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O direito fundamental à igualdade na perspectiva da antidiscriminação racial: para além do mandado constitucional expresso de criminalização do racismo

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Academic year: 2021

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(1)UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO. MARIANO PAGANINI LAURIA. O DIREITO FUNDAMENTAL À IGUALDADE NA PERSPECTIVA DA ANTIDISCRIMINAÇÃO RACIAL: PARA ALÉM DO MANDADO CONSTITUCIONAL EXPRESSO DE CRIMINALIZAÇÃO DO RACISMO. NATAL/RN 2016.

(2) MARIANO PAGANINI LAURIA. O DIREITO FUNDAMENTAL À IGUALDADE NA PERSPECTIVA DA ANTIDISCRIMINAÇÃO RACIAL: PARA ALÉM DO MANDADO CONSTITUCIONAL EXPRESSO DE CRIMINALIZAÇÃO DO RACISMO. Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Direito - PPGD do Centro de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito. Orientador: Prof. Doutor Leonardo Martins. NATAL/RN 2016.

(3) Catalogação da Publicação na Fonte UFRN/Biblioteca Setorial do CCSA Lauria, Mariano Paganini. O direito fundamental à igualdade na perspectiva da antidiscriminação racial: para além do mandado constitucional expresso de criminalização do racismo / Mariano Paganini Lauria. - Natal, 2016. 116f. Orientador: Prof. Dr. Leonardo Martins. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Sociais Aplicadas. Programa de Pós-graduação em Direito. 1. Direito fundamental - Dissertação. 2. Racismo - Dissertação. 3. Direito à igualdade - Antidiscriminação - Dissertação. 4. Mandado constitucional - Expresso de Criminalização - Dissertação. 5. Redistribuição - Dissertação. 6. Reconhecimento - Dissertação. I. Martins, Leonardo. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título. RN/BS/CCSA. CDU 342.7:323.15.

(4) MARIANO PAGANINI LAURIA. O DIREITO FUNDAMENTAL À IGUALDADE NA PERSPECTIVA DA ANTIDISCRIMINAÇÃO RACIAL: PARA ALÉM DO MANDADO CONSTITUCIONAL EXPRESSO DE CRIMINALIZAÇÃO DO RACISMO. Dissertação aprovada em......./......../........, pela banca examinadora formada por:. Presidente:. ________________________________________________ Prof. Doutor Leonardo Martins (Orientador – UFRN). Membro:. ________________________________________________ Prof. Doutor Djason Barbosa Della Cunha (examinador externo à UFRN). Membro:. ________________________________________________ Prof. Doutora Cristina Foroni Consani (examinadora da UFRN).

(5) AGRADECIMENTOS Confessadamente não saberia apontar com exatidão os motivos que me levaram a escrever a respeito do presente tema, o qual tem sua lente voltada ao racismo, este complexo fenômeno social que, no mais das vezes, ainda é invisível no Brasil. Talvez a resposta perpasse pelo fato de ter avó materna com origem judaica, etnia esta que sofreu as atrocidades e extermínio em massa perpetrados pelo regime nazista, durante a Segunda Guerra Mundial, mas também, por ter crescido contando com a leal e fraterna amizade de pessoas negras. Outrossim, certa vez ouvi de um sábio professor que a gratidão é um dos sentimentos mais nobres que o homem pode nutrir. Aquilo me marcou na alma e tento fazer por merecer ter recebido tal ensinamento, motivo pelo qual dedico o presente trabalho, fruto de muita luta, às seguintes pessoas e instituições: À Danielle, minha eterna companheira na caminhada da vida, obrigado por tudo. Aos meus amados filhos, Mariana e Ricardo, o papai, mesmo que longe fisicamente, sempre estará presente. A minha mãe, Maria Lola, acima de tudo uma guerreira. Ao Ministério Público do Rio Grande do Norte, instituição a qual tenho orgulho de integrar e à Corregedoria Nacional do Ministério Público (CNMP), nas pessoas do Corregedor Nacional, Dr. Cláudio Henrique Portela do Rego, paradigma de capacidade profissional e dedicação à causa pública e da colega Ludmila Reis Lopes Brito pela amizade e gentileza. É uma honra fazer parte desta equipe. Ao meu estimado orientador, professor Dr. Leonardo Martins, exemplo de profissionalismo e competência na nobre arte de ensinar, mais do que um mestre, um modelo a ser seguido, sempre disposto a compartilhar sua vasta experiência acadêmica e conhecimentos teóricos, contribuindo decisivamente para a realização desta dissertação. A todos os professores do programa de pós-graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), em especial, aos professores Dr. Morton Luiz Faria de Medeiros e Dra. Cristina Foroni Consoni que participaram ativamente da banca de qualificação, trazendo importantes sugestões de aprimoramento ao trabalho. Agradeço por todos os ensinamentos compartilhados..

