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O Oriente imaginado no Théâtre du Soleil : um estudo sobre o espetáculo Tambours sur la digue

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Academic year: 2021

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ALINE DE ALMEIDA OLMOS

O ORIENTE IMAGINADO NO THÉÂTRE DU SOLEIL: UM ESTUDO SOBRE O ESPETÁCULO TAMBOURS SUR LA DIGUE

CAMPINAS 2015

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES

ALINE DE ALMEIDA OLMOS

O ORIENTE IMAGINADO NO THÉÂTRE DU SOLEIL: UM ESTUDO SOBRE O ESPETÁCULO TAMBOURS SUR LA DIGUE

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Mestra em Artes da Cena, na Área de Concentração: Teatro, Dança e Performance.

Orientador: Prof. Dr. Cassiano Sydow Quilici

Este exemplar corresponde à versão final de dissertação defendida pela aluna Aline de Almeida Olmos, e orientada pelo Prof. Dr. Cassiano Sydow Quilici.

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CAMPINAS 2015

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Resumo

Este trabalho pretende analisar a maneira própria com que o grupo de teatro francês Théâtre du Soleil se relaciona e é influenciado por tradições teatrais orientais. Com esse objetivo procura-se estabelecer como a relação do grupo com diversas dessas tradições se desenvolveu a partir de um panorama que abarca todas as criações teatrais de Ariane Mnouhckine, diretora da companhia, desde antes da fundação do Théâtre du Soleil até a peça Et soudain des nuits d’éveil, de 1997. Posteriormente analisa-se o objeto de estudo específico dessa pesquisa, o espetáculo Tambours sur la digue, criado em 1999, buscando-se identificar, em seu processo criativo, os mecanismos e abordagens próprias da companhia no que diz respeito a sua forma particular de apropriação e tratamento de suas referências teatrais orientais. Nesse ponto destaca-se a importância da relação estabelecida com tais tradições chamada de “relação imaginada” e a partir do detalhamento desse conceito evidencia-se as particularidades da companhia no tratamento dessa questão. Ao final dessa dissertação busca-se aprofundar as particularidades da companhia descobertas propondo um diálogo com outras abordagens interculturais de outros artistas, teóricos e críticos teatrais.

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Abstract

This study aims to examine the way in which the French theater group Théâtre du Soleil relates to and is influenced by Oriental theatrical traditions. To this end we seek to understand how the group’s relationship with many of these traditions has developed, establishing a panorama that encompasses all theatrical creations held by the director of the company, Ariane Mnouhckine, from before the foundation of Théâtre du Soleil to the play Et soudain des nuits d'éveil, presented in 1997. Afterwards, we establish an analysis of the subject matter of the research, the play Tambours sur la digue, in which we seek to identify, within its creative process, the mechanisms and the approaches of the company regarding their particular manners of managing and handling eastern theatrical references. At this point it is emphasized the importance of the relationship with those traditions through an explanation of the concept of “Imagined Relationship”, whose detailing evidences the particularities of the company’s treatment of this issue. At the end of the dissertation, we seek to further develop the peculiarities of the company that were discovered, proposing a dialogue with other intercultural approaches held by artists, theorists and theater critics.

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Sumário

Apresentação...17

Introdução...21

1. Trajetória do Théâtre du Soleil...27

1.1 Primeiras experiências teatrais de Ariane Mnouchkine...27

1.2 A grande viagem...34

1.3 Primeiros espetáculos - a instauração da criação coletiva e a influência do teatro popular ocidental...38

1.4 Ciclo de espetáculos de Shakespeare – Kabuki e Índia imaginada...61

1.5 O Oriente como tema dramatúrgico ...72

1.6 Os Atridas – A encenação de tragédias gregas a partir da influência indiana...78

1.7 A maturação de uma linguagem própria da companhia a partir do Oriente assimilado...85

2. Criação do espetáculo Tambours sur la digue...97

2.1 Princípios norteadores do espetáculo...97

2.2 Viagem à Ásia, início do processo criativo...99

2.3 Criação do texto de Hélène Cixous...104

2.4 Processo de criação...108

3. Considerações Finais...137

4. Referências Bibliográficas...149

5. Anexos 5.1 Anexo 1 - Ficha técnica do espetáculo Tambours sur la digue...159

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5.2 Anexo 2 - Descrição narrativa da trama contada no filme Tambours sur la digue...165 5.3 Anexo 3 - ARTA - Association de Recherche des Traditions de l’Acteur...177

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Agradecimentos

À FAPESP pela bolsa concedida para desenvolvimento desta pesquisa.

Ao meu orientador, Prof. Cassiano Sydow Quilici pelo trabalho realizado para essa dissertação e pelo exemplo de pesquisador dedicado e atencioso que representa pra mim.

Aos amigos: Maria Fernanda V. D’Ottavio, Lilian Papini, Rafael Ary, Camila Morosini, Geisla Simonato, Renata Peçanha, Tatiana Capitanio, Elise Bernardelo e Nataly Pimentel, bem como aos amigos do Colégio Petrópolis e à todos os alunos da turma 07 de Artes Cênicas da UNICAMP com os quais trilhei junto os anos de graduação.

À Fernanda Jannuzzelli por, no meio disso tudo, me lembrar que rir é o melhor remédio, por ser minha dupla companhia e, além disso, pela grande amizade. Pelo acolhimento, amizade e ajuda no contato direto com o Théâtre du Soleil de diversas maneiras gostaria de agradecer à Alice Berger e à Suzana Carneiro. Especificamente no Théâtre du Soleil agradeço a Ariane Mnouchkine, primeiramente, a Franck Pendino e a Liliana Andreone pelas ajudas burocráticas, pelas referências e pela atenção na busca pelos arquivos. Aos atores Juliana Carneiro da Cunha, Serge Nicolaï, Duccio Bellugi-Vannuccini, Eve Doe Bruce, Fabianna de Mello e Souza, pelo tempo e grande atenção cedidas para a realização das entrevistas. A Jean-Jacques Lemêtre e a Marie-Hélène Bouvet também pelas entrevistas. Especialmente aos atores Aline Borsari, Maurice Durozier, Dominique Jambert e Vincent Mangado pelo cuidadoso interesse que tiveram em me ajudar nas minhas buscas e curiosidades durante essa pesquisa.

Aos professores de teatro que tive, de cursos livres e do departamento de Artes Cênicas da UNICAMP.

Aos professores que participaram das bancas de qualificação e defesa dessa dissertação: Alice k, Elisabeth Lopes e Eduardo Okamoto.

Ao Elder e Luiz por todos esses anos de trabalho atencioso, paciente e de dedicação ao departamento de Artes Cênicas.

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xiv À toda família Tonelo pelo carinho enorme.

Aos meus pais Antônio e Nilci e minha irmã, Thais que, despertam em mim o sentimento máximo de respeito, carinho e amor incondicional. A vocês minha gratidão e amor eterno.

Ao Gabriel Tonelo pelas revisões e leituras cuidadosas, mas acima de tudo por ter me acompanhado de perto em mais essa aventura. Pela fonte de amor inesgotável, pela inspiração diária e pelo sentido que, com você, descubro nessa misteriosa jornada pelo mundo.

E aos meus avós paternos, Manoel e Patrocinio e maternos, Marilea e Newton, para quem dedico esse trabalho, pela herança espanhola, pelo amor enorme e pela saudade do que foi há pouco e do outro que não conheci.

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Índice de ilustrações

As figuras de 1 a 22 foram retiradas do site oficial do Théâtre du Soleil. As figuras de 23 a 28 foram retiradas do DVD do filme Tambours sur la digue.

