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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO MESTRADO EM EDUCAÇÃO. Renata Fernandes Ramos

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE FACULDADE DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO MESTRADO EM EDUCAÇÃO

Renata Fernandes Ramos

CORPO E IMAGEM COMO HETEROTOPIAS: mortificações e imortalizações do cotidiano escolar

NITERÓI- RJ 2017

(2)

RENATA FERNANDES RAMOS

CORPO E IMAGEM COMO HETEROTOPIAS:

MORTIFICAÇÕES E IMORTALIZAÇÕES DO COTIDIANO ESCOLAR

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Educação.

Linha de Pesquisa: Estudos do Cotidiano da Educação Popular (ECEP)

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Carmen Lúcia Vidal Pérez

Niterói 2017

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R175 Ramos, R. F.

CORPO E IMAGEM COMO HETEROTOPIAS: mortificações e imortalizações do cotidiano escolar / R. F. Ramos – 2017.

69 f. ; il.

Orientadora: Carmen Lúcia Vidal Pérez.

Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal Fluminense, Faculdade de Educação, 2017.

Bibliografia: f. 67-69.

1. Corpo humano. 2. Pesquisa com o cotidiano. 3. Heterotopia. I. Pérez, Carmen Lúcia Vidal. II. Universidade Federal Fluminense. Faculdade de Educação. III. Título.

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Corpo e imagem como heterotopias:

mortificações e imortalizações do cotidiano escolar

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Educação.

BANCA EXAMINADORA

________________________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Carmen Lúcia Vidal Pérez (orientadora - UFF).

_________________________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Anelice Astrid Ribetto (UERJ).

_________________________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Martha Lenora Copollilo (UFF).

_________________________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Nivea Maria da Silva Andrade (UFF).

_________________________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Kezia Rodrigues Nunes (UFES).

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Para meu pai Luiz, luz,

E para minha mãe Aparecida, aquela que aparece.

Juntos são bem mais que apropriados.

Para meu irmão, Ricardo;

minha prima-irmã, Michelle;

minha afetuosa irmã, Juliana.

E para Diego e Thomaz, minhas síncopes favoritas.

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AGRADECIMENTOS

“[...] Explico-vos o que quero dizer com a palavra “agradeço” [...] E vinha-me à cabeça o tratado de gratidão de São Tomás de Aquino. Todos aqui saberão que o tratado de gratidão de São Tomás de Aquino tem três níveis de gratidão. Um nível mais superficial, um nível intermediário e um nível mais profundo. O nível mais superficial é o nível do reconhecimento, do reconhecimento intelectual, o nível cerebral, o nível cognitivo do reconhecimento. O segundo nível é o nível do agradecimento, do dar graças a alguém por aquilo que alguém fez por nós. E o terceiro nível mais profundo do agradecimento é o nível do vínculo, é o nível do sentirmos vinculados e comprometidos com essas pessoas. E de repente, descobri uma coisa na qual eu nunca tinha pensado. Que em inglês ou em alemão, se agradece no nível mais superficial da gratidão. Quando se diz “thank you” ou quando se diz “zu danken”, estamos a agradecer no plano intelectual. Que na maior parte das outras línguas europeias quando se agradece, agradece-se no nível intermediário da gratidão. Quando se diz “merci” em francês, quer dizer “dar uma mercê”, dar-lhe uma graça. Eu dou-lhe uma mercê, eu estou-lhe grato, dou-estou-lhe uma mercê por aquilo que me trouxe, por aquilo que me deu. Ou “gracias” em espanhol, ou “grazie” em italiano. Dou-lhe uma graça por aquilo que me deu e é nesse sentido que eu lhe agradeço, é neste sentido que eu lhe estou grato. E que só em português, que eu conheça, que eu saiba, é que se agradece com o terceiro nível. O terceiro nível, o nível mais profundo do tratado da gratidão. Nós dizemos “obrigado”. E obrigado quer dizer isso mesmo. Fico-vos obrigado. Fico obrigado perante vós. Fico vinculado perante vós. Fico-vos comprometido a um diálogo [...] agradecendo-vos a vossa atenção. Fico obrigado, vinculado a continuar este diálogo e a poder contribuir na medida das minhas possibilidades para os vossos projetos, para os vossos trabalhos, para as vossas reflexões, para o vosso diálogo. E é esse diálogo que eu quero e é neste preciso sentido que eu vos digo: muito obrigado.”

Às professoras da banca examinadora Dr.ª Anelice Ribetto, Dr.ª Martha Copollilo, Dr.ª Nívea Andrade e Dr.ª Kezia Nunes, por aceitarem o convite e constituírem a banca; pela leitura atenta e cuidadosa, contribuindo de maneira tão significativa neste processo de travessia.

À Universidade Federal Fluminense. Aos funcionários da secretaria e apoio.

Aos professores do Programa de Pós Graduação da Universidade Federal Fluminense, com os quais tive o privilégio de ter aulas: Dr.ª Maria Teresa Esteban, Dr.º Jorge Najjar, Dr.ª Maria de Fátima Costa de Paula e professor Dr.º Paulo Carrano.

Aos colegas e amigos do grupo de Orientação coletiva: Helen Ferreira, Aline Cântia, Adelino Assane, Sueli Laranja, Uelinton Fonseca, Márcia Fernanda, Alessandra de Castro, Marcele Barbosa, por todos os encontros, sempre responsivos, potentes e afetuosos.

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Mais uma vez, Helen Ferreira e Aline Cântia, pela bela amizade, por todos os momentos compartilhados e pelos que ainda estão por vir. Aos meus queridíssimos colegas de turma Vanessa Blaudt, Fabiano Soares e Ticyane Madeira, por todos os momentos compartilhados. Aos colegas do grupo de estudos e pesquisa GEPEMC – Escola, Memória e Cotidiano.

Aos meus alunos e alunas por me ensinarem a cada dia sobre ser novidade para o mundo.

Aos colegas e equipe de direção da Escola Municipal Grécia, por todo carinho e incentivo. Aos colegas e equipe de direção da Escola Municipal Alberto Francisco Torres, especialmente Thereza Ribeiro, pela amizade e por todo apoio que me deu durante o curso; Mariana, Zezé e Luciano, que deslocaram meu olhar nesta pesquisa em nossas conversas. Aos colegas e amigos do grupo de estudos e pesquisa ELAC – Educação Física Escolar, Experiências Lúdicas, Artísticas e Corporeidade, minha primeira inserção na pesquisa. Professora Dr.ª Rosa Malena, quem primeiro me fez perceber a importância de ser boa ouvinte. À Lídia Santos Arruda e à Jéssica Carvalho, que fazem parte de minha vida de diversas formas e me apresentaram um dos maiores desafios no percurso desta pesquisa.

Aos meus amigos e à minha família por compreenderem as minhas ausências como escolhas, por estimularem minha escrita e meus processos de formação continuada.

Muito obrigada Thomaz Baldow, por me proporcionar diariamente o exercício da alteridade e a desorganização do meu pensamento; por me trazer consciência das minhas percepções e por ter me apresentado o cenário da música independente brasileira, que me provoca e sensibiliza, que me altera na busca de meu próprio corpo.

Ao campo dos Estudos do Cotidiano da Educação Popular pela árdua reafirmação de seu compromisso com a ética. À minha orientadora professora Dr.ª Carmen Pérez, por me apresentar leituras que me modificaram e continuam me modificando; por sua escuta instigante, atenta e generosa, pelas falas impactantes e potencializadoras; por tratar com tanta seriedade e delicadeza meus deslocamentos literários sem jamais me fixar à sombra sequer de mim mesma. E como se isto não bastasse, foi também quem me enviou o vídeo transcrito no início destes agradecimentos com a belíssima fala do professor Antônio Nóvoa.

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Um dia eu vou me perder Eu vou entrar fundo

Eu vou atravessar a fronteira mais escura do mundo Um abismo nublado pode estar tramando algo

Inimaginável Inimaginável

Eu vou fazer turismo dentro do próprio organismo Eu vou me aventurar no meu centro

Não posso fugir de mim Se só tenho saídas pra dentro Eu vou me aventurar no meu centro Não posso fugir de mim se só tenho saídas... (“O inimaginável”, música de Bernardo Bravo).

