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Baile perfumado: Encontros e desencontros das culturas nordestinas na Feira de São Cristovão

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Academic year: 2021

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Baile perfumado:

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“O nordeste é aqui” é uma frase costumeiramente apontada para identifi-car a Feira de São Cristovão, Zona Norte do Rio de Janeiro. A ideia geral parece ser que lá vivemos a perfeita celebração da cultura nordestina. De acordo com essa visão, ao dançarmos baião, comermos carne de sol e ler-mos a literatura de cordel, viveríaler-mos a repetição da Feira de Caruaru, em Pernambuco, experiência essa que seria possível devido à massiva migra-ção de nordestinos para o Rio de Janeiro ao longo do século XX.

Porém, a migração não define apenas a transferência de pessoas de um lugar a outro. Todo um conjunto de experiências de trabalho, laços sociais, produtos culturais, linguagens, entre outros elementos, é transposto de seu lugar de origem. Nesse processo, não há simples repetição daquilo que já existia na nova cidade. O contato com a cultura, o trabalho e os resi-dentes da nova cidade altera a ordem das coisas. Qualquer migração gera hibridizações, novos significados, novos conflitos, novos espaços. Mais do que a simples reprodução da cultura nordestina, a Feira de São Cristovão se tornou esse lugar de encontros, desencontros e transformação das cul-turas nordestinas e carioca.

O Campo de São Cristovão recebeu ao longo do século XX dezenas de ca-minhões e ônibus oriundos do Nordeste, os “paus-de-arara”, se tornando um ponto de encontro informal para a migração. Aos poucos, alguns dos recém-chegados decidiam esperar o fim de viagem de parentes e amigos

que estavam em outros veículos. Outros nordestinos já radicados na ci-dade do Rio de Janeiro recebiam cartas informando a data estimada de chegada de conhecidos e iam até o Campo de São Cristovão aos domingos para recebê-los.

Para matar o tédio, muitos levavam alimentos, instrumentos musicais e quaisquer passatempos que tivessem. Algumas pessoas também aprovei-tavam para fazer encomendas aos motoristas dos caminhões, sobretudo para aqueles produtos que eram praticamente inexistentes na nova cida-de. Outros montavam barracas para aproveitar a aglomeração de pessoas e ganhar algum dinheiro, formando um labirinto ao redor do Campo de São Cristovão e, um pouco mais tarde, ao lado do Pavilhão de São Cristovão. Era preciso criatividade e energia para viver em uma cidade que não ha-via se preparado para receber tantos migrantes e que, de um modo geral, demonstrava pouca paciência ou receptividade frente aos seus novos ci-dadãos.

Tinha diversas formas o preconceito pelo qual passava o migrante nordes-tino que chegava ao Rio de Janeiro nas décadas de 50, 60 e 70. Em primei-ro lugar, se identificava com a pobreza, que saía do Sertão nordestino e passava para as favelas e bairros populares do Rio de Janeiro. Em segundo lugar, estava vinculado ao pouco tempo de estudo que em média caracte-rizava o migrante que vinha de atividade rural do Nordeste. Em terceiro

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lugar, estava relacionado aos hábitos rústicos e ao desconhecimento da moda e dos códigos sociais da cidade do Rio de Janeiro. De forma pejo-rativa, colocavam-se todos os migrantes dentro da categoria “paraíbas”. No que tange à Feira, os frequentadores dos eventos no Pavilhão de São Cristovão, como o Salão do Automóvel, em nada se misturavam aqueles que procuravam os símbolos das culturas nordestinas.

Pouco a pouco, se fortalecia o discurso de uma identidade nordestina que valorizava essa origem rural e, por vezes, tornava alguns elementos pe-jorativos em base para a autoafirmação. Quando o carioca identificava o migrante nordestino como rústico, os defensores do Nordeste o tomavam como autêntico, honesto - longe da afetação e da falsidade das cidades do Sudeste. Para responder as acusações de que os nordestinos seriam violentos, vulgares e temperamentais, se colocaria que o Nordeste seria composto por um povo viril, de grande masculinidade. De ignorante, o mi-grante nordestino passaria a popular. Lampião deveria deixar de ser um simples ladrão e ser valorizado como herói. A fama de barulhento e desor-deiro seria então rebatida como um traço do bom-humor nordestino. Aproveitando-se da difusão da música e da moda de Luiz Gonzaga, a Feira de São Cristovão se ligava às danças e aos ritmos como xaxado, baião, xote, às vestimentas de couro, ao culto a Lampião. Reforçava-se o mito de origem nordestina, como, se entre as diversas musicalidades, danças,