Figura 1: elenco de Les petits Bourgeois...40

Figura 2: apresentação de La cuisine...43

Figura 3: apresentação de Le songe d’une nuit d’éte...44

Figura 4: croqui do cenário do espetáculo para as apresentações em Avignon...46

Figura 5: apresentação de Les Clowns em Aubervilliers...46

Figura 6: apresentação de1789...49

Figura 7: encenação de 1793...52

Figura 8: encenação de L’Âge d’or...57

Figura 9: Maquete da cenografia de Mephisto idealizada por Guy Claude François...59

Figura 10: Cena do espetáculo Richard II...63

Figura 11: Imagens do espetáculo Henry IV...64

Figuras 12 e 13: atores do espetáculo La nuit des rois...65

Figura 14: cena do espetáculo L’Histoire terrible et inachevée de Norodom Sihanouk roi du Cambodge...75

Figura 15: encenação de L’indiade ou l’inde de leurs rêves...78

Figura 16: coro de Iphigenie à Aulus...80

Figura 17: coro de Agamemnon...82

Figura 18: cena de La Ville parjure ou le réveil des Érinyes...87

Figura 19: cena de Le Tartuffe...89

Figura 20 e 21: respectivamente cena retratando a trupe tibetana (esquerda) e cena com um ator ficcional do Théâre du Soleil (direita)...94

Figura 22: Baï Ju, o mestre de marionetes, na cena final do espetáculo...102

Figura 23: Baï Ju, o mestre de marionetes, na cena final do espetáculo...103

Figura 24: Renata Ramos-Maza como O’mi, a vendedora de lanternas...119

Figura 25: palco criado para o espetáculo...121

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Figura 27: Cena inicial, em destaque o Senhor Khang, interpretado por Juliana Carneiro da Cunha e o Chanceler, interpretado por Duccio Bellugi-Vannuccini...128 Figura 28: manipulação da seda e da gaivota pelos Kokens...132

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Apresentação

Meu interesse pelo Théâtre du Soleil iniciou-se em 2007, quando assisti ao espetáculo Les Éphémères, em São Paulo. Depois dessa apresentação, passei a me interessar pelo grupo e, por consequência, realizei, em 2009, um intercâmbio universitário de um ano letivo na Université Paris 3 – Sorbonne Nouvelle em Paris, cidade onde se encontra a sede da companhia.

Nesse período de estudos na França aproximei-me do Théâtre du Soleil realizando trabalhos voluntários e pesquisando a companhia nas disciplinas da universidade. Como exemplo, em uma matéria que tratava de criações contemporâneas de textos de tragédias gregas, estudei a quadrilogia Os Atridas do Théâtre du Soleil e, através desse trabalho, entrei em contato com a extensa bibliografia francesa existente sobre o grupo. Além disso, fiz alguns cursos com ex-atores da companhia. Dentre eles, participei de um curso ministrado por Hélène Cinq, com duração de três semanas de trabalho diário, em que tive uma experiência marcante relacionada ao trabalho prático de improvisação da companhia. Além dessas experiências, pude assistir diversas vezes à criação que naquele período estava em cartaz, intitulada Os náufragos do Louca Esperança.

De volta ao Brasil, assisti novamente ao espetáculo durante sua turnê em São Paulo e pude fazer diversos workshops sobre o trabalho de improvisação do grupo. Realizei oficinas com os atores: Eve Doe Bruce, Fabianna de Mello e Souza (ex-atriz), Aline Borsari, Maurice Durozier e Juliana Carneiro da Cunha. Nestas, me questionei diversas vezes a respeito das principais influências do grupo e sobre as bases do pensamento de Ariane Mnouchkine, diretora do Théâtre du Soleil.

Tais questionamentos me vinham à mente devido à própria maneira de trabalho que era estabelecida, analogamente, em todos os cursos realizados, a qual era constituída por, primeiramente, exercícios ligados aos estados emocionais como tristeza, alegria, raiva e ódio, em seguida, um trabalho específico relacionado à linguagem do coro e finalizado por improvisações. As improvisações eram conduzidas sempre da mesma maneira: primeiramente os atores, divididos em pequenos grupos, conversavam sobre as linhas gerais do que seria explorado em

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cena, depois preparavam o espaço e alguns objetos cênicos que poderiam ser necessários. Em seguida, preparavam a si mesmos por meio dos figurinos e da maquiagem e, além disso, antes de começar a improvisação o grupo dava alguns apontamentos ou para o músico presente ou para a pessoa que escolheria a trilha que seria usada para o exercício.

Desta maneira, éramos incentivamos a improvisar por meio dos estados físicos juntamente com todos os elementos teatrais: maquiagem, figurino, cenário e música. Assim, as boas improvisações surgiam de forma muito orgânica e bastante conectadas a todos os elementos teatrais. Além disso, tinham uma força de atuação e de sentido que me impressionavam muito por serem a primeira abordagem de um tema por um ator, muitas vezes, iniciante.

Comecei a perceber alguns pensamentos ou frases que sempre eram repetidos em oficinas, os quais guiavam, de certa forma, esse tipo de fazer teatral, como por exemplo: “Vá ao máximo de cada coisa, pois assim se chegará a grandes impasses, epopeias e heróis”, “Para condensar a vida temos que dar mais nitidez a cada emoção”, “O estado precisa estar forte, mas sem esquecer do desenho”, e através disso, fui percebendo que um dos princípios que ajudavam tais improvisações serem tão potentes estava associado à importância da fisicalidade de cada emoção.

Além disso, em diversas oficinas, percebia a abordagem de alguns elementos recorrentes, como a presença de personagens vestidos de negro que serviam para trazer e tirar objetos de cena e o recurso da animação da natureza em que árvores, vento e mares, por exemplo, eram representados de alguma forma possível de serem manipulados pelos citados “personagens vestidos de negro” que os atribuíam estados emocionais. Também, frequentemente, deparei-me com o cuidado com todos os elementos teatrais, bem como com os materiais usados em cena, sendo valorizado o uso de tecidos e objetos nobres cuidadosamente elaborados.

Por perceber que esses elementos eram recorrentes nos cursos que participei, fiquei curiosa para saber de onde tal pensamento era proveniente, ou

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seja, quais eram as referências da diretora e que adaptações ou transformações ela havia feito desses saberes para encontrar a linguagem própria do seu fazer teatral.

Ao investigar sobre essa questão, encontrei uma entrevista realizada na fundação Pierre Bergé – Yves Saint Laurent que Ariane Mnouchkine concedeu em abril de 2012, chamada: Le Kabuki: um trésor pour le Théâtre du Soleil (Kabuki: um tesouro para o Théâtre du Soleil), em que a diretora fala da sua relação com o teatro japonês Kabuki, exemplificado pelo seguinte trecho:

Ali eu vi o teatro, vi o que isso queria dizer, isso queria dizer criar um mundo a partir do nada (ou sem nada), que tudo estava nos olhos dos atores, que tudo deveria ser metáfora, tudo deveria ser transposto, tudo deveria ser poesia, ritmo e música.

Nesse, e em outros trechos da entrevista, ficou claro para mim o quanto tal tradição japonesa era e é um exemplo de arte teatral para a diretora e como o seu pensamento e a sua criação artística são influenciados, não só pelo Kabuki, mas também pelo Teatro Nô, pelo Kathakali, pelo Topeng, dentre outras tradições orientais.

Com o objetivo de estudar mais especificamente tal influência e como diversas tradições artísticas orientais estão presentes no trabalho de criação da companhia, decidi estudar, especificamente, um espetáculo que tivesse seu processo criativo bastante marcado pela interação com o Oriente. Dentre diversas opções determinei como objeto de estudos o espetáculo Tambours sur la digue, em meio a outras razões por ele concretizar, em sua linguagem cênica, uma transposição e uma releitura de diversas tradições orientais, tendo como principais referências o Bunraku e o Teatro Nô japoneses.

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Introdução

“Quanto mais longe colocamos nossa imaginação, mais conseguimos falar de nós mesmos.” Ariane Mnouchkine

Nesta pesquisa, buscamos compreender a maneira com a qual o grupo de teatro francês Théâtre du Soleil se relaciona com diversas tradições teatrais orientais. Para isso, não pretendemos descobrir um método ou exaurir a discussão a respeito dessa forma particular de relação, pois sabemos que a companhia reinventa alguns aspectos de sua abordagem intercultural a cada novo processo, mas evidenciaremos alguns princípios recorrentes usados pelo grupo que caracterizam sua própria maneira de trabalhar com tradições estrangeiras.

