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Categorias naturais e o Necessário A Posterior

No documento UMA DEFESA DO NECESSÁRIO A POSTERIORI (páginas 87-96)

CAPÍTULO III TAXONOMIA DO NECESSÁRIO A POSTERIOR

2- Categorias naturais e o Necessário A Posterior

Os casos de verdades necessárias que só empiricamente podem ser conhecidas que discutirei nesta secção envolvem termos para categorias naturais, termos para substâncias como “água” ou “ouro”, termos para espécies animais como “tigre”, para fenómenos naturais como “calor”, etc. Assim, por exemplo, “A água é H2O”, “Tigres são mamíferos”, “O calor é o movimento molecular”, são alegadas verdades necessárias conhecidas apenas a posteriori.

A situação com estes casos será semelhante à situação das identidades verdadeiras com designadores rígidos? Mostrei que, nesta última situação, a conclusão essencialista trivial deriva de premissas lógicas mais ou menos incontroversas coadjuvadas por premissas de natureza empírica e semântica. Respondendo negativamente à questão acima colocada, mostrarei agora que os casos em questão exigem premissas essencialistas suportadas por intuições eminentemente metafísicas.

2.1- Inadequação de (EI) aos casos que envolvem categorias naturais.

A consideração kripkeana de que as identificações teóricas como “Água=H2O” ou “Ouro= o metal com o peso atómico 79”, são exemplos de identidades verdadeiras descobertas empiricamente cujos termos são ambos designadores rígidos (1980: 140), poderá levar-nos a considerar que (EI) também se aplica a estes casos. Teríamos assim a seguinte exemplificação de (EI):

(v)Para quaisquer designadores rígidos “a”, “b”, Tem-se “a=b→Nec (a=b)” (vi) Água=H2O

(vii) “Água” e “H2O” são designadores rígidos (viii) Logo, Nec (Água=H2O)

Deste modo, uma verdade essencialista substancial seria derivada da filosofia da linguagem que fornece as premissas (v) e (vii), e da descoberta empírica expressa na premissa (vi). O essencialismo expresso na conclusão (viii), de que ser

H2O é uma propriedade essencial da água, seria assim directamente derivado da tese semântica da rigidez de termos para categorias naturais.

Assumindo que o argumento acima enunciado é válido, a conclusão não poderá ser falsa e as premissas todas verdadeiras. Steward (1990:385-398) pretende mostrar que (vii) é falsa, nomeadamente que “H2O” não é um designador rígido, imaginando uma situação contrafactual na qual não é o caso que a Água=H2O. A situação contrafactual imaginada por Steward é a seguinte : suponhamos que o núcleo dos átomos que compõem as moléculas de H2O contêm protões-B que, sendo similares aos protões correntes, produzem diferentes macropropriedades, pelo que H2O é um sólido opaco e cor de rosa. Steward conclui que, nesta situação, Água≠H2O, pelo que “H2O” não é um designador rígido.

A premissa de que Steward parte para concluir que, naquela situação, Água≠H2O é a de que a “água” tem um conteúdo descritivo: “o líquido incolor, transparente, etc”. Assim, um sólido opaco e cor de rosa não se enquadra naquela descrição. Esta premissa é duvidosa e a plausibilidade da sua refutação depende da plausibilidade da refutação da teoria descritivista. Os críticos da teoria descritivista, nomeadamente Kripke e Putnam, argumentam que as propriedades normalmente associadas a um termo para uma categoria natural não fornecem uma condição necessária e suficiente de pertença à extensão do termo; que termos para categorias naturais não referem via propriedades nem são sinónimas das descrições identificadoras.

Outro modo, mais convincente, de refutar o argumento (v)-(viii) é mostrar a petitio que comete. O estabelecimento da verdade da premissa (vii), em especial a de que “H2O” é rígido, exigiria que a conclusão do argumento, isto é, que necessariamente Água=H2O, fosse tomada como garantida, pelo que não pode ser usada como prova para essa conclusão. Isto porque a rigidez de “H2O” não seria de jure mas de facto, isto é, a rigidez de “H2O” não resulta de uma estipulação, mas exige o apelo a factos modais extra-linguísticos. Assim, porque a rigidez de um

termo como “H2O”, dada a sua complexidade conceptual, só pode ser de facto, o estabelecimento da premissa (vii) exige mais do que uma reflexão acerca do comportamento de expressões referenciais.

