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UMA DEFESA DO NECESSÁRIO A POSTERIORI

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Academic year: 2021

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Maria Bouça

UMA DEFESA DO NECESSÁRIO A POSTERIORI

Dissertação de Mestrado em Filosofia da Linguagem e da Consciência apresentada à Faculdade de Letras de Lisboa

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INTRODUÇÃO

O tema desta dissertação é, como o seu título indica, a tese, inicialmente defendida por Kripke (1988; 1993: 162-191), segundo a qual há verdades necessárias que só empiricamente podem ser conhecidas. O objectivo é argumentar a favor da plausibilidade da tese kripkeana e exibir a consequente refutação da tese tradicional, explicitamente defendida por Kant (1985; 1987), segundo a qual todas as verdades necessárias são conhecidas a priori.

Dado que a inteligibilidade da tese kripkeana emerge de um determinado contexto teórico, começarei por abordar certas teses e noções chave que constituem aquele contexto, e que o aparato conceptual da teoria lógica da modalidade de Kripke permite clarificar e discutir. As noções em questão são a noção de necessidade metafísica, as noções metafísicas de identidade transmundial e de propriedade essencial (acidental) de objectos, e a noção semântica e modalmente orientada de designação rígida.

Mostrarei, em seguida, a plausibilidade da argumentação que suporta a tese kripkeana e que contraria a tese tradicional, distinguindo entre uma versão fraca e uma versão forte daquela tese. Estas duas versões reflectem a distinção, nem sempre claramente reconhecida, entre o valor de verdade, o estatuto modal geral e o estatuto modal específico de uma proposição. A versão fraca defende que certas verdades necessárias, as quais podemos não saber que são necessárias, só empiricamente podem ser conhecidas, isto é, só empiricamente podemos conhecer o seu valor de verdade. A versão forte defende que certas verdades necessárias, as quais sabemos a priori que são necessárias, só empiricamente podem ser

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conhecidas como tal (como necessárias), isto é, só empiricamente podemos conhecer o seu estatuto modal específico. A defesa do Necessário A Posteriori passará aqui pela análise e discussão das teses em questão (tese kripkeana e tese tradicional) e respectivas versões. (Ver listagem de teses e versões na parte final da dissertação)

Na medida em que a tese do Necessário A Posteriori, como tese existencial, é inseparável dos casos que a verificam, torna-se imprescindível, tendo em vista o objectivo desta dissertação, a discussão de diversos tipos de casos do Necessário A Posteriori. Uma taxonomia simples de verdades necessárias a posteriori consiste em dividi-las em dois tipos: triviais e não triviais. Os primeiros são sobretudo casos de identidades verdadeiras formuladas à custa de nomes próprios; os segundos são casos que dizem respeito a categorias naturais e ainda à origem e composição material de objectos físícos. Os primeiros casos são triviais no sentido de resultarem da admissão da tese semântica da designação rígida, de alguma lógica modal elementar, e ainda de proposições empíricas incontroversas. Os casos não triviais exigem certas considerações essencialistas suplementares que, embora plausivelmente argumentadas, estão longe de ter o estatuto incontroverso que aquelas premissas de carácter lógico-semântico alegadamente têm.

Depois destas considerações genéricas, passo a descrever, com maior detalhe, o conteúdo dos três capítulos que compõem esta dissertação.

No Capítulo I analisarei as três principais teses envolvidas na discussão do Necessário A Posteriori: as teses da Identidade Transmundial, do Essencialismo e da Designação Rígida.

A tese da Identidade Transmundial, a qual se opõe notoriamente à Teoria das Contrapartes de David Lewis, sustenta que um e o mesmo particular (e não uma sua contraparte) pode existir em mais do que um mundo possível. Kripke (1988)

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argumenta contra a Teoria das Contrapartes, defendendo que ela deturpa a nossa compreensão intuitiva de certas afirmações modais, e que é o resultado de uma concepção incorrecta acerca de mundos possíveis e da identificação de particulares nesses mundos.

Muitos dos casos kripkeanos de verdades necessárias a posteriori supõem que um objecto particular ou substância pode existir em mais do que um mundo. Assim, por exemplo, defender que (se sabe apenas empiricamente que) Cícero é necessariamente idêntico a Túlio, que o ouro é necessariamente o metal com o peso atómico 79, ou que a pessoa x é necessariamente oriunda dos gametas y e z, implica admitir, respectivamente, que Cícero, o ouro, ou a pessoa x, são existentes transmundiais.

A tese da Identidade Transmundial, pressuposta em muitos casos de verdades necessárias a posteriori, não é incontroversa. No entanto, como mostrarei, as principais objecções à noção de identidade transmundial parecem poder ser coerentemente contra-argumentadas.

O Essencialismo é também um pressuposto dos casos não triviais de verdades necessárias a posteriori. Os casos não triviais distinguem-se dos triviais pelo facto de os últimos não exigirem aquele pressuposto. Trata-se da doutrina segundo a qual certos particulares e substâncias têm certas propriedades acidentalmente (estas são as que eles podem deixar de ter noutros mundos possíveis em que existam) e outras essencialmente (estas são as que eles não podem deixar de ter noutros mundos possíveis em que existam). Esta doutrina corresponde à admissão da modalidade de re, isto é, da modalidade atribuída a uma coisa (res). Assim, por exemplo, afirmar que (se sabe apenas por meios empíricos que), em todos os mundos possíveis, a água, se existe, é H2O, implica atribuir à substância, rigidamente designada por “água”, uma determinada propriedade essencial não trivial , a de ter a composição química H2O; afirmar que (se sabe apenas por meios empíricos que), em todos os mundos possíveis, Édipo, se existe,

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é filho de Jocasta, implica atribuir a uma pessoa, Édipo, uma propriedade essencial não trivial, a de ser filho de Jocasta.

A teoria da modalidade de Kripke permite, não só clarificar a noção de identidade transmundial, como também tornar inteligível a noção de propriedade essencial: uma propriedade essencial de um particular ou de uma substância é uma propriedade que esse particular ou substância possui em todos os mundos possíveis em que existe. No entanto, a determinação de que propriedades são essenciais a um particular ou a uma substância exige a suplementação da teoria da modalidade com certos argumentos eminentemente metafísicos.

O essencialismo pressuposto nos casos não triviais de necessidades a posteriori é nomologicamente orientado, na medida em que se apoia na ciência e nas leis da natureza: a necessidade natural é automaticamente elevada a necessidade metafísica. Assim, por exemplo, H2O é uma propriedade essencial da água porque, nomologicamente, a água não poderia deixar de ter a composição química que de facto tem; do mesmo modo, ser filho de Jocasta é uma propriedade essencial de Édipo porque, nomologicamente, Édipo não poderia ter um progenitor diferente do que de facto tem. Um mundo possível com leis físicas diferentes, em que, por exemplo, as moléculas de hidrogénio nunca se misturam com as de oxigénio, é um mundo possível onde a água não existe, mesmo que exista um líquido em tudo o resto semelhante à água; do mesmo modo, um mundo possível em que em vez de homens existem robots, é um mundo possível onde Édipo não existe, mesmo que exista um robot em tudo o resto semelhante a Édipo.

A tese kripkeana da Designação Rígida é uma tese semântica modalmente orientada, segundo a qual certos designadores - nomes próprios, termos para categorias naturais e certas descrições definidas - são rígidos, designam o mesmo objecto em todos os mundos em que o objecto existe. O teste intuitivo de rigidez funda-se em intuições acerca de propriedades modais de particulares: pergunta-se se alguém ou alguma coisa diferente da pessoa ou coisa que se está a designar

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poderia ter sido essa pessoa ou coisa; se a resposta intuitiva é negativa, então o designador utilizado designa rigidamente essa pessoa ou coisa.

Apesar do teste de rigidez se apoiar, segundo Kripke, em intuições essencialistas, pode-se defender que é por estipulação que se estabelece a rigidez de nomes próprios e de termos para categorias naturais. Assim, como mostrarei, embora a tese kripkeana da Designação Rígida exija o Essencialismo, o Essencialismo não exige aquela tese semântica modalmente orientada.

No Capítulo II discuto as duas versões e o suporte argumentativo da tese kripkeana de que há verdades necessárias que só empiricamente podem ser conhecidas, tese que contraria a tese tradicional de que todas as verdades necessárias são a priori.