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RESUMO

As mortificações e imortalizações constituem uma relação paradoxal que nutre o movimento tenso do corpo e das imagens que regulam e emancipam sujeitos durante o processo da vida escolar. Rememorados por cinco professoras da Rede Básica de Ensino - sendo uma delas eu mesma - os afetos que foram sufocados, furtados ou evidenciados, refletem e emolduram corpos plenos de espaços e vazios, se inscrevendo na carne, nos poros, nos olhos. O desencadeamento das potências aponta o rumo do texto, que aparece de forma tecnicamente desordenada segundo o discurso da ciência clássica. A desordem não é intencional. Intencional é mantê-la. Surge assim o corpo de um texto que se pretende e se assume corpóreo. Contribuem para esta teia de afetações diferentes produções, perdas, buscas, imagens, histórias e (des) encontros. São poetas, compositores, lugares e autores como Michel Foucault, Gilles Deleuze, Felix Guatarri, Friedrich Nietzsche, Jacques Rancière, Roland Barthes, Antonio Candido, Bernardo Bravo e Clarice Lispector.

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RESUMEN

Mortificaciones y imortalizaciones son una relación paradójica que alimenta el tenso movimiento del cuerpo y de las imágenes que regulan y emancipan la persona durante el proceso de la vida escolar. Recolectadas por cinco profesores de la Red Básica Enseñanza - sendo yo mismo una de estas - las emociones que fueron asfixiadas, robadas o reveladas, reflejan y enmarcan en los cuerpos los espacios vacíos o llenos de espacios, firmados en la carne, en los poros, en los ojos. La activación de la dirección del texto aparece de una forma tecnicamente desordenada de acuerdo con el discurso de la ciencia clásica. El trastorno no es intencional. Intencional es mantenerlo. Esto plantea el cuerpo de un texto que desea ser corpóreo. Colaboran a este enmarañado de afectaciones diferentes producciones, perjuicios, búsquedas, imágenes, historias y desencuentros: son poetas, compositores y escritores, como Michel Foucault, Gilles Deleuze, Félix Guattari, Friedrich Nietzsche, Jacques Rancière, Roland Barthes, Antonio Candido, Bernardo Bravo y Clarice Lispector.

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SUMÁRIO

Resumo ... 07

Nota (-me)... 11

Introdução... 13

I . MORTIFICAÇÕES E IMORTALIZAÇÕES ... 21

Síncope: Giz sem crime ... 23

O eutrófico, os espelhos e as lacunas... 25

Síncope: Pactos silenciosos... 29

II. CORPO E IMAGEM COMO HETEROTOPIAS... 38

Febre, delírio, fissura ... 39

Histórias crônicas (...) ... 45

Síncope: eu vou me aventurar no meu centro... 47

(...) e anacrônicas ... 50

Os inimagináveis outros ... 54

Um dia eu vou me perder ... 60

Incompletude infinita ... 62

Noto-me ...66

Referências bibliográficas ...67

Referências webgráficas ...69

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LISTA DE IMAGENS Imagem 01 ... 24 Imagem 02 ... 26 Imagem 03 ... 49 Imagem 04 ... 59 Imagem 05 ... 66

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Nota (-me)

No início, havia um quase morto. Em espasmos, contraía e relaxava. Todo seu sangue circulava por detrás de suas retinas. E ali, bem guardado, não deixava fugir nada. Conectado a um par também permitido, colado ao que não fora banido. Iam e vinham, tanto fazia se era comigo. Eu era quase só isso. E já não seria pouco. Mas eis que por obra da probabilidade, destino e mais dois loucos, saía dos muros de sufoco e me era, como eu me era... E me sonharam bailarina, mas o dinheiro não sobrava. E me quiseram em medicina, como

todos bons pais sonhavam. Fui para o hospital, aspirante à

enfermeira, fazer remendo com sobras. E todo dia, antes e durante, me segurava, para depois da hora me chorar inteira. Desisti para encontrar um querer menino, mal sonhado, forçado a ficar de lado. “O que você vai ser quando crescer?” Escapou

incontrolável da boca: Professora! Respondi sem saber que já

sabia. A repressão de quem se esforçava noite e dia me convenceu a arquivar aquela ideia boba, de uma brincadeira louca de ser mais uma na família.

O tempo dessa história dá saltos em desacordo. Chronos, esse deus louco, silenciou oito anos do corte em assepsia. Alternativa escolhida escondida,fui a primeira da família a ingressar em curso superior. Bacharel e licenciada, tinha escapes e poucos planos. Mal resolvida, parecia da vida um desses enganos. Não sabia se era ainda atleta ou estudante, até que fui vista. “Futura professora, gostaria que fizesse a prova para a monitoria da minha disciplina: Didática e prática de ensino.” Talvez tenha sido o riso do sangue de meus olhos que tenha feito com que fosse vista. E ser vista mudou tudo. E isso deu voz ao mudo, inflamou o corte fechado à força, a febre procurava o que se recusava ser morto: ouvia minha

própria voz aos nove de idade ecoando ‘Professora!’,

‘Professora!’, ‘Professora!’. Foi a professora Trindade quem perguntou. A professora do quinto ano, ano em que tirei as amígdalas de minha faringe e comecei a deixar de ser a joelhuda que não conseguia comer.

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Eu queria ser como ela e como tantas outras que mudavam minha vida de menina. Que me defendiam, que me incitavam. Eu queria não ser como outras. As que me reprimiam, que me humilhavam pelas inúmeras humilhações de outros, as que fizeram com que me acreditasse ser pouco. Pouco dotada de disciplina e inteligência escolar, sem saber que isso não era necessariamente algo ruim. Eu queria ser eu. Eu queria ser. A que depois da hora da escola, na rua de casa, jogava, brincava, brigava, sentia medo, alegria, raiva, dor. A que me sentia. A que treinava na piscina e sentia a água dar leveza ao que anuviava. Eu queria ser eu. Um eu que eu ainda não era, com quem ainda hoje me desencontro, esse eu que se faz um ponto sempre à frente e me faz caminhar. São sempre muitos inícios. E ao primeiro indício, um corpo ainda não morto é o que há.

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Introdução

Voltar à escola no papel de docente trouxe grandes perspectivas e a ideia antiga de trabalhar com a educação. Política - era o que eu entendia. Tal compreensão tem marcos como justamente o primeiro dia de trabalho, quando o então diretor solicitou que a aula de Educação Física acontecesse dentro da sala de aula para que a ordem fosse mantida. As portas, com pequenas janelinhas de controle, registram ainda na memória o enquadramento de seu rosto me vigiando incrédulo, ao ver todos os alunos e alunas de pé e as cadeiras amontoadas pelos quatro cantos. Não houve réplica, mas inúmeras novas solicitações. Algumas burladas astuciosamente, outras sem escape. Justamente estas latejam minha história. Guardei o luto.

As conversas entreouvidas e as práticas relacionadas à necessidade da Educação Física como prêmio ou castigo; a naturalização em ouvir primordialmente as disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática como importantes ao currículo e à formação escolar; o corpo compreendido como o ‘sem espaço’ no momento de pensar; as atividades lúdicas, recreativas e esportivas como o momento de ‘não pensar’; as culturas locais valorizadas apenas em pedaços de papel a serem arquivados ou cristalizados em festas repetidas. Estas práticas naturalizadas pelo corpo discente e docente, inquietavam, incomodavam, me moviam a me questionar não sobre a Educação física, mas sobre a Educação em uma questão central que persiste:

Como a escola pode ser uma via de emancipação se os sujeitos que a constituem revelam-se espectadores de si mesmos e acordam com os mecanismos que regulam sua (in) existência?

Esta questão teve início no curso de Especialização em Educação Física Escolar pela UFF em 2012 e inicialmente delimitou-se a relacionar corpo, cultura e alteridade como mecanismos de regulação e emancipação social. Duas perguntas capciosas de minha então orientadora ao fim de um texto inicial me deslocaram e provocaram uma de tantas crises, denotando, como toda, que havia algo que já não servia: afinal, qual o seu foco, sobre o que

você escreve? Duas palavras. Quatro meses e um pedido de prorrogação. Seu olhar

indecifrável não me dava pistas, mas a professora Dr.ª Rosa Malena deve ter vibrado intimamente com minha fixidez enfim desestabilizada. Afinal, alguns meses antes eu havia definido com toda tranquilidade o corpo como instrumento. E eu já não sabia, já não tinha certeza. Era um primeiro e irreversível deslocamento para a pesquisa com o cotidiano.