A presente dissertação está estruturada em dois capítulos, seguidos pelas considerações finais e três anexos. O primeiro capítulo aborda um panorama de todas as criações da companhia, buscando analisar as relações interculturais estabelecidas em cada espetáculo. Além disso, discute outras interações existentes entre o grupo e algumas tradições orientais externas aos processos criativos propriamente ditos, como por exemplo questões ligadas ao pensamento do grupo, sua estrutura e seu espaço físico. O segundo capítulo trata do processo criativo do espetáculo Tambours sur la digue, evidenciando as formas de aproximação da companhia com as tradições teatrais orientais tidas como referência para essa criação. As considerações finais apontam as conclusões obtidas com a pesquisa e relacionam as particularidades da prática do Théâtre du Soleil com alguns outros artistas e pensadores associados à discussão do interculturalismo1. Nos anexos apresentamos, nessa ordem, a ficha técnica do espetáculo estudado, um resumo

1 Nesse capítulo abordaremos o debate acerca de noções de interculturalismo a partir de artistas e

autores como Antonin Artaud, Bertold Brecht, Peter Brook e Rustom Bharucha. Há um extenso debate sobre este tema, que perpassa ainda teóricos e artistas como Patrice Pavis, Josette Féral, Eugênio Barba, Meyerhold, dentre outros. Não optamos ao longo do trabalho, entretanto, por focarmo-nos no desenvolvimento dessa discussão, mas, sim, preferimos realizar um estudo voltado ao que toca a particularidade da práxis teatral do Théâtre du Soleil em relação às tradições teatrais orientais.

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do espetáculo detalhado por cenas e um texto que relaciona a abordagem intercultural exercida pelo grupo com a escola de teatro existente dentro da Cartoucherie, chamada ARTA.

O Théâtre du Soleil, em suas criações, inspirou-se em diversas tradições teatrais orientais. Para as citarmos, de forma geral, bem como para nos referirmos às regiões contidas no Oriente com as quais o grupo se relacionou, utilizaremos o termo oriente-referenciado (orient-référence), cunhado por Françoise Quillet, teórica e especialista em teatro oriental e autora do livro L’Orient au Théâtre du Soleil (O oriente no Théâtre du Soleil). Para a autora, a palavra oriente presente no termo significa: “uma região geográfica: a Ásia, determinada por países específicos, sendo eles a China, o Japão, a Índia, o Camboja e a Indonésia2” (QUILLET, 1999: 39). Já a palavra referenciado sintetiza todas as tradições orientais com as quais o grupo estabeleceu contato durante os seus processos criativos, sendo elas: no espetáculo Genhis Khan (1961), a referência foi a Ópera chinesa; em seguida, no espetáculo L’Âge d’or (1975), houve um trabalhou com o teatro chinês (assim como com a Commedia dell’arte); a trilogia Les Shakespeare (1981-1984) foi composta por Ricardo II e Henrique IV, espetáculos que se basearam nas tradições japonesas do Kabuki, Teatro Nô e Kyogen, e por A noite de reis, cujas influências principais foram o Kathakali e o Bharata Natyam (e também a Commedia dell’arte). Em L’histoire terrible mais inachevée de Norodom Sihanouk, roi du Cambodge (1985-1986), a companhia se baseou na história do Camboja e em suas tradições, dentre elas o teatro de sombras Sbèk Thom, além do teatro mascarado balinês Topeng. Em L’indiade ou l’inde de leurs rêves (1987-1988), o grupo teve como referência a história da Índia. Em Les Atrides (1990-1993), ciclo composto por Ifigênia em Áuli, Agamenon, As coéforas e As eumênides, houve grande influência indiana do Kathakali, do Bharata Natyam e do Kûtiyattam. Em Le Tartuffe (1995), as fontes foram a Commedia dell’arte e o Topeng. Na montagem de Et sudain de nuits d’eveil (1997-1998), a companhia se apoiou na história e nas danças tradicionais do Tibet: Cham e Ache Lhamo. Por fim, em Tambours sur la digue (1999) as referências teatrais orientais utilizadas foram o Bunraku, Teatro Nô e Kabuki (Japão), as

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marionetes chinesas, o Samulnori e o P’ansori (Coreia) e as marionetes sobre as águas (Vietnã)3.

Das referências citadas que definem o termo oriente-referenciado, percebemos, a partir de entrevistas, textos e análise de espetáculos, que existe um subgrupo dentro desse em que residem as principais influências orientais do Théâtre du Soleil. São elas o Teatro Nô e o Kabuki (Japão), a Ópera chinesa, o Kathakali (Índia) e o Topeng (teatro mascarado da ilha de Bali na Indonésia). Essas tradições influenciaram diretamente os modos de pensar a dramaturgia, o trabalho de ator, a cenografia, a música, o figurino, as maquiagens, as máscaras, os objetos teatrais e a criação de uma linguagem própria da companhia.

Como dissemos, para o estudo da abordagem intercultural própria do Théâtre du Soleil investigaremos o processo criativo do espetáculo Tambours sur la digue, uma vez que foi nele que a encenação foi criada. Apesar disso, quando analisamos o resultado final desse processo criativo, nessa pesquisa, não pudemos observar diretamente um registro filmado do espetáculo teatral criado em 1999, mas apenas a adaptação feita para o cinema desse espetáculo. Quanto às diferenças presentes entre a peça e o filme destaca-se a solução para algumas cenas que sofreram alterações devido as particularidades da linguagem cinematográfica e a representação da voz das marionetes que é bastante diferente nos dois registros. Além disso, um amplo estudo pode ser realizado sobre as adaptações para a linguagem fílmica dos espetáculos da companhia, uma vez que, um amplo trabalho é feito neste sentido. Entretanto, esse assunto foge ao recorte da presente pesquisa e, por isso, nos basta apontar que a trama contada nas duas abordagens, os elementos cênicos como palco, figurino, concepção das marionetes, música, maquiagem e interpretação dos atores são iguais nos dois registros, não se configurando como um problema termos acesso apenas ao filme para nossas análises do resultado final desta criação4. Dessa forma, como o nosso foco está no

3 Os últimos quatro espetáculos do grupo Le dernier Caravansérail, de 2003, Les ephémères, de

2006, Les naufragés du Fol Espoir, de 2010, e Macbeth, de 2014, não contam com referências orientais diretas.

4 Na viagem de estudo de campo realizado, durante essa pesquisa, em Junho de 2014 para Paris

com apoio da FAPESP, pudemos observar o registro filmado em 1999 do espetáculo e confirmamos que o estudo a partir do filme não nos trouxe prejuízos.

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processo criativo do espetáculo nos referiremos ao nosso objeto de estudo sempre por palavras como “o espetáculo” ou “a encenação” e não como “o filme”.

O espetáculo Tambours sur la digue trata, em sua trama, de um problema ambiental, e do consequente uso do poder em níveis e em formas diferentes. A intriga se situa em um tempo remoto, provavelmente no século XV, em um Oriente extremo que poderia estar situado entre a China, o Japão, o Tibete, o Taiwan ou a Coreia e a forma física presente no espetáculo tem como principais inspirações o Bunraku e o Teatro Nô japoneses.

A peça conta a história5 de uma grande inundação que está próxima de acometer uma cidade e das decisões que precisam ser tomadas para que a destruição seja a menor possível. Assim, o espetáculo evoca as grandes enchentes que devastaram a China, durante a construção da usina das três gargantas6 e associa tais inundações a males como: mentira, egoísmo, cobiça, acerto de contas, desprezo pelos outros e industrialização selvagem. Segundo a própria diretora:

O espetáculo é uma espécie de fábula que coloca o dilema entre duas péssimas soluções: O que escolher? A cidade ou o campo? É também o espelho de nossa sociedade, com nossos demônios e nossas guerras internas” (DALBARD, 1999).

Para a encenação desse espetáculo, os atores trabalharam durante nove meses e descobriram uma maneira própria de representar marionetes, na qual os

5 Toda a história contada no espetáculo está detalhadamente descrita no anexo desta pesquisa. 6 AHidrelétrica das Três GargantasouBarragem das Três Gargantas construída no Rio Yang-tsé,

o maior da China, entre os anos de 1993-2012, é a central hidroelétrica com a segunda maior barragem e represa do mundo.

Aproximadamente 160 vilas e cidades chinesas foram afogadas e cerca de 1,3 milhão de pessoas tiveram de ser removidas de suas casas para que a obra fosse realizada. Além disso, tal construção foi responsável por apagar uma das paisagens mais belas da China, um conjunto de três cânions, ou gargantas, do Yang-tsé.