Começarei por mostrar que uma clarificação e demarcação das categorias de modalidade alética (que diz respeito ao modo de uma proposição ser verdadeira) e modalidade epistémica (que diz respeito ao modo de conhecer uma proposição) permite fragilizar a tese tradicional, ao evidenciar um erro bastante comum: o da confusão de domínios das modalidades envolvidas. Assumindo-se que da necessidade não se segue, por análise conceptual, a aprioridade, a co-extensionalidade das duas noções exige argumentos substantivos para se poder manter.

Tais argumentos não são detectáveis em Kant, cujas posições são representativas da tese tradicional, de uma forma clara e inequívoca, uma vez que o filósofo parece por vezes usar a noção de “necessidade” no sentido transcendental de condição de possibilidade da experiência. Mesmo admitindo que os defensores da tese tradicional usam a noção de necessidade no sentido tradicional, alético, a argumentação que a suporta parece não só confundir os domínios alético e epistemológico de uma proposição, como parece também confundir o conhecimento do valor de verdade de uma proposição necessária e o conhecimento do seu

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estatuto modal geral. Ora, assim como devemos atender à distinção entre o domínio alético e o epistemológico de uma proposição , o mesmo deve ser feito relativamente ao valor de verdade e ao estatuto modal geral de uma proposição. O valor de verdade de uma proposição é o seu ser verdadeira ou falsa, e o estatuto modal geral de uma proposição é o seu ser necessária ou contingente, sem atender ao seu valor de verdade. Logo, o conhecimento do valor de verdade de uma proposição não equivale ao conhecimento do seu estatuto modal geral. Assim sendo, uma coisa é saber que uma proposição necessária é verdadeira (conhecimento do valor de verdade), outra coisa é saber que é necessária (conhecimento do seu estatuto modal geral), e só quando temos ambos os conhecimentos é que sabemos que aquela proposição é necessariamente verdadeira (conhecimento do estatuto modal específico).

Centrando a discussão na tese kripkeana do Necessário A Posteriori, mostrarei que esta tese é susceptível de duas versões que designarei por versão fraca e forte. A versão fraca defende que há verdades necessárias que só empiricamente podem ser conhecidas, isto é, só empiricamente podemos conhecer o seu valor de verdade. A versão forte defende que há verdades necessárias que só empiricamente podem ser conhecidas como tal (como necessárias), isto é, só empiricamente podemos conhecer o seu estatuto modal específico.

A tese tradicional, contrariada pela tese kripkeana, é também susceptível de três versões. Ao defender-se que tudo o que é necessário é a priori, pode-se querer dizer que é a priori que conhecemos o estatuto modal geral, ou o estatuto modal específico, ou ainda o valor de verdade, de uma proposição necessária. (Ver listagem de teses e versões na parte final da dissertação).

A contra-argumentação de Kripke da tese tradicional, a qual está na base da versão fraca da sua tese, é a de que o facto de uma proposição ser necessária não implica que saibamos nem que é necessária nem que é verdadeira, e o conhecimento da necessidade de uma proposição (o conhecimento do seu estatuto

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modal geral) não equivale ao conhecimento do seu valor de verdade. Assim é que podemos conhecer a priori o estatuto modal geral de uma proposição sem que conheçamos o seu valor de verdade (a conjectura de Goldbach, por exemplo), e podemos conhecer só empiricamente o valor de verdade de uma proposição necessária sem conhecermos o seu estatuto modal geral (versão fraca da tese kripkeana)

A versão forte, contrariamente à versão fraca, exige que se conheça a priori o estatuto modal geral de proposições necessárias cujo valor de verdade só empiricamente pode ser conhecido.

Sucintamente, a versão forte é argumentada por Kripke deste modo:

(1) Sabemos a priori que certas proposições, se verdadeiras, são necessariamente verdadeiras.

(2) Sabemos apenas empiricamente que aquelas proposições são verdadeiras (3) Sabemos apenas empiricamente que aquelas proposições são necessariamente verdadeiras.

A versão forte da tese kripkeana pressupõe a distinção, assinalada acima e discutida por Casulo (1987: 161-169), entre o estatuto modal geral e o estatuto modal específico de proposições. Conhecemos o estatuto modal geral de uma proposição quando sabemos que é necessária ou contingente sem atender ao seu valor de verdade; e conhecemos o seu estatuto modal específico quando conhecemos quer o seu estatuto modal geral quer o seu valor de verdade. Assim, em (3) conclui-se que só empiricamente podemos conhecer o estatuto modal específico de certas verdades necessárias, dado que conhecemos a priori o seu estatuto modal geral (1), e conhecemos apenas empiricamente o seu valor de verdade (2).

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Destaco três casos típicos de verdades necessárias a posteriori, que serão constantemente exemplificados ao longo deste ensaio e, na sua parte final, separadamente discutidos: casos do tipo (*) de identidades formuladas à custa de nomes próprios; casos do tipo (**) que envolvem termos para categorias naturais; e casos do tipo (***) que dizem respeito à origem e composição material de objectos físicos. Eis o argumento supra aplicado a exemplos característicos de cada um dos três tipos de casos:

(1*) Sei a priori que se Véspero ( se existe) é Fósforo, então necessariamente Véspero é Fósforo.

(2*) Sei só a posteriori que Véspero é Fósforo

(3*) Sei só a posteriori que necessariamente Véspero (se existe) é Fósforo.

(1**)Sei a priori que se a água é H2O, então necessáriamente a água é H2O (2**) Sei só a posteriori que a água é H2O

(3**) Sei só a posteriori que necessariamente a água é H2O

(1***) Sei a priori que se Édipo é filho de Jocasta, então necessariamente Édipo é filho de Jocasta.

(2***)Sei só a posteriori que Édipo é filho de Jocasta

(3***) Sei só a posteriori que necessariamente Édipo é filho de Jocasta.

A versão fraca da tese kripkeana não exige que conheçamos (a priori) o estatuto modal geral da proposição cujo valor de verdade só empiricamente pode ser conhecido. Na medida em que o conhecimento do valor de verdade de uma proposição não implica o conhecimento do seu estatuto modal geral, o facto de só empiricamente podermos conhecer o valor de verdade de uma proposição necessária torna imediatamente plausível aquela versão. Assim, e utilizando o

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exemplo do argumento (**), mesmo que não saibamos que a proposição que a água é H20, se verdadeira, é necessariamente verdadeira, só empiricamente podemos saber que a água tem a composição química H20. No entanto, a versão fraca da tese exige que alguém estabeleça que a proposição cujo valor de verdade só empiricamente pode ser conhecido, é uma verdade necessária, nomeadamente que qualquer substância líquida é tal que não poderia deixar de ter a composição química que de facto tem.

A versão forte exige que conheçamos a priori o estatuto modal geral da proposição cujo valor de verdade só empiricamente pode ser conhecido. O facto de só empiricamente podermos conhecer o valor de verdade de uma proposição que sabemos a priori ser necessária, se verdadeira, torna imediatamente plausível essa versão. Assim, se conhecemos a priori a proposição condicional de que se a água tem a composição química H2O, então tem necessariamente aquela composição química, e se só empiricamente podemos conhecer a antecedente da condicional, segue-se que só empiricamente podemos conhecer a sua consequente.

A conclusão (3), a versão forte da tese kripkeana, depende da verdade da premissas (1) e (2) . Embora a premissa (2) não pareça levantar grandes problemas, o mesmo não acontece com a premissa condicional (1) que diz podermos saber a priori que certas proposições sendo verdadeiras são necessariamente verdadeiras, que certas proposições relativas ao mundo físico, nas quais uma propriedade é atribuída a um indivíduo (como em (1***)) ou a uma categoria natural (como em (1**)) se comportam como as proposições matemáticas. Estas premissas pressupõem certas considerações essencialistas suportadas por argumentos postos à prova em experiências de pensamento. Tais argumentos, mesmo que plausíveis, estão longe de ser incontroversos, como mostro no último capítulo desta dissertação.

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No capítulo III discutirei os três casos de verdades necessárias a posteriori ilustrados acima: (*), (**) e (***).

A plausibilidade da versão forte da tese kripkeana depende, em grande parte, da plausibilidade da premissa condicional (1), a tese de que sabemos por mera análise filosófica que certas proposições, apesar de não serem proposições matemáticas, se comportam como estas, no sentido em que se são verdadeiras, são necessariamente verdadeiras. Aquela premissa condicional é, nos casos do tipo (**) e (***), uma premissa essencialista não trivial.

Os casos kripkeanos do tipo do da conclusão (3*) exigem apenas, para além de alguma lógica modal elementar e de proposições empíricas incontroversas, a admissão da tese semântica da Designação Rígida de nomes. Os casos kripkeanos do tipo das conclusões (3**) e (3***) exigem a admissão do Essencialismo substantivo.