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O fato de trabalhar em uma escola na zona norte da cidade do Rio de Janeiro e outra no centro de Niterói sempre me movimentou não apenas geograficamente, mas no pensamento. Passar pela Ponte Rio - Niterói, seus engarrafamentos que permitem contemplar uma das mais belas paisagens, dá tempo para pensar. O movimento entre duas escolas tão diferentes e as influências que eu levava e trazia, fazia com que me sentisse em permanente travessia. Continuar o estudo destas questões se tornou algo indispensável, pois sentia um vazio ao fim do prazo por concluir burocraticamente algo que sabia ser provisório, mas precisava de uma pausa.

O curso de especialização me apresentou na leitura de autoras dos Estudos do Cotidiano a possibilidade de uma escrita viva, (po) ética, literaturizada e sim, acadêmica. Nas aulas de temas de pesquisa, já no curso de Mestrado, comecei a compreender os Estudos do Cotidiano da Educação Popular como movimento político e epistemológico. A palavra não mais como um grunhido oco. Uma palavra pulsante, que constitui e é constituída por um corpo multifacetado, sensível, visceral. Corpo que põe em xeque a linearidade das experiências controladas e se lança em busca de novos espaços para expressar, para se (des) construir, para se (re) criar. Um corpo cotidiano plural e sem aspas.

Iniciei a pesquisa em uma das escolas tentando localizar as relações entre Corpo e Educação nas falas das professoras com o intuito de buscar caminhos sobre minha questão inicial. Contudo, ao propor uma conversa que visava revelar legítimos sujeitos – e não objetos –, minhas reflexões gaguejavam inseguras e eu não sabia bem por quê. A sensação de estar deixando algo importante à margem para revelar os resultados das minhas dúvidas iniciais não me parecia honesto com o processo da pesquisa, não me parecia honesto com o campo de confluência, tampouco comigo mesma.

Naquela conversa havia uma questão que não poderia ser deixada de lado: na busca pelas relações entre Corpo e Educação, as lembranças centralizam o corpo nas aulas de Educação Física. Conversa que trago nas Histórias crônicas - crônicas de crônico, como doença que persiste, inflama e se aquieta, mas não se resolve.

Mais adiante, perceberia que o incômodo que me travava estava contido em uma (nada) breve observação de uma das professoras que havia participado da conversa ao se deparar com um volume de papéis que eram textos que eu leria após o expediente, e ela achou que eram as perguntas da pesquisa. Isto aconteceu antes da gravação ser iniciada, o que não

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limita, porém, a pesquisa ao espaço de tempo entre o rec e o stop, e levanta uma questão sobre os instrumentos utilizados nas pesquisas.

A pesquisa foi se mostrando como algo a ser inventado e reinventado, sem cessar. Desta forma, os pontos abordados inicialmente a partir desta conversa compõem alguns dos objetivos desta pesquisa: as histórias dos corpos nas escolas; o corpo tratado como um erro, conformação ou liberdade; as regulações e os possíveis movimentos para emancipações após reflexões destas histórias; metodologias de pesquisa que convidem os sujeitos a protagonizarem suas próprias histórias.

Eu não queria apenas possíveis respostas, mas novas maneiras de perguntar e compreender. A busca pelo real (o que é real?), pelo espontâneo, a busca pela pesquisa com o cotidiano e não sobre. Estaria pronta para perceber o incapturável sem sucumbir à tentação de cristalizá-lo? Além disso, as questões se ampliavam: afinal, sobre o que eu escrevo: sobre como esconder algo para depois eu mesma encontrar? Mais: para quê escrevo? Para quem? Ou com quem?

Situei a mim mesma como professorapesquisadora. Trabalhando, cursando disciplinas, elaborando o texto da pesquisa, esta decisão foi fundamental, pois não poderia me colocar à margem e falar sobre algo que componho e também sou composta. Este era um exercício que havia feito na primeira crise que tive na especialização e me ajudou a compreender o cotidiano como acontecimento, como algo que escapa de meu controle e me afeta, me altera.

O ir e vir ganhava a cada semana novos contornos com as crises metodológicas, com direito a trilha sonora para o “drama” de ter encontrado o que procurava para abordar minha questão e ainda assim me sentir insatisfeita. Passei a ouvir muita música independente. Em uma das pastas, ouvi uma música¹ que continha algo que incomodava, mas eu não sabia bem por quê. Parecia um desencontro, um erro na entrada da vocalista no tempo da música. Em uma conversa informal e totalmente despretensiosa à mesa com o músico que me presenteou com as faixas, comentei sobre a música e o quanto havia achado estranho seu início. Ouvimos.

Ah, isso!? É uma síncope! ____________________________

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Talvez tenha sido apenas um segundo de silêncio, mas a voz que me explicava o

assunto se afastava e aproximava. Eu ia a um desencontro súbito. Eu iria reencontrá-la, tinha certeza. Mas levaria ainda muitos passos.

A organização do meu tempo entre duas cidades e o curso exigiu atenção especial das duas coordenações em função de meus horários de estudo, pois o pedido de licença para estudos fora indeferido por uma das Secretarias de Educação.

Tempo. Sempre o tempo. Peço desculpas se repetirei a palavra muitas vezes.

Na rede municipal de Niterói, os tempos complementares são de produções coletivas e acontecem todas as semanas, o que não ocorre na rede municipal do Rio de Janeiro, organizada até o ano de 2016 para que o coletivo fosse rarefeito e cada um tivesse seus horários de planejamento individualmente. Com uma escola grande e a dificuldade de alocar diversos professores e professoras, ocorre muitas vezes o excesso de tempos complementares, as conhecidas janelas no horário. Foi o que aconteceu com o meu horário de trabalho na rede do Rio de Janeiro no início do ano letivo de 2016.

Estas janelas, de início, me fizeram achar que estaria perdendo tempo, mas foi justamente neste revés que residiu meu trunfo para a pesquisa. À procura por brechas de espaço em que pudesse estudar, fui para a sala de professores, para a sala de leitura, para salas que não estavam sendo utilizadas e até mesmo para a garagem da escola em busca de quietude. Tudo que consegui na maioria das vezes foi passear pela escola. Nos jardins, onde é comum ficarem alunos e alunas à espera de aulas extracurriculares no anexo Núcleo de Artes foi onde encontrei não exatamente a quietude, mas finalmente o lugar. Encontrei a brecha entre o aqui e o ali. Vislumbrei a fenda.

É uma síncope. Naquele momento, mais uma vez meus olhos pairaram num vazio e

eu sentia algo precioso para minhas reflexões anacrônicas. Eu havia me encontrado com o meu tempo, e sentia que disso podia ter certeza.

A síncope é a perda abrupta de consciência e tônus muscular, seguida de recuperação completa e rápida. Também conhecida simplesmente como desmaio – era apenas o que eu sabia. Musicalmente a síncope trata do deslocamento da acentuação rítmica do tempo forte para o tempo fraco da música. O tempo forte é o pulso forte da marcação rítmica, onde em tese, deveria se encontrar com início da letra, por exemplo.

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Neste texto, me aproprio do duplo significado atribuído à palavra síncope que representará nas linhas, entranhas e entrelinhas, a ideia de síncope do corpo que perde e retoma a consciência de maneira abrupta; e de síncope como tempo musical, que ao se deslocar e desencontrar do previsto constrói sua identidade na desobediência.

Risco a palavra em papel sem pauta, sem ordem, para além do tempo espaço entre rec e o stop. O corpo do meu pensamento é cronologicamente desorganizado. Escrevo este texto seguindo os passos da potência e não apenas da lógica. Escrevo em síncope, como quem perde e retoma a consciência, consciência de um corpo que se sabe, que se sente adequado às suas próprias ideias; ou forjada, de um corpo que em alguns momentos se limita porque aprendeu a se ausentar de si mesmo, de um corpo que está sempre em um processo de afirmação de passado, e não de presente ou futuro. Escrevo como quem produz uma harmonia própria. E organizar a potência seria desobedecer ao movimento e me render a uma estética estática que produz o esperado - inautêntico, porém.