(6) Aos amigos de toda a vida (e irmãos), que sempre torceram por mim e me apoiaram nos momentos bons e ruins, Lucas Pereira Baggio, Marcelo Mósena, Rodrigo Finkelsztejn, Anderson Vianna de Ávila, Ricardo Góes, Júlio Cardoso Silva, Vinícius Marti Corcione, Pablo Castro Miozzo, Cristiano Manoel Machado e Marcelo de Oliveira Santos. Por fim, mas não menos importante, a minha querida turma do mestrado – especialmente na pessoa do amigo Sasha Alves do Amaral, parceiro de angústias e de produtivas discussões acadêmicas -, foi uma alegria desfrutar da companhia de todos vocês..

(7) RESUMO Mesmo após a refutação científica da divisão humana em raças biológicas, a discriminação racial ainda constitui mazela social recorrente. Por muitos anos, o racismo no Brasil permaneceu como prática disseminada, porém silenciosa, graças à sedimentação do dogma da democracia racial, tendo em vista a miscigenação observada na formação do povo brasileiro (mistura do índio nativo, do europeu português e do escravo africano). Com efeito, as políticas antidiscriminatórias acabaram sendo alijadas da agenda governamental. Nada obstante, estudos sociológicos demonstraram, de forma inexorável, o contrário. A discriminação por conotação de “raça”/cor é uma metástase que se alastrou no seio da sociedade brasileira. A população negra acabou subordinada e à margem da integralidade das conquistas sociais dos novos tempos. Diante de tal panorama, a Constituição Federal de 1988, buscando tutelar eficazmente o direito à igualdade, sob a perspectiva da proibição de discriminação racial negativa, inovou ao prever um mandado expresso de criminalização do racismo, espécie de dever fundamental dirigido ao próprio Estado, notadamente ao legislador infraconstitucional. Vieram, então, as respectivas leis penais, criminalizando as condutas discriminatórias. Todavia, apesar da inegável importância de tais mecanismos, verificou-se que o direito penal, por si só, não foi capaz de refluir esse multifacetado e complexo fenômeno social (racismo), motivo pelo qual tem-se por objetivo primordial analisar o desenvolvimento no processo dogmático de concretização constitucional do direito à igualdade, na perspectiva da antidiscriminação racial, para, logo após, apontar caminhos teóricos aptos a propiciar avanços em tal temática. Sendo constatado, no curso da presente pesquisa, a imprescindibilidade na evolução de políticas públicas que proporcionem tanto a redistribuição econômica, quanto o necessário reconhecimento ao status, valores e à cultura das pessoas negras, a fim de que possam promover a almejada emancipação de tal parcela da população brasileira (hoje já majoritária), de modo a deixar para trás, de uma vez por todas, a sombra da escravidão. PALAVRAS-CHAVE: RACISMO DIREITO À IGUALDADE E ANTIDISCRIMINAÇÃO – MANDADO CONSTITUCIONAL EXPRESSO DE CRIMINALIZAÇÃO E SUA CONCRETIZAÇÃO – REDISTRIBUIÇÃO E RECONHECIMENTO...