A discussão mais detalhada daqueles três casos visa mostrar que, exceptuando os casos de identidades verdadeiras formuladas à custa de nomes próprios, exemplificados acima com (*), a conclusão essencialista (3) só pode ser tirada se se admitir o essencialismo substantivo subjacente à premissa condicional (1). Nos casos exemplificados acima com (**) e (***) as premissas condicionais exigem argumentos eminentemente metafísicos, não resultando apenas do aparato lógico-semântico da teoria da modalidade. Aquelas premissas condicionais veiculam um discurso novo e polémico acerca de essências: certas propriedades de particulares e substâncias, descobertas pela ciência, são propriedades essenciais desses objectos, propriedades que esses objectos não poderiam deixar de possuir existindo. Este discurso essencialista, apesar de plausivelmente argumentado, está longe de ser imune a contra-argumentações, pelo que algumas destas são consideradas no capítulo.

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CAPÍTULO I - TESES ENVOLVIDAS NA DISCUSSÃO DO NECESSÁRIO A

POSTERIORI

Introdução

Ao estabelecer que certas proposições empíricas, proposições acerca do mundo físico, à semelhança das proposições matemáticas, sendo verdadeiras, são necessariamente verdadeiras, Kripke (1988: 159) dá a chave para a caracterização geral do conhecimento a posteriori de verdades necessárias. Assim, se há proposições que, sendo verdadeiras, são necessariamente verdadeiras; e se o seu

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valor de verdade só empiricamente pode ser conhecido; então há verdades necessárias que só empiricamente podem ser conhecidas. No capítulo II vou chamar a esta conclusão a versão fraca da tese kripkeana. Kripke acrescenta que é por análise filosófica, isto é, através de meios a priori, que se sabe que certas proposições são necessariamente verdadeiras, se verdadeiras; logo, se o seu valor de verdade só empiricamente pode ser conhecido, então só empiricamente podemos saber que são necessariamente verdadeiras. Vou chamar a esta conclusão a versão forte da tese kripkeana.

Deixando a discussão destas duas versões da tese kripkeana para o próximo capítulo, limito-me, neste, a discutir o contexto argumentativo da premissa condicional de que certas proposições, sendo verdadeiras, são necessariamente verdadeiras. Esta premissa é, segundo Kripke, fundamental para a admissão de verdades necessárias que só empiricamente podem ser conhecidas.

Exemplificando relativamente a três tipos de casos kripkeanos do Necessário A Posteriori, os quais irei discutir subsequentemente, temos as seguintes premissas condicionais:

(i) Se Véspero é Fósforo, então necessariamente Véspero é Fósforo. (ii) Se a água é H2O, então necessariamente a água é H2O.

(iii) Se uma determinada pessoa p é oriunda dos gametas G, então necessariamente p é oriunda dos gametas G.

A verdade e inteligibilidade destas premissas e a argumentação em sua defesa faz apelo a certas teses semânticas e metafísicas que o aparato conceptual da teoria lógica da modalidade de Kripke permite clarificar e discutir.

O núcleo intuitivo do aparato lógico-semântico da teoria da modalidade é a ideia leibniziana de que uma proposição é uma verdade necessária quando ela é verdadeira em todos os mundos possíveis (ou em todos os mundos possíveis acessíveis a partir do mundo actual). Se uma proposição não é verdadeira em todos os mundos possíveis, mas apenas em alguns, não é uma verdade necessária, mas

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uma verdade possível e, portanto, contingente: uma proposição é uma verdade possível se, e só se, é verdadeira em alguns mundos; uma proposição é uma verdade contingente se, e só se, é possível mas não é necessária. Intuitivamente, um mundo possível é uma maneira completa como as coisas poderiam ter sido, sendo o mundo actual - a maneira como as coisas de facto são - um desses mundos, uma das maneiras como as coisas poderiam ter sido. O género de possibilidade aludido na expressão “mundo possível” é definido por Kripke como sendo a possibilidade metafísica.

As consequentes das condicionais (i), (ii) e (iii) devem ser entendidas como proposições metafisicamente necessárias. A semântica dos mundos possíveis, introduzida por Kripke, é, fundamentalmente, um instrumento heurístico de clarificação dos conceitos de necessidade e de possibilidade metafísica, que se distinguem de outros géneros de necessidade e possibilidade: necessidade e possibilidade epistémica, lógica e natural. Como Kripke constantemente evidencia, aqueles conceitos não são do domínio epistémico, já que a necessidade ou possibilidade metafísica de uma proposição nada tem a ver com o modo como é conhecida. A necessidade epistémica não é mais do que a aprioridade. A necessidade metafísica também se distingue da necessidade lógica, já que a primeira é determinada pelo modo como as coisas são e a segunda por princípios lógicos (“leis” da lógica): aproximadamente, uma proposição é logicamente necessária se, e só se, é uma verdade lógica ou é uma consequência de uma verdade lógica. A noção de necessidade metafísica é mais vasta que a de necessidade lógica (nem tudo o que é metafisicamente necessário é logicamente necessário), e, consequentemente, a noção de possibilidade metafísica é menos vasta que a de possibilidade lógica (nem tudo o que é logicamente possível é metafisicamente possível). Assim, por exemplo, que eu seja oriunda dos meus actuais progenitores parece ser uma verdade metafisicamente necessária embora não seja logicamente necessária, e, consequentemente, é logicamente possível mas

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não metafisicamente possível que eu não seja oriunda dos meus actuais progenitores. Por último, a necessidade metafísica poderá ser distinguida da necessidade nómica ou natural. Esta é determinada pelas leis da natureza: uma proposição é nomologicamente necessária se, e só se, é uma verdade natural (física, química ou biológica) ou uma consequência de uma verdade natural. A necessidade metafísica, mesmo que nomologicamente orientada, é determinada por considerações relativas ao modo como as coisas podem ou têm de ser, não só no mundo actual com as suas leis, mas em outros mundos possíveis (regulados por leis naturais possivelmente diferentes).

A verdade e inteligibilidade das premissas condicionais (i), (ii) e (iii) pressupõe a verdade e a inteligibilidade de determinadas teses metafísicas e semânticas, nomeadamente as teses da Identidade Transmundial, do Essencialismo e da Designação rígida. O aparato conceptual da teoria da modalidade permite tornar mais precisas as teses da Identidade Transmundial e da Designação Rígida. Permite ainda uma caracterização e clarificação da noção clássica de essência individual em termos do conceito de propriedade essencial: uma propriedade P é essencial a um objecto particular x quando, necessariamente, se x existe, x tem P. A noção de propriedade essencial distingue-se da de propriedade necessária: uma propriedade P é uma propriedade necessária de x quando, necessariamente, x tem P; uma propriedade P é uma propriedade essencial de x quando, necessariamente, se x existe, x tem P. Os meios conceptuais da teoria da modalidade são suficientes para mostrar que, por exemplo, o atributo da existência é uma propriedade essencial de qualquer objecto, embora não seja uma propriedade necessária de qualquer objecto. O atributo da existência é uma propriedade essencial de qualquer objecto porque, para qualquer objecto x e para qualquer mundo possível m, se x existe em m, então x exemplifica em m o atributo da existência. No entanto, se o objecto em questão for um existente contingente, isto é, um objecto particular que

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não existe em todos os mundos possíveis, o atributo da existência não é uma propriedade necessária desse objecto.

Uma questão que se põe é a de saber se o Essencialismo envolvido nos casos de necessidades a posteriori resulta directamente do aparato lógico-semântico da teoria da modalidade. Esta questão é analisada por Salmon (1982) que defende que a teoria lógico-semântica da modalidade exige ser suplementada por certos argumentos de carácter eminentemente metafísico para poder defender o Essencialismo substantivo patente nos casos tipo (ii) e (iii). Estes são casos exemplificativos de propriedades essenciais não triviais de objectos, isto é, de propriedades que não podem ser estabelecidas como exemplificadas pelos objectos apenas com base em princípios lógico-semânticos, exigindo pressupostos eminentemente metafísicos relativos ao modo de ser dos objectos em questão. Neste sentido, a contribuição essencial da teoria da modalidade para a metafísica deve ser vista, como refere Branquinho (1993; 1995), como consistindo na tarefa preliminar de tornar precisas certas teses, cuja confirmação ou refutação pertence à metafísica.

Dada a sua importância na discussão do Necessário A Posteriori, deter-me-ei, neste capítulo, nas três teses referidas acima: Identidade Transmundial, Essencialismo e Designação Rígida.