O artigo do jornalista Carlos Tautz descreve o problema de deslocamento de pessoas causado pela obra: “Os moradores deslocados estão recebendo casas novas e mais confortáveis. Mas os camponeses que viviam na beira do rio terão de se conformar com terras bem menos férteis em regiões montanhosas. Boa parte da história arqueológica da China, nascida ao longo do rio, será afogada. Além disso, a barragem aumentará a poluição da água. A sujeira acumulada tornará quase inevitável a extinção de um tipo raríssimo de golfinho, que só existe no Yang-tsé” (TAUTZ, 1998). Como contrapartida além da hidrelétrica aumentar em 10% a produção de eletricidade do país, a obra transformou o rio numa grande hidrovia, possibilitando o controle das enchentes que entre o ano de 2000 a 2008 já haviam matado 200 000 pessoas.

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bonecos e os manipuladores são interpretados por atores. Ou seja, a técnica descoberta é composta, portanto, por marionetes-vivas.

Dentre os temas abordados pelo espetáculo, destacamos: as relações de poder, uma homenagem, ou uma espécie de manifesto de resistência, ao trabalho do ator e à experiência teatral e a crise ambiental.

A relação de jogo de poder presente no espetáculo está bastante associada à forma da marionete-viva encontrada para a encenação. Ela evidencia que ao mesmo tempo que o homem se sente dono de seu próprio destino, muitas vezes acaba sendo fantoche de forças invisíveis que o governam, como: dinheiro, sedução, cobiça, ignorância, indecisão e amor cego. A partir dessa constatação, o espetáculo não atribui ao ser humano um olhar de piedade frente a essa sua aparente impotência, mas enfatiza, por meio de sua linguagem formal, o quanto o ser humano tem responsabilidade por suas decisões e capacidade de agir com maior coerência moral, apesar das amarras e das forças que o manipulam.

Outro tema diretamente ligado à forma criada, baseada nas marionetes, é a referência que o próprio espetáculo faz ao teatro e ao trabalho do ator. Devido à inspiração claramente perceptível de tradições orientais na concepção do espetáculo que, em sua trama, aborda temas atuais, observa-se uma espécie de homenagem à história do teatro e um manifesto de que as tradições cênicas são capazes de renovar o teatro contemporâneo. Além disso, a própria releitura da marionete evoca a complexidade da arte da interpretação e remete o espectador a um de seus mestres.

A forma criada nessa encenação é, portanto, um dos elementos principais do espetáculo, pois apesar de estar a serviço da história que é contada, ela em si é metafórica e comporta significado. Por isso ela é enfatizada no subtítulo da peça: “sob forma de peça antiga para marionete atuada por atores”, que direciona o olhar do espectador para tal característica da encenação. Em entrevista para a presente pesquisa o ator da companhia Duccio Bellugi-Vannuccini aborda esse assunto:

A peça era sobre a perda. Tinha uma questão mais ecológica, política, mas também falávamos da perda daquela forma teatral. A força dessa peça era esse engajamento contra a perda do nosso tesouro e a resposta era em uma forma extremamente estética. Era de uma beleza incrível. Escrever esse subtítulo

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concentrava a atenção do público na forma. Assim indicava-se que não se veria uma peça que incitaria os espectadores a mudar o mundo como Les Naufragés

du Fol Espoir (Os náufragos do Louca Esperança, espetáculo criado em 2010

pela companhia), mas uma peça cuja força estava na sua estética, pois esta defendia a arte.

Além desses dois assuntos, o tema da crise ambiental é abordado durante toda a trama da encenação, pois como todos os personagens estão diante de uma catástrofe que se aproxima pensa-se constantemente em quem ou o que é o culpado por essa situação. Ou seja, seria o homem, ou a própria natureza, o responsável pela inundação iminente? Por meio do personagem Hun, que defende qualquer ataque à natureza com a justificativa de que o homem tem necessidades como, por exemplo, aquecer a água, cozinhar e construir, o espetáculo demonstra a visão dos seres humanos despreocupados com o meio ambiente. Em contrapartida, por meio de um personagem que é a personificação do rio, a encenação dá voz à natureza que se justifica afirmando que nem todas as catástrofes são completamente naturais, sendo muitas delas consequentes da interação humana mal planejada com o meio ambiente. Assim, o espetáculo se conecta diretamente com muitas das questões envolvidas na construção da usina das três gargantas na China, porém não se reduz apenas a tal acontecimento chinês, pois a crise ambiental e o desrespeito humano ao meio ambiente eram em 1999 e são, até os dias de hoje, problemas mundiais.

Para além do espetáculo objeto de estudo dessa pesquisa, de maneira geral, apontamos que a prática intercultural do Théâtre du Soleil parte de um ponto de vista ocidental e das necessidades teatrais que Mnouchkine possui. Ou seja, ao se debruçar sobre o Oriente, a diretora procura fazer uma mistura pessoal relativizando as fronteiras entre esses dois mundos, para melhor realizar o teatro que acredita. Dessa maneira, as tradições teatrais orientais são tomadas, muitas vezes, com o intuito de desenvolver uma linguagem teatral própria do grupo francês e como fontes de inspiração para as criações da companhia. Dentre as particularidades dessa relação intercultural, focaremos nossos estudos no conceito que companhia denomina por “tradição imaginária”, cuja estruturação e uso serão pormenorizados durante a pesquisa.

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1. Trajetória do Théâtre du Soleil

1.1 Primeiras experiências teatrais de Ariane Mnouchkine

A primeira experiência teatral de Ariane Mnouchkine data de 1959, quando aos 20 anos, cursando a graduação de Psicologia na Université Sorbonne (Paris-França), ela funda, junto com alguns amigos, a ATEP (Association Théâtrale des Étudiantes de Paris), que tinha o objetivo de montar espetáculos e de oferecer formação teatral aos estudantes da universidade. Essa associação foi criada logo após o contato que a diretora teve com o teatro universitário Inglês, de qualidade artística bastante superior ao teatro universitário francês da época, durante um ano de intercâmbio realizado na universidade de Oxford.

É em um grupo universitário que ela tem seus primeiros aprendizados de teatro: figurante e assistente de direção em Coriolano de Shakespeare e Ulysses de J. Joyce. Teatro amador? Impossível de comparar a seriedade, o profissionalismo e o caráter artesanal dessa companhia além da Mancha, com o amadorismo desatualizado do Théâtre Antique da Sorbonne do qual ela havia participado por um período (BABLET e BABLET, 1979a).

Na ATEP, eram organizadas aulas e palestras para formação dos participantes, nestas a diretora se aproximou de algumas tradições teatrais orientais e entrou em contato com técnicas e conhecimentos que influenciaram o trabalho do Théâtre du Soleil. Monique Godard, por exemplo, ex-aluna de Lecoq, deu aulas para os integrantes da associação e apresentou a eles o trabalho do ator através de dois princípios paralelos: a análise do movimento e a improvisação.

Françoise Quillet diz que em todos os processos criativos do grupo podemos encontrar vestígios desse aprendizado proposto, uma vez que “sempre durante as manhãs os atores fazem um treinamento físico que os ajuda a trabalhar, em seguida, a improvisação, o desenho e a forma de seu personagem” (QUILLET, 1999: 22).

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A interação com Godard pode ser interpretada como ponto de partida para o que seria a futura maneira de trabalho do grupo. Sempre reticente em chamá-la de método em suas entrevistas, Mnouchkine questiona tal denominação, pois afirma que cada trabalho do Théâtre du Soleil é único e que o grupo parte sempre do desconhecido para a criação dos espetáculos que produz. Nesse sentido, a diretora apenas afirma que possui o método de fazer cada criação de uma maneira distinta (PASCOUD, 2011: 163).

Apesar de compreendermos, em muitos aspectos, a posição da diretora e de ser evidente, ao analisarmos a trajetória da companhia, que o grupo trata cada novo projeto como uma experiência singular, fazendo com que diversos aspectos da criação sejam diferentes em cada espetáculo, é preciso pontuar que existe uma estrutura de ensaio composta por treinamento físico pela manhã, seguida de improvisação à tarde e à noite, que se repete e é praticamente fixa no trabalho da companhia. Tal estrutura é utilizada desde as primeiras montagens do Théâtre du Soleil, mais precisamente, desde o segundo espetáculo da companhia intitulado Le capitaine Fracasse, de 1966 (PASCOUD, 2011: 67), e se mantém até os dias de hoje.