cultos religiosos, culinárias e outros elementos culturais, apenas aqueles presentes semanalmente na Feira fossem verdadeiramente nordestinos. A cristalização dessa identidade nordestina fortalecia os laços entre os migrantes e melhorava as suas condições de sobrevivência na nova cida-de. Em entrevista ao Pasquim em 1976, Luiz Gonzaga falou sobre o refor-ço à identidade nordestina no Rio de Janeiro, assim como as resistências enfrentadas: “Naquela época eu percebia que todo o cantor regional, todo o cantor estrangeiro tinha uma característica própria. O gaúcho aquela espora, bombacha, chapelão. O caipira tinha lá o seu chapéu de palha. O carioca tinha a famosa camisa listrada. O chapéu coco. Os americanos, os cowboys. Quando Pedro Raimundo veio pra cá vestido até os dentes de gaúcho eu me senti nu. Eu digo: porque é que o nordeste não tem a sua ca-racterística ? Eu tenho que criar um troço. Só pode ser Lampião. Apanhei por causa de Lampião. Eu digo: eu vou usar o chapéu de Lampião. Aí es-crevi para a mamãe pedindo um chapéu de cangaceiro com toda urgência. No primeiro portador que ela teve, ela mandou o chapéu. Rapaz, quando eu botei o pé no palco da Rádio Nacional, só faltaram me matar de raiva. Como é que você, um mulato formidável, um artista fabuloso se passa por um negócio desse ? Reviver o cangaço, cangaceiros, fascínoras, ladrões, saqueadores ? Eu disse: não se trata disso. É outra coisa. Eu agora sou um cangaceiro musical. Aí eu fiquei com essa característica”.

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da União Beneficente. O processo de maior controle e reconhecimento da Feira é acompanhado por novos contatos entre migrantes e nativos e en-tre os próprios migrantes.

A Feira passa a ser realizada com mais regularidade, ao redor do Pavilhão de São Cristovão. Para garantir essas novas estabilidade e identidade, era preciso que a Feira também garantisse melhor acesso aos produtos (comidas, artesanato, roupas, instrumentos etc.) que antes chegavam por encomenda diretamente do Nordeste, via ônibus e caminhões, junto com os migrantes. Para tanto, é preciso que ao menos uma parte de tudo aquilo que é consumido seja encontrada nas proximidades da cidade do Rio de Janeiro. Conta-se com a instalação de mestres artesãos, comerciantes e agricultores na Região Metropolitana ou em áreas do interior do Estado que fossem mais rapidamente mobilizadas pelos feirantes. Nesse proces-so, parte dos produtos da Feira passa a vir da Baixada Fluminense, e não mais do Sertão Nordestino.

Para cada mudança, os gestores da Feira definiam novas exclusões: pes-soas, hábitos, objetos. Ao finalmente promover uma gestão compartilha-da entre o poder municipal e as instituições compartilha-da Feira, a partir de 1993, ex-cluíram feirantes e costumes que foram considerados impróprios: a venda de carne exposta ao ar livre foi limitada, por razões sanitárias. Foram li-mitadas a presença de jogos de azar e o porte de armas brancas, assim A Feira se constituía então no lugar de encontro dos “paraíbas” e não era

então muito frequentada pelos cariocas que não possuíam laços familia-res com o Nordeste. Não era incomum que os feirantes fossem persegui-dos pelo poder público, por atos de desordem ou de mau uso persegui-dos espa-ços públicos. No Diário Oficial publicado no dia 3 de Janeiro de 1957, por exemplo, encontramos registro de duas multas aplicadas ao feirante Alci-des Pereira da Silva por estacionar seu veículo em lugar proibido e “atra-vancar o trânsito de pedestres com uma mala placa n.° 4.706-56, à feira de São Cristovão, às 9:05 horas (...) tendo as peças fora da mesma em cima do passeio”.