(8) ABSTRACT Despite the scientific denial of human classification into biological races, racial discrimination is perceived as a social issue. Thanks to the belief of a racial democracy, racism was, for many years in Brazil, a widespread practice that resulted from the multicultural background of the Brazilian people (which is a mixture of native indians, the Portuguese European and African slaves). As a result, anti-discriminatory policies ended up being pushed out of the government’s agenda. Nonetheless, sociological studies have shown, inexorably the opposite; discrimination by “race”/skin color is a social virus that widely spread through Brazilian society and as such, the black population became subordinate and alienated from social achievements. For this reason, seeking to effectively safeguard the right to equality through banning racial discrimination, the 1988 Brazilian Federal Constitution broke new grounds, criminalizing racial discrimination, as an ultimate State responsibility enforced by the legislator. Criminal laws then emerged, proscribing discriminatory behavior. Nevertheless, despite the undeniable relevance of such legal mechanisms, criminal laws were not sufficient to prevent this multifaceted and complex social phenomenon (racism) and for this reason, the main goal became to analyze the evolution of the dogmatic process of constitutional realization of the right to equality, in the context of racial non-discrimination, to find theoretical paths able to provide improvement on this matter. It has been noted, through this research, the need for improvement of public policies that provide both economic redistribution of wealth, as well as the recognition to the status, values and culture of black people, to allow and promote the emancipation of this part of the population (now already majority) and to leave behind once and for all, the shadow of slavery.. KEYWORDS: RACISM - RIGHT TO EQUALITY AND ANTI-DISCRIMINATION CRIMINALIZATION OF RACIAL DISCRIMINATION - REDISTRIBUTION AND RECOGNITION.

(9) SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................................ 11 2 CONTORNOS ESTRUTURAIS DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E A MULTIFUNCIONALIDADE ............................................................................................................................................................................... 15 2.1 DESTINATÁRIOS DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: A QUESTÃO DA EFICÁCIA HORIZONTAL .......................................................................................................................................................................... 16 2.1.1 No direito comparado: o tratamento na Alemanha e nos Estados Unidos da eficácia horizontal ..... 17 2.1.2. A experiência brasileira acerca da teoria horizontal dos direitos fundamentais ............................... 20 2.2 O DUPLO CARÁTER DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: DIMENSÕES SUBJETIVA E OBJETIVA 25 2.2.1 O dever estatal de tutela aos direitos fundamentais ............................................................................ 27 2.2.2 A proibição de insuficiência e as dificuldades metodológicas de estabelecimento de seus parâmetros ...................................................................................................................................................................... 29 3 O DIREITO À IGUALDADE NO PARADIGMA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO COMO FUNDAMENTO DA ANTIDISCRIMINAÇÃO ................................................................................. 32 3.1 CONTRIBUIÇÕES DA FILOSOFIA POLÍTICA AO TEMA DA IGUALDADE ..................................... 34 3.2. O DIREITO DA ANTIDISCRIMINAÇÃO ............................................................................................... 38 3.2.1 Discriminação e preconceito: conceituação jurídica de discriminação, definição e abordagem psicológica de preconceito, conceitos correlatos (estereótipo e estigma) .................................................... 43 3.2.2 Antidiferenciação e anti-subordinação, discriminação direta e indireta (teoria da discriminação por impacto desproporcional): conceitos-chave do direito da antidiscriminação ............................................. 47 4 O MANDADO EXPRESSO DE CRIMINALIZAÇÃO DO RACISMO: A CONSTITUIÇÃO PENAL . 51 4.1 APONTAMENTOS SOBRE TEORIA GERAL DOS DEVERES FUNDAMENTAIS .............................. 53 4.1.1 Deveres de criminalização................................................................................................................... 57 4.1.2 O mandado expresso de criminalização previsto no artigo 5º, inciso XLII da Constituição Federal 60 5 RACISMO COMO FENÔMENO SOCIAL E SEU TRATAMENTO JURÍDICO-PENAL: A METAMORFOSE DA QUESTÃO RACIAL NO BRASIL ............................................................................ 65 5.1.1 O racismo biológico ............................................................................................................................ 66 5.1.2 A miscigenação supostamente redentora: o surgimento da democracia racial .................................. 68 5.1.3. Desconstruindo o mito: o racismo à brasileira .................................................................................. 70 5.1.4. As contribuições teóricas de Antônio Sérgio Alfredo Guimarães: redefinição do conceito de “classe”, o preconceito de “cor” e o resgate da “raça” como termo construído socialmente ................... 73 5.2 A DOGMÁTICA JURÍDICA DO RACISMO NO BRASIL ....................................................................... 76 5.2.1 Análise da concretização infraconstitucional do mandado de criminalização inserido no artigo 5º, inciso XLII, da Constituição Federal de 1988 .............................................................................................. 78 5.2.2 A injúria racial ................................................................................................................................... 80 5.2.3 Considerações sobre a tutela penal ao crime de racismo ................................................................... 82 5.2.4 O caso Ellwanger como paradigma no tratamento jurisprudencial do tema ...................................... 84 6 PARA ALÉM DO MANDADO EXPRESSO DE CRIMINALIZAÇÃO DO RACISMO: PROPOSTAS TEÓRICAS DE ENFRENTAMENTO DA PROBLEMÁTICA ..................................................................... 89 6.1 AXEL HONNETH E A LUTA POR RECONHECIMENTO ...................................................................... 89 6.2 CONCEPÇÃO BIDIMENSIONAL DA JUSTIÇA SOCIAL: REDISTRIBUIÇÃO E.

