO À MORADIA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Direito Político e Econômico.

ORIENTADORA: Profª. Drª. CLARICE SEIXAS DUARTE

São Paulo 2018

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M249p Malheiros, Rafael Taranto.

O procedimento administrativo da regularização fundiária urbana de interesse social como garantia do direito à moradia. / Rafael Taranto Malheiros

226 f. ; 30 cm

Dissertação (Mestrado em Direito Político e Econômico) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2019.

Orientadora: Clarice Seixas Duarte.

Referências bibliográficas: f. 192-215.

1. Moradia. 2. Políticas públicas. 3. Regularização fundiária urbana de interesse social. 4. Regulamentação administrativa. 5.

Corregedoria-Geral de Justiça. I. Duarte, Clarice Seixas, orientadora. II. Título.

CDDir 341.27 Bibliotecária Responsável: Jaqueline Bay Inacio Duarte - CRB 8/9509

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Aos que buscam morar com segurança e àqueles que trabalham por ela.

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faz nada sozinho nessa vida. É hora de agradecer a quem me trouxe aqui.

À Ju, que, com seu amor e cumplicidade, tinge meus dias de cores que vêm de uma paleta que eu nem imaginava existir.

Aos irmãos Bruno e Gustavo, mestres dedicados, melhores caracteres que conheci. Aos pais, João Henrique e Helen Solange, por me ensinarem a importância de estudar e de comer feijão. Apesar da distância física, levo-os todos sempre comigo.

Aos sogros Ângela e Marco e à cunhada Lalá, que me abriram as portas de sua casa e me dão sentido de família, mesmo longe da minha.

À professora Clarice Seixas Duarte, orientadora, pelas sugestões de leitura, por me propiciar um sereno período de redação e pela confiança em mim depositada para assisti-la na Disciplina que ministra na Pós-Graduação, proporcionando-me uma experiência ímpar.

Às professoras Maria Paula Dallari Bucci e Solange Teles da Silva, que concordaram prontamente em participar das bancas de qualificação e de defesa, dignificando-as, tendo, naquela oportunidade, dado sugestões, todas acatadas, que me puseram a refletir mais e melhorar o texto.

Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Direito Político e Econômico do Mackenzie, que ministraram aulas que me deram suporte para melhor aproveitar o Curso.

À professora Rosangela Marina Luft, do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, por ter pronta e gentilmente me cedido o texto de sua tese de Doutorado, que contribuiu deveras com esta dissertação.

Aos colegas de Receita Federal, os irmãos Karina Alessandra e Eduardo Newman de Mattera Gomes, José Régula Filho e Cristiano Vergely Fraga, que me deram tranquilidade para escrever.

À saudosa Rio de Janeiro natal, que, com suas idiossincrasias, despertou-me, cedo, para o assunto aqui tratado.

Ao querido Instituto Militar de Engenharia, onde cursei minha primeira Graduação, que me supriu da confiança necessária para superar os desafios acadêmicos, como o maior deles, que ora se encerra.

À Chicória, que não entendeu porque passei tanto tempo em frente ao computador e joguei menos a bolinha para ela buscar. Cachorros melhoram pessoas.

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Constitucional nº 26, de 14 de fevereiro de 2000, o direito social à moradia. Sua concretização, todavia, não é realizada de forma satisfatória, face a uma teia de políticas públicas inapropriadas ou ausentes. Tentando contornar o problema, em âmbito federal, publica-se, em 2001, o Estatuto da Cidade, que contém, dentre outras diretrizes, a regularização fundiária. Versando sobre ela, especificamente, promulgam-se leis que dispõem, dentre outros assuntos, acerca da Regularização Fundiária Urbana (Reurb) de Interesse Social (Reurb-S), aplicável aos núcleos urbanos informais ocupados predominantemente por população de baixa renda. Dentre sua acepção ampla, ligada aos elementos do conceito normativo, e suas acepções estritas, que visam ao ajustamento gradativo das eventuais irregularidades, quais sejam, de incorporação dos núcleos urbanos informais ao ordenamento territorial urbano e de titulação dos ocupantes, este trabalho cuidará desta última. Para tanto, verificará, dentro da racionalidade estatal, quanto ao procedimento, em âmbito administrativo, como a Corregedoria-Geral da Justiça Paulista, órgão do Poder Judiciário, pode contribuir, com celeridade e segurança, para o exercício da cidadania, naquilo que respeita ao direito social de moradia. Para que se percorra este caminho, iniciar-se- á pela abordagem da (não) efetivação do direito à moradia no Brasil, sua relação com o direito de propriedade e como a irregularidade fundiária no Brasil se liga a políticas públicas inapropriadas. Posteriormente, serão estudadas as dimensões da regularização fundiária de interesse social, iniciando pela distribuição de competências constitucionais, até chegar àquelas, compreensivas do planejamento urbano e da regularização em si mesma. Em seguida, serão pormenorizados instrumentos jurídicos e institutos voltados à segurança da posse, sem olvidar das dificuldades enfrentadas para sua implementação na prática. Encerra-se com estudo pormenorizado da atuação administrativa, apontando seus limites e onde se desbordou deles, no que respeita à eficácia jurídico-formal, verificando-se, após, por meio de indicadores de resultado, a efetividade (eficácia social) da normatização e perspectivas de seu incremento, tendente a estabilizar o problema, paralelamente à redução do número de moradias que apresentem algum grau de inadequação fundiária.

Palavras-chaves: moradia, políticas públicas, regularização fundiária urbana de interesse social, regulamentação administrativa, Corregedoria-Geral de Justiça.

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Amendment No. 26, dated February 14, 2000, the social right to housing. Its implementation, however, is not carried out satisfactorily, in the face of a web of inappropriate or absent public policies. Trying to get around the problem, at the federal level, the City Statute was published in 2001, which contains, among other directives, land regularization. In particular, it is enacted by laws that provide, among other subjects, for the Reurb-S, which applies to the informal urban centers occupied predominantly by the low-income population. Among its broad meaning, linked to the elements of the normative concept, and its strict meanings, which aim at the gradual adjustment of eventual irregularities, that is, of incorporating informal urban nuclei into the urban territorial ordering and titling of occupants, this work will take care of the latter. In order to do so, it will verify, within the state rationality, as to the procedure, in administrative scope, as the Corregedoria-Geral da Justiça Paulista, organ of the Judiciary Power, can contribute, with speed and security, to the exercise of citizenship, in that with regard to the social right to housing. In order to follow this path, we will start by approaching the (non) realization of the right to housing in Brazil, its relation to property rights, and how land irregularity in Brazil is linked to inappropriate public policies. Subsequently, the dimensions of land regularization of social interest will be studied, beginning with the distribution of constitutional competences, until reaching those, understanding of urban planning and regularization in itself. Next, legal instruments and institutes focused on security of tenure will be detailed, without forgetting the difficulties faced in their implementation in practice. It closes with a detailed study of the administrative work, pointing out its limits and where it has overflowed them, regarding the legal-formal effectiveness, after checking, by means of outcome indicators, the effectiveness (social effectiveness) of the normalization and prospects of its increase, tending to stabilize the problem, parallel to the reduction of the number of dwellings that present some degree of land inadequacy.

Keywords: housing, public policies, land urban regularization of social interest, administrative regulations, Corregedoria-Geral da Justiça.