A tese da Identidade Transmundial é a tese segundo a qual um e o mesmo indivíduo ou particular pode existir em mais do que um mundo possível e ter propriedades possivelmente diferentes em diferentes mundos. Essa tese é uma consequência da tese da Designação Rígida para nomes próprios, segundo a qual o referente de um nome próprio é constante de mundo para mundo. Por exemplo, se “Saul Kripke” é um designador rígido de Kripke, isto é, se designa Kripke em todos os mundos em que Kripke existe, então Kripke é um existente transmundial, isto é, pode existir em mais do que um mundo. Esta transição é natural desde que a noção de designação rígida seja, como em Kripke, uma noção modalmente

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orientada - uma noção formulada à custa do idioma dos mundos possíveis e existência em mundos possíveis.

O Essencialismo, na sua aplicação a casos de modalidades de re1, defende que há particulares que têm propriedades essenciais, propriedades que não poderiam deixar de possuir sem deixar de ser o que são. O Essencialismo pressupõe assim a Identidade Transmundial. Dito de outro modo, a especificação das condições de verdade de uma atribuição modal de re compromete-nos com a tese da Identidade Transmundial. Por exemplo, para avaliar, com respeito ao mundo actual, uma atribuição modal de re como a de que David Lewis é necessariamente humano, temos de avaliar a frase necessitada “David Lewis é humano” em todos os mundos possíveis, o que implica, dada a designação rígida, que identifiquemos David Lewis em cada um dos mundos. Por outro lado, a tese da Identidade Transmundial não implica logicamente o Essencialismo: admitindo que David Lewis é um existente transmundial, o máximo que parece que temos de admitir é a verdade da atribuição de re de que David Lewis possivelmente existe.

A tese semântica da Designação Rígida, tal como é exposta por Kripke, apoia-se em considerações metafísicas esapoia-sencialistas. O teste de rigidez, ao introduzir, como condição necessária para um designador “d” designar rigidamente um objecto x, o facto de x não poder não ter sido d, é equivalente ao essencialismo, isto é, à atribuição de uma propriedade essencial ao objecto referido. Por exemplo, a descrição “a pessoa oriunda dos gametas G” é um designador rígido de Kripke se, e só se, a propriedade de ser oriundo dos gametas G é uma propriedade essencial de Kripke. Assim, dado que a noção kripkeana de rigidez é modalmente orientada, a tese da Designação Rígida implica o Essencialismo. No entanto, o Essencialismo não exige a tese da Designação Rígida (embora esta possa ter um papel auxiliar).

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1. Identidade Transmundial

A tese da Identidade Transmundial é a doutrina segundo a qual um e o mesmo indivíduo ou particular pode existir em mais do que um mundo possível e, portanto, pode ter, em mundos possíveis não actuais, propriedades diferentes das que tem no mundo actual. Esta tese é rejeitada por muitos filósofos que a consideram incoerente. Em sua substituição alguns propõem a tese de que os indivíduos estão limitados a um só mundo; esta tese constitui um dos postulados da Teoria das Contrapartes de David Lewis.

1.1- Objecções e contra-objecções à Identidade Transmundial

Destaco aqui três dos principais argumentos que visam mostrar que a noção de identidade transmundial é problemática, o mesmo não acontecendo com a tese de que cada indivíduo existe apenas num só mundo; e discuto algumas das alegadas refutações de que esses argumentos são alvo.

O primeiro argumento vai no sentido de mostrar que a noção de identidade transmundial viola o princípio da Indiscernibilidade de Idênticos (também conhecido como Lei de Leibniz); o segundo mostra que aquela noção é problemática pois conduz a situações que admitem a não transitividade da identidade; o terceiro argumento toma uma direcção diferente, apontando para a ininteligibilidade da noção de identidade transmundial dada a ausência de um critério preciso para formar concepções de identidade e diferença entre objectos ao longo de mundos.

O princípio da Indiscernibilidade de Idênticos é um princípio da Lógica da Identidade segundo o qual objectos idênticos (no sentido de estrita ou numericamente idênticos) têm exactamente as mesmas propriedades: se x=y então toda a propriedade de x é uma propriedade de y e vice-versa; mais precisamente,

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para qualquer objecto x e para qualquer objecto y, se x=y então, para qualquer propriedade P, x tem P sss y tem P. Ora, se admitimos que um e o mesmo indivíduo pode existir em mais do que um mundo possível, então esse indivíduo pode (numa dada ocasião) não ter em outros mundos possíveis certas propriedades que tem no mundo actual, bem como ter em outros mundos possíveis propriedades que não tem no mundo actual. Daqui resulta, violando o princípio da Indiscernibilidade de Idênticos, que objectos numericamente idênticos não têm as mesmas propriedades (supondo que a identidade transmundial é estrita ou numérica).

Usando o exemplo de Chisholm (1979:80-87), consideremos Adão no nosso mundo, m1, e alteremos ligeiramente a sua descrição de modo a permitir-lhe viver 931 anos em vez de 930; chegamos assim à descrição de um outro mundo possível m2 onde Adão (ele próprio) vive 931 anos. A questão é a seguinte: como pode Adão no nosso mundo, m1, ser a mesma pessoa que Adão em m2 sem violar o princípio da Indiscernibilidade de Idênticos? Adão em m1 e Adão em m2 não têm as mesmas propriedades, pois Adão em m1 tem a propriedade de viver 930 anos e Adão em m2 não tem essa propriedade pois tem a propriedade de viver 931 anos. Assim, parece que Adão em m1 e Adão em m2 são pessoas diferentes, contrariando a tese da Identidade Transmundial

Este argumento contra a noção de identidade transmundial poderia também ser usado para estabelecer a impossibilidade da identidade através do tempo: como pode Adão com 930 anos ser a mesma pessoa do que a pessoa que comeu o fruto proibido se o primeiro é velho e o segundo novo?.

O argumento poderá ser contrariado se as propriedades dos objectos em questão forem temporalmente indexadas ou relativizadas a tempos (no caso da identidade transtemporal) ou modalmente indexadas ou relativizadas a mundos (no caso da identidade transmundial) Assim, retomando o exemplo acima, podemos

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dizer que Adão com a idade de 930 anos pode ser a mesma pessoa que o homem que comeu o fruto proibido, pois Adão-em-t (altura em que come o fruto proibido) tem a propriedade de ser novo em t, e Adão-em-t´(com 930 anos) tem a propriedade de ser velho em t´. Logo, não há aqui qualquer propriedade - e.g. ser novo - que Adão-em-t tenha e Adão-em-t´não tenha. Adão-em-t tem a propriedade de ser novo em t, mas não é o caso que Adão-em-t´ não tenha essa propriedade (a propriedade que ele não tem é a de ser novo em t´). Do mesmo modo para os diferentes mundos possíveis: não há qualquer propriedade - e.g. viver 930 anos - que Adão-em-m1 tenha e Adão-em-m2 não tenha. Adão-em-m1 tem a propriedade de viver 930 anos em m1, e do facto de Adão-em-m2 ter a propriedade de viver 931 anos em m2, não se segue que ele não tenha a propriedade de viver 930 anos em m1.

A refutação deste primeiro argumento contra a tese da Identidade Transmundial consiste assim em mostrar, através da indexação de propriedades a mundos, que esta tese é compatível com o princípio da Indiscernibilidade de Idênticos; e que um mesmo indivíduo pode ter, em diferentes mundos, diferentes propriedades acidentais.

O segundo argumento contra a noção de identidade transmundial procura mostrar que, mesmo admitindo que esta noção não viola a Lei de Leibniz, ela é incompatível com a transitividade da identidade, isto é, conduz a situações que violam a transitividade da identidade. A transitividade da identidade poder-se-á formular deste modo: para quaisquer objectos x,y,z, se x é idêntico a y e y é idêntico a z, então x é idêntico a z.

Suponhamos que existem dois indivíduos, x e y, em m1, no mundo actual; suponhamos que, em m2, x e y alteram ligeiramente algumas das suas propriedades, e esta alteração gradual vai-se processando de m2 até mn, de tal modo que em mn todas as propriedades de x são propriedades de y em m1 e todas as propriedades de y são propriedades de x em m1. Suponhamos que x-em-m1 é Jorge Sampaio e y-em-m1 é Guterres. Ora, nesta situação teríamos que:

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- Jorge m1 = Jorge m4, pois Jorge Sampaio-em-m4, apesar das alterações sofridas, tem ainda muitas propriedades de Jorge Sampaio-em-m1.