O tratamento e a importância dessa estrutura sofreram adaptações durante a trajetória da companhia, mas, de maneira geral, quando há a referência de uma tradição estrangeira em um processo criativo, é nesse treinamento vespertino que os atores entram em contato com ela, pois tal prática os auxiliarão a encontrar a forma do espetáculo nas improvisações realizadas posteriormente.

A atriz da companhia Juliana Carneiro da Cunha, em entrevista dada para a nossa pesquisa, define forma da seguinte maneira:

(forma é) a maneira que você escolhe para desenhar um personagem, para contar a história, para fazer com que isso seja teatro. Qual é a forma do meu corpo? Quer dizer, qual a referência você poderia citar se você me visse em cena? Você poderia dizer que eu estava atuando com uma forma dançante. Ou com uma forma clownesca, são exemplos de formas.

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Mnouchkine desenvolverá esse conceito partindo do pressuposto de que o diretor deve oferecer ao ator uma distância adequada do assunto tratado em um espetáculo para que este possa se relacionar de maneira criativa e teatral com o tema proposto. Para a diretora, essa distância é oferecida por meio da proposição de uma forma, sendo esta, portanto, uma referência física para que o ator possa desenhar seu corpo no espaço e, com isso, ser capaz de teatralizar a história que busca contar.

Voltando ao trabalho realizado na ATEP, nessa associação não se faziam pesquisas diretamente relacionadas aos teatros orientais, mas a partir do interesse em buscar novas formas teatrais e em fugir do “realismo burguês”7, os seus participantes entraram em contato com formas teatrais menos conhecidas, dentre elas, as orientais. Roger Planchon, por exemplo, escolhido como presidente de honra da Associação, personificou a ligação da associação com diferentes referências teatrais, uma vez que foi um dos primeiros diretores franceses a se interessar pela linguagem gestual elaborada do teatro japonês.

Os estudantes da associação também se influenciaram pela Commedia dell’arte a partir de Lecoq (grande referência do grupo), e pelo pensamento de Jean-Paul Sartre que afirmava que o verdadeiro teatro deveria estar posicionado entre os gêneros dramático e épico. Ambas as referências estão presentes até hoje no trabalho da companhia. Quanto ao pensamento de Sartre, pode-se dizer que o Théâtre du Soleil, durante sua história, criou uma forma de teatro épico própria, a partir das relações estabelecidas entre as referências teatrais orientais e ocidentais.

A companhia, com frequência, em sua história, apresenta exemplos de adaptações de conceitos e releituras de referências. Como nesse caso em que não se limitou a uma abordagem de teatro épico ligada a algum teórico específico, mas lidou com suas referências como fontes de inspiração para abordar tal gênero. O mesmo acontecerá com as diversas referências orientais com as quais o grupo entrará em contato durante suas criações. Não havendo uma preocupação

7Ao negar o «realismo burguês», Mnouchkine busca abdicar do que chama de teatro psicológico que

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museológica ao tratar uma tradição existente, mas sim uma curiosidade de visitá-la a fim de investigar seus mecanismos de teatralização e transposição.

A primeira direção teatral de Ariane Mnouchkine se realizou, portanto, na ATEP com a peça Gengis Khan, escrita por Henri Bauchau. Esse espetáculo foi influenciado pela Ópera chinesa, tradição teatral assistida pela diretora em uma apresentação em Paris, e buscou colocar em prática os ideais defendidos e aprendidos por ela na associação. Apesar disso, toda a criação foi feita ainda de forma bastante intuitiva e espontânea, segundo Mnouchkine:

(quando montei Gengis Khan) eu já tinha apreciado a Ópera chinesa no Théâtre des Nations e já me inspirava um pouco no teatro chinês, mas eu não sabia nada na época. Apenas tentava ser meticulosa e organizada (PASCOUD, 2011: 46).

Tal espetáculo contou com apenas dez apresentações e uma crítica bastante positiva de Henri Rabine no jornal La croix. Infelizmente, além dessas informações, não possuímos registros de alguma apresentação filmada, nem bibliografia que nos descreva com mais detalhes como ocorreu tal aproximação com a Ópera chinesa, nem contamos com explicações de como essa referência se encontrava presente no resultado final da criação. O que podemos sugerir, a partir de entrevistas e de citações como a transcrita acima, é que a referência dessa tradição oriental provavelmente se estabeleceu devido à influência dos ideais estudados pela ATEP, dentre eles, à busca por encenações distantes da estética realista. Além disso, podemos inferir que provavelmente a abordagem feita pela diretora dessa tradição chinesa tenha ocorrido de maneira simples e intuitiva, uma vez que seu conhecimento desse tipo de ópera não era profundo, como ela mesma relata. Todavia, é importante notar que, tal carência teórica e referencial, com relação a essa tradição, não impediu a diretora de usá-la como inspiração para sua criação.

Segundo Françoise Quillet, nesse espetáculo, podemos observar muitos elementos que depois continuarão existindo nas criações do Soleil. A autora os denomina como: a presença de história, de epopeia, de mito e de uma dramaturgia do poder. Além disso, ela destaca que nessa peça a história é oriental, ligada ao

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mito e ao sonho (QUILLET, 1999: 18), elementos que serão reencontrados nos textos escritos por Hélène Cixous, futura dramaturga da companhia8.

Após a realização desse espetáculo, os participantes da ATEP decidiram tomar dois anos de pausa antes de continuarem seus planos teatrais em conjunto. Nesse período, cada um poderia terminar seus afazeres pessoais como graduações, trabalhos e cursos, a fim de que, posteriormente a este intervalo, pudessem se dedicar exclusivamente ao que seria chamado futuramente “Théâtre du Soleil”. Mnouchkine aproveitou tal período para realizar um antigo sonho de infância: ir à China que para ela, naquele momento, representava o reino da beleza, do mistério e da aventura.

Mnouchkine revela não ter conhecimento de quais foram os impulsos que geraram o seu interesse em visitar aquele país. Apenas descreve que desde os seus cinco anos aproximadamente reconhece esse desejo misterioso em si. Investigando também sobre esse assunto, Fabianne Pascaud pergunta à diretora, em seu livro de entrevistas intitulado A arte do presente, se quando criança ela ouvia muitos relatos de viagens dos seus familiares. Mnouchkine responde que sim e descreve o seguinte episódio marcado em sua memória:

Minha tia Galina, a irmã tão querida do meu pai, sempre me contava uma viagem imensa que os dois tinham feito de trem, que havia durado dois anos, quando ainda eram crianças, durante a revolução. Era naquele famoso trem que tinha sido tomado dos bolcheviques pelo Exército Branco e que atravessava a Sibéria. Uma noite, o trem parou. Nevava. A luz das fogueiras dos soldados tchecos no interior dos vagões iluminava toda a paisagem em volta. E eis que aparece um cortejo de trenós deslizando sobre o gelo. Soldados com rostos asiáticos sentados um em frente ao outro, cobertos com imensos mantos dourados. No trem, todos olhavam para eles. Só se ouvia o barulho dos cascos dos cavalos na neve. E aos poucos meu pai e sua irmã perceberam que eles estavam todos mortos! Gelados! Um batalhão inteiro. Eles haviam se protegido do melhor jeito possível com os hábitos do monastério que tinham pilhado, mas mesmo assim congelaram durante a noite. Só os cavalinhos continuaram trotando. Até a morte. Meu pai estava na janela, vendo tudo. Acho que essa visão ficou gravada nele, depois em mim, para sempre. A revolução. A guerra. O Apocalipse. O mistério daqueles rostos asiáticos. Por que asiáticos? (PASCOUD, 2011: 47).

8Hélène Cixous se tornou dramaturga da companhia vinte e seis anos depois da criação de Gengis

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Essa lembrança trágica da diretora pode ser imaginada pelos leitores com os detalhes, atmosferas e recursos de uma emocionante cena cinematográfica ou ainda, para os conhecedores dos espetáculos do grupo, não seria difícil imaginá-la como pertencente a algum deles. Assim, não pretendemos fazer uma análise psicológica das lembranças da diretora, mas provavelmente um relato como esse que ficou, conforme ela diz, “guardado para sempre” em sua memória, conecte suas fantasias e imaginação desde a sua infância com a Ásia. Além disso, os temas evocados por tal lembrança: guerra, apocalipse e revolução, estarão sempre presentes, seja como pano de fundo ou como protagonistas na maioria dos espetáculos do grupo.