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las ...125

Quadro 3: Requisitos mínimos da CRF ... 163

Quadro 4: Rito das notificações... 166

Quadro 5: Registro da CRF e do projeto de regularização fundiária ... 168

LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1: Quantidade de Regularizações entre 25/03/2009 e 22/12/2016 ... 177

Gráfico 2: Quantidade de Regularizações entre 23/12/2016 e 30/11/2018 ... 177

Gráfico 3: Quantidade de Unidades Regularizadas entre 25/03/2009 e 22/12/2016 ... 178

Gráfico 4: Quantidade de Unidades Regularizadas entre 23/12/2016 e 30/11/2018 ... 178

Gráfico 5: Quantidade de Unidades Registradas entre 25/03/2009 e 22/12/2016 ... 179

Gráfico 6: Quantidade de Unidades Registradas entre 23/12/2016 e 30/11/2018 ... 179

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ARISP: Associação de Registradores Imobiliários do Estado de São Paulo BNH: Banco Nacional de Habitação

CC: Código Civil

CDRU: Concessão de direito real de uso CF: Constituição Federal

CGJ: Corregedoria-Geral da Justiça CNJ: Conselho Nacional de Justiça CRF: Certidão de regularização fundiária

CUEM: Concessão de uso especial para fim de moradia Dec.: Decreto

Dec.-lei: Decreto-lei EC: Estatuto da Cidade

IPTU: Imposto Predial e Territorial Urbano ITBI: Imposto de Transmissão de Bens Imóveis ITR: Imposto Territorial Rural

LPS: Lei de Parcelamento do Solo Urbano LRP: Lei de Registros Públicos

MPV: Medida Provisória PL: Projeto de Lei

PlanHab: Plano Nacional de Habitação

PMCMV: Programa Minha Casa, Minha Vida PNH: Política Nacional de Habitação

Reurb: Regularização fundiária urbana

Reurb-E: Regularização fundiária urbana de interesse específico Reurb-S: Regularização fundiária urbana de interesse social SFH: Sistema Financeiro de Habitação

ZEIS: Zona especial de interesse social

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INTRODUÇÃO ... 1

1. DIREITO À MORADIA E SUA EFETIVAÇÃO ... 10

1.1. Direito à moradia em face do direito de propriedade ... 12

1.1.1.Moradia como direito fundamental... ERRO!INDICADOR NÃO DEFINIDO.2 1.1.2. Relação entre direito à moradia e direito de propriedade .. Erro! Indicador não definido.6 1.1.3. Função social da propriedade e posse... 18

1.1.4. Função social da propriedade urbana ... 23

1.2. Irregularidade fundiária urbana no Brasil e políticas públicas ... 26

1.2.1. Déficit habitacional e inadequação fundiária ... 26

1.2.2. Assentamentos informais ... Erro! Indicador não definido.8 1.2.3. Legislação urbanística como agravadora do problema ... 30

1.2.4. Políticas públicas urbanas e de moradia após a promulgação da Constituição Federal de 1988 ... 34

2. REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA DE INTERESSE SOCIAL E SUAS DIMENSÕES ... 38

2.1. Distribuição de competências constitucionais no âmbito da regularização fundiária urbana entre os entes federados ... 41

2.2. Planejamento urbano e planos de regularização fundiária ... 43

2.2.1. Plano diretor ... 45

2.2.2. Perímetro urbano, ocupação do solo e parcelamento do solo urbano ... 47

2.2.3. Planos de habitação de interesse social ... 51

2.3. Regularização fundiária de interesse social ... 52

2.3.1. Importância da regularização... 52

2.3.2. Tipos de irregularidades fundiárias e modalidades de regularização ... 55

2.3.3. Primeiro marco legal federal da regularização fundiária e críticas a sua revogação ... 61

2.3.4. Arquétipo legal da regularização fundiária ... 73

3. INSTRUMENTOS JURÍDICOS, SEGURANÇA DA POSSE E PROBLEMAS ENCONTRADOS NA PRÁTICA DA REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA ... 88

3.1. Instrumentos jurídicos ... 90

3.1.1. Zona Especial de Interesse Social (ZEIS) ... 90

3.1.2. Edificação, parcelamento e utilização compulsórios, IPTU progressivo no tempo, desapropriação-sanção e consórcio imobiliário ... 93

3.1.3.Direito de preempção, desapropriação por interesse social e arrecadação de imóveis abandonados ... 96

3.1.4. Outorga onerosa do direito de construir, transferência do direito de construir e operações urbanas consorciadas ... 99

3.2. Institutos voltados à segurança da posse ... 102

3.2.1. Legitimação fundiária, demarcação urbanística e legitimação da posse ... 102

3.2.2. Usucapião ... 109

3.2.3. Concessões de uso ... 115

3.2.4. Doação, compra e venda, direito de superfície e direito real de laje ... 120

3.2.5. Assistência técnica e jurídica gratuita e o aluguel social... 123

3.2.6. Correlação entre tipos de irregularidade e institutos ... 125

3.3. Dificuldades enfrentadas na efetivação da regularização fundiária ... 126

3.3.1. Obstáculos de natureza extrajurídica ... 126

3.3.2. Obstáculos de natureza jurídica ... 130

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4.2. Limites da atuação administrativa das Corregedorias de Justiça ... 148

4.3. Coesão dinâmica dos princípios registrais e a atuação da Corregedoria-Geral da Justiça paulista no âmbito da regularização fundiária urbana ... 156

4.3.1.Princípios registrais e sua coesão dinâmica na regularização fundiária urbana ... 156

4.3.2.Atuação da Corregedoria-Geral da Justiça paulista no âmbito da regularização fundiária urbana ... 161

4.4. Verificação da eficácia social da normatização ... 174

CONCLUSÃO ... 185

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 192

ANEXO: Provimento CGJ/SP nº 51, de 2007 ... 216

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INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988 consagra, desde a publicação da Emenda Constitucional nº 26, de 14 de fevereiro de 2000, em seu art. 6º, o direito social à moradia, consectário de seus fundamentos, quais sejam, os da cidadania e da dignidade da pessoa humana, encartados em seu art. 1 , incs. II e III, respectivamente.

A concretização deste direito, todavia, não é realizada de forma satisfatória. A urbanização do país se deu de forma desorganizada. Em face de uma teia de políticas públicas inapropriadas ou ausentes, multiplicaram-se as irregularidades, como, p. ex., loteamentos clandestinos e invasão de áreas públicas e privadas.

Dentre as causas que podem ser atribuídas ao Poder Público se encontram (i) a inadequada atividade legiferante e (ii) a omissão em seu poder-dever de polícia, ao não fiscalizar tal atividade de modo adequado1. O Estado descumpre, pois, função que há tempos já lhe era atribuída2.

Em tentativa de contornar o quadro, e em face da deferência estabelecida na CF/88 à função social da propriedade e ao próprio direito à moradia, edita-se, em 2001, a Lei n 10.257, conhecida como “Estatuto da Cidade” (EC), regulamentando os arts. 182 e 183 da Constituição.

Já se tratava, aí, de se fixar diretrizes gerais de política urbana, a fim de corrigir problemas decorrentes da urbanização desordenada.