-Jorge Sampaio-em-m4 = Jorge Sampaio-em-mn, pois Jorge Sampaio-em-mn apesar das alterações sofridas tem ainda muitas propriedades de Jorge Sampaio-em-m4.

- Jorge Sampaio-em-m1 ≠ Jorge Sampaio-em-mn, pois Jorge Sampaio-em-mn não tem nenhuma propriedade de Jorge Sampaio-em-m1 (pois tem todas as propriedades de Guterres-em-m1).

Esta situação contraria a transitividade da identidade.

A refutação deste argumento vai no sentido de negar a premissa usada de que x-em-m1 seja afinal diferente de x-em-mn e que em-m1 seja afinal diferente de y-em-mn. Dadas as essências individuais ou ecceidades de x e y, x-em-mn não pode ser um objecto diferente de x-em-m1 pois x em todos os mundos em que existe tem, por exemplo, a propriedade de ser idêntico a x; o mesmo acontecendo com y. Deste modo, a suposição de que em-mn não preserva nenhuma das propriedades de x-em-m1 é falsa.

O terceiro argumento contra a noção de identidade transmundial faz apelo à alegada ausência de um critério preciso para formar concepções de identidade e diferença através dos mundos, o que militaria contra a coerência daquela noção.

A questão que se põe é a de determinar que indivíduo, num mundo possível dado, m, é o indivíduo x. Parte-se de um existente actual e pergunta-se pelo critério que nos permite identificá-lo, ou re-identificá-lo, num mundo não actual. Não nos podemos basear nas propriedades que usamos normalmente para descrever x, pois não há garantia de que alguém em m tenha essas propriedades, e se alguém as tem, não há garantia de que seja x. Ora, se não podemos identificar x em m, então não compreendemos a asserção de que x existe em m; isto é, se não o podemos identificar, não sabemos do que estamos a falar ao dizer que x existe nesse mundo,

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ou que tem nesse mundo esta ou aquela propriedade. Assim, porque não há um critério que nos permita identificar um indivíduo de mundo para mundo, a noção de identidade transmundial é ininteligível.

O argumento em questão é de carácter epistemológico, já que exige um critério efectivo para formar concepções acerca da identidade de indivíduos através dos mundos. Na ausência desse critério não há, segundo Chisholm, nenhuma boa razão para supôr que particulares têm propriedades essenciais.

Segundo Plantinga, o argumento em questão exige um critério que nos permita identificar um particular de mundo para mundo; e exige que esse critério deve mencionar algumas propriedades que o particular tem em cada mundo no qual existe, propriedades que devem ser, utilizando a expressão de Plantinga (1979), “empiricamente manifestas”. Ora, o critério epistemológico tem, segundo Plantinga e Kripke, origem numa imagem errónea acerca dos mundos possíveis e acerca da identificação de particulares nesses mundos. Imaginamo-nos espreitando (como se fosse através de um telescópio) para um outro mundo e, observando o comportamento dos seus habitantes, perguntamos se um indivíduo, digamos Saul Kripke, existe aí. Ora, mundos possíveis não são descobertos mas estipulados; e, para admitir que há um mundo possível no qual Saul Kripke não escreveu Naming and Necessity, não preciso de identificar nenhuma propriedade “empíricamente manifesta” que ele tem nesse mundo (tal como a sua aparência física ou a sua morada).

A réplica de Plantinga (1979) ao argumento baseia-se na possibilidade de encontrar certas propriedades essenciais de um dado particular, propriedades que não são “empiricamente manifestas”. Tomemos qualquer propriedade P e mundo m tal que x tem P em m, então a propriedade de ter P- em-m é uma propriedade essencial de x. Por exemplo, embora a propriedade de ter escrito Naming and Necessity seja uma propriedade contingente de Kripke - Kripke poderia não ter escrito Naming and Necessity- , a propriedade de ter realmente (no mundo actual)

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escrito Naming and Necessity é uma propriedade essencial de Kripke - em todo o mundo possível em que Kripke existe, ele escreveu Naming an Necessity no mundo actual.

A réplica de Kripke (1988: 46-47) vai noutra direcção, evidenciando a confusão entre a questão epistemológica e a questão metafísica patente no argumento que exige um critério qualitativo para formar concepções de identidade e diferença através dos mundos. A questão da identidade transmundial é aí vista como uma questão epistemológica, relativa aos meios de conhecimento e de re-identificação de um particular em diferentes mundos possíveis. Ora, a questão da identidade transmundial não é epistemológica mas metafísica, e, mesmo que houvesse um conjunto de condições necessárias e suficientes para alguém ser Saul Kripke, não procuramos essas condições antes de perguntar, por exemplo, se podia ter acontecido Saul Kripke não ter escrito Naming and Necessity. Isto é, começamos com os objectos que temos no mundo actual, e, depois, perguntamos se certas coisas podiam ter sido verdadeiras desses objectos.

Refutados os argumentos contra a Tese da Identidade Transmundial, os argumentos a favor da Teoria dos Indivíduos Limitados a um Mundo perdem a sua força, já que ela provinha do carácter supostamente incoerente da noção de identidade transmundial. A ideia base daquela teoria é a de que nenhum objecto existe em mais do que um mundo, o que implica algo que vai contra as nossas intuições modais pré-filosóficas, em particular a ideia de que nenhum objecto poderia deixar de ter qualquer uma das propriedades que de facto tem, que todas as propriedades são essenciais.

1.2- Teoria das Contrapartes e algumas objecções

A Teoria das Contrapartes de David Lewis parte da ideia de que cada indivíduo existe num só mundo. Aquilo que é admitido é que cada indivíduo pode ter contrapartes noutros mundos possíveis, mas a relação do indivíduo com as suas

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contrapartes não é a identidade. Poder-se-á dizer que se situa a meio caminho entre a Tese da Identidade Transmundial e o essencialismo extremo da Teoria dos Indivíduos Limitados a um Mundo: nega que indivíduos existam em mais do que um mundo, mas acomoda as intuições pré-filosóficas que motivam a tese da Identidade Transmundial. A estratégia é defender que, embora cada indivíduo esteja limitado a um só mundo, um indivíduo num mundo possível pode ter uma contraparte noutro mundo, contraparte essa que pode possuir nesse mundo propriedades que o original não tem no seu mundo.

A disparidade entre as teorias, a da Identidade Transmundial e a da das Contrapartes, poderá ser evidenciada pelo modo contrastante como analisam a modalidade de re. Estas modalidades são tipicamente expressas em frases como x é necessariamente, possivelmente, contingentemente F. Nestas frases, as modalidades expressas pelos respectivos advérbios de modo são atribuídas a uma coisa ou a cada uma das coisas pertencentes a um universo de coisas. Enquanto que na semântica proposta por Kripke a análise da modalidade de re está comprometida com a tese da Identidade Transmundial, na Teoria das Contrapartes a tese da Identidade Transmundial é rejeitada e a modalidade de re é analisada em termos de uma certa relação transmundial entre indivíduos, a relação de ser uma contraparte de.

Na semântica proposta por Kripke, a determinação de condições de verdade para frases de re, como por exemplo “Possivelmente David Lewis é português”, implica logicamente a tese da Identidade Transmundial. Aquela frase é verdadeira se, e só se, há pelo menos um mundo possível no qual David Lewis (ele mesmo) existe e é português. Na semântica da Teoria das Contrapartes, a tese da Identidade Transmundial é substituída pela tese de que nenhum indivíduo ou particular pode existir em mais do que um mundo, e a análise da modalidade de re é feita em termos de uma relação transmundial entre um indivíduo y num mundo m´ e um indivíduo x num mundo m quando y em m´ é uma contraparte de x em m.

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Assim, a frase acima é verdadeira se, e só se, pelo menos uma contraparte de David Lewis em pelo menos um mundo possível é português.

A relação Contraparte de é, na Teoria das Contrapartes, o substituto da relação de identidade entre coisas em diferentes mundos. Embora seja uma relação transmundial entre particulares, não é uma relação de identidade. Embora seja uma relação reflexiva não é uma relação de equivalência, pois não é transitiva nem simétrica (Ver Lewis 1979: 182-189).

A disparidade lógica e metafísica entre a Teoria das Contrapartes e a Teoria da modalidade de Kripke reflecte-se assim nas respectivas análises das condições de verdade para frases que exprimem necessidades de re. A frase “Kripke é necessariamente uma pessoa” é verdadeira, na Teoria das Contrapartes, se, e somente se, todas as contrapartes de Kripke em todos os mundos possíveis exemplificam a propriedade de ser uma pessoa; a mesma frase é verdadeira, na Teoria da modalidade de Kripke, se, e só se, Kripke (ele mesmo) exemplifica aquela propriedade em todos os mundos em que existe.