(10) RECONHECIMENTO...................................................................................................................................... 93 6.3 DEVERES FUNDAMENTAIS DOS PARTICULARES E JUSTIÇA BIDIMENSIONAL: UMA CONEXÃO NECESSÁRIA .............................................................................................................................. 99 7 CONCLUSÃO ................................................................................................................................................ 105 REFERÊNCIAS ................................................................................................................................................ 109.

(11) 11. 1 INTRODUÇÃO. Meditando acerca da questão racial, mesmo por breves instantes, chegamos a irretorquível conclusão de que uma das maiores violações as quais se pode praticar contra alguém consiste em inferiorizá-lo por algo que o diferencie de seu observador – já alertava o adágio popular: “Narciso acha feio aquilo que não é espelho” –, mormente pela cor da pele, orientação religiosa, et coetera. Inegavelmente vivemos em uma sociedade preconceituosa e homogeneizante, marcada pela intolerância às diferenças, pródiga em discriminar aqueles que “ousam” (seja de forma inata como ocorre com a cor, ou voluntária tal qual a orientação religiosa e sexual) desbordar do padrão “normal”, de homem branco, cristão e heterossexual. Os negros sempre foram tratados como grupos minoritários (ao lado dos índios, homossexuais, entre outros) face o seu evidente confinamento na base da pirâmide e hierarquia sociais, apesar disso, os últimos dados estatísticos de relevo mostraram que hodiernamente são, em verdade, a maioria da população brasileira (tal levantamento engloba nesse número pessoas definidas como pardas)1. Surgem as primeiras indagações: se os não-brancos são a maioria da população, por qual motivo é extremamente reduzido o número de profissionais negros nos postos de trabalho de maior destaque ou ascendência social e econômica, tais como, operadores do Direito, professores universitários, profissionais liberais com nível superior e assim por diante? Ao passo que basta apenas um breve olhar aos centros urbanos das cidades brasileiras para perceber que homens e mulheres negros estão em toda parte como motoristas, faxineiros, cozinheiros, seguranças, entre outras profissões normalmente de menor remuneração e que não exigem qualificação profissional tão elevada. Será coincidência? Ou há efetivamente uma subordinação econômica e social da população negra no Brasil, esteada sob a chaga do racismo? Como dito, atualmente a maior parte da população brasileira é negra (não se coadunando mais com o conceito estrito de minoria populacional), todavia, tais pessoas ainda continuam sendo uma minoria nas instâncias de poder e de legitimação social, pois as 1. Pela primeira vez na história do Brasil, o censo indicou que a população negra e parda é a maioria no país: 50,7% de um total de 190.732.694 pessoas. O Censo 2010 revelou que a maior parte da população negra concentra-se no Norte e Nordeste do país e sofre a maior taxa de analfabetismo na faixa etária acima dos 15 anos (entre 24,7% e 27,1%). Censo demográfico 2010. Características gerais da população. Rio de Janeiro: IBGE, 2012. Disponível em: <https://pt.globalvoicesonline.org/2011/11/24/brasil-censo-populacao-negra/>. Acesso em: 07 maio 2014..