Dentre as diretrizes do EC, figura a da efetivação da regularização fundiária3. Esta pressupõe, sinteticamente, três aspectos: (i) dimensão urbanística, a partir do investimento para melhoria das condições de vida da população; (ii) dimensão jurídica, com instrumental que possibilite a aquisição da propriedade em áreas privadas e o reconhecimento da posse em áreas

1 AMADEI, Vicente de Abreu. Urbanismo realista. Campinas: Editora Millenium, 2006, p. 88.

2 “Considerando o poder político fato legítimo, infere-se que as ordens desse poder são também legítimas quando se conformam com o direito; a par com isso, o emprego do constrangimento material pelo poder político é autêntico quando visa assegurar a sanção do direito”. DUGUIT, Léon. Fundamentos do direito. Trad. Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1996, p. 51.

3 Art. 2o A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da

propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:(...)

XIV – regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação, consideradas a situação socioeconômica da população e as normas ambientais;

(...)

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públicas; e (iii) dimensão registrária, com lançamento nas matrículas imobiliárias da aquisição de tais direitos.

Se pode-se dizer que é praticamente impossível encontrar dois ou mais assentamentos informais – expressão tomada da doutrina especializada4, que nem sempre encontra respaldo na lei5 – com os mesmos problemas, também é possível se afirmar que dentre os obstáculos mais frequentes se encontram (i) as condições físicas e ambientais dos terrenos; (ii) a infraestrutura e serviços públicos disponíveis; (iii) os direitos de posse, propriedade e registros fundiários de imóveis ocupados; (iv) as características das construções; e (v) as imposições fiscais e financeiras que incidem sobre os habitantes de tais áreas6.

De molde a atender tais anseios e superar estes percalços de modo mais adequado, veio à luz a Lei n 11.977, de 2009, com as alterações da Lei nº 12.424, de 2011, ampliando o tratamento da regularização fundiária urbana. Em seu art. 46, de modo próximo ao estabelecido

4 “Embora difiram em características específicas, os assentamentos com uma ou mais dessas características são

normalmente categorizados como informais. Esse termo tem a vantagem de ter amplo escopo, mas a sua generalidade pode impedir políticas públicas eficazes”. In: FERNANDES, Edésio. Regularização de assentamentos informais na América Latina. Foco em políticas fundiárias. Lincoln Institute of Land Policy, 2011.

Disponível em < https://www.lincolninst.edu/sites/default/files/pubfiles/regularizacao-assentamentos-informais- full_1.pdf >. Acesso em 23 fev 2018, pp. 10-11.

“A caracterização do assentamento informal envolve levantamentos e pesquisas relativos às dimensões físicas, urbanísticas, sociais e de domínio da terra ocupada”. GOUVÊA, Denise; RIBEIRO, Sandra. A regularização fundiária plena: questões comuns a todos os processos. In: CARVALHO, Celso Santos; GOUVÊA, Denise;

BALBIM Renato (Coord.). Acesso à terra urbanizada: implementação de planos diretores e regularização fundiária plena. Florianópolis: UFSC; Brasília: Ministério das Cidades, 2008, p. 213-237. Disponível em <

http://www.capacidades.gov.br/biblioteca/detalhar/id/252/titulo/acesso-a-terra-urbanizada >. Acesso em 22 ago 2018, p. 218.

5No Projeto de Lei nº 3.057, de 2000, que tem seu Título III referente à “regularização fundiária sustentável”, tal era a nomenclatura adotada em seu art. 2º, inc. XXVIII: assentamentos informais. Tal Capítulo serviu de base à Lei nº 11.977, de 2009.

Todavia, na revogada Lei nº 11.977, de 2009, constou: Art. 46. A regularização fundiária consiste no conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais que visam à regularização de assentamentos irregulares e à titulação de seus ocupantes, de modo a garantir o direito social à moradia [...] (grifou-se).

Na Lei nº 13.465, de 2017: Art. 10. Constituem objetivos da Reurb, a serem observados pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios:

I - identificar os núcleos urbanos informais que devam ser regularizados, organizá-los e assegurar a prestação de serviços públicos aos seus ocupantes, de modo a melhorar as condições urbanísticas e ambientais em relação à situação de ocupação informal anterior (grifou-se);

6LUFT, Rosangela Marina. Regularização fundiária de interesse social: a coordenação entre as políticas de urbanismo e de habitação social no Brasil à luz de experiências do direito francês. Tese em Cotutela (Doutorado).

Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Direito. Université Paris 1, Panthéon-Sorbonne, Faculté

de Droit. Disponível em <

http://www.bdtd.uerj.br/tde_busca/processaPesquisa.php?listaDetalhes%5B%5D=5270&processar=Processar >.

Acesso em 2017-04-06, p. 20.

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pela doutrina7, definiu a regularização fundiária como sendo um conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais que visam à regularização de assentamentos irregulares e à titulação de seus ocupantes, de modo a garantir o direito social à moradia, o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Quanto às suas modalidades, a Lei referia a três delas. Em seu art. 47, inc. VII, definiu a regularização fundiária de interesse social, de assentamentos irregulares ocupados predominantemente por população de baixa renda. Em seu art. 47, inc. VIII, definiu a regularização fundiária de interesse específico como sendo aquela que não caracteriza o interesse social, nos termos do inc. VII. Por fim, em seu art. 71, definiu a última modalidade, referente às glebas parceladas para fins urbanos anteriormente a 19 de dezembro de 1979, desde que o parcelamento esteja integrado à cidade.

Em 22 de dezembro de 2016, publicou-se a Medida Provisória (MPV) nº 759, revogando-se tais dispositivos e todos os demais relacionados à regularização fundiária. Em sua tramitação, foram apresentadas à Comissão Mista da Câmara dos Deputados 732 (setecentas e trinta e duas) emendas, a refletir o necessário debate que circunda o tema. A MPV teve sua vigência prorrogada por mais 60 dias em 21 de março de 2017. Em 11 de julho de 2017, publicou-se a Lei nº 13.465, trazendo uma série de novidades sobre o assunto, inclusive em relação à MPV que lhe deu origem.

A nova Lei, que tratou da Regularização Fundiária Rural e da Regularização Fundiária Urbana (Reurb), definiu esta, em seu art. 9º, como sendo a que “abrange medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais destinadas à incorporação dos núcleos urbanos informais ao ordenamento territorial urbano e à titulação de seus ocupantes”.

7“Regularização fundiária é um processo conduzido em parceria pelo Poder público e população beneficiária, envolvendo as dimensões jurídica, urbanística e social de uma intervenção que, prioritariamente, objetiva legalizar a permanência de moradores de áreas urbanas ocupadas irregularmente para fins de moradia e, acessoriamente, promove melhorias no ambiente urbano e na qualidade de vida do assentamento, bem como incentiva o pleno exercício da cidadania pela comunidade sujeito do projeto”. In: ALFONSIN, Betânia de Moraes. O significado do estatuto da cidade para os processos de regularização fundiária no Brasil. In: ROLNIK, Raquel et. al.

Regularização fundiária plena. Referências conceituais. Regularização fundiária sustentável – conceitos e diretrizes. Brasília: Ministério das Cidades, 2007. Disponível em <

http://www.capacidades.gov.br/biblioteca/detalhar/id/236/titulo/regularizacao-fundiaria-plena >. Acesso em 25 abr 2017, p. 78.