Assim, a síncope é um espasmo de tempos, corpos, epistemologias, imagens e histórias que, ao se perderem da linearidade prevista, se lançam em múltiplas direções na expectativa de verdadeiros encontros e experiências. Faz as precipitadas polarizações aparentemente esquizofrênicas se localizarem como opostos constituintes de um elo inominável presente nas impressões e expressões humanas, bem como do próprio humano que convive em meio a contradições internas, quiçá eternas porque humanas.

Estruturado em duas partes, apresento na primeira a mortificação e a imortalização, que trazem o corpo em vias de morte: regulamentado como inimigo da razão, regulado socialmente através dos micropoderes presentes nas relações, corpo execrado pela moral que diz não, encharcado de pecado pela igreja. O corpo mortificado é aquele que não mandaram matar, mas ao qual não é permitido viver em sua potência, pois, perturbadora, é inimiga da certeza. Um corpo treinado, silenciado, vestido da utilidade indexada a cada um de seus órgãos. Neste corpo quase ausente, a presença adormecida da lembrança da pequena palavra engolida, do movimento desautorizado, do sentido minimizado, é o próprio processo que constitui a ação de mortificação. Castra e costura lá dentro um pretenso vazio.

O processo tingido de sangue se debate, é de um vermelho mapeado nos olhos, preso durante o processo que inflama e delata a mortificação do corpo negado, potência concentrada naquilo que era permitido obedecendo à ordem dos corpos: olhar, ver em toda sua potência ainda não detectada como perturbadora. Escreve em vermelho – vivo. Inscreve com os olhos.

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Registra para além do permitido, guarda o inconfessável. E o sangue circulando neste pequeno espaço, espera por uma fissura, aguarda um movimento que produza uma rachadura, uma pequena lacuna, um espaço para o eco seja sentido e ouvido. Um diálogo tenso entre o emudecido e o revelável. Tais ecos, imortalização.

Estas expressões sincopadas, esses encontros do tempo real com o pulso que afeta são desenhados por metáforas, memórias, imagens. A ideia não é apenas encharcar o solo da compreensão daqueles que se proponham a ler o texto, mas utilizar estas linguagens para tentar formular o corpo de ideias que muitas vezes se aproxima demais do intraduzível às palavras escritas.

Os ensaios se apresentam entre a literatura e a filosofia, como uma forma de pensar o mundo. O pensamento como experimentação, como experiência. Marcados pelo tempo presente, pelas críticas, pela marca e presença de autoria. Pensamento que não se basta nos movimentos autorizados e propriedades fixas. Independentes como as músicas que tenho ouvido, se assumem em seu caráter efêmero, expressam pensamentos profundos do tempo presente, sem compromisso e intenção de se fundarem na lógica da detenção da verdade. O ensaio gagueja, duvida de métodos.

A música me trouxe a síncope do desencontro dos pulsos. Aparecem aqui não para fundar um modelo de organização do pensamento, mas para trazer os sentidos que despertaram em mim outros movimentos na pesquisa. A síncope me trouxe música, a música me traz a mim.

Quanto às imagens, tratarei muito mais de sua filosofia. Não que não possam se materializar, pelo contrário, mas não aparecerão de maneira ilustrativa. Em verdade, foram as imagens os primeiros exercícios que fiz e percebi que poderia ser uma pesquisadora dos estudos com o cotidiano, da pesquisa com o acontecimento e no acontecimento a percepção da experiência, que só assim se configura porque me afeta. Foram as imagens que provocaram associações, lembranças, deslocamentos, conversas que tive e tenho comigo mesma, conversas de uma outra temporalidade, que inscrevo em um “diário corporal anacrônico” que não existe em outro lugar senão em meu corpo, que está neste momento grafada aqui, porque meu corpo também é feito de palavra. Ressignificação.

Foram as imagens que produziram primeiro uma forma de pensar outra - uma forma que se reorganiza e se recusa ser chamada de equívoco simplesmente por não pertencer ao

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hegemonicamente construído. E são os estudos com o cotidiano que respaldam que meu jeito de pensar, de ser e estar no mundo não poderia ser deslegitimado.

O contrário também acontece: as palavras provocam imagens pensamentos. E deste modo, a imagem se apresenta como um acontecimento, como algo que fere, interfere, que transforma minhas reflexões. As imagens aparecem em momentos que as palavras seriam inúteis, ou talvez pobres. E aparecem sem legendas, pois nisto também reside uma questão político epistemológica: a abertura a outras interpretações, a legítimos encontros.

Uma das possibilidades da imagem sem as palavras e em relação com o outro é a capacidade que ela tem de ampliar as interpretações. Portanto, é uma escolha consciente e intencional não colonizar o destino das imagens escrevendo o que vi e, fatalmente, o que deve ser visto direcionando o olhar como um jogo de certo ou errado, induzindo quem vê a não ver com seu próprio corpo. A ausência de legenda é um risco assumido por construir lacunas, por produzir espaços onde o pensamento possa transitar. Ou simplesmente parecer espaços vazios.

Esta pesquisa acontece entre 2015 e 2017 – o período do curso; no centro geográfico da cidade de Niterói e no bairro da Vila da Penha na zona norte da cidade do Rio de Janeiro. Estes lugares e tempos se alargam, sincopam, convocam e são convocados pelo que se faz presente.

Sujeitos como sujeitos em relação ativa com a pesquisa através de conversas. Sujeitos que estranharam a metodologia, autorizaram a pesquisa sem revelar mais que suas histórias e me apresentam pontos de vista inesperados, sujeitos inesperados, inimagináveis outros. A palavra que se assume como corpórea, humana, tátil, como fonte de elevação de potências, como a própria potência e não o seu aniquilamento. O corpo que se veste de palavra para ser lido, tocado, experimentado.

Onde estaria este corpo, esta palavra, este toque?

Expressões latentes convocam na segunda parte do texto a possibilidade da presença do lugar de convivência do contraditório entre mortificação e imortalização, pelo incansavelmente perseguido onde o imaginário acontece, onde se projeta o utópico. Onde a potência de meu corpo acorda em sonho e encurrala meus silenciamentos que me aprisionaram e o próprio segredo pode libertar.

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As heterotopias são os outros lugares para além da utopia, são os espaços concretos onde os contraditórios convivem. O conceito, a priori geográfico e cronológico, percorrem neste texto o corpo e a imagem, que se apresentam como as próprias heterotopias. As utopias primeiras, contraditórias, que se abrem e se fecham, que se modificam, aparecem e desaparecem.

O corpo e a imagem, essas ausências de verdades únicas, seriam os próprios lugares

outros, impregnados e impregnando (de) diferentes espaços e convivendo em suas

contradições que não lhes cessam de alterar.

Escrevo porque preciso, escrevo porque as palavras de meu corpo foram engolidas por um corpo controlado e controlador que fora forjado em mim. Escrevo porque preciso. Escrevo com meu corpo, com minha memória, com o novo encontro de histórias. Com o sangue que foi detido em meus olhos, todo o restante do corpo contido, imobilizado, costurado, silenciado.

Escrevo porque preciso me livrar do muito que foi encarnado em mim. Preciso me tornar livre, expressar o que vivo e que vivi. E se meu movimento externo é escasso, pouco, raso, é porque ainda continua concentrado, mas há muito inquieto, se debatendo para se mostrar, mas nunca sair.

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I

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m quase corpo se culpa. Um quase morto não se vela, nem se revela a olhos pouco atentos. Sincopado, tem espasmos de vida em momentos de corte, tem traços de morte e se finge de vida. O corpo: onde minha ficção é real. Onde não sou uma parte. O corpo espera atento um deslize que lhe atice os poros. Pronto a revelar no pulso o sangue contido por trás de suas retinas. O tempo corre lento, traiçoeiro, sem lamento. No encontro do tempo com seu espaço, sufoca o corpo, exuma o morto, infinda a vida.

A mortificação e a imortalização trazem o corpo em vias de morte: regulamentado como inimigo da razão, regulado socialmente através dos micropoderes presentes nas relações, como bem observa Foucault (2014). Corpo execrado pela moral, encharcado de pecado pela igreja. O corpo mortificado é aquele que não mandaram matar, mas ao qual não é permitido viver em sua potência, pois, perturbadora, é inimiga da certeza. Um corpo treinado, silenciado, vestido da utilidade indexada a cada um de seus órgãos. Neste corpo ainda não ausente, a presença adormecida da lembrança da pequena palavra engolida, do movimento desautorizado, do sentido minimizado, é o próprio processo que constitui a ação de mortificação. Castra e costura lá dentro um pretenso vazio.

