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Modalidade alética e modalidade epistémica

No documento UMA DEFESA DO NECESSÁRIO A POSTERIORI (páginas 46-51)

CAPÍTULO II COMO SÃO POSSÍVEIS NECESSIDADES A POSTERIORI?

1. Modalidade alética e modalidade epistémica

A crítica inicial kripkeana da tese tradicional de que a necessidade implica a aprioridade vai no sentido de mostrar que ela parece resultar da confusão dos domínios daquelas categorias. Torna-se assim necessário ultrapassar essa confusão, clarificando aquilo que está implícito no uso tradicional das duas noções envolvidas: que elas não são sinónimas por definição, referem dois domínios distintos, epistémico e metafísico, não podendo significar a mesma coisa.

A necessidade é uma modalidade alética, que diz respeito a um modo de uma proposição ser verdadeira (falsa). Uma proposição pode ser verdadeira (falsa) de diversos modos: necessariamente verdadeira (falsa), contingentemente verdadeira (falsa), possivelmente verdadeira (falsa), impossivelmente verdadeira (falsa), etc. A aprioridade é uma modalidade epistémica, que diz respeito a um modo de uma proposição ser conhecida. Uma proposição verdadeira pode ser objecto de conhecimento de diferentes modos: pode ser justificada apenas com base na experiência (a posteriori) ou pode ser justificada sem envolver qualquer apelo à experiência (a priori).

Ora, se as duas noções, a de necessidade e a de aprioridade, não são sinónimas, afirmar que são coextensivas exige argumentos suplementares que necessitam de explicitação, pois podem bem ser o resultado da confusão dos domínios e conceitos envolvidos.

Quanto à modalidade epistémica, é tradicionalmente aceite a distinção, apontada atrás, entre conhecimento a priori e conhecimento a posteriori, feita através da referência à tese kantiana de que o conhecimento a priori é um conhecimento absolutamente independente da experiência. Esta distinção tradicional conota duas espécies de justificação epistémica: um conhecimento é a priori se e só se a sua justificação é a priori, no sentido em que não depende da

experiência; um conhecimento é a posteriori se e só se a sua justificação é a posteriori, no sentido em que depende da experiência.

De salientar, nesta caracterização do conhecimento a priori versus a posteriori, que o que se entende tradicionalmente por experiência inclui a percepção (informação obtida do mundo exterior através dos orgãos dos sentidos), o testemunho e a memória. Na medida em que, para muitos filósofos, incluindo Kant, os seres humanos não têm qualquer tipo de conhecimento antes de terem alguma experiência do mundo, as experiências exigidas para a aquisição dos conceitos intervenientes não deverão ser incluídas naquilo que se entende tradicionalmente por experiência (caso contrário virtualmente nenhuma verdade poderia ser conhecida a não ser empiricamente).

Kripke evidencia o erro de alguns filósofos ao transformarem a modalidade nesta caracterização do a priori, isto é, ao trocarem o “pode” pelo “ter de” (Kripke 1988: 34-39, 158-160): um conhecimento a priori é aquele que “pode” ser conhecido independentemente de qualquer experiência, e não aquele que “tem de” ser conhecido independente de qualquer experiência. A primeira caracterização significa que uma verdade a priori pode ser conhecida independentemente de qualquer experiência, seja ela “de facto” conhecida independentemente de qualquer experiência ou não. Assim, uma verdade que pertence ao domínio do a priori “pode” ser conhecida na base da experiência, por exemplo, por testemunho; ilustrando, alguém pode conhecer o resultado de um problema matemático sem ter feito as respectivas deduções e cálculos, confiando na autoridade do especialista. Dito de outro modo, as verdades que pertencem ao domínio do a priori podem ser conhecidas empiricamente, já que o que caracteriza uma verdade a priori é o ser uma verdade que “pode” ser conhecida, e não que “tem de” ser conhecida, independentemente da experiência: as verdades a priori não são assim verdades necessariamente conhecidas independentemente da experiência, mas

possivelmente conhecidas independentemente da experiência. Elas opõem-se às verdades a posteriori que só podem ser conhecidas através da experiência.

Assim, uma caracterização básica e consensual das noções de a priori e a posteriori poderá ser expressa da seguinte maneira:

(a) p é a priori se e só se p pode ser conhecida como sendo verdadeira (por um agente apropriado de conhecimento, em especial uma pessoa) independentemente de qualquer experiência.

(b) p é a posteriori se e só se p não pode ser conhecida como verdadeira (por um agente apropriado de conhecimento, em especial uma pessoa) independentemente de qualquer experiência.

Das definições (a) e (b) segue-se que uma proposição a priori pode ser identificada como verdadeira através de meios empíricos, enquanto que uma proposição a posteriori só o pode ser através de meios empíricos.