Mesmo admitindo que a situação contrafactual imaginada é uma situação onde H2O não seria água, o que, como mostrei, é questionável, não se trata de uma situação na qual a água não tem a composição química H2O, mas uma situação onde a água não existe. Aquela situação apenas contraria a pressuposição de que se x é H2O, então x é água; mas não contraria a pressuposição conversa, a de que se x é água, então x é H2O. Permanece ainda plausível que a água deva essencialmente ter a composição química H2O, pelo que a conclusão “Necessariamente a água é H2O”, onde o “é” é um “é” predicativo, não é posta em causa.

2.2- O esquema kripkeano de argumentação

Assim sendo, o esquema do argumento para a defesa destes casos do Necessário A Posteriori não seria o argumento da identidade acima descrito. O esquema adequado é o sugerido por Kripke para todos os casos do Necessário A Posteriori, e que poderá ser, nestes casos, assim representado:

(7) Dada uma substância natural x , se x tem uma composição química y então necessariamente x tem a composição química y

(8) x tem a composição química y

(9) Necessáriamente x tem a composição química y

A premissa condicional a priori (7) exprime o princípio essencialista segundo o qual a composição química de uma substância é uma propriedade essencial da substância, isto é, dado que x tem de facto y, uma condição necessariamente necessária para uma substância ser x é ter a composição química y:

necessariamente, se x existe, x tem y. Esta premissa essencialista faz apelo às nossas intuições modais através de exemplos da Terra Gémea ou similares. A premissa (8) é a posteriori e expressa a descoberta científica da composição química de uma determinada substância. Destas duas premissas se conclui que em todos os mundos possíveis aquela substância tem aquela composição química: a conclusão (9) é a posteriori dado o input (8). Aplicada ao caso da água, a conclusão é a de que necessáriamente a água é ( no sentido predicativo) H2O, isto é, ser H2O é uma condição necessariamente necessária para ser água7

A conclusão do argumento que usa (EI), a conclusão (viii), dado que a relação de identidade é simétrica, junta à tese predicativa, a de que necessariamente a água é H2O, a tese de que necessariamente H2O é água, isto é, que ser H2O é também uma condição necessariamente suficiente para ser água. Ora, os exemplos da Terra Gémea e similares não mostram que necessariamente ser H2O é uma condição suficiente para ser água, que H2O em todos os mundos possíveis em que existe é água; mas talvez mostrem que necessariamente ser H2O é uma condição necessária para ser água, que a água em todos os mundos possíveis em que existe é H2O.

2.3- Discussão do suposto esquema de argumentação de Putnam.

Putnam, como Kripke, defende que as categorias naturais têm propriedades essenciais e que estas são fornecidas pelas ciências naturais; e parece também derivar o essencialismo directamente de uma teoria acerca de como a extensão de um termo para uma categoria natural é fixada. A teoria de Putnam acerca da extensão de termos para categorias naturais e a teoria de Kripke acerca da sua referência assemelham-se; ambas negam que a extensão (ou referência) de termos

para categorias naturais seja função das descrições acreditadas pelos falantes como sendo verdadeiras das coisas pertencentes a essas categorias.

No entanto, o argumento da Terra Gémea parece ser usado por Putnam não só para defender teses semânticas acerca de termos para categorias naturais, mas também para defender teses essencialistas, isto é, atribuir propriedades essenciais a categorias naturais tais como espécies animais ou substâncias naturais.