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Ainda em relação à Reurb, a Lei trouxe, em seu art. 13, duas modalidades de regularização: Reurb de Interesse Social (Reurb – S), objeto deste trabalho, “aplicável aos núcleos urbanos informais ocupados predominantemente por população de baixa renda, assim declarados em ato do Poder Executivo municipal”, e Reurb de Interesse Específico (Reurb – E), “aplicável aos núcleos urbanos informais ocupados por população não qualificada” para usufruir da Reurb – S.

Postos tais conceitos, para que este trabalho tivesse sua adequada problematização, foram utilizadas as perspectivas de Luft8 e Alfonsin9.

Da leitura do retro citado art. 9º, emergem três concepções para o conceito de

“regularização fundiária urbana”, um amplo e dois restritos.

À acepção ampla, estariam vinculados os elementos do conceito normativo. À primeira acepção estrita, “incorporação dos núcleos urbanos informais ao ordenamento territorial urbano”, estariam vinculados os conceitos relacionados à regularização urbanística, a abranger, por exemplo, a disponibilização de serviços essenciais (com menor ênfase do que aquela reconhecida pela legislação anterior, como se verá ao longo do texto). Já à segunda acepção, de

“titulação dos ocupantes”, estaria relacionada à obtenção de títulos por parte dos moradores dos lugares onde se promovem os processos de regularização, sejam de propriedade ou de posse.

Tal se perceberia, inclusive, da leitura da própria Lei nº 13.465, de 2017, que divide, de modo racional, a regularização fundiária em duas fases: uma primeira, referente à regularização do parcelamento do solo, que vai de seus arts. 28 a 41; e uma segunda, que trata da titulação dos ocupantes, que compreende os arts. 42 a 54.

As políticas públicas dirigidas a estes dois objetivos visariam, pois, o ajustamento gradativo das eventuais irregularidades, não se limitando a legalizar o quadro individual de cada um dos moradores. Aqui, diferenciam-se de políticas de construção imobiliária, em que o Estado a financia, e que é objeto do Capítulo I da Lei nº 11.977, de 2009, em vigor.

8LUFT, Rosangela Marina. Op. cit., 2014, pp. 27-45.

9 ALFONSIN, Betânia de Moraes. A Política Urbana em disputa: desafios para a efetividade de novos instrumentos em uma perspectiva analítica de direito urbanístico comparado (Brasil, Colômbia e Espanha). Tese (doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Pesquisa ePlanejamento Urbano e Regional, 2008. Disponível em < http://www.ippur.ufrj.br/download/pub/BetaniaDeMoraesAlfonsin.pdf > Acesso em 25 abr 2017, pp. 16-21.

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Assim, partindo do pressuposto de que o referido art. 9º permite distinguir as formas estritas de regularização, delimita-se o objeto do presente trabalho à análise das irregularidades ao quadro jurídico. Não se deslembra que, na prática, é difícil de se proceder a uma perfeita separação entre medidas de cunhos urbanístico e jurídico, mormente quando se trata de imposição de ônus à propriedade privada.

Feito o “recorte teórico”, pode-se afirmar que o quadro jurídico da regularização fundiária envolve providências de duas ordens. A primeira seria a intervenção do Estado, ou urbanística, como se viu, a assegurar o direito à cidade. A segunda, foco desta monografia, tratar-se-ia da garantia de titularidade de direitos de posse ou propriedade imobiliária, com titulação dos ocupantes, repelindo eventuais ameaças de desalojamento, estabelecendo o status do morador.

Sendo certo que tais ordens possuem autonomia teórica, também é certo que devem ser efetivadas de maneira vinculada. Para tanto, deve-se fornecer adequada base institucional, centrada em que se compatibilizem os fatos ocorrentes com os mecanismos jurídicos passíveis de serem empregados.

De se lembrar que tal abordagem atinge o problema de modo parcial. Todavia, sua importância não deve ser diminuída, pois que são conhecidas as tentativas dos mais diversos espectros de atores sociais que buscam se apropriar do conjunto normativo, de forma a legitimar seus interesses.

Ainda que possa merecer eventuais reparos, pode-se dizer que os entes federados não podem mais se manter inertes por conta de omissão normativa. O quadro jurídico já se encontra pronto para que os cidadãos cobrem do Poder Público posturas ativas, eis que foram atribuídas competências, normativas e executivas a todos os entes. A questão que se põe, aqui, é de saber em que medida essa base formal-normativa pode viabilizar ações consistentes quanto à regularização fundiária.

No âmbito da racionalidade estatal, quanto ao procedimento, intentou-se simplificar, em âmbito administrativo, o quanto possível. Em âmbito paulista, a Corregedoria-Geral do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo editou os Provimentos – meios de controle preventivos da regularidade da prestação judicial e extrajudicial – de nºs 18, de 2012; 25, de 2012; 16, de 2013; e 21, de 2013, todos no intuito de desburocratizar o procedimento onde possível, ainda quando vigorava a Lei nº 11.977, de 2009. Na vigência da Lei nº 13.465, de

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2017, em 19 de dezembro de 2017, editou-se, de modo pioneiro, o Provimento CGJ nº 51/2017, com o mesmo móvel dos anteriores.

A respeito da celeridade já conferida, insta que se examine a normatização administrativa referida, quer para se averiguar o que se fez e o que ainda pode ser realizado neste sentido, quer para se apontar onde se desbordou de tal competência, em face da legislação e dos princípios registrais, voltados, essencialmente, a conferir segurança, autenticidade, publicidade e segurança jurídica aos atos e fatos jurídicos levados a registro, nos termos dos arts. 1º das Leis nºs 6.015, de 1973, e 8.935, de 1994.

De modo perfunctório, e em face de um problema real que acomete grande parte das cidades brasileiras, cujo déficit habitacional e inadequação fundiária montavam, em 2015, conforme dados do último estudo realizado pela Fundação João Pinheiro, a 8,16% (oito inteiros e dezesseis centésimos por cento) e 3,2% (três inteiros e dois décimos por cento) das habitações urbanas brasileiras, perfazendo o total, respectivamente, de 5.572.000 (cinco milhões, quatrocentos e quatorze mil e oitocentos) e de 1.871.000 (um milhão, oitocentos e setenta e um mil) domicílios, o problema a ser abordado neste trabalho é: como a regulamentação administrativa da legislação pertinente à regularização fundiária urbana pode auxiliar a promover, com celeridade e segurança, a cidadania e a inserção social de seus beneficiários?

A relevância do presente trabalho, portanto, funda-se no fato de expor como a edição da Lei nº 13.465, de 2017, no que pertine à regularização fundiária urbana de interesse social, e à regulamentação administrativa conferida ao assunto pela Corregedoria-Geral do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo pode contribuir para o exercício da cidadania, naquilo que respeita ao direito social de moradia.