O processo tingido de sangue se debate, é de um vermelho mapeado nos olhos, preso durante o processo que inflama e delata a mortificação do corpo negado, potência concentrada naquilo que era permitido: olhar, ver em toda sua potência perturbadora. Ver, ainda que não permitido, guardar o inconfessável. E o sangue circulando neste pequeno espaço, esperando por um algo não localizável. Um diálogo tenso entre o inaudível e o revelável pela imagem que punge, fere, arrebata e é trazido pela palavra pontiaguda trazida por Barthes (2015). “Porque después de todo he comprendido que lo que el árbol tiene de florido, vive de lo que tiene sepultado”². Tais ecos sepultados, exumados - imortalizados.

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² “Porque depois de tudo compreendi que o que a árvore tem de florida, vive daquilo que sepultou.” Trecho da música Me juego el corazón - Las Pastillas del Abuelo, Crisis 2008.

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Síncope: Giz sem crime

Cores, texturas, motivos velhos em molduras recentes na parede. Apuro cada sentido. Elenco um a um, como uma criança recém-apresentada a uma ideia. Mudo de lugar. O quadro. A mim mesma. Vou à banca, trago uma planta, esqueço o jornal. Ponho na bancada e espero por uma luz que incida em suas folhas. Distraio-me em outros vasos, lembro alguns amores e, sorrindo, volto a este agora e lugar. Restou apenas a luz fluorescente depois do nada breve devaneio. E eu, que sempre me fascino com as luzes do dia sobre as coisas do mundo, me sentindo empobrecida pelo escuro da noite, deixo o dever do estranhamento para outro momento. Se é que virá. Se é que verei.

Uma massa semipronta e mais alguns ingredientes. Nunca fui empenhada no espaço da cozinha e, embora movida à voz de Tulipa Ruiz me desorientando à expectativa que o

imprevisível aconteça³, não me arrisco e sigo à risca a receita.

O telefone toca e de um segundo ao mesmo, todos os cheiros, gostos e tons emudecem. Duas vozes. Uma é a minha, mal a reconheço. Uma conversa. Sobre tudo. Sobre nada. Sobre o mundo. Entre sons e silêncios. Tiquetaque. Finda o tempo. E os quilômetros que há pouco eram uma fissura rasa, percorrem de novo sua mapeada distância e devolvem todo abismo do afastamento. A despeito da tristeza que me ronda, o coração está aquecido, mas é interrompido pelos olhos que param em pilhas de papéis e lembram com sensatez descabida que procuro algo, qualquer maldito algo que eu devesse estranhar.

O timer do fogão não colabora em errar e assim produzir incômodo no olfato. Dos vizinhos, pois ao meu não seria exatamente uma novidade. Retiro o bolo perfeito do forno. Penso em apelar para minha câmera fotográfica, para uma rádio que nunca tenha ouvido, para uma lente borrada, para uma taça nunca usada. Está decidido: vou comer o bolo com maionese!

Estática, quase não respiro. E em seguida ouço muitos passarinhos cantando, o cachorro brincando com uma garrafa vazia, um telefone que não para de tocar e eu, me aproximando do espelho contemplando minha versão perita enlouquecida, riscando o giz sem o crime. Caçadora, correndo atrás de borboletas que ainda devem ser lagartas, ou que estão invisíveis para mim com dois pés fincados no chão.

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³ Trecho da música Expectativa de Tulipa Ruiz e Gustavo Ruiz, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=dko6xk8HDxA

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Não, eu não comi o bolo com maionese. E percebi que não deveria forjar um real pelo resultado promissor de minha busca tendenciosa.

O que seria inesperado se ali estava eu sem deixar espaço, me preparando e tomando o ar de tudo que respira?

Nesta procura incansável, percebi que havia posto de lado a calorosa sensação deixada pelo telefonema. Fecho os olhos e me procuro, por que fui embora de onde estava? Ao abri-los olho a planta, que continua como há poucas horas quase obviamente apenas verde. E imagino como vai ficar bonita ao florescer. Em que dia? Que lua? De que cor será? Apenas se continuar atenta irei perceber.

Estranhamento? Não. Ainda não.

No verde há muitos verdes que ainda preciso ver.

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Os eutróficos, os espelhos e as lacunas

“É que toda a minha força está sendo usada para eu conseguir ser fraca” (Lispector, 1999, p.20).

Escrever para problematizar a própria linguagem como um modo de detenção de poder soa inusitado. Quiçá tautológico. “Desse vórtice como redemoinho sem tom nem som, que nos distrai da possibilidade de falar sobre o que sentimos e que nos obriga a falar apenas de um mundo visto como uma lâmina sem pele” (SKLIAR, 2014, p.20), flerto e descaso. A contradição me punge. Chicoteia, seduz e desordena - coisa própria da liberdade, não se faz linear.

Um tanto angustiada e na falta de um chá de camomila, decidi afrontar-me de vez pedindo um café. Sentei-me. Sem achar uma via para explicar a concentração de poder no saber, o que me parecia óbvio, olhei em volta e vi materializada a ideia que, de tão explícita, parecia zombar de minha procura. Raízes. Fincadas, à sombra, expostas a quem pudesse contemplá-las. Lá estava eu, apreciando o café mais doce que pretendia, imaginando ter encontrado o fio de meu enredo. Raízes do conhecimento - já ensaiava mentalmente um começo simples e clichê enquanto pegava meu telefone e ativava sua câmera. Composição encontrada e câmera aberta, recebo diante de meus olhos a visita sutil, silenciosa e inesperada. Asas que poderiam estar voando, mas que escolhem pousar naquele exato momento nas raízes tão estáticas como minha dúbia certeza em localizar meu problema, e vem não apenas modificar o cenário pretendido da captura, mas cancelar toda pretensa representação da ideia. Imagem perturbadora. Desordena.

Guardo o telefone e engulo a certeza boba e precipitada, com as ideias mais emaranhadas que os fios pendentes das árvores ao redor. Como uma simples amante das possibilidades da fotografia, descarto a ideia de retratar imagens em que o pequeno pássaro não apareça, pois já não me interessam. E levanto sabendo-me menos próxima que antes de meu passeio intelectual, mas percebendo que tinha enfim, algo maior para me fazer sair de meus próprios enraizamentos.

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As polarizações da ciência moderna atrofiam o diálogo presente nas contradições humanas. A escolha por um lado exige linearidade e renúncia em nome da verdade como móvel de disputa e poder. Equiparando as ciências humanas à lógica investigativa da matemática, a ciência moderna encontra uma ferramenta de legitimar e estender sua dominação, empenhando-se em controlar o pensamento e valorizando a importância dos resultados de sua teoria, fazendo a prática circular no campo delimitado por ela, ou melhor, imobilizando a prática, submetendo-a a teoria da filosofia, que se retroalimenta ou desqualifica tudo aquilo que não se encaixe em seu modelo de existência autorizada.

Muito se fala sobre justiça e equidade, mas os espaços cotidianos continuam preparados, e não ingenuamente, para manter as injustiças e desigualdades, que não são consequências de um sistema social, mas o fator primeiro, o requisito que sustenta toda sua constituição. “Essa maquinaria transforma os corpos individuais em corpo social. Ela faz esses corpos produzirem o texto de uma lei” (CERTEAU, 2013, p.212).

Há alguns anos ouvi de alguém então bastante próximo que eu deveria escrever de maneira mais requintada para que meus textos fossem para poucos, pois até ele que era de outra área conseguia compreender o que eu havia escrito. Aquilo para alguém que já trabalhava com as classes populares parecia uma piada, mas ri sozinha para meu desespero. Utilidade e invisibilidade em medidas equivalentes. Palavras que não manifestam existência de autoria ou leitores. Palavras que selecionam leitores: eis o requinte. De crueldade, acrescento.