(12) 12. profundas desigualdades em que vivem, especialmente no que tange à educação formal e renda, não possibilitam que ocupem os espaços públicos e econômicos mais relevantes, estando, de fato, por trás disso, um tumor perniciosamente arraigado em nossa sociedade – tida como plural, porquanto miscigenada –, denominado racismo, engendrado a partir de um conceito de raça/cor socialmente construído, já que cientificamente desacreditado. Fenômeno que é ainda mais grave, haja vista que, no Brasil, silencioso e não confessado, obnubilado pelo pálio falacioso de uma suposta democracia racial. Bem verdade – e não sem razão - nossa Constituição ter proclamado como um dos objetivos da República: “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (Art. 3º, IV da Constituição Federal). Ademais, preocupou-se, ainda, em criminalizar o racismo de forma severa, determinando que fosse considerado um delito imprescritível, inafiançável e punido com reclusão. Assim, o fato de a Constituição Federal ser eminentemente uma carta de liberdades, não impediu, todavia, em algumas passagens, ter ela recorrido à figura do Direito Penal como mecanismo de proteção de direitos fundamentais. Trata-se dos chamados mandados de criminalização (espécie de dever fundamental dirigido ao próprio Estado), tema este muito pouco abordado pela doutrina jurídica até os dias de hoje. Na exata medida em que a Constituição Federal se ocupou do racismo de forma tão eloquente, fazendo dele inclusive um mandado de criminalização expresso, parece intuitivo que tal prática viola uma norma jusfundamental de notável importância ao arquétipo axiológico que lhe é subjacente, tal seja, o princípio da igualdade em seu viés negativo (proibitivo de descriminações injustas). Portanto, no Capítulo inaugural partimos de uma necessária contextualização acerca dos direitos fundamentais, destacando a sua multifuncionalidade, pois, hodiernamente, não são mais concebidos apenas em sua clássica função subjetiva – como direitos de resistência ou prestacionais de seus titulares –, com o passar do tempo e a evolução doutrinária e jurisprudencial, ganharam uma faceta adicional, consubstanciada no que se convencionou chamar de dimensão objetiva, especialmente no que tange ao dever do Estado de eficazmente tutelá-los por intermédio de inúmeros mecanismos, inclusive recorrendo ao Direito Penal. Adiante, será apresentado um Capítulo voltado ao direito fundamental diretamente relacionado ao racismo, qual seja: a igualdade. Analisando seus reais contornos no Estado Democrático de Direito e trazendo alguns contributos da filosofia política a fim de ampliar a.

(13) 13. reflexão teórica, posto que não há igualdade fática sem liberdade e distribuição igualitária de recursos e oportunidades, abordando, ainda, o direito da antidiscriminação (e seus conceitos derivados) que maneja suporte dogmático ao fito de impedir as práticas tidas como racistas. Em seguida, analisaremos a relação fundamentadora entre a Constituição Federal e o Direito Penal, além de desenvolvermos uma breve teoria geral dos deveres fundamentais, categoria essa – na qual estão inseridos os mandados de criminalização – tão fascinante quanto esquecida pelos manuais e obras que se dedicam ao estudo do Direito Constitucional. Após, abordaremos a fisionomia dogmática do mandado expresso de criminalização do racismo e sua conformação jusfundamental. Ato contínuo, procederemos a uma investigação sociológica do racismo no afã de demonstrar que tal fenômeno passou por uma metamorfose de tratamento no Brasil, iniciando por uma fase “científica”, passando por um otimismo ufanista e findando em estudos mais críticos e realistas, conectados à verdade dos fatos socialmente demonstráveis. Além disso, faz-se imperiosa a análise jurídico-dogmática do tratamento legislativo infraconstitucional afeto ao racismo, notadamente a fim de verificar a suficiência (ou não) do direito penal como principal política estatal de combate à discriminação racial. Por derradeiro, será apresentada mais uma proposta teórica à luz da filosofia social e política crítica, notadamente a partir dos aportes de autores contemporâneos (Axel Honneth e Nancy Fraser) identificados com as chamadas “teorias do reconhecimento”, pois entendemos que estas podem pavimentar importantes alternativas emancipatórias à adoção de mecanismos aptos à diminuição do problema racial, para, então, finalizar articulando algumas considerações finais - em estilo de síntese – do quanto constatado no decorrer da presente pesquisa. Outrossim, cumpre deixar vincado que – logicamente - o presente trabalho não tem a pretensão de trazer soluções definitivas a um problema tão complexo quanto o racismo no Brasil, mas sim de contribuir à reflexão e ao debate de alternativas hábeis ao processo de retração da discriminação por preconceito de cor. Começando pelo coro à desconstrução da falaciosa democracia racial e terminando pelos aportes filosóficos conectados às contemporâneas “teorias do reconhecimento”, haja vista a imprescindibilidade de criação de mecanismos que agreguem tanto redistribuição material, no afã de mitigar as desigualdades econômicas da população negra, quanto, na mesma medida, reconhecimento intersubjetivo a.