Também, deve-se ressaltar a produção ainda incipiente de pesquisas relevantes acerca do assunto. Estudo que analisou a produção científica sobre a política habitacional brasileira na área das Ciências Sociais Aplicadas, de 1964 até 2014, vasculhando artigos científicos que tivessem por tema “habitação” e “políticas públicas”, com títulos mencionando as expressões

“habitação” e “política habitacional”, em periódicos avaliados pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) com avaliação A1, A2, B1 e B2 nas bibliotecas eletrônicas SciELO e SPELL, encontrou 222 (duzentos e vinte e dois) artigos, selecionando os 38 (trinta e oito) mais representativos (adotando variações de acordo com a pertinência). Dentre estes, não se identificou nenhuma produção que tivesse por fundo a

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regularização fundiária10. Este metaestudo, ressaltando a “[...] ausência de produções relevantes como livros, teses, dissertações, monografias e periódicos” – pese a relativização da assertiva, no curto lapso do ano de 2014 até o presente, como se vê das referências bibliográficas do presente trabalho –, assim concluiu:

Alguns pontos críticos que merecem ser analisados: […] (ii) os estudos estão direcionados à provisão habitacional, isto é, à construção de casas, com pouca produção envolvendo outras perspectivas da política de habitação, como a reforma e a regularização de assentamentos […].

As questões aqui levantadas são indicativos para potenciais novos estudos que contribuam para a discussão desse tema de relevância social, o qual vem ganhando destaque nas atuações do governo11.

A hipótese desta pesquisa é que a regulamentação administrativa da legislação pertinente à regularização fundiária é um meio eficaz (eficácia jurídico-formal) para alcançá- la, a partir do estudo de suas dimensões e da apresentação e aplicação de seus instrumentos e institutos às tipologias de informalidades, apto a promovê-la com celeridade e segurança jurídica, com algum sacrifício dos princípios que regem a atividade, com fim de promover a inserção social dos beneficiários, perseguindo sua efetividade (eficácia social). Isso porque

[...] se considerarmos que o direito deve ser sensível à realidade do seu ambiente social externo, portanto, cognoscitivamente aberto, ainda que operativamente fechado [...], não se isola numa realidade estática, do contrário não será meio eficiente para a produção de respostas colocadas pelos indivíduos [...], passando por atos que comportam um processo interpretativo e chegando àqueles que outorgam ao agente público o exercício de competência discricionária [...].

Devemos registrar que o sentido dado ao termo eficiente [...] não é valorativo, no sentido de bom ou ruim, melhor ou pior, mas no sentido de útil ou inútil. [...]12 O objetivo geral desta pesquisa, assim, é investigar a celeridade possível da regularização fundiária urbana de interesse social, sem perder de vista a necessária segurança que se deve emprestar ao procedimento, com a promoção da cidadania.

Para que se atinja o objetivo geral desta pesquisa, foram definidos os seguintes objetivos específicos:

10RODRIGUES, Lucas Pazolini Dias; MOREIRA, Vinícius de Souza. Habitação e políticas públicas: o que se tem pesquisado a respeito? In: Revista brasileira de gestão urbana, s. l., v. 8, nº 2, p. 167-180, out. 2017.

Disponível em < https://periodicos.pucpr.br/index.php/Urbe/article/view/3610/3526 >. Acesso em 16 mai 2018, pp. 169-175.

11 Ibid., p. 178.

12 VICHI, Bruno de Souza. Política urbana: sentido jurídico, competências e responsabilidades. Belo Horizonte:

Fórum, 2007, pp. 207-208.

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1. Apresentar a relação existente entre o direito à moradia e o direito de propriedade e sua função social, bem como o problema da irregularidade fundiária urbana, à luz das faltas de legislação adequada e de fiscalização por parte do Poder Público;

2. Analisar as dimensões da regularização fundiária de interesse social, tendo em conta a distribuição constitucional de competências, o planejamento urbano e o arquétipo do modelo trazido pela Lei n 13.465, de 2017, relacionando-a, quando necessário, à revogada Lei nº 11.977, de 2009, com as alterações promovidas pela Lei n 12.424, de 2011;

3. Perscrutar as estruturas e práticas institucionais relacionadas à regularização fundiária urbana, a eficácia de seus instrumentos jurídicos e institutos voltados à segurança da posse – sem deixar de apontar suas limitações de ordem material e formal, quando existentes –, relacionando-os com as tipologias de informalidades, e problemas relacionados a sua efetividade;

4. Demonstrar como laborou a Corregedoria-Geral do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo para tornar mais acessível o procedimento da regularização fundiária urbana de interesse social naquilo que não contrariasse a Lei em comento, e apontar, sendo o caso, novas possibilidades;

5. Examinar eventual abrandamento dos princípios registrais, tendo em conta a compatibilidade ou não dos procedimentos administrativos com a lei, para que se leve a termo a regularização pretendida.

Quanto à metodologia aplicada, este trabalho se delimitará a abordar tão somente assuntos pertinentes à regularização fundiária urbana. Levará em conta, para tanto, dentre outras matérias relevantes, a relação do direito privado com a informalidade dos assentamentos, bem como o contexto político-jurídico que ensejou a edição da nova Lei.

Em que pese serem questões de incontestável relevância, não serão aprofundadas as que se referirem à irregularidade fundiária de imóveis rurais, nem que respeitem a outros campos do conhecimento (ex.: Arquitetura, Sociologia etc.).

Esta será uma pesquisa do tipo abordagem qualitativa, que utilizará a técnica

“bibliográfica”, com definições de abalizada doutrina nacional. Os dados serão coletados através da técnica do “fichamento” e analisados pelo método da “análise de conteúdo”, identificando similaridades na literatura, que serão categorizadas com o objetivo de responder ao problema apresentado.

(21)

Quanto às limitações, as normativas administrativas em exame serão restritas ao quanto expedido pela Corregedoria-Geral do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

Aprioristicamente, esta pesquisa estará restrita à revisão bibliográfica das questões jurídicas.

Todavia, no último Capítulo, colhem-se dados concretos e gráficos de aplicativo disponibilizado pela Central Registradores Imobiliários – repositório autorizado pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – para se averiguar o estado atual e vislumbrar perspectivas da regularização fundiária frente ao implemento da nova legislação.

O tema da regularização fundiária de interesse social se encontra imbricado com a linha de pesquisa “A Cidadania Modelando o Estado” do curso de Pós-Graduação stricto sensu em Direito Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie, pois que inserida na promoção da justiça social e concretização de direitos sociais, geradas pela promoção de novas políticas públicas, mediante atuação racional do Estado, propulsor de direitos fundamentais13. No contexto deste trabalho, a intervenção do Estado na esfera individual não é vista como um obstáculo à efetivação plena da cidadania, mas, ao revés, fomenta-a.

13 “[...] Assim, uma regra de conduta impõe-se ao homem social pelas próprias contingências contextuais, e esta

regra pode formular-se do seguinte modo: não praticar nada que possa atentar contra a solidariedade social sob qualquer das suas formas e, a par com isso, realizar toda atividade propícia a desenvolvê-la organicamente. O direito objetivo resume-se nesta fórmula, e a lei positiva, para ser legítima, deve ser a expressão e o desenvolvimento deste princípio”. DUGUIT, Léon. Op. cit., 1996, p. 25.

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1. DIREITO À MORADIA E SUA EFETIVAÇÃO

Em perspectiva histórica, pode-se dizer que o crescimento das grandes cidades brasileiras, ao longo da segunda metade do século XX, caracterizou-se pela configuração de duas cidades distintas: uma legal, consolidada pela implementação de parcelamentos oficiais (legalizados) localizados, em geral, em áreas mais centrais, destinados à moradia das classes médias e altas; e uma cidade ilegal, destinada à moradia das classes baixas, caracterizada pela implantação de loteamentos ilegais (ou irregulares) nas porções periféricas dos municípios e/ou pela consolidação de favelas em diversas áreas das regiões mais centrais14.