A linguagem técnica faz-se primordial na evolução da ciência e seus diversos ramos ou é apenas mais um modo de mantê-la sob a tutela daqueles que a esta linguagem tem acesso? Não se trata de negar a importância da razão, mas de pontuar que existem outras formas de conhecimento que não podem ser reduzidas à linguagem escrita e, especialmente, linguagem técnica de conhecimento. “A mensagem é inseparável do código, mas o código é a condição que assegura o seu efeito” (CANDIDO, 1995, p.178).

Marca de uma ideologia que estabelece hierarquização, Santos (2011) traz no uso de espelhos um conjunto de normatividades da sociedade. Entende primeiramente que seus usos feminino e masculino são feitos de maneira bastante distintas. Enquanto os homens o usam como um mero objeto para projetar sua imagem, a mulher torna-se objeto de seu espelho, fazendo de sua imagem sua própria identidade, em uma relação de dependência visual e conformidade.

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Ao identificar esta distinção no uso de espelhos, equipara a sociedade ao uso feminino de espelhos. Ou seja, os espelhos seriam práticas de semelhança e identidade que asseguram a vida em sociedade (Idem, 2011).

O espelho seria desta forma não uma maneira de projetar imagem de si mesmo como um legítimo outro apontado por Gallo (2008) como a alteridade, uma singularidade em contato com outras e promovendo o estabelecimento da coletividade, mas sim outra perspectiva: a tentativa de enquadrar a si mesmo na forma que é projetada no espelho. Assim, os sujeitos se tornam pertencentes à própria lógica que os segrega ou se tornam invisíveis ao não se reconhecer nesta distribuição de permissões e proibições de ser. O que há fora do espelho não é reconhecido. É nada.

Entendendo que “a educação moderna foi pensada e produzida no contexto da filosofia da representação, tomando o outro como conceito, pensando a formação como sendo a repetição do mesmo” (Idem 2008, p.14), a passividade espectadora em subjugar o outro e si mesmo em favor de homogeneidade conforma este acordo.

Ainda nesta concepção, a captura da imagem idealizada pelo espelho, torna-se então estátua. Os que olham não veem, mas são vistos e vigiados em uma atração sustentada pelo desejo de se reconhecer, de pertencer. Os espelhos seriam assim produção de não existências. Com a lâmina sem a pele, por vezes pele sem lâmina, a procura por rachaduras nos espelhos para que as palavras respirem, movimenta e petrifica. A contradição não é algo novo. “O novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta” (FOUCAULT, 2014, p.25).

Discursos descolados das práticas corroboram as práticas de produção de conhecimento. O discurso investe em ser imperceptivelmente incoerente e permitir que a própria linguagem se manifeste para conformar, anunciando que a seu poder residem os abismos entre forma e conteúdo.

Um eutrófico é um solo em que há um excesso de nutrientes e uma sazonal ausência de oxigênio nas bases mais profundas. Em lagos, o aumento da biomassa faz com que a oxigenação seja reduzida. A morte dos organismos mais sensíveis gera uma decomposição orgânica e induz a liberação de gases tóxicos. Um lugar propício para a proliferação de bactérias, seres anaeróbios, ou seja, que não necessitam de oxigênio. Esse enriquecimento de nutrientes pode chegar a dificultar ou até mesmo impedir a navegação por suas águas. A

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Universidade concentra o solo fértil, mas pouco ou nada respira. Arrisca aniquilar o movimento de navegação. O passarinho chega sem consentimento. Paira na sombra, se alimenta, leva, traz, me paralisa. Vem de fora o transgressor. Fura o eutrófico e revela que sozinhas, não são as árvores e suas raízes que projetam a sombra, mas o encontro com outros elementos. O passarinho não fura o eutrófico apenas para se alimentar, mas para criar um espaço de entrada de ar.

Sobre as certezas precipitadas, inapropriadas, foram deixadas no fundo do copo: como o açúcar, em demasia. Amargo a lembrança dos enganos e de quantas vezes preenchi folhas em branco antes mesmo de tocá-las. O discurso há de ter coerência e permitir que a própria linguagem se manifeste não apenas para denunciar, mas anunciar em sua própria forma a possibilidade de coexistência de expressões de um autêntico corpo, ético.

Síncope: Pactos silenciosos

O vento na grande área aberta não amenizava o calor. Soprava quente como de costume. Eu não entendia muito bem o porquê daquele espaço tão grande, mas ainda assim achava bonito. Uma beleza que não estava relacionada à estética do lugar e suas árvores opacas pelo verão, mas pura e simplesmente pelo que provocava: por me sentir ligada àquele espaço da zona oeste do Rio de Janeiro.

Meu pai raramente me segurava pela mão onde quer que fosse. Neste dia, ao me soltar, me adiantei para acompanhar meu irmão mais velho em seus passos apressados e andamos lado a lado sob aquele céu interminável. Antes de chegar ao nosso destino, podíamos ver por toda parte fileiras e fileiras de pessoas. Todas que as formavam, estáticas, pareciam ignorar o sol sobre suas vestes pesadas. Precisávamos passar antes que começassem a hastear a bandeira. Caso contrário, deveríamos permanecer onde estivéssemos e cantar o hino nacional como todos ali presentes. Em silêncio, passo a passo, deixando para trás cada uma daquelas pessoas, agradecia intimamente por não ter nascido menino. E lamentava profundamente a possibilidade de ver um dia meu irmão forçadamente perfilado como todos aqueles soldados, em nome de algo que eu naturalmente entendia, sem alcançar compreensão alguma, porém.

Depois de ver como era um helicóptero por dentro no dia de meio expediente do nosso pai, civil na instituição militar, voltamos à nossa cidade, na baixada fluminense - à margem da capital, e ele me deixou na escola. Ninguém para segurar ou soltar minha mão,

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ninguém cujo afeto me fizesse perseguir ou andar lado a lado em ritmo acelerado. E não havia ali nenhum privilégio em ter nascido menina. Pelo contrário.

Influenciada por momentos históricos marcantes como o recente fim da ditadura no Brasil, a escola onde eu estudava ignorava prelúdios de uma nova era. O Hino Nacional Brasileiro e o da Independência eram o ritual de todos os dias no pátio descoberto, salvo nos de chuva. Cantávamos na escola com os membros bem alinhados pelo corpo, os pés rigorosamente juntos fiscalizados por alguém da inspetoria que tento sem sucesso lembrar se era homem ou mulher. Não era permitido olhar nada além da nuca do aluno imediatamente à frente. Salvo as vestes e armas, enfileirados como os soldados que eu vira na base aérea. Dispositivos que obedeciam a economias inconfessáveis. Como elucida Foucault (2014), arranjos sutis de aparência inocente, submetendo-nos através da docilidade de nossos corpos. Ao término, seguíamos para nossas salas, rezávamos o pai nosso de olhos bem fechados para, logo em seguida, sermos arguidos nas tabuadas de todas as operações fundamentais. As multiplicações eu sabia e levantava sem medo de responder. Rezar não, e fechava os olhos mentindo minha fé em um deus que eu não sabia se era o meu, apenas desejando que a professora não percebesse o meu balbuciar vazio. Sentindo-me triste e comedida por horas seguidas, aguardava ansiosamente pelo aviso sonoro das cinco da tarde – hora em que eu poderia voltar a ser a minha versão favorita de mim mesma.

Era um tempo de bola de meia, de pique pega na rua, de dar voltas no quarteirão de bicicleta sempre “em bando”. Tempo de brinquedos sem tantas especificações de uso; de voltar para casa no horário combinado orientados pelo céu, não por relógios. O tempo parecia ser mais lento em colaborar com as horas descomprometidas de brincadeiras e risos, mas tudo terminava na hora de ir para a escola. Era como se alguém pudesse ser duas pessoas: uma dentro da escola e outra fora dela.

A minha resistência à escola apenas era traduzida e percebida ao final de cada bimestre onde eu só conseguia um índice aceitável em leitura e estudos sociais. As notas baixas fizeram minha mãe recorrer à professora que havia me alfabetizado na escola anterior para reforçar o que era ensinado. E lá estava eu, sem forças, sendo moldada a pertencer àquele espaço, àquele sistema, a dar o que me pediam. Sem nenhuma pretensão que me tornasse capaz de perceber os muros edificados em mim e menos ainda em como ou quando poderiam se tornar transponíveis.