Putnam (1996:3-52) visa demonstrar, por meio do argumento da Terra Gémea, que as propriedades gerais normalmente associadas a um termo para uma categoria natural não constituem uma condição logicamente suficiente de aplicação (coisas distintas na Terra e na Terra Gémea satisfazem essas propriedades); assim sendo, defende que termos para categorias naturais são designadores rígidos dessas categorias, e que a extensão de tais termos não é determinada pelas crenças daqueles que os usam. Defende ainda teses não já semânticas mas metafísicas, nomeadamente a tese de que é uma propriedade essencial da água ser H2O ou a tese de que é uma propriedade essencial de cada tigre ser um mamífero. As teses essencialistas são motivadas por intuições acerca da inteligibilidade ou não de certas situações imaginadas. Por exemplo, se aquilo a que se chama “água” na Terra Gémea é ou não é água, se a palavra “água” tem ou não extensões idênticas na Terra e na Terra Gémea, apesar de todas as características fenomenológicas dos líquidos serem iguais, etc. Estas intuições vão todas no sentido negativo. O argumento de suporte visa determinar condições de identidade transmundial para categorias naturais: as condições de identidade transmundial para substâncias são fixadas por considerações acerca da sua natureza física fundamental, e as condições de identidade transmundial para espécies são fixadas por considerações acerca da sua posição relativa na árvore taxonómica.

Assim sendo, não é apenas a teoria do significado de termos relativos a categorias naturais, que tem, no dizer de Putnam, “consequências alarmantes para a teoria da verdade necessária” (1996), no sentido em que, afinal, nem todas as

verdades necessárias são conhecidas a priori. É plausível pensar que esta consequência exige a admissão de uma premissa essencialista substantiva - apoiada nas intuições modais acima aludidas-, e não decorre directamente de uma teoria acerca do modo como termos para categorias naturais referem. Assim, para podermos concluir que a frase “A água é H2O”, sendo conhecida empiricamente, é metafisicamente necessária, temos de admitir uma premissa essencialista fundada na intuição de que “não chamamos água a qualquer outra substância real ou hipotética a menos que tenha uma composição química similar à da água” no mundo actual (Putnam 1988).

Embora Putnam não apresente nenhum argumento formal para a conclusão de que a frase “A água é H2O” exprime uma verdade necessária a posteriori, Salmon (1982) identifica e analisa o suposto “mecanismo” de Putnam, elaborado por Donnellan (1973; 1974), para “gerar” verdades necessárias a posteriori. Esse mecanismo é composto por três premissas e a respectiva conclusão:

(ix) Necessariamente algo é uma porção de água sss é uma porção do mesmo líquido que isto (aponta-se para uma porção de água)

(x) Isto tem a composição química H2O

(xi) x e y são porções de uma mesma substância S sss x e y têm a mesma composição química .

(xii) Necessariamente cada porção de água tem a composição química H2O.

A premissa (ix) é a definição ostensiva (operacional) proposta por Putnam para explicar o significado de termos para categorias naturais, e que exige que se aponte para um paradigma contextualmente presente da categoria natural em questão. Resulta da teoria de Putnam do significado de termos para categorias naturais como “água”, segundo a qual “água” é um designador rígido, designa a mesma substância em todos os mundos possíveis, designa a substância da qual as porções actuais de

água são porções. A premissa (x) é o resultado da descoberta científica da estrutura escondida do paradigma actual mencionado na definição ostensiva.

Putnam alude à premissa (xi) quando fala nas “propriedades físicas importantes” (1996) que x e y têm em comum no caso em que x é o mesmo líquido que y. A ideia é a de que se a água tem uma estrutura “oculta”, então essa estrutura determina o que é ser uma porção de água, não apenas no mundo actual, mas em todos os mundos possíveis: ter a mesma composição química é uma condição necessária da co-substancialidade transmundial.

O problema com o argumento, segundo Salmon, diz respeito a (xi): trata-se de um princípio científico ou de um princípio essencialista não trivial acerca de substâncias líquidas? A argumentação de Salmon, que me parece convincente, vai no sentido da segunda hipótese, mostrando assim que a conclusão essencialista (xii) não é derivável da teoria do significado e da referência de termos para categorias naturais apenas coadjuvada por premissas que não envolvem qualquer forma de essencialismo não trivial.