Nosso objetivo em transcrever essa cena e relacioná-la como um dos possíveis impulsionadores da viagem da diretora vem do fato de Mnouchkine repetir diversas vezes que não fez essa viagem ao Oriente porque estava influenciada pelos estudos de grandes homens de teatro como Copeau, Artaud ou Brecht, por exemplo. Em suas palavras:

Não fui para o Oriente porque tinha lido Copeau. Li Copeau porque estava voltando do Oriente. Estava fascinada pela simplicidade radical de alguns lugares. Por exemplo, o Teatro Nô tem a mesma fachada de um templo. Aliás, se olharmos para uma planta do Globe ao lado da planta de um

Teatro Nô, percebemos quanto eles se parecem! O Globe Theatre de

William Shakespeare é como o pátio de uma antiga estalagem. Há o mesmo terracinho na frente da galeria do Globe e na frente da galeria do

Teatro Nô. Na Índia, na menor pracinha, quatro bambus e um teto

sarapintado compõem o teatrinho mais bonito do mundo (PASCOUD, 2011: 57).

Sobre Brecht a diretora diz que, apesar de ter ficado impressionada com os espetáculos do Berliner Ensemble, a teoria brechtiana não chamou a sua atenção rapidamente:

Talvez porque eu fui procurar minhas fontes rio acima: a Ásia, o Oriente. Foi só mais tarde que fui me interessar de verdade pela sua obra. Como pela de Artaud. Eles vieram confirmar o que eu acreditava ter descoberto

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sozinha. Sabe, eu leio muitas coisas, e esqueço rápido. Virou uma espécie de método. Como se fosse preciso esquecer, ser ingrata com seus « predecessores », para ser livre. A gratidão vem depois. Quando não tememos mais (PASCOUD, 2011: 82).

Ou seja, Mnouchkine parte para sua viagem por necessidades diferentes das de uma pesquisa de campo ou de confirmar pessoalmente o que outros já haviam falado sobre o Oriente. Segundo a diretora, ela viaja porque:

Ir à China significava ir a uma China interior. Eu precisava de ruptura. Precisava ir para longe, inverter o curso do rio, do tempo, do espaço, para me encontrar. Precisava de aventura. Mas acho que ir à China significava também, já naquela época, ir para o teatro (PASCOUD, 2011: 50).

Portanto, apesar do contato por meio da ATEP com algumas tradições, Mnouchkine, ou não se aprofundou nesses estudos, como relatou, ou devido ao seu descrito “método de esquecimento” não tinha tais leituras como referências quando partiu da França. Assim, ela se relacionou com os territórios visitados e com as tradições encontradas no Oriente como se fosse a primeira a fazê-lo, ou seja, fez esta viagem de forma livre, sendo capaz de ter suas primeiras impressões como “referências puras”. Tal contato direto nos leva a crer que a cena que descrevemos é de grande importância para que essa viagem tenha sido impulsionada, pois nos parece que Mnouchkine parte em busca de um Oriente imaginário e fantástico e não para conferir citações antes estudadas.

Essa forma intuitiva e direta com que o interesse da diretora recaiu sobre a China é um exemplo, e ao mesmo tempo uma explicação, da maneira como o grupo se relacionará com certas tradições teatrais orientais em suas criações.

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1.2 A grande viagem

O plano inicial de Mnouchkine para sua viagem era de ir, como dissemos, para a China, porém, diante da impossibilidade de conseguir um visto para o país, a viagem iniciou-se pela visita ao Japão. Ali, a diretora passou cinco meses, deu aulas de inglês, viajou livremente pelo país e continuou tentando obter seu visto chinês. Como descrevemos o objetivo dessa viagem não era o de um estudo específico do teatro oriental, como relata a diretora:

Não estava fazendo uma viagem de estudo: para mim, aquilo era um autêntico mochilão. Não sabia o que me esperava. Via tanto as cidades quanto os vilarejos, tanto os monumentos e os templos, quanto os lagos sagrados e as pessoas. E, às vezes, não via nada. Simplesmente existia longe de casa (PASCOUD, 2011: 51).

Apesar de não ter ido ao encontro do teatro oriental diretamente este marcou grande parte de sua viagem. Em Kobe, no Japão, Mnouchkine ficou impressionada com uma apresentação de Teatro Nô e posteriormente, em Tóquio, ela assistiu a um ator de Kabuki no bairro de Asakusa o que a marcou particularmente, como relata:

Era um teatro minúsculo, onde eu tive o choque da minha vida ao observar um ator que não saberei nunca o nome. Com um simples tambor, ele sozinho representava uma batalha. Este homem, em duas horas de teatro, me ensinou tudo. Ele me mostrou que o teatro era sempre possível, que ele poderia contar tudo. Eu compreendi que mesmo nos teatros mais simples, se um ator tem coração, ele pode nos transportar até o fundo dos campos mais distantes. Era em 1963. Eu nunca saberia quem era este ator, mas ele ocupa um grande espaço dentro da minha mala de tesouros (PICON-VALLIN, 2004).

Mnouchkine descreve que essa foi uma experiência muito marcante, em que a barreira da língua não existiu e que em tal apresentação: “A epopeia estava lá:

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miserável e universal. Era esse o teatro que eu queria. Eu devo muito a esse obscuro ator japonês”. (PASCAUD, 2011: 51). Ainda sobre suas percepções do teatro Kabuki, ela conta que, ao assisti-lo, sabia que não estava vendo Shakespeare, mas que para ela era como se fosse (essa experiência influenciará, dezoito anos mais tarde, a criação do Théâtre du Soleil das peças Ricardo II e Henrique IV de Shakespeare).

Depois do Japão, Mnouchkine continuou sua viagem em Bangcoc na Tailândia, lá ela foi marcada pelo contato com o teatro chinês que pode assistir em uma praça pública. Depois, partiu para o Camboja onde ficou maravilhada com as belezas do país e com a cultura local. Posteriormente, foi para Calcutá, onde observou de perto a fome, a pobreza e a clara presença da morte. Devido ao choque diante de tamanha carência na Índia, a diretora seguiu em direção ao Nepal e passou um período vagando a pé pelo país. Após um momento de pausa e reflexão, voltou à Índia que, segundo ela, virou seu “segundo país” (PASCAUD: 2011, 53). Nesse país, entrou em contato mais uma vez com o Kathakali, tradição indiana que já havia assistido em Paris no Théâtre des Nations.

A diretora conta que, durante essa viagem, ela era uma espécie de esponja na qual, sem saber e quase sem querer, foi juntando um tesouro que posteriormente ia mudar toda a sua maneira de ver e de viver. Após a Índia, seguiu para o Paquistão, e em seguida para o Afeganistão, terminando sua trajetória na Turquia.

Ariane Mnouchkine terminou sua viagem sem nunca pisar no primeiro destino desejado, porque no período as dificuldades eram muito grandes para se conseguir um visto chinês. Muitas vezes, um turista só o conseguia através de pacotes fechados de agências de viagem, geralmente a preços exorbitantes, e com um perfil de viagem bastante diferente do que buscava a diretora.

Essa aventura como veremos adiante, reverberará de forma determinante no trabalho de Mnouchkine. Conforme ela diz em entrevistas, quando viajava ia colhendo e armazenando conhecimento para digerir e destrinchar posteriormente. Assim, ao analisarmos a trajetória do grupo, não veremos uma influência imediata das tradições teatrais orientais no trabalho do Soleil, mas um amadurecimento e uma elaboração dessas referências que começam a surgir em alguns espetáculos,

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mas que terão como primeiro grande marco de apropriação e influência no trabalho do grupo a realização do ciclo Les Shakespeares (Os Shakespeares) em 1981.