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“A disciplina é uma anatomia política do detalhe” (FOUCAULT, 2014, p. 137): sentados todos os dias no mesmo lugar. O recreio era suficiente para lanchar e tentar não ser pego correndo pela inspetoria. Correr não era permitido. Semana após semana, eu era quantificada em meus rendimentos, reduzida a ser o número vinte e quatro da chamada, a ser a Renata dois, ou a Renata Efierre, indicando as iniciais dos meus sobrenomes, que só eram ditos por completo em dias de avaliação. Iniciado o quarto ano letivo naquela mesma escola, eu estava enfim adaptada a ser duas.

Naquele ano, lembro que a coordenadora prometeu que faríamos algo diferente às vésperas do dia das mães. Imaginei que pudesse ser bom, já que eu me envergonhava de dar à minha mãe aqueles presentes de Amélia4 – como ela costumava classificar as minhas esforçadas tentativas em personalizar panos de prato e afins.

Turma por turma, dos mais velhos aos mais novos, fomos convidados para ir à outra sala e preparar o tão esperado presente. A quarta série seria a primeira, o que me poupou bastante em ansiedade. Para minha surpresa e curiosidade vi uma fila antes da porta. Entraríamos em pequenos grupos e isso me livraria de um vexame diante de toda a classe. Todos meus temores se confirmaram quando ao entrar na sala me deparei com o que, para mim, era algo terrível: uma equipe de fotógrafos e maquiadores. Como escaparia disso?

As garotas mais desinibidas da turma ficaram empolgadíssimas diante de todas aquelas possibilidades de maquiagem e de fazer uma foto com um profissional. Tudo que me vinha à cabeça era a voz do Charlie Brown5 se lastimando enquanto meus pés seguiam sem perspectiva alguma de salvação.

Todas aquelas cores e texturas de maquiagem faziam com que eu me sentisse profundamente tensa e humilhada, aos ecos da voz de minha mãe e suas verdades sobre mulheres que usavam pintura no rosto. E pensando bem na solidão, era uma sorte que os meus amigos, vizinhos e primos não estudassem comigo para presenciar as pequenas doses de tirania às quais era submetida.

A foto em si não foi tão ruim. Lembro que uma das fotógrafas me liber(t)ou quando disse que não daria para fazer melhor. Em meu íntimo eu ficava imensamente grata em ser um __________

4

Amélia como referência à mulher dona de casa exaltada pela música “Ai que saudades da Amélia”, de Mario Lago e Ataulfo Alves, 1941.

5

Da obra de Peanuts de Charles M. Schulz, Charlie Brown protagonista de desenho animado americano, que ao falhar no que tenta fazer dispara a frase “ Que puxa” , como uma lástima.

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caso perdido para a fotografia. Desistiram de mim – e isso era inacreditavelmente ótimo. O problema é que talvez minha mãe ficasse tão encantada com minha foto como ficaria com uma capa para botijão de gás.

Passado o que deveria ser o auge da tortura, voltamos à rotina de aulas. A professora “sugeriu” que eu não tirasse a maquiagem. Talvez para não perder mais tempo, talvez porque realmente achasse que estávamos bem. Eu não estava. E lembrar a tabuada de cor com os meninos implicando com o que estava no lugar do meu rosto não era bem uma rotina.

Bendita, a maldita maquiagem disfarçou minha vergonha quando a coordenadora bateu à porta e ao pedir licença à professora disse que precisava de minha presença na sala da fotografia por alguns instantes. Oh, não! O que eu fiz de errado? Eu olhava da turma para a professora em protesto. Por que só eu?

Não tive coragem de perguntar se teria que corrigir minha foto e segui em silêncio resignado os passos dos saltos barulhentos da coordenadora. Ao cruzar a porta já esperando o pior mais uma vez, qual não foi minha surpresa ao ver minha irmã, que estava na classe de pré-alfabetização, de braços cruzados travando a fila da maquiagem simplesmente porque não queria o batom rosa. Ela queria o vermelho.

Tendo os olhos arregalados como se fossem saltar das órbitas em um misto de pânico, satisfação e vergonha, permaneci estática com o olhar fixo em minha irmã, que sequer me olhava. A coordenadora e toda a equipe de fotografia olhavam de minha irmã para mim em uma expectativa que não fazia jus ao que eu poderia oferecer naquela situação. Eu mal era capaz de dizer bom dia e boa tarde em voz alta na escola. Ainda assim, reuni toda a dignidade que me faltara horas antes para recusar aquele estúpido batom que eu não queria em mim de cor alguma e o blush, meu Deus, o que era aquele blush (?!) – como se alguém tímida como eu precisasse de mais rubor. Sem mais pensar, fui de apoio à minha irmã. Engoli em seco e disse: Ela quer o vermelho, por que não pode ser o vermelho? - Foi tudo que consegui dizer. A resposta foram olhares decepcionados e cabeças balançando negativamente. Por fim, uma maquiadora esclareceu que batom vermelho simplesmente não ficaria bem em uma criança de cinco anos de idade. Por que e para quem estava disponível ali, nunca soube. Naquela

“verdade absoluta e incontestável” da cor de um batom eu via como as pessoas se ocupavam

em ser subjetivas com elas mesmas e terrivelmente objetivas conosco e consequentemente nos tiravam nossa individualidade, nossa subjetividade, nossos quereres – como bem me lembra Santos (2011). Naquele batom eu via meus próprios pés ao som do hino nacional, via a nuca

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de um menino em meio às minhas lágrimas que não podiam cair, pois era recorrentemente colocada na fila dos meninos como castigo. Castigo porque gostava de conversar com eles e porque às vezes eu gostava de usar os tênis antigos de meu irmão ao invés de melissas.

Por que não pode olhar pro lado? Eu não sou um menino só porque gosto de correr

de tênis! Tomara que ela pergunte quanto é 6x8 que eu gosto do som de 48. Pra quê tanto espaço no quartel? Meu irmão odeia hastear a bandeira! Eu não sei rezar!

POR QUE NÃO PODE SER VERMELHO?6

Engoli cada uma dessas frases até quase o dia de hoje. Ao escrevê-las, finalmente

saem de mim. Mas nunca me deixam.

Eu me sentia tão impotente quanto minha irmã zangada. Quando por fim percebeu a batalha perdida pela cor desejada, estava no local assinalado para a fotografia, aos holofotes e olhares de toda a equipe. Você tem que sorrir – disse a fotógrafa. Mas eu não vou – esclareceu sem dizer palavra alguma ao endurecer suas feições e projetar em seus lábios cor de rosa um

bico que durou muito mais que a foto precisava para ser feita.

Saí da sala quando indicada à porta, deixando minha irmã aos lobos. Ela sabia se defender melhor que eu, era bem verdade. Mas eu me sentia recorrentemente muito infeliz naquela escola. Se eles sequer escutavam minha irmã em sua rebeldia anunciada por suas palavras categóricas e decididas, como poderiam considerar aquilo que eu pensava quando raramente usava minha voz?

A exclusão das diferenças por aquela grotesca maquiagem não nos trazia igualdade, mas nos tornava seriados, padronizados. Os meninos escapavam da maquiagem, mas não dos penteados. Era tanta goma, gel, ficavam todos iguais. Horríveis, patéticos, mas estavam muito ocupados se divertindo à custa daquela tinta que estava no lugar de nossas expressões. Todos, meninos e meninas, subordinados aos passos democráticos trôpegos daqueles educadores que haviam vivido desde os gestos mínimos a sua privação.

A imortalização deste momento se iniciou no instante em que o pretenso objeto da fotografia, minha irmã, tornou claro que era sujeito de si mesma, pronunciando sua perspectiva diante da padronização que pretendiam todos aqueles profissionais. A advogada que se tornaria, tomou para si seu maior direito antes mesmo de ser alfabetizada.

__________ 6

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Ainda que sem consciência do que estava provocando, ela não pretendia se transformar numa fotografia, mas sim a fotografia deveria se transformar nela. Dependêssemos daqueles adultos que conduziram a situação, seríamos mais felizes e respeitados em nossa individualidade se estivéssemos a personalizar os estúpidos presentes para vestir as cozinhas de nossas mães. Essa era a função dos presentes: trazer a possibilidade de todos presentearem suas queridas mães de maneira igualitária, ainda que tornassem todos iguais – filhos e mães. Essa era a contraditória função dos presentes: produzir ausências. Quando fracassaram, como no caso de minha irmã, produziram os mais autênticos resultados.