Mostrei que a Teoria das Contrapartes rejeita a tese da Identidade Transmundial e substitui-a pela doutrina segundo a qual nenhum indivíduo ou particular pode existir em mais do que um mundo, embora possa ter contrapartes noutros mundos possíveis. O mais importante argumento a favor daquela doutrina é o célebre problema da identidade transmundial: na medida em que a noção de identidade transmundial traz problemas, o melhor a fazer é substituí-la pela tese segundo a qual os indivíduos estão limitados a um mundo. Ora, as objecções à noção de identidade transmundial parecem não ser suficientes para destruir a sua plausibilidade.

Vejamos agora a justeza de algumas das objecções à Teoria das Contrapartes.

Kripke, em “Naming and Necessity”, argumenta contra a Teoria das Contrapartes no sentido em que ela deturpa a nossa compreensão intuitiva de

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frases modais. Assim, por exemplo, intuitivamente, quando dizemos que Lewis poderia não se ter dedicado ao problema da modalidade, queremos dizer algo acerca de Lewis e não algo acerca de uma pessoa diferente, mesmo que muito semelhante a Lewis, mais semelhante do que a qualquer outra pessoa nesse mundo. O alvo da crítica de Kripke não é apenas a Teoria das Contrapartes, mas a concepção de que mundos possíveis são como países estranhos que apenas podem ser dados por descrições qualitativas, e que, portanto, quer a relação de identidade quer a relação contraparte de, devem ser estabelecidas em termos qualitativos.

Outra objecção à Teoria das Contrapartes é a de que esta teoria estaria comprometida com a seguinte doutrina aparentemente implausível: a de que qualquer propriedade exemplificada por um existente actual seria uma propriedade essencial desse existente, já que seria uma propriedade que esse existente teria em qualquer mundo possível em que existe. Como cada existente só existe num mundo, a condição para a referida propriedade ser essencial ao referido existente seria vacuamente verificada relativamente a qualquer mundo; consequentemente, nenhum objecto pode deixar de ter as propriedades que de facto tem e, portanto, proposições nas quais se atribui a um existente actual uma propriedade que ele não tem, são necessariamente falsas.

Esta objecção não parece justa já que a Teoria das Contrapartes preserva a divisão intuitiva entre propriedades essenciais e acidentais de um particular, embora essas propriedades sejam explicadas em termos da relação Contraparte de. Assim, de um modo simplificado, uma determinada propriedade é essencial a um existente actual se fôr exemplificada por todas as suas contrapartes; e uma determinada propriedade é acidental a um existente actual se não fôr exemplificada por alguma das suas contrapartes. Deste modo, a Teoria das Contrapartes não é obrigada a defender que cada propriedade de um existente actual lhe é essencial. Do mesmo modo, proposições nas quais se atribui a um existente actual uma propriedade que

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ele de facto não tem já não são necessariamente falsas, pois esse existente pode ter contrapartes que exemplificam essa propriedade em outros mundos; assim a proposição “ David Lewis é um filósofo português” já não é necessariamente falsa mas contingentemente falsa, pois a sua verdade num dado mundo não requer a existência, nesse mundo, daquilo que é denotado por “David Lewis” neste, já que “David Lewis” denota diferentes pessoas em diferentes mundos, denota as pessoas que, nesses mundos, são suas contrapartes .

A Teoria das Contrapartes visa ultrapassar os supostos problemas da Identidade Transmundial recusando a tese de que um indivíduo pode existir em mais do que um mundo. Por outro lado, explicando a modalidade de re através da relação Contraparte de, procura evitar que qualquer propriedade de um existente actual seja uma propriedade que lhe é essencial. Plantinga (1979: 146-165) contra-argumenta defendendo que há casos de modalidades de re que resistem ao tratamento em termos da Teoria das Contrapartes: uma propriedade que David Lewis exemplifica essencialmente ou necessariamente é a de ser idêntico a David Lewis; ora, na interpretação da modalidade de re pela Teoria das Contrapartes, esta propriedade não pode ser exemplificada essencialmente, isto é, nenhuma das contrapartes de David Lewis exemplifica a propriedade de ser idêntico a David Lewis, já que as contrapartes de David Lewis não são David Lewis (ele mesmo) mas suas contrapartes. Todavia, esta contra-argumentação parece cometer a falácia de pressupôr aquilo que se quer provar, isto é, que uma propriedade essencial de um objecto é uma propriedade que esse objecto (e não a sua contraparte) possui necessariamente.

A última e mais forte objecção que se coloca à Teoria das Contrapartes é a de que ela é inconsistente com o teorema da habitual lógica modal quantificada, conhecido como Tese da Necessidade da Identidade. Esta é, informalmente, a tese segundo a qual aquilo que é na realidade um objecto não poderia ser dois objectos. A fórmula:

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(NI) (∀x) (∀y) [ x=y → ' x=y ]

é a tese da Necessidade da Identidade, cuja dedução, na lógica modal quantificada, é executável utilizando princípios lógicos relativamente incontroversos (a reflexividade necessária da identidade e a indiscernibilidade de idênticos). A fórmula:

(NI*) a=b → ' a=b

em que a e b são constantes individuais, é uma consequência lógica de (NI). (NI*) é uma fórmula válida na habitual semântica para a Lógica Modal Quantificada e é, informalmente, a tese segundo a qual qualquer frase de identidade verdadeira na qual ocorrem apenas designadores rígidos, é necessariamente verdadeira. Assim, se “a = b” é verdadeira no mundo actual, em ma, e se a e b são designadores rígidos, então “a” e “b” co-referem não só em ma como em todos os mundos em que o objecto referido existe; logo, se “a = b” é verdadeira, é necessariamente verdadeira.

Mas (NI*) não é uma fórmula válida na Teoria das Contrapartes, pois a sua consequente é falsa em pelo menos uma interpretação. Suponha-se que em ma a frase antecedente de (NI*) é verdadeira, que a e b referem o mesmo objecto. A frase consequente de (NI*) pode ser falsa se, como é admitido pela Teoria das Contrapartes, o objecto referido por a (e por b) em ma tem, em m1, duas contrapartes. Assim, como um e um só objecto pode ter objectos distintos como contrapartes num certo mundo, a consequente de (NI*) é falsa (numa interpretação deste género).

A Teoria das Contrapartes é assim inconsistente com a Necessidade da Identidade, o que, segundo algumas pessoas, milita contra a referida teoria.

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Começarei por mostrar, nesta secção, que o Essencialismo aplicado a casos de modalidade de re, o qual defende que alguns objectos têm certas propriedades ou atributos que são essenciais e outras propriedades ou atributos que são acidentais, é um pressuposto do Necessário A Posteriori. Discutirei, em seguida, algumas objecções à modalidade de re, isto é, à atribuição de propriedades modais a particulares. Concluirei esta secção evidenciando a especificidade do Essencialismo contemporâneo (kripkeano) relativamente ao tradicional (aristotélico).

2.1- O suporte essencialista do Necessário A Posteriori

Já referi atrás que quer a versão forte quer a fraca da tese kripkeana exigem que seja estabelecida a premissa condicional de que certas proposições acerca de objectos do mundo físico, sendo verdadeiras, são necessariamente verdadeiras. Trata-se de uma premissa essencialista, segundo a qual um certo objecto tem certas propriedades essenciais, isto é, certas propriedades que esse objecto não poderia deixar de possuir. Exemplifiquei aquela premissa com três tipos de casos Kripkeanos de necessidades a posteriori, que volto a enumerar:

(i) Se Véspero é Fósforo, então necessariamente Véspero é Fósforo. (ii) Se a água é H2O, então necessariamente a água é H2O.

(iii) Se uma determinada pessoa p é oriunda dos gametas G, então necessariamente p é oriunda dos gametas G.

Admitindo a distinção entre essencialismo trivial e não trivial (Salmon 1982), poder-se-á distinguir a premissa condicional (i) das premissas condicionais (ii) e (iii): enquanto que a premissa condicional (i) é uma premissa essencialista trivial, as premissas condicionais (ii) e (iii) são premissas essencialistas não triviais.