Ao ser questionada sobre o que ficou de toda essa grande jornada Mnouchkine comenta, dentre outros aspectos, que:

Eu não viajava só no espaço, mas no tempo. Tinha esse privilégio extraordinário de estar em um momento na Idade Média, no outro na Renascença, às vezes até na Antiguidade. Encontrava pessoas que tinham simplicidades grandiosas, universos cheios de poesia no cotidiano e no que eles diziam, na maneira que me acolhiam. Tinha lá uma amplidão, uma beleza dos gestos, uma ritualização da vida cotidiana que me são indispensáveis (PASCAUD, 2011: 56).

Essa ritualização da vida cotidiana, presenciada no oriente, influenciou diretamente na maneira como o Théâtre du Soleil acolhe o público de seus espetáculos e na maneira como a companhia enfatiza o caráter ritual de eventos como um jantar ou uma visita ao teatro.

Acreditamos ser importante relatar que, se antes de realizar tal viagem Mnouchkine dizia saber muito pouco sobre as tradições orientais, depois desse período na Ásia e até os dias de hoje, sua posição com relação ao conhecimento apreendido continua bastante singular e pessoal.

Organizada pela fundação Pierre Bergé – Yves Saint Laurent, dentro das programações relacionadas à exposição de figurinos de Kabuki realizada em abril de 2012, Ariane Mnouchkine concedeu uma entrevista chamada: Le Kabuki: um trésor pour le Théâtre du Soleil (Kabuki: um tesouro para o Théâtre du Soleil). No início dessa entrevista, a artista é apresentada como sendo uma das maiores diretoras francesas e também como uma grande especialista em teatro Kabuki. Após essa apresentação, Mnouchkine imediatamente retifica tal informação, dizendo que seria muito pretensioso defini-la como uma especialista dessa tradição teatral. A diretora argumenta que, se a entrevistadora atribui a ela o título de especialista em Kabuki pelo fato dela ter assistido a apresentações dessa tradição com toda sua alma, com toda sua pele, ter deixado essa referência entrar pelos

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seus olhos, pelas suas orelhas e nunca mais tê-lo deixado sair dela, então, somente sob este ponto de vista, ela é uma especialista.

A partir desse relato, fica clara a relação que a diretora estabelece com tal tradição (sendo essa forma de relação possível de se estender a todas as outras tradições nas quais a diretora se inspira). Ela não se vê como uma especialista teórica, provavelmente ela sabe muito sobre a história e sobre elementos precisos do Kabuki, mas não é sobre esse tipo de conhecimento que ela procura ser associada. Mnouchkine valoriza sua experiência pessoal diante dessa referência e busca investigar o Kabuki, no caso, no sentido de procurar descobrir como ela própria também poderia fazer algo tão poderoso teatralmente.

A diretora diz, nesta entrevista, que ela se perguntava: ”Por onde passava Kabuki, por onde nascia o Kabuki, o que movia o Kabuki, de onde ele vinha e o que ele buscava”. Como se ela estivesse procurando o alfabeto que possibilitasse aquele tipo de escrita, ou a maneiras de trabalhar que a levassem àquelas metáforas, àquelas transposições. Assim, ela se interessava pelo que dizia respeito ao teatro de forma universal, presente no Kabuki, ao que aquela forma teatral era capaz de transmitir a qualquer espectador.

De volta a Paris, em 1964, Ariane Mnouchkine juntamente com Jean-Claude Penchenat, Gérard Hardy, Philippe Léotard, Françoise Tournafond, Martine Franck, Catherine Legrand, Jean-Pierre Taihade, Françoise Jamet, Myrrha Donzenac, George Donzenac, seu pai e o sócio dele Georges Dancigers, fundaram o Théâtre du Soleil.

A escolha do nome do grupo ocorreu em uma conversa com os fundadores da companhia. Buscava-se aquele que fosse: “mais bonito, mais inspirador, o nome que realmente significasse o que era o teatro para nós” (PASCAUD, 2011: 26). Eles não buscavam, como era costume na época, nomear uma companhia pelo seu diretor, por exemplo, Companhia Mnouchkine, pois, desde o início, o grupo havia sido fundado baseado em princípios de igualdade e trabalho coletivos. Então, nomes como “vida”, ”fogo”, ”calor”, “humanidade”, “beleza” foram sugeridos, até que o nome “sol” (soleil) foi acatado.

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Para a criação do grupo, cada membro contribuiu com uma pequena quantia financeira (equivalente hoje a aproximadamente cento e quarenta euros) a fim de viabilizar os primeiros passos da companhia. Assim, em maio de 1964, como conta Mnouchkine:

Criamos uma cooperativa operária de produção em que todos os membros, do ator à costureira, do técnico ao decorador, ganhavam, ou melhor, ganhariam um dia, o mesmo salário o ano inteiro. Fixamos, logo de cara, o funcionamento coletivo (PASCAUD, 2011: 26).

1.3 Primeiros espetáculos - a instauração da criação coletiva e a influência do teatro popular ocidental

Trataremos aqui das criações do Théâtre du Soleil, desde o início da trajetória do grupo, até o espetáculo Et soudain des nuits d’éveil, de 1997, o qual precede Tambours sur la digue. Essa trajetória será analisada com o objetivo de mapearmos como o Théâtre du Soleil estabeleceu contato com as tradições do oriente-referenciado e de investigarmos o papel que tais referências exerceram em cada processo criativo da companhia.

Após sua viagem, de volta à França, Mnouchkine passou seis meses estudando com Jacques Lecoq em Paris. A diretora descreve esta experiência:

Ele me fez entender o que eu tinha visto e sentido de maneira confusa no Japão e na índia. Lecoq entendia perfeitamente para que serve o corpo. Antes de Lecoq começar a dar aulas na França, ainda achávamos que os únicos instrumentos do ator eram a memória, a voz e as palavras. Graças a ele, percebemos que o corpo era a ferramenta primordial. O ator só poderia se alimentar de palavras depois de ter educado o corpo. (...) Tudo o que estava na panela, cozinhando devagar e que, sem ele, durante muito tempo, permaneceria confuso, com ele de repente se esclareceu, com o trabalho da máscara, do gesto. Lecoq me ajudou a ligar todos os pontos. “Então é como no Japão, como na Índia?” E ele: “Isso, exatamente! (QUILLET, 1999: 54).

Lecoq oferece ferramentas a Mnouchkine que possibilitam que ela trabalhe, na prática da criação, com os princípios teatrais que haviam chamado sua atenção

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no Oriente. Tais ferramentas estão diretamente ligadas ao trabalho físico dos atores, porém ela não cria como, por exemplo, Eugênio Barba, Grotowski, entre outros, um treinamento específico. Isso porque a diretora compreendeu, com Lecoq, que o teatro deveria, impreterivelmente, passar pelo corpo do ator, mas elaborou praticamente tal constatação de outra maneira, relacionando-a com o trabalho de improvisação baseado em uma forma.

Mnouchkine, frequentemente, retoma as palavras de Artaud dizendo “o teatro é oriental”, e justifica a citação desse pensador pela relação do Oriente com o trabalho do ator. Para ela, o ator oriental é um exemplo inigualável da capacidade de tornar fisicamente comunicável os sintomas sentidos pela alma humana e, devido a esta fisicalidade, capaz de teatralizar, transpor e de diferenciar o que está representando da realidade. É esta fisicalidade que a havia maravilhado em sua viagem que Lecoq, por meio do seu trabalho com as máscaras, torna consciente para a diretora9.

Voltando ao surgimento do Théâtre du Soleil, Mnouchkine afirma que o grupo nasceu sem saber exatamente que teatro gostaria de fazer. Ela conta: “Não éramos nem brechtianos nem nada, só estávamos juntos” (PASCAUD, 2011: 26).

A primeira peça montada pelo Soleil foi Les petits Bourgeois (Os pequeno-burgueses10) de Maksim Górki, em 1964. Segundo a diretora: “Nós tivemos a ideia de montar Os pequenos burgueses, porque, afinal, isso é o que quase todos éramos, pequeno-burgueses, então encenaríamos isso e ela nos daria uma lição” (PASCAUD, 2011: 27). Segundo ela própria tal espetáculo era bastante simples devido à falta de recursos, mas tinha o mérito de ser bem interpretado. Nele não foi usada nenhuma referência teatral formal específica, Mnouchkine se baseou nos estudos de Stanislaviski para essa criação e, desde tal espetáculo, passou a

9 O trabalho de Lecoq influenciou profundamente o de Mnouchkine. Sobre este assunto

recentemente foi lançado na França o livro La Filiation (FREIXE, Guy. La Filiation. Paris: L’entretemps, 2014), no qual traça-se relações entre Copeau, Lecoq e Mnouchkine e defende-se a existência de uma linha teatral ligada ao jogo dos atores comum a estes mestres teatrais.