Já a minha fotografia era uma tradução fiel aos dias que passamos enfileirados diante da bandeira sob o sol escaldante da cidade de Nova Iguaçu – desconsideradas, eu e a terra da laranja em seu clima nunca europeu. Lá estamos as duas mortificadas.

Éramos todos induzidos à morte através da fotografia. Morte a tudo que pudesse ser nós mesmos. Barthes (2015) questiona a quem pertence afinal a foto: ao fotógrafo ou ao fotografado? O que vejo nesta foto é que deveria ser não apenas da escola, mas de toda uma geração pós-ditadura pouco acostumada ao seu fim proclamado. Eu, que não estou e estou nela, confirmo uma possibilidade de emancipação quando compreendo que “olhar é também uma ação que confirma transforma essa distribuição de posições” (RANCIÈRE, 2012, p.17). Esta fotografia não era do fotógrafo, a minha e a de tantos outros, sim. Tomaram-me de empréstimo para ser retratada justo em minha versão escolar, a que me sentia menos eu. Pelo obturador, a captura não apenas do que era enquadrado, mas principalmente de tudo que não poderia estar presente nela, de ser o retrato da instituição escolar. Dentro daqueles muros, “eu, objeto, já não luto” (BARTHES, 2015, p.21).

O ponto que me punge, que me fere, que desperta, suga a atenção e faz a fotografia existir para mim – o punctum (idem, 2015) – poderia ser a contradição da expressão aborrecida de uma criança em uma fotografia que seria dada de presente à sua mãe. Mas vejo tendenciosa pelas emoções vividas, o mesmo que vi há mais de vinte anos atrás permanecer latente, ecoando e finalmente se fazendo dizer. Vejo em seus olhos sem sombra de bom humor que desde sempre ela jamais cederia aos padrões sem antes questionar e deixar registrada sua insatisfação, ainda que não surtisse efeito imediato. E busco compreender que

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As palavras não estão no lugar das imagens. São imagens, ou seja, formas de redistribuição dos elementos da representação. São figuras que substituem uma imagem por outra, formas visuais por palavras, ou palavras por formas visuais. Essas figuras redistribuem ao mesmo tempo as relações entre o único e o múltiplo, o pequeno e o grande número. Por isso são políticas, se é que a política consiste principalmente em mudar os lugares e a conta dos corpos (RANCIÈRE, 2012, p.95). Meu punctum é sim o batom borrado, mas é para, além disso: o grande, orgulhoso e sincero sorriso com meus olhos que dei por detrás das câmeras ao contemplar a meia vitória de minha irmã. Eu vejo um batom vermelho. Eu vejo que vejo. Uma foto é sempre invisível, e como bem lembra Barthes (2015): não é a ela que vemos. A sombra do sorriso não captado pela câmera infelizmente foi detectado pela coordenadora e me mandou de volta à sala - inútil a colaborar com o bom andamento da escola.

Segui minha dupla existência sem nenhuma expectativa em me surpreender na escola. Eles se ocupavam demais em produzir os melhores alunos, mesmo que nós não fôssemos nós e ficássemos à margem de nós mesmos.

Curiosamente ao final deste mesmo ano ganhei uma câmera fotográfica de presente de natal. Era a primeira vez que eu havia sido consultada sobre o que queria e nem lembro bem por que pedi justo uma câmera fotográfica. Era a estreia em ganhar um presente diferente de bonecas, diferente dos presentes de minha irmã ou das divisões “extraoficiais” com meu irmão. Nunca li o manual de instruções e apenas muito depois consegui usá-la sem as recomendações de meu pai. Eram dias e dias, semanas e semanas economizando por rolos de filmes e revelações de fotos que, no final das contas, nem eram minhas. Os elogios sobre o enquadramento e o uso da luz eram recorrentes, tudo devidamente de acordo com padrões, um grande feito pra alguém com pouca idade. E assim, continuava a produzir coisas que não eram minhas e nem dos fotografados, mas tampouco eram neutras, pois pertenciam a um momento histórico cultural, tendo meu olhar conduzido por ecos que vinham de muitas partes, ecos internalizados e geravam uma expressão que achava ser minha.

Meu maior brinquedo continuou sendo minha irmã, que possui centenas de fotos de sua infância que posso até classificar como boas, não pela técnica utilizada, mas por retratarem sua espontaneidade e despreocupação diante das lentes. Isso me possibilitava registrar momentos e expressões genuínas, autênticas. Por ser aquela que sempre estava atrás da câmera, conto nos dedos as fotos de minha infância que não sejam de datas festivas. Nunca reconhecia vestígio de mim nas fotografias. Introvertida, mal sabendo que me refugiava sempre para dentro de mim.

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Junto com a quinta série, hoje chamada de sexto ano, a timidez vexatória cederia espaço à expansividade de forma lenta, gradual, através do reconhecimento de quem eu era e o meu estar à vontade em meu próprio corpo. Eu já tinha aulas de Educação Física na escola pela manhã e nadava todos os dias em um clube perto de casa. Descobrir coisas que gostava muito e receber méritos escolares por isto era um marco em minha vida escolar, que se tornou menos enfadonha a partir de então.

Passava as tardes a contemplar as luzes entre as folhas da copa da mangueira da casa de meus pais, que fora projetada para mantê-la, e onde além de mim apenas uma prima e meu irmão mais velho sabíamos chegar. Eram tardes de pensamentos livres que nutriam conversas tolas e frutas colhidas do pé. Frutas que alimentaram pactos silenciosos de cumplicidade eterna.

As fotografias que nunca tirei ficaram guardadas em minha memória como um filme não revelado. Eu diria que naquelas em que não estou é onde possivelmente mais vejo minha própria imagem, ainda que nem tenha sido eu a elegê-la. A imagem passa a fazer sentido e ter significado a partir do momento em que me toca, que faz sentido para mim, como traz Larrosa (2004), proporciona uma experiência.

Navegando na internet, encontro na página de um cineasta fotografias que despertam minha atenção e sou arrebatada por uma delas. Não é a mais bonita e, justo por saber de minhas afeições estéticas, isto me intriga. Um telhado e a copa de um pé de acerolas ou pitangas, custo identificar, algumas caídas nas telhas de amianto, misturando suas cores. Cinza e vermelho, as folhas verdes, um pouco de céu opaco sugere inverno, época que não frutifica. Punge, prende, fere. Passo dias sem compreender minha vontade de revisitá-la, sempre cedendo ao encanto, porém. Entro em contato com seu autor, mas decido utilizar dela apenas o que deixa em mim.

Olho para as que não estão prontas para mim e me sinto também olhada por aquelas que não posso alcançar. Não são acerolas ou pitangas, tampouco são apenas mangas. São as folhas, é a primavera que deixava na calçada e no telhado todas aquelas flores e sim, é o tão esperado verão e seu gosto de férias, doce, amarelo e dividido com meu compadre, além de irmão, com minha comadre, além de prima. É a telha que piso com cuidado para que a caçula não perceba que estou no meu esconderijo e não me chame para brincar com suas barbies magrelas, contrariada, pois sequer me vê. Ser a irmã do meio me deu, com o tempo, a

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qualidade de mediar, sempre dividida, sempre fatalmente desagradando alguém ao fazer uma escolha.

Sou eu, fora de foco, fora de alcance no topo de uma árvore que coincidentemente morreu atingida por uma praga pouco depois que meu irmão e eu saímos de casa. Mas a morte não a mortificou. E ela se faz presente em uma imagem em que nem aparece, em que nem se disfarça em tolas frutas delicadas. Ela está no telhado que pisei sob sua sombra, na temperatura que deixa em meus pés, na memória do gosto da manga que não vende no mercado, naquelas que deixei aos passarinhos ou que ao esperar para o outro dia perdi para os morcegos. Nas que comi sem modos, sem focos, sem registros fotográficos. É meu pequeno fulcro.

E por isto o que vejo nesta fotografia não está nela. Está na minha versão favorita dos meus dias. Está encarnada em meu corpo. Está em mim.

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II

CORPO E IMAGEM COMO HETEROTOPIAS

Referências

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