(14) 14. fim de repelir a hierarquização sociocultural vigente, consoante necessário modelo emancipatório, calcado na concepção bidimensional da justiça social..

(15) 15. 2 CONTORNOS ESTRUTURAIS MULTIFUNCIONALIDADE. DOS. DIREITOS. FUNDAMENTAIS. E. A. O Estado moderno nasceu absolutista, o poder soberano e ilimitado personificava-se na figura do monarca, expressão disso foi a emblemática frase de Luiz XIV, o Rei Sol: L'État c'est moi (O Estado sou eu)2. Animado pelos ideários iluministas, gestados principalmente a partir da Revolução Francesa (sem olvidar, no entanto, o marcante movimento de independência americano que lhe antecedeu), houve uma ruptura desse paradigma estatal concentrado na figura quase divina da monarquia absolutista, surgindo, então, o modelo liberal clássico. Assim, a centralidade antes voltada ao monarca, se desloca em direção ao indivíduo. Surgem – juntamente com os movimentos constitucionalistas – o Estado de Direito e os direitos fundamentais3, com o escopo primordial de limitar a atuação estatal. O Estado de Direito torna-se controlador de seus órgãos e, ao mesmo tempo, por eles controlável, já que é justamente a autolimitação de atuação a garantia de sua própria efetivação, tendo como parâmetro norteador a Constituição4. Mas afinal, qual a definição de direitos fundamentais? Ao fazer uma correlação entre direitos do homem e direitos fundamentais, Canotilho adverte que estas expressões, frequentemente utilizadas como sinônimas, têm distinção. Para ele, direitos do homem são direitos válidos para todos os povos em todos os tempos, teriam uma concepção jusnaturalista. Já os direitos fundamentais, são os direitos jurídicoinstitucionalmente. garantidos. e. limitados. espaço-temporalmente,. seriam. aqueles. objetivamente vigentes em uma ordem jurídica concreta, constitucionalizados5. Parece-nos que a resposta a tal indagação perpassa pela questão da positivação jurídico-constitucional de tais direitos, ou seja, sua matriz de fundamentalidade formal. A posição dos direitos fundamentais no sistema jurídico define-se com base na fundamentalidade formal, sendo esta condição necessária e suficiente para tanto. Por 2. MORAIS, Luis Bolzan de; STRECK, Lenio Luiz. Ciência Política e Teoria do Estado. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 45-46. 3 Importa destacar que tal orientação não é unânime na doutrina constitucionalista, haja vista que alguns autores apontam origens muito mais remotas dos direitos fundamentais, como, por exemplo, a Grécia antiga ou Roma. Não obstante, tal posicionamento não se coaduna com o conceito e característica de não historicidade por nós adotada na presente dissertação, consoante será demonstrado adiante. 4 SCHENK, Marcelo Duque. Curso de Direitos Fundamentais: teoria e prática. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 55. 5 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2. ed. Coimbra: Livraria Almedina. 1998, p. 359..