10 Todas as traduções para o português dos títulos dos espetáculos foram retiradas do livro A arte

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trabalhar com seus atores a necessidade de se possuir um estado11 forte para entrar em cena e improvisar.

Essa peça foi seguida por Le capitaine Fracasse (O capitão Fracasso), criada em 1966, a partir do romance de mesmo nome escrito por Théophile Gautier, um dos clássicos da infância da diretora. Porém, tal espetáculo não encontrou o mesmo reconhecimento dos dois precedentes e é abordado como o primeiro fiasco do grupo. Segundo Mnouchkine:

Tenho que reconhecer que esse espetáculo era bastante desajeitado, infantil, verde, um pouco influenciado pelo circo e pela comédia musical. Tinha canções, partes versificadas. Para resumir, ninguém veio ver. Resultado: nossas primeiras dívidas (PASCOUD, 2011: 32).

Apesar de seu fracasso, a peça concretizou o primeiro contato do grupo com a Commedia dell’arte, que, junto com o trabalho relacionado ao palhaço e com algumas formas de teatro popular, constituirá as primeiras referências usadas nas

11 O termo estado é utilizado pelo Théâtre du Soleil para designar uma emoção clara que o ator

precisa encontrar para representar a situação que improvisará. O grupo trabalha com estados primários como: alegria, raiva e tristeza, por exemplo, e com estados complexificados como a angústia, que é a mistura da dor com a tristeza. O estado escolhido pelo ator deve ser traduzido de forma concreta em seu corpo.

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criações do grupo para afastar os atores do realismo e oferecer-lhes uma referência formal.

Em seguida, o grupo montou La cuisine (A cozinha) de Arnold Wesker, em 1967. Esse foi o primeiro espetáculo em que o grupo trabalhou profundamente, ou como diz Mnouchkine, até o esgotamento, havendo encontros das dezenove horas até uma ou duas horas da manhã, todos os dias, para sua criação. A história se passava toda dentro de um restaurante, antes, durante e depois do horário do rush. A peça foi o primeiro grande sucesso do Théâtre du Soleil, possibilitando, inclusive, os primeiros pagamentos do grupo.

A diretora comenta a criação desse espetáculo:

Eu acho que só a partir daí nasceu a minha vontade de fazer teatro de verdade, teatro grande. A cozinha forçou todo mundo a buscar uma forma, uma metáfora física. Descamar um linguado que não existe, transparecer o desespero de alguém pela maneira com que ele bate os ovos, isso, sim, é teatro! (PASCAUD, 2012: 34).

Wesker propõe em seu texto a ausência de alimentos reais na encenação. Tal ausência, como quando se trabalha com máscaras, fazia com que os atores se lembrassem, o tempo todo, de tornar físicas e concretas as sensações que possuíam exigindo, assim, um maior engajamento de seus corpos nas atuações. Tudo precisava ser desenhado: o calor do ambiente, a textura dos alimentos, o peso das panelas, dessa forma, os gestos precisavam ser transpostos e limpos para conseguirem ser portadores de tais significados.

Nessa encenação, a partir da condição imposta pelo autor, Mnouchkine encontrou uma forma clara, uma distância ideal, para que tudo o que fosse feito em cima do palco fosse transposto, teatral, ritmado e poético. Tais características do espetáculo nos remetem à descrição que a diretora fez sobre o espetáculo Kabuki ao qual assistiu em Asakusa durante a entrevista mencionada, realizada na fundação Pierre Bergé – Yves Saint Laurent:

Ali eu vi o teatro, vi o que isso queria dizer, isso queria dizer criar um mundo a partir do nada (ou sem nada), que tudo estava nos olhos dos atores, que

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tudo deveria ser metáfora, tudo deveria ser transposto, tudo deveria ser poesia, ritmo, música.

Assim, a artista coloca em prática em La cuisine princípios que haviam chamado sua atenção presentes no Kabuki, mesmo sem usá-lo como referência direta para sua criação. Tais princípios passam a ser frequentes nas próximas criações de Mnouchkine e caracterizam o tipo de teatro que esta busca realizar.

Para capacitar os atores na encenação de La cuisine um cozinheiro foi contratado para ir aos ensaios dar aulas que ensinassem gestos próprios e detalhes de sua profissão. Ou seja, para chegar à estilização presente na encenação os atores entraram em contato, primeiramente, com os gestos reais da profissão e, inclusive, alguns deles fizeram estágios em restaurantes como forma de pesquisa.

A referência do trabalho de cozinheiro, transposta para a ficção, assume, no espetáculo, o papel que futuramente será o ocupado por tradições orientais. Além disso, o modo de relação que o grupo estabeleceu com tal referência, tendo em primeiro lugar o contato com o real para depois encontrar o transposto em cena, é exemplo de uma das maneiras com que o grupo lida com diversas tradições do oriente-referenciado.

Mnouchkine comenta que esse espetáculo contribuiu muito para a evolução dos atores: “Maior domínio do gesto e da palavra, descoberta de recursos da voz do murmúrio ao grito, descobriu-se a potência do trabalho de coro e da mímica” (BABLET e BABLET, 1979b). Assim, percebemos que o trabalho físico e a necessidade concreta de transposição foram como uma espécie de escola para os artistas do Théâtre du Soleil e que tais aprendizados conduziram Mnouchkine em suas próximas direções.

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Em 1968 o Théâtre du Soleil cria sua quarta peça: Le songe d’une nuit d’été (Sonho de uma noite de verão) de Shakespeare. Mnouchkine descreve a montagem como sendo outro sucesso da companhia, apesar da curta temporada devido aos acontecimentos políticos de maio de 1968.

O cenário da encenação é descrito, em entrevistas, como um dos elementos de maior destaque da criação. A diretora o descreve:

O palco era levemente inclinado e as árvores da floresta, esculpidas em simples pranchas, eram suspensas, caindo do céu, como totens. Se tocássemos nelas, elas mexiam. Eu acho que vou sentir falta dessas árvores para sempre. Os atores pareciam representar dentro da floresta, dentro da flora e da fauna. Havia luas atrás, várias luas que se acendiam, às vezes ao mesmo tempo. E o piso! Um dia cruzei com um vendedor de pele de cabra, e vi três peles de cabra vermelhas e negras abertas no chão. Eu disse a mim mesma: «Isso parece limbo! É disso que a gente precisa». E foi o que a gente fez. O palco inteiro era coberto de pele de cabra (PASCAUD, 2011: 35).

Sobre esse espetáculo Quillet afirma que podemos observar a “introdução de elementos de uma estética que será usada no futuro e que remete à cena oriental” (QUILLET, 1999: 27). Tais itens, para a autora, estão relacionados com o

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detalhamento do espaço cênico e com a presença de grandes áreas livres no palco. Nesse ponto, é interessante notar que as metaforizações e as transposições ligadas ao gesto, presentes em La cuisine, e o palco em Le songe d’une nuit d’été, que são os pontos que a diretora mais valoriza e dos quais se recorda como uma positiva realização do grupo, são os aspectos que mais se aproximam, mesmo que intuitivamente, da arte oriental nesses dois espetáculos.

Mnouchkine revela que a tarefa mais difícil nesse espetáculo foi a de encontrar uma forma que traduzisse visualmente o mundo fantástico, imaginário presente na peça sem torná-lo realista. Para isso, ela tomou duas decisões: a cor verde foi banida dos figurinos e dos cenários, inclusive nas árvores e nas moitas, sendo o espetáculo representado em tons de cinza e negro e o número de lugares ficcionais em que a peça se passava foi reduzido. A adaptação no cenário e na dramaturgia foi o único elemento que encontramos de transposição e adaptação feitas no texto original. Além disso, em nossas pesquisas não foi encontrada nenhuma referência teatral específica para a criação desse espetáculo.

Em 1968, diante de todos os acontecimentos políticos ocorridos, no mês de maio desse ano, o Théâtre du Soleil encontrava-se sem lugar para ensaiar e

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