Em 1960, a taxa de urbanização no Brasil era de 44,7%, passando de 55,9% em 1970 para 67,6% em 1980, chegando a 75,6% em 1991. O Censo de 2000 apontava que 81,2% da população brasileira vivia nas zonas urbanas das cidades brasileiras, sendo que na região Sudeste esse percentual seria mais alto, chegando a 90,12%. Tal se deveu a vários fatores, como crescimento vegetativo da população, ao êxodo rural, além de a residência de trabalhadores agrícolas localizar-se cada vez mais em áreas urbanas15.

A demanda por moradias, como não poderia deixar de ser, acompanhou este processo de crescimento. Não foi correspondida, entretanto. Nos dias correntes, conforme dados do último estudo realizado pela Fundação João Pinheiro, em 2017, quanto ao ano de 2015, o déficit habitacional (quantitativo)16 e o componente da inadequação de domicílios17 (qualitativo) que

14D’OTTAVIANO, Maria Camila Loffredo; SILVA, Sérgio Luís Quaglia. Regularização fundiária no Brasil:

velhas e novas questões. In: Planejamento e Políticas Públicas. Brasília, v. 32, p. 201-229, jan./jul. 2009.

Disponível em < http://www.ipea.gov.br/ppp/index.php/PPP/article/view/172/185 >. Acesso em 11 fev 2018, p.

204.

15 SANTOS, Milton. Urbanização brasileira. 5 ed. São Paulo: Edusp, 2008, p. 6.

16“O conceito de déficit habitacional utilizado está ligado diretamente às deficiências do estoque de moradias.

Engloba aquelas sem condições de serem habitadas em razão da precariedade das construções ou do desgaste da estrutura física e que por isso devem ser repostas. Inclui ainda a necessidade de incremento do estoque, em função da coabitação familiar forçada (famílias que pretendem constituir um domicilio unifamiliar), dos moradores de baixa renda com dificuldades de pagar aluguel nas áreas urbanas e dos que vivem em casas e apartamentos alugados com grande densidade. Inclui-se ainda nessa rubrica a moradia em imóveis e locais com fins não residenciais. O déficit habitacional pode ser entendido, portanto, como déficit por reposição de estoque e déficit por incremento de estoque”. In: FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. Déficit habitacional no Brasil 2015. Belo Horizonte: FJP, 2018. Disponível em < http://www.fjp.mg.gov.br/index.php/docman/direi-2018/estatistica-e- informacoes/797-6-serie-estatistica-e-informacoes-deficit-habitacional-no-brasil-2015/file >. Acesso em 02 jul 2018, p. 20.

17 “As habitações inadequadas não proporcionam condições desejáveis de habitação, o que não implica, contudo,

necessidade de construção de novas unidades. [...] Ao contrário do déficit, os critérios adotados para a inadequação habitacional não são mutuamente exclusivos. [...] Além disso, como foi mencionado, eles são apresentados de forma segmentada para possibilitar a elaboração de políticas públicas específicas e propiciar informações particulares que permitam ao poder público estabelecer diferentes prioridades para cada tipo de inadequação.

Como inadequados são classificados os domicílios com carência de infraestrutura, adensamento excessivo de

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mais de perto interessa a este trabalho, qual seja, a inadequação fundiária18 montavam a 8,16%

(oito inteiros e dezesseis centésimos por cento) e 3,2% (três inteiros e dois décimos por cento) das habitações urbanas brasileiras, perfazendo o total, respectivamente, de 5.572.000 (cinco milhões, quatrocentos e quatorze mil e oitocentos) e de 1.871.000 (um milhão, oitocentos e setenta e um mil) domicílios19.

Contemporaneamente à formação do déficit habitacional brasileiro, a moradia foi reconhecida como direito humano universal em 1948, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas, aceito como um dos direitos fundamentais. Posteriormente, o entendimento das Nações Unidas foi ampliado ao conceito de moradia adequada pelo Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966. Esta não se resume a apenas um teto e quatro paredes, mas ao direito de toda pessoa ter acesso a um lar para se desenvolver e uma comunidade segura para viver em paz, com dignidade e saúde física e mental.

Na CF/88, a proteção do direito social à moradia está expressa quando estabelece as diretrizes da política urbana (função social da cidade, das terras públicas e proteção jurídica da posse) e também quando prevê o princípio da função social da propriedade elencado no art. 5º, inc. XXIII. Mas o principal avanço normativo ocorreu no ano 2000, quando a Emenda Constitucional nº 26 incluiu a habitação no rol dos direitos sociais definidos no art. 6º20.

Santos, Medeiros e Luft recordam, entretanto, que “a materialização do direito social à moradia, tal como consagrado constitucionalmente, não implica, necessariamente, no reconhecimento dos direitos individuais de propriedade”, permitindo-se que, para uma população heterogênea, sejam aplicadas soluções habitacionais heterogêneas 21. Apontam as

moradores em domicílios próprios, problemas de natureza fundiária, cobertura inadequada, ausência de unidade sanitária domiciliar exclusiva ou em alto grau de depreciação. In: FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. Op. cit., 2018, pp. 25-26.

18“A inadequação fundiária refere-se aos casos em que pelo menos um dos moradores do domicílio tem a propriedade da moradia, mas não, total ou parcialmente, a do terreno ou da fração ideal de terreno (no caso de apartamento) onde ela se localiza. Ressalte-se que a incidência dessa inadequação está longe de se restringir aos chamados “aglomerados subnormais” e atinge muitos bairros populares, especialmente nos subúrbios e periferias das grandes metrópoles”. In: Ibid., p. 26.

19 Ibid., pp. 31 e 51.

20 Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social,

a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

21 SANTOS, Angela Moulin S. Penalva; MEDEIROS, Mariana Gomes Peixoto; LUFT, Rosangela Marina. Direito

à moradia: um direito social em construção no Brasil – a experiência do aluguel social no Rio de Janeiro. In:

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autoras que a ineficiência de programas habitacionais implementados por meio de uma lógica mercadológica, com a concessão de créditos imobiliários, foi e é parte do problema nacional de moradia22.

Certo é que, conforme Sarlet, o direito de moradia deve ser interpretado em suas duas dimensões, quais sejam: i) na dimensão positiva, trata-se do dever do poder público de implementar uma política de habitação de interesse social; e ii) na dimensão negativa, implica abster-se de promover deslocamentos involuntários de população carente, cuja situação pode ser regularizada nos locais que ocupam (dimensão negativa)23.

Tais dimensões serão analisadas nos subcapítulos seguintes, que tratarão do reconhecimento do direito à moradia mesmo em face da ausência do direito de propriedade (dimensão negativa) e da irregularidade fundiária urbana brasileira à luz da inadequação de políticas públicas habitacionais (dimensão positiva).