Obter o reconhecimento oficial do poder público não era tarefa fácil. Era preciso quebrar a imagem da Feira como lugar violento, sujo e pobre, ou, na visão mais preconceituosa, de que era um lugar desprovido de cultura. O primeiro governante a agir em prol da Feira foi C. Lacerda, Governador da Guanabara, que, em 1961, recomenda a criação de uma associação de feirantes. Desse estímulo surge a União Beneficente dos Nordestinos no Estado da Guanabara, a primeira associação que tenta organizar a Feira, re-tirando os produtos do chão, taxando os feirantes e estabelecendo regras. Porém, há conflitos por essa concentração de poder. Na década seguinte, cria-se outra instituição, a Associação de Proteção ao Nordestino no Es-tado do Rio de Janeiro, para reunir os descontentes com a administração

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como qualquer exploração comercial desses costumes. A Associação de Proteção ao Nordestino no Estado do Rio de Janeiro ganhou um lugar cen-tral nesse novo projeto, recebendo acusações de ter afastado muitos da-queles que faziam parte de outras associações. Ada-queles que não queriam ou que não podiam pagar as novas taxas também foram colocados de lado. Nota-se também a presença cada vez maior de um público heterogêneo, no qual cariocas sem ascendência nordestina, turistas brasileiros e es-trangeiros e descendentes de nordestinos participam da Feira. Cada um desses perfis apresenta interesses, horários e práticas diferentes do es-paço da Feira, o que altera significativamente o seu sentido original. Ain-da que os encontros e desencontros dessas pessoas tenham importância para o reconhecimento da diversidade das culturas nordestinas e de sua relevância para a vida cotidiana na cidade do Rio de Janeiro, é preciso des-tacar que a mudança de público acarreta em perdas dos sentidos originais da Feira.

Desde 2003, a Feira deixou de ser o labirinto informal construído pelas barracas e passou para dentro do Pavilhão de São Cristovão, sob influên-cia direta da Prefeitura do Rio de Janeiro. No lugar das linhas curvas e be-cos definidos pelas barracas no passado, a nova Feira tem um plano orto-gonal, retilíneo, com box de tamanho regular para cada estabelecimento. Foram criados banheiros públicos e estacionamento, assim como o acesso

à rede de energia foi regulado. No entanto, ter um lugar na Feira se tornou mais caro e mais difícil.

Uma série de representações culturais que jamais tiveram uma grande participação na Feira ganharam novo lugar, devido ao seu apelo exótico, turístico e comercial. É o caso do Maracatu, do Bumba Meu Boi e do Frevo, praticamente desconhecidos da Feira no passado, ou da cozinha baiana, ou ainda das vendas de produtos relativos aos cultos afro-brasileiros. Para ampliar a agenda cultural, aumentar a inspiração nas bases culturais nor-destinas e potencializar o aproveitamento do potencial turístico, a Feira é transformada.

De um lado, a entrada de novas pessoas, novas musicalidades e novas culi-nárias ameaçam transformar a Feira de tal forma que se torne difícil reco-nhecer a origem nordestina. A musicalidade brega, com suas hibridizações entre a música pop estrangeira e os ritmos nordestinos, com a entrada de outros instrumentos e temas, parece diminuir espaço reservado ao baião, por exemplo. O mesmo é válido para as pizzarias que ganham lugar entre as tendas e restaurantes inspirados na cozinha nordestina.

Por outro lado, a cristalização de uma base cultural que siga estritamen-te as representações culturais do sertão nordestino de dezenas de anos atrás ameaça diminuir suas conexões com as novas gerações. Isso poderia

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enfraquecer o seu apelo popular, diminuir lentamente o seu interesse e se transformar em cultura morta, sem laços sociais fortes. Hoje, a região Nordeste passa por um momento de urbanização, o que afeta diretamente as suas representações culturais e os seus laços de sociabilidade.

A Feira vive então tanto o risco do novo, de se tornar superficial e disso-ciada de suas raízes, quanto o risco do velho, de se tornar obsoleta. Expe-rimentá-la, hoje, significa tomar contato com esse conflito.

Fonte: http://www.cesarmaia.com.br/2010/05/feira-de-sao-cristovao-centro-luiz-gonzaga-de-tradicoes-nordestinas/

origem dos migrantes para São paulo e rio de Janeiro (1960-1980)

NOTA: Nordeste Setentrional: Maranhão e Piauí; Nordeste Central: Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas; Nordeste Meridional: Sergipe e Bahia;

Extre-mo Sul: Santa Catarina e Rio Grande do Sul; Rio de Janeiro: atual estado. FONTE: BRITO, 2000.

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