Embora a definição de propriedades essenciais não triviais seja problemática, poder-se-á caracterizá-las, seguindo Salmon (1982), por oposição às propriedades essenciais triviais. Estas são propriedades essenciais que podem ser estabelecidas apenas com base em considerações de natureza lógico-semântica, isto é, nos casos

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em questão, por meio da tese da designação rígida de nomes, de princípios lógicos relativamente incontroversos e alguma semântica elementar. Assim, os casos triviais de verdades necessárias a posteriori são casos que resultam de uma premissa essencialista trivial, isto é, de uma premissa que pode ser derivada de teses lógico-semânticas, como é o caso de (i). Se a frase “Véspero é Fósforo” é verdadeira, e se “Véspero” e “Fósforo” são designadores rígidos, segue-se que “Véspero” e “Fósforo” designam o mesmo objecto em todos os mundos possíveis em que o referido objecto existe; logo, a frase “Véspero (se existe) é Fósforo” é necessariamente verdadeira. Acrescente-se que a frase de identidade “Véspero é Fósforo” é necessariamente verdadeira se, e só se, Véspero, se existe, é tal que não podia deixar de ter a propriedade de ser idêntico a Fósforo.

A admissão do essencialismo é a admissão da legitimidade da divisão das propriedades ou atributos de alguns objectos em propriedades acidentais (propriedades que um objecto de facto possui mas que poderia não possuir) e essenciais (propriedades sem as quais o objecto não poderia existir). O aparato lógico-semântico dos mundos possíveis permite clarificar as noções de propriedade essencial e acidental: uma propriedade P é uma propriedade essencial de um objecto x se, e só se, em qualquer mundo possível, se x existe nesse mundo possível, x possui nesse mundo possível a propriedade P. Embora os meios conceptuais da teoria lógica da modalidade sejam suficientes para demonstrar a verdade de atribuições de certas propriedades essenciais a objectos, o que torna triviais essas propriedades essenciais, não são suficientes para demonstrar a existência de outras propriedades essenciais, o que torna estas em não triviais. Assim, daquele aparato conceptual (com a tese da designação rígida de nomes incluída) resulta (i), que a propriedade de ser idêntico a Fósforo é uma propriedade essencial trivial de Véspero. Mas não resulta (ii), que H2O é uma propriedade essencial da água, nem (iii) que a propriedade de ser oriundo dos gametas G é uma propriedade essencial do oriundo dos gametas G. A defesa do essencialismo

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substantivo exige uma suplementação da teoria lógica da modalidade com certos argumentos de carácter eminentemente metafísico.

Assim, a admissão de certas propriedades essenciais triviais de objectos deduz-se da tese semântica da designação rígida de nomes e consequente admissão de existentes transmundiais, coadjuvada por princípios lógicos relativamente incontroversos e por alguma semântica modal. Tal não acontece com o essencialismo não trivial, isto é, com a atribuição de propriedades essenciais não triviais a objectos. Admitindo que “água” é um designador rígido de água, não se segue disso ( tomado em conjunto com outros princípios de carácter lógico-semântico) que a composição química actual da água seja uma propriedade essencial da água. Para que esta conclusão se siga, para estabelecer (ii), temos de supôr a premissa essencialista independente segundo a qual a água, existindo, não poderia ter uma composição química diferente da que tem actualmente. Do mesmo modo, dada a origem biológica actual de Kripke, não se segue disso através de princípios lógico-semânticos que a origem actual de Kripke seja uma propriedade essencial de Kripke. Para que esta conclusão se siga, para estabelecer (iii), temos de supôr a premissa essencialista segundo a qual um indivíduo não poderia ter outra origem biológica senão a que tem actualmente.

2.2- Modalidade de re e algumas objecções.

Os casos exemplificados acima do Necessário A Posteriori exigem a admissão da modalidade de re, isto é, da modalidade (necessidade, possibilidade, contingência) atribuída a uma coisa (res).

A rejeição da modalidade de re é por vezes argumentada com base na ideia de que a modalidade de re se não distingue da de dicto, sendo redutível a esta. Ora, a modalidade de re distingue-se sintáctica e semanticamente da modalidade de dicto. A modalidade de re distingue-se da de dicto pelo facto dos conceitos

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modais se aplicarem a coisas extra-linguísticas, e não a frases ou proposições. Assim é que parece clara a distinção entre:

(1) Necessariamente, alguma coisa existe (2) Alguma coisa necessariamente existe

(1) é de dicto pois diz que a proposição que alguma coisa existe é uma verdade necessária, isto é, verdadeira em todos os mundos possíveis. (2) é de re pois diz que algumas coisas têm a propriedade de existir necessariamente, de existir em todos os mundos possíveis. (1) pode ser verdadeira e (2) falsa. A verdade de (1) requer apenas que cada mundo possível contenha pelo menos um objecto. A verdade de (2) requer que pelo menos uma coisa actualmente existente também exista em todos os mundos possíveis.

Na linguagem da lógica modal quantificada, a distinção de dicto/de re é representável como sendo uma distinção quanto ao âmbito relativo do operador modal e do quantificador. Assim, enquanto que em (1) o operador modal da necessidade tem âmbito longo em relação ao quantificador, em (2) tem âmbito curto. Seguindo Forbes (1986: 48), uma fórmula com operadores modais exprime uma modalidade de re se, e só se, dentro do âmbito de um desses operadores está (a) uma constante individual; ou (b) uma variável livre; ou (c) uma variável ligada por um quantificador situado fora do âmbito do operador. De outro modo, a fórmula exprime uma modalidade de dicto.

Só as fórmulas de re são sensíveis à identidade transmundial de objectos. Assim, por exemplo, avaliando “' (esta mesa é feita de madeira)” no mundo actual, temos de avaliar “esta mesa é feita de madeira”, em todos os mundos, o que requer que sejamos capazes de identificar aquela mesa em cada mundo.

Para os filósofos que não aceitam a lógica modal quantificada, nomeadamente Quine, a distinção de re / de dicto é ininteligível. As dificuldades erguidas contra a modalidade de re originam-se na suposição de que devemos tratar “'” como um predicado metalinguístico disfarçado. Tal suposição poderia ser contra-argumentada

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invocando o facto de que operadores formalmente análogos, nomeadamente os operadores temporais, não são assim tratados. Veja-se, por exemplo, as seguintes frases, nas quais o operador temporal tem, como o operador modal nos casos (1) e (2), âmbitos diferentes:

(1*) “Futuramente há homens imortais”. (2*) “Há homens futuramente imortais”.

A rejeição da distinção de dicto / de re referida anteriormente é argumentada com base na ideia de que a verdade ou falsidade de uma atribuição de re depende da maneira de identificar linguisticamente os indivíduos. Assim, se se pressupõe, seguindo Quine, que a necessidade reside no modo como falamos das coisas, e não nas próprias coisas de que falamos, não faz sentido atribuir propriedades modais a coisas independentemente do seu modo de descrição (ou modo de referência). A ideia é a de que a atribuição de propriedades modais a coisas varia em função do modo como elas são descritas: sob a descrição D, e.g., “o marido de Maria José Ritta”, x (Jorge Sampaio) tem necessariamente a propriedade P (ser casado); mas sob a descrição D´, e.g., “o Presidente da República Portuguesa”, x não tem necessariamente a propriedade P. Esta ideia de que não faz sentido atribuir propriedades modais a coisas independentemente da sua descrição parece ser defendida a partir da pressuposição de que a atribuição de propriedades a coisas depende de factores linguísticos: x tem a propriedade P sob a descrição D e x não tem a propriedade P sob a descrição D´. Ora, aquela pressuposição é intuitivamente falsa -Jorge Sampaio exemplifica a propriedade de ser casado independentemente do modo como é descrito. É plausível defender-se que considerações linguísticas são factores irrelevantes para a atribuição de propriedades a coisas, isto é, as coisas exemplificam ou não certas propriedades independentemente do modo como são descritas.

A resistência inicial aos exemplos específicos de propriedades essenciais não triviais baseia-se, segundo Kripke, na confusão entre necessidade e analiticidade.

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Uma frase verdadeira é analítica se a sua verdade depende só do significado das palavras que contem e do modo como estas estão combinadas na frase ( e não de factos não linguísticos do mundo externo). A frase “o marido de Maria José Ritta é casado” é analítica. Defende-se tradicionalmente que uma frase exprime uma proposição necessária só se é analítica, e que uma entidade tem uma propriedade essencial só se a frase, expressando a proposição que a coisa tem a propriedade, é analítica. Assim, a analiticidade é vista como uma condição necessária da necessidade. Ora, argumenta Kripke, estes conceitos não são sinónimos: a necessidade é uma modalidade alética e a analiticidade uma modalidade semântica. Contrariamente à analiticidade, que caracteriza proposições em função do significado das palavras contidas nas frases que a expressam, a necessidade caracteriza proposições em função do modo como são verdadeiras, se são verdadeiras em todos os mundos possíveis. Os casos típicos de necessidades a posteriori são também casos típicos de verdades necessárias que não são analíticas.