1.1. Direito à moradia em face do direito de propriedade

1.1.1. Moradia como direito fundamental

O regime jurídico habitacional é conformado por leis de diversas matrizes, como de direito urbanístico, ambiental, civil e tributário. Tal se deve ao conceito de moradia, que abrange, como se viu, não apenas ter teto para morar, mas também ter acesso à infraestrutura e a equipamentos e serviços públicos essenciais, exercer a posse em condições juridicamente seguras, morar em situação ambientalmente saudável, ter acessibilidade etc24.

A teoria jurídica o classifica como direito social, cuja concretização pressupõe ações de cunho prestacional por parte do Estado. Insere-se entre os denominados direitos de segunda dimensão, que são os “direitos de igualdade” em sentido amplo, pois sua efetivação é condição

Planejamento e Políticas Públicas, Brasília, v. 46, p. 217-242, jan./jul. 2016. Disponível em <

http://www.ipea.gov.br/ppp/index.php/PPP/article/view/548/390 >. Acesso em 11 fev 2018, pp. 225-226.

22SANTOS, Angela Moulin S. Penalva; MEDEIROS, Mariana Gomes Peixoto; LUFT, Rosangela Marina. Op.

cit., jan./jul. 2016, p. 226.

23SARLET, Ingo Wolfgang. Direito fundamental à moradia na constituição. In: Revista eletrônica sobre a reforma do Estado. Salvador, 20, dez./fev. 2009/2010. Disponível em <

http://www.direitodoestado.com.br/artigo/ingo-wolfgang-sarlet/o-direito-fundamental-a-moradia-na-

constituicao-algumas-anotacoes-a-respeito-de-seu-contexto-conteudo-e-possivel-eficacia >. Acesso em 12 fev 2018, pp. 21-22.

24 LUFT, Rosangela Marina. Op. cit., 2014, p. 45.

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de equiparação entre os sujeitos da sociedade, conferindo as condições mínimas necessárias ao exercício dos demais direitos fundamentais25. A atividade estatal deve se voltar à execução de políticas públicas habitacionais, a envolver novas construções ou a regularização daquelas existentes com tal fim, evitando, ainda, sua regressividade26.

Assim, se é certo que o Estado brasileiro deve formular e aplicar, desde logo, políticas públicas para efetivar tal direito, também é certo que tal obrigação não significa prover habitação a todos os cidadãos, mas, sim, franquear a todos o acesso à habitação digna através de planos e programas destinados aos segmentos sociais alijados do mercado formal imobiliário27. Essas políticas se justificariam, segundo Alfonsin, porque “a igualdade não pode ser compreendida como um valor absoluto, sob pena de sacrificarmos a própria noção de democracia”28.

No texto originário da CF/88, não estava expressamente previsto, nem nas Constituições brasileiras anteriores. Foi inserido através da Emenda Constitucional nº 26, de 14 de fevereiro de 2000. Os princípios e os direitos fundamentais originalmente previstos na CF/88 já eram, em si, suficientes para gerar interpretações no sentido de que a moradia seria um dos pressupostos de dignidade humana (arts. 1º e 3º da CF/88). Para além, existiam tratados e convenções internacionais incorporados ao ordenamento jurídico pátrio, anteriores a 2000, que traziam previsões suficientes para a moradia ser considerada núcleo do princípio da dignidade da pessoa humana29.

Essa inserção teve duas implicações principais, uma simbólica e outra institucional. O simbolismo da sintética referência ao direito à moradia consistiu na representação expressa de uma conquista histórica dos direitos sociais, colocados no topo da hierarquia normativa, servindo de parâmetro hermenêutico para a ação de juristas e de poderes públicos. Quanto ao efeito institucional, a previsão deste direito na CF/88 enfatizou a obrigatoriedade de o Estado

25 LUFT, Rosangela Marina. Op. cit., 2014, p. 46.

26CASIMIRO, Lígia Maria Silva Melo de. A política urbana e o acesso à moradia adequada por meio da regularização fundiária. Dissertação (Mestrado em Direito). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010. Disponível em < https://sapientia.pucsp.br/handle/handle/8918 >. Acesso em 16 fev 2018, p. 59.

27 SAULE JÚNIOR, Nelson. A proteção jurídica da moradia nos assentamentos irregulares. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2004, pp. 182-183.

28ALFONSIN, Betânia de Moraes. Op. cit., 2007, p. 84.

29 SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., dez./fev. 2009/2010, pp. 9-13.

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fundar uma estrutura específica para garantir a moradia, qualificada como “direito de caráter prestacional”, instituindo uma obrigação de meio aos poderes públicos30.

Todavia, não foram trazidos dispositivos específicos que permitissem demarcar nitidamente o conteúdo deste direito. Importante previsão está presente no art. 18331, que trata dos direitos subjetivos à usucapião e à concessão de uso nas áreas urbanas. Tais instrumentos, regularizando a situação da posse, em um primeiro momento, garantiriam o acesso à moradia em face do Poder Público, a preparar terreno para o segundo, que seria a implantação de condições aptas à habitação32.

A legislação infraconstitucional também não define seus elementos constitutivos. Há apenas alguns indicativos, como, por exemplo, as condições mínimas de infraestrutura e serviços exigidos para a aprovação de um loteamento (Lei nº 6.766, de 1979) ou as diretrizes para a efetivação do direito à cidade (art. 2º do EC). É necessário, portanto, que se combinem diferentes normativas, nacionais e internacionais, para a construção de uma noção contemporânea33.

No plano internacional, com base no art. 11 do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, uma Resolução foi elaborada pelo Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas, denominada Comentário Geral nº 4, aprovada em sessão de 13 de dezembro de 1992, que trata dos componentes do direito à moradia. Este deve abranger, no mínimo: segurança da posse; disponibilidade de serviços, infraestrutura e equipamentos públicos; custo acessível; habitabilidade; não discriminação e priorização de grupos vulneráveis; localização adequada; e adequação cultural34. Tal Pacto foi incorporado ao ordenamento jurídico interno pelo Dec. nº 591, de 1992.

30 LUFT, Rosangela Marina. Op. cit., 2014, p. 47.

31Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

§ 1º O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.

32 CASIMIRO, Lígia Maria Silva Melo de. Op. cit., 2010, p. 63.

33 LUFT, Rosangela Marina. Op. cit., 2014, p. 47.

34 BRASIL. Direito à moradia adequada. Brasília: Coordenação Geral de Educação em SDH/PR, Direitos Humanos, Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos, 2013. Disponível em: <

http://www.sdh.gov.br/assuntos/bibliotecavirtual/promocao-e-defesa/publicacoes-2013/pdfs/direito-a-moradia- adequada >. Acesso em 11 fev 2018, p. 14.

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Esta visão ampliada do direito à moradia é compartilhada, em âmbito nacional, pelo Plano Nacional de Habitação (PlanHab), aprovado pelo governo federal em 2009, pois abrange os elementos acima citados:

Norteiam o PlanHab, assim como as demais ações públicas, os princípios estabelecidos pela PNH, para os quais a moradia é entendida como um direito individual e coletivo a ser alcançado pela universalização do acesso a unidades com padrão digno, de modo que sejam garantidas condições de habitabilidade em áreas com infraestrutura, saneamento ambiental, mobilidade, transporte coletivo, equipamentos, serviços urbanos e sociais35.