Com esta delimitação do conceito tradicional mínimo de conhecimento a priori versus a posteriori, verificamos que muitas características geralmente atribuídas ao conhecimento a priori não se lhe aplicam de uma forma imediata e líquida, necessitando de alguma argumentação adicional para serem estabelecidas. Assim, por exemplo, um conhecimento a priori não envolve, por definição, o estatuto de verdade necessária. A implicação da aprioridade para a necessidade é, no entanto, uma tese tradicionalmente aceite, e explicitamente defendida por Kant, ao declarar que todo o conhecimento que possui um fundamento a priori se anuncia pela exigência de ser absolutamente necessário (1985:7).

Quanto à modalidade alética, a distinção entre verdades necessárias e verdades contingentes nada tem a ver com o modo de conhecimento de proposições, seja ele a priori seja a posteriori, mas com o modo de uma proposição ser verdadeira ou falsa.

A caracterização tradicional das noções de verdade necessária e de verdade contingente é formulada através de uma resposta à seguinte questão. Uma

proposição dada, sendo de facto verdadeira (falsa), poderia no entanto ser antes falsa (verdadeira)? Poderia, nesse aspecto, o mundo ser diferente do que é? Se a resposta for afirmativa estamos perante uma verdade contingente (respectivamente uma falsidade contingente), se for negativa estamos perante uma verdade necessária (respectivamente uma falsidade necessária). Assim, por exemplo, perguntamos se Mário Soares poderia não ter sido eleito para deputado do Parlamento Europeu nas eleições europeias portuguesas de 1999. Dado que Mário Soares foi, de facto, eleito, e dado que a resposta à pergunta é evidentemente afirmativa - numa situação contrafactual Mário Soares poderia não ter sido eleito, poderia mesmo não ter concorrido às eleições ou não ter havido eleições de todo-, estamos perante a verdade contingente de que Mário Soares foi eleito para deputado do Parlamento Europeu em 1999. Se Mário Soares não tivesse, de facto, sido eleito, estaríamos perante uma falsidade contingente. Vejamos ainda um exemplo de uma verdade (falsidade) necessária. Perguntamos se João Soares, filho de Mário Soares, poderia não ser oriundo do seu actual progenitor. A resposta intuitiva é negativa - João Soares, numa situação contrafactual, não poderia ter um progenitor diferente do que tem actualmente-, logo, estamos perante a verdade necessária de que João Soares é filho de Mário Soares. Suponhamos agora que se vem a descobrir que afinal João Soares não é, de facto, filho de Mário Soares, mas de uma outra pessoa. Nesta situação, estaríamos perante uma falsidade necessária. Uma proposição necessária é, de acordo com uma ideia tradicional influente, uma proposição verdadeira em todos os mundos possíveis. Esta intuição está, em traços gerais, na base das teorias lógicas e semânticas da modalidade, construídas por diversos lógicos e filósofos contemporâneos, nomeadamente por Kripke . De acordo com a concepção actualista de mundos possíveis (concepção de Kripke, Plantinga e outros), mundos possíveis são maneiras como as coisas poderiam ter sido e o mundo actual é um deles, uma vez que é a maneira como as coisas são. Uma das razões da importância do aparato logico-semântico dos “mundos

possíveis” é a de permitir uma formalização e clarificação das perspectivas filosóficas defendidas acerca de matérias modais, de modo a evitar equívocos e ambiguidades presentes em algumas formulações correntes dessas perspectivas.

Nesta linha, a caracterização de verdades necessárias versus contingentes pode ser assim expressa:

( c) p é necessariamente verdadeira se e só se p é verdadeira (é verdadeira no mundo actual) e não pode não ser verdadeira; por outras palavras, p é verdadeira em todos os mundos possíveis.

(d) p é contingentemente verdadeira se e só se p é verdadeira mas poderia não ser verdadeira; por outras palavras, p é verdadeira no mundo actual e falsa em pelo menos um mundo possível.

(e) p é necessariamente falsa se e só se p é falsa e não pode ser verdadeira; por outras palavras, p é falsa em todos os mundos possíveis.

(f) p é contingentemente falsa se e só se p é falsa mas poderia ser verdadeira; por outras palavras, p é falsa no mundo actual e verdadeira em pelo menos um mundo possível.

A caracterização tradicional das modalidades aléticas mostra que do facto de uma proposição ser necessária não se segue, pelo menos conceptualmente, que seja a priori. A implicação da necessidade para a aprioridade é, no entanto, uma tese tradicionalmente aceite, e explicitamente defendida por Kant ao declarar que se encontrarmos uma proposição que apenas se possa pensar como necessária estamos em presença de um juízo a priori (1985: 38). Kant usa aqui a necessidade como um critério da aprioridade.

As modalidades aléticas não podem ser plausivelmente reduzidas às modalidades epistemológicas: que uma proposição seja não só verdadeira mas também necessária, não depende de qualquer perspectiva acerca das fontes do nosso conhecimento, do modo como a proposição é justificada. Kripke diria ainda

que também não depende de convenções linguísticas. Depende fundamentalmente do modo como o mundo é.

No documento UMA DEFESA DO NECESSÁRIO A POSTERIORI (páginas 46-51)