Outra reacção, menos niilista, à modalidade de re é dada por David Lewis, cuja perspectiva foi discutida acima. O problema é dito originar-se na suposta ininteligibilidade do conceito de identidade transmundial pelo que podemos salvar a modalidade de re se a avaliação de frases de re não envolver a relação de identidade transmundial, mas a relação contraparte de.

2.3- Essencialismo contemporâneo

O essencialismo contemporâneo, nomeadamente o defendido por Kripke, embora tenha sido apelidado de “essencialismo aristotélico”, distingue-se do essencialismo de Aristóteles. Charlotte Witt (1989:180-198) evidencia essa diferença. O Essencialismo de Kripke diz respeito a propriedades essenciais de um objecto, as quais são determinadas em função da identidade transmundial. O essencialismo aristotélico diz respeito a essências que constituem a causa do ser

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das substâncias, sendo determinado por uma teoria acerca do ser, da substância. Esta diferença básica conduz a que nem todas as propriedades consideradas essenciais por Kripke seriam admitidas na teoria da essência de Aristóteles, e nem tudo o que constitui a essência aristotélica é considerado essencial por Kripke.

Vejamos, sucintamente, de que modo a teoria aristotélica das essências de substâncias individuais materiais se distingue da teoria kripkeana das propriedades essenciais de indivíduos.

Kripke discute em “Naming and Necessity” as propriedades essenciais de pelo menos duas espécies de objectos: indivíduos (e.g. um ser humano, um tigre, uma mesa, etc) e substâncias naturais (e.g. a água, o ouro, etc). Relativamente a indivíduos, menciona três géneros de propriedades essenciais (1988: 114-115): 1ª-propriedades de origem: o pedaço de madeira do qual uma mesa é originariamente feita é uma propriedade essencial desta mesa; o espermatozóide e o óvulo do qual se originou uma determinada pessoa é uma propriedade essencial da pessoa; 2ª-propriedades categoriais: ser uma mesa é uma propriedade essencial de uma mesa; ser uma pessoa é uma propriedade essencial de uma pessoa; 3ª- propriedades de constituição material: a constituição material originária de alguns objectos é uma propriedade essencial desses objectos. Estes três géneros de propriedades essenciais correspondem a três dos quatro tipos de causas aristotélicas-respectivamente, causa eficiente, formal e material. Ora, apenas a causa formal (identificada com a final) é essencial, para Aristóteles; a causa eficiente e a causa material não estão incluídas na definição aristotélica de substâncias materiais.

Kripke chega a esta listagem de propriedades essenciais de indivíduos referindo um objecto individual por meio da designação rígida e perguntando que propriedades esse objecto tem de possuir para ser o que é. Assim, em Kripke, as propriedades essenciais de um indivíduo são determinadas em função da identidade transmundial: uma propriedade essencial de x é uma propriedade que x não poderia deixar de possuir sem deixar de ser x . A ideia de Kripke, em oposição a Aristóteles

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para quem a teoria da essência decorre de uma teoria acerca de indivíduos (substâncias), é a de que podemos determinar as propriedades essenciais de indivíduos independentemente de se ter uma teoria metafísica acerca do indivíduo. Kripke rejeita duas análises metafísicas acerca do que são objectos individuais, não oferecendo nenhuma análise em alternativa. Rejeita a concepção segundo a qual um indivíduo é um feixe de propriedades, bem como a concepção oposta segundo a qual um indivíduo é um “particular absoluto”, isto é, um “substracto sem propriedades”. A primeira concepção é rejeitada porque é uma consequência de um erro no modo de conceber os mundos possíveis e a identidade transmundial de indivíduos, o qual conduz à ideia de identificar um particular em outros mundos possíveis em termos puramente qualitativos. Este procedimento é inadequado, incorrecto e desnecessário. É inadequado e incorrecto porque particulares não são feixes de propriedades. É desnecessário porque começamos com os objectos que temos e identificamos no mundo actual, e perguntamos em seguida se certas coisas poderiam ser verdadeiras desses objectos.

Ora, o essencialismo de Aristóteles, contrariamente ao de Kripke, não se baseia na ideia da identidade transmundial de um indivíduo, mas emerge da definição de substância individual: as essências são especificadas dentro de uma teoria da substância. Esta divergência de perspectiva traduz-se numa divergência na determinação do que está ou não incluído na essência de um indivíduo. Assim, as propriedades da origem não seriam admitidas por Aristóteles, já que a essência em Aristóteles não se baseia na identidade do indivíduo, mas repousa na sua noção de definição, que nada tem a ver com a origem do objecto. Poder-se-á acrescentar que, se se admite que a propriedade essencial da origem é uma propriedade essencial que é peculiar a um indivíduo - cada ser humano tem uma diferente propriedade da

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origem2-, então esta propriedade não pode estar incluída numa essência aristotélica. Não pode porque, em Aristóteles, as essências individuais de dois seres humanos, por exemplo, podem ser especificadas numa única definição: a definição de um ser humano. As propriedades da constituição material também não seriam admitidas por Aristóteles, dado que a definição de uma substância material (composto de matéria e forma) é a definição da sua forma e não da sua matéria, pois é a forma que é a causa do ser e da actualidade da substância e é ela que determina o que a matéria é

Com esta breve contraposição ao essencialismo aristotélico pretendi apenas evidenciar alguns aspectos específicos do essencialismo de Kripke, nomeadamente que ele se funda numa teoria metafísica da modalidade, isto é, nas propriedades que um objecto, indivíduo ou substância, existindo, não poderia deixar de possuir. A questão é: poderia a água deixar de ter a composição química que tem no mundo actual? Poderia uma determinada pessoa x ter uma origem (biológica) diferente da que tem no mundo actual?. A maioria das propriedades exemplificadas são propriedades descobertas cientificamente, pelo que a questão deverá ser reformulada. Dada a descoberta científica de que a água tem a composição química H2O, poderia a água ter uma composição química diferente? Dado o nosso conhecimento acerca da origem de uma determinada pessoa x, que x tem origem nos gametas G, poderia x ter uma origem diferente?. As propriedades exemplificadas, sendo descobertas pela ciência, são determinadas pelas leis da natureza. Ora, afirmá-las como propriedades essenciais dos respectivos objectos é negar a possibilidade de mundos possíveis nos quais a água, existindo, não tenha a composição química H20 e nos quais aquela pessoa, existindo, tenha uma origem

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Mostrarei, no capítulo III desta dissertação, que o fenómeno dos gémeos idênticos levanta dificuldades a esta perspectiva segundo a qual a propriedade da origem é uma propriedade essencial individualizadora. O fenómeno dos gémeos idênticos exemplifica uma situação em que a propriedade essencial da origem de x é uma propriedade essencial de um objecto y, distinto de x.

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diferente da que tem. Esta negação veicula uma orientação metafísica de base naturalista.

Do Essencialismo contemporâneo e da sua orientação naturalista resulta assim ser correcta a afirmação de que a ciência faz mais do que descobrir simples correlações já que descobre o que as coisas podem ou têm de ser, descobre verdades necessárias, descobre a essência das coisas: uma vez descoberta a composição química da água no mundo actual como sendo H2O, qualquer outra substância real ou possível só é água se tiver a mesma composição química.

Assim, admitir a premissa essencialista de que a composição química actual da substância que designamos por água é uma propriedade essencial da água é admitir a premissa condicional (ii), a premissa de que se a água é H2O, então necessáriamente a água é H2O. Ora, se é apenas empiricamente que se descobre ser H2O a composição química actual da água, então só empiricamente se conhece aquela propriedade essencial da água ( embora possamos não saber tratar-se de uma propriedade essencial - essa é a versão fraca da tese Kripkeana do Necessário A Posteriori). Se, para além disso, sabemos, por análise filosófica, que a composição química actual da água é uma propriedade essencial da água, então só empiricamente podemos saber que ser H2O é uma propriedade essencial da água (versão forte).

3- Designação Rígida

Vimos que a tese do Necessário A Posteriori é suportada pelo Essencialismo. Vou agora mostrar que, embora a tese kripkeana da Designação Rígida exija o Essencialismo, a conversa não se verifica, isto é, o Essencialismo não exige a Designação Rígida. Consequentemente, a tese do Necessário A Posteriori não depende da tese semântica da Designação Rígida.

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