Adota-se, portanto, um conceito amplo de moradia, não se tratando, somente, de um

“teto para morar”. De todo modo, relevante para este trabalho é que a segurança da posse se constitui em elemento central do direito à moradia, que, sem ela, seja formal ou informal, estará sob permanente ameaça, com iminência do risco de despejo, como se verá.

Certo é que o reconhecimento expresso de um direito sem a fixação de garantias institucionais correspondentes que obriguem sua implementação ou protejam os titulares em caso de sua violação compromete sua efetividade. Para tanto, as políticas públicas devem se voltar à realização de tal direito, compreendendo a articulação entre cidadãos, política e atividade administrativa estatal.

Para abordar a proteção do direito à moradia, é preciso pensá-lo a partir de duas perspectivas principais, a subjetiva e a objetiva. A moradia como direito subjetivo significa que cada sujeito tem a possibilidade de mover o aparato estatal em favor de sua pretensão jurídica, ou seja, de postular judicialmente seja em face de outro particular (ex.: usucapião), seja em face do Estado (ex.: concessão de uso) o reconhecimento do seu direito36. O direito subjetivo, assim, pressupõe a ordem objetiva e seu exercício deve se conformar aos valores e princípios vigentes37.

35BRASIL. Plano Nacional de Habitação. Versão para debates. Brasília: Ministério das Cidades/Secretaria Nacional de Habitação. Primeira impressão: maio de 2010. Disponível em <

https://www.cidades.gov.br/images/stories/ArquivosSNH/ArquivosPDF/Publicacoes/Publiicacao_PlanHab_Cap a.pdf >. Acesso em 12 fev 2018, p. 12.

36 LUFT, Rosangela Marina. Op. cit., 2014, p. 49.

37 CUNHA DE SÁ Fernando Augusto. Abuso do direito. 2ª reimpressão da edição de 1973. Coimbra; Almedina,

2005. p. 304-305, apud MILAGRES, Marcelo de Oliveira. Direito à moradia: direito especial de personalidade?

Tese (Doutorado). Universidade Federal de Minas Gerais, 2009. Disponível em <

http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/handle/1843/BUBD-96NMX4 >. Acesso em 16 fev 2018, p. 59.

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No entanto, é fundamental olhar para além da perspectiva individualista da moradia como direito subjetivo. Seu caráter objetivo funda uma perspectiva garantista mais ampla, deixando de ser apenas uma faculdade dos indivíduos de postulá-lo, para assumir de vez o caráter de dever jurídico estatal amplo. Decorre deste ponto de vista o dever do Estado de realizar políticas que garantam seu acesso.

1.1.2. Relação entre direito à moradia e direito de propriedade

A moradia é um direito que integra e limita o direito de propriedade. Não são incompatíveis, mas existem muitas situações, no âmbito das políticas urbanas e habitacionais, em que entram em conflito e a preponderância de um deles só pode ser estabelecida no caso concreto.

Na questão da titulação dos moradores, regularização fundiária stricto sensu, a moradia pressupõe posse - cuja própria noção histórica identifica a necessidade de o homem dominar um espaço-,não propriedade. Todavia, existe uma tradição arraigada na sociedade brasileira e nos países de cultura ocidental no sentido de interpretar que a estabilidade da relação jurídica com um bem imóvel, ou seja, a segurança da posse, somente é atingida quando se adquire sua propriedade. Certamente, este é um dos fatores determinantes para atualmente se incluir a apropriação privada – “casa própria”, ainda que através de incentivo ao autoempreendimento38 – como fase das políticas públicas de moradias para população de baixa renda39. Esta memória remonta aos financiamentos feitos pelo Sistema Financeiro da Habitação (SFH), gerenciado pelo antigo Banco Nacional de Habitação (BNH), conforme Lei n° 4.380, 1964. A casa própria é vista pela população como proteção “contra as incertezas econômicas resultantes do desemprego ou da velhice e como instrumento de aquisição de outros bens, pela maior facilidade de acesso ao crédito”40.

Uma vez que moradia também pressupõe território, lugar para morar, sua prestação atravessa uma disputa por espaço, travada com o modelo tradicional do direito de propriedade e sua herança individualista. Fernandez, citado por Alfonsin, diz que

As peculiaridades do solo urbano [...] lhe dão um status concreto de tendências inflacionárias claras e marcado senso de monopolização, que explica não só as

38 BRASIL. Op. cit., 2010, p. 138.

39 LUFT, Rosangela Marina. Op. cit., 2014, p. 50.

40ARAGÃO, José Maria. Sistema financeiro da habitação: desenvolvimento e crise do sistema. 3. ed. Curitiba:

Juruá, 2008. p. 39-40, apud MILAGRES, Marcelo de Oliveira. Op. cit., 2009, p. 63.

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enormes dificuldades históricas que sempre existiram para sua mobilização (devido à sua função social), mas a compreensão obsoleta e rançosa do conceito de propriedade urbana que em certos círculos ainda existe41.

Ainda que o princípio da função social da propriedade, reproduzido desde as Constituições editadas a partir de 1934 e em inúmeras ocasiões no texto constitucional vigente42, traga um viés socializante de conformação do direito de propriedade, esta não se afastou de sua tradição especulativa. Apropriar-se de grandes extensões de terra ou de grande quantidade de imóveis, usando-os, fruindo-os e dispondo deles com absoluta liberdade, é entendido como um “direito natural”.

O exemplo mais marcante dessa tradição está no senso majoritário, nas classes mais privilegiadas, a respeito das ocupações informais urbanas e rurais, vistas como forma de violência, injustas. Não se levam em conta outras razões que levaram a sua consolidação, como os efeitos espacialmente excludentes gerados pela acumulação privada de propriedade e respectivas práticas especulativas, que, não obstante sejam tratadas como “naturais”, são, na realidade inconstitucionais, infringindo frontalmente o princípio da função social da propriedade43. Não se considera que a dificuldade de acesso à moradia pela oferta no mercado regular foi o propulsor para que grupos de baixa renda buscassem na ilegalidade a alternativa ao desalojamento.

É necessário, portanto, regularizar formalmente as posses e propriedades nas operações de regularização fundiária e, posteriormente, não desamparar as pessoas no livre mercado de imóveis. Devem-se estabelecer estratégias que impeçam ou dificultem que a ingerência de sua lógica acumuladora e excludente, de modo que o acesso efetivo à moradia seja garantido. Essa atuação deve se pautar pela ocupação ordenada do solo, impedindo que este seja apropriado por certos núcleos de poder, inalcançável para grande parte das pessoas.

Mesmo em face da hegemonia histórica da visão proprietária, este cenário está se ampliando para a utilização de outros institutos jurídicos que não são propriedade stricto sensu, mas que se mostram jurídica e faticamente mais viáveis, pois convivem com situações que impossibilitam ou dificultam a apropriação privada, como os casos de legitimação da posse,

41FERNANDEZ, Gerardo Roger. Un nuevo modelo en la gestión urbanistica: la experiencia de la legislación valenciana. In: Revista de Derecho Urbanistico, Madrid, a. 32, n. 166, 1998, p. 5, apud ALFONSIN, Betânia de Moraes. Op. cit., 2008, p. 24.

42Arts. 5º, inc. XXIII; 170, inc. III; 173, inc. I; 182, §2º; 184; 185, parágrafo único; e 186.

43 LUFT, Rosangela Marina. Op. cit., 2014, p. 51.

Referências

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