A premissa (xi) seria um princípio científico se expressasse uma condição necessária e suficiente para duas porções de um líquido serem co-substanciais, serem porções da mesma substância. Essa condição seria a seguinte:

(xi*) necessariamente, uma condição necessária e suficiente para dois itens x e y serem co-substanciais é que qualquer que seja a estrutura química que um tem o outro também tem.

Mas, se assim fosse, a conclusão (xii) não se seguiria. Para que a conclusão (xii) se siga é exigido que a premissa (xi) exprima uma condição necessária para duas porções de um líquido serem transmundialmente co-substanciais, isto é, serem porções de uma mesma substância em diferentes mundos possíveis:

(xi**)se x existe em m1 e y em m2 e se x é uma porção em m1 da mesma substância que y em m2, então qualquer que seja a estrutura química que x tem em m1, y tem essa estrutura química em m2 e vice-versa.

A premissa (xi**) não é um princípio científico que possa ser testado por experiências de laboratório, mas um princípio testado por experiências de pensamento, por análise conceptual e métodos de reflexão próprios da metafísica. Aquela premissa é um princípio essencialista não trivial, pois implica que qualquer substância líquida é tal que não poderia ter uma estrutura química diferente da que tem actualmente. Este princípio não é um princípio empírico, pois não se está apenas a dizer, como acontece em (xi*), que porções de água no mundo actual não poderiam não ser H2O, mas que porções de água em todos os mundos possíveis não poderiam não ser H2O; ou seja, está-se a dizer que ser H2O é uma propriedade essencial da água. (xi**) veicula um princípio essencialista não trivial de orientação naturalista: não são possíveis mundos onde a água não tem a composição química que a ciência descobriu ter no mundo actual.

A premissa (xi**) não só é um princípio essencialista, como também é independente da teoria do significado e das descobertas científicas: partindo da premissa de que o termo “água” é um designador rígido de um líquido (premissa de natureza semântica), e da premissa de que porções de água no mundo actual têm a estrutura química H2O (premissa de natureza científica), não se segue que as porções possíveis de água tenham necessariamente essa estrutura. Aquelas duas premissas (semântica e científica), são compatíveis com a negação da premissa (xi**), isto é, com a ideia de que a actual estrutura química da substância (descoberta empiricamente) é um factor acidental da substância, e que a mesma substância pode ter uma estrutura química diferente em diferentes mundos possíveis (nomeadamente, a água pode ter a estrutura XYZ).

A premissa (xi**) apoia-se na intuição metafísica básica do argumento da Terra Gémea: a composição química de uma substância é uma propriedade essencial dessa substância. A situação imaginada traduz esta intuição ao estabelecer que a palavra “água” na Terra e na Terra Gémea tem extensões diferentes: na Terra designa rigidamente uma substância com a composição química

H2O, na Terra Gémea designa uma substância distinta pois tem a composição química distinta XYZ. Assim, na Terra Gémea aquilo a que se chama “água” não é água porque não tem a composição química das porções de água na Terra . Do mesmo modo, se descrevemos, não um outro planeta no actual universo, mas outro mundo possível no qual há um líquido em tudo idêntico à água excepto na sua composição química, esse líquido não é água pois não tem a composição química H2O. Assim sendo, para uma porção de líquido ser, num mundo possível, água, tem de ter a estrutura química da água : (xi**).

A conclusão essencialista (xii) não se deduz directamente da teoria de Putnam acerca de como a extensão de um termo para uma categoria natural é fixada: nenhuma razão é dada, no âmbito daquela teoria semântica, para uma propriedade particular (ser H2O) ser comum a todas as coisas (porções de líquido) que referem a mesma substância. Esta conclusão essencialista não decorre directamente da teoria semântica, embora seja defendida através da intuição básica do argumento da Terra Gémea: se o termo “água” designa, na Terra e na Terra Gémea substâncias líquidas distintas, H20 e XYZ respectivamente, apesar de terem as mesmas características aparentes, o que é que funda esta não identidade senão a diferença na sua composição química?

No documento UMA DEFESA DO NECESSÁRIO A POSTERIORI (páginas 87-96)