(16) 16. consequência, um direito será fundamental se for garantido mediante normas que tenham a força jurídica própria da supremacia constitucional6, tendo como função precípua a limitação do poder estatal em favor da liberdade individual. Nega-se a característica de historicidade recorrentemente imputada aos direitos fundamentais, posto que dogmaticamente injustificável. Não é correto afirmar uma préestatalidade destes, oriunda de pactos, declarações internacionais e do Direito Natural, pois caso não recepcionados com status de norma constitucional, direitos fundamentais não são. Logo, direitos fundamentais são normas produzidas pelo Estado a fim de limitar a si próprio. Este é, portanto, o caráter reflexivo de tais normas. O ente estatal é o criador e o destinatário da norma7 e ainda que os particulares possam eventualmente se sujeitar aos seus efeitos (eficácia horizontal, que será abordada a seguir de forma mais detalhada), o certo é que há esta curiosa identidade reflexiva.. 2.1 DESTINATÁRIOS DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: A QUESTÃO DA EFICÁCIA HORIZONTAL Como visto anteriormente, é o Estado o destinatário precípuo das normas de direitos fundamentais. Assim, não há nenhuma dúvida ou refutação teórica plausível para afastar a aplicação direta e imediata de tais normas – vide a clara redação do parágrafo primeiro da Constituição Federal brasileira8 – nas verticalizadas relações entre o ente estatal e os indivíduos, sejam eles pessoas físicas ou jurídicas (no que couber). Tal assertiva constitui o que se convencionou chamar de eficácia vertical dos direitos fundamentais. Por outro lado, a aplicação das normas fundamentais às relações entre particulares é mais tormentosa e demanda uma análise com maior vagar. Hodiernamente vivemos em uma sociedade de massas, estratificada em razão do maior ou menor poder econômico. A desigualdade é patente, e mesmo em relações privadas, não seria crível afirmar a existência de um total equilíbrio de forças. Não demanda muito esforço para se perceber que os próprios particulares podem violar reciprocamente direitos fundamentais uns dos outros. Nada obstante, como 6. DIMOULIS, Dimitri. MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 41. 7 Ibid., p. 142. 8 “§1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. BRASIL. Constituição Federal (1988). Constituição da República Federativa do Brasil..

(17) 17. compatibilizar o fato de serem titulares de tais direitos e ao mesmo tempo possíveis responsáveis (destinatários) pelo seu cumprimento? Seria correto simplesmente equiparar um cidadão ao Estado quanto o assunto é a efetivação e a observância dos direitos jusfundamentais? Ademais, em caso positivo, as normas de direitos fundamentais teriam, na relação privada, aplicação imediata decorrente da própria Constituição ou seria necessária uma interposição legislativa a fim de introjetar tais normas superiores na dogmática jusprivatista? Trata-se da nominada eficácia horizontal dos direitos fundamentais (mediata ou imediata), porquanto verificada no seio de relações privadas, questão que desperta muita celeuma na doutrina até os dias de hoje, correntes teóricas diversas foram apresentadas no direito alemão e americano, e recepcionados em maior ou menor grau em terras brasileiras, senão vejamos.. 2.1.1 No direito comparado: o tratamento na Alemanha e nos Estados Unidos da eficácia horizontal Na Alemanha, logo após o surgimento da teoria da eficácia horizontal, entre o final da década de quarenta e início de cinquenta (do século XX), autores de nítido viés liberal, como Mangold e Forsthoff, principiaram uma nítida reação a sua aplicabilidade, baseando-se no teor literal do art. 1.3 da Grundegestz9, afirmando que apenas o Estado estaria vinculado ao cumprimento dos direitos fundamentais, até mesmo pela recente experiência nazista, entendiam tais direitos basicamente como de defesa contra ações estatais, advogando que a horizontalidade acabaria por aniquilar o direito privado – baseado na liberdade e autonomia das partes -, que restaria absorvido pelo direito constitucional, conferindo um poder exagerado ao juízes em detrimento do legislador democrático10. Tal teoria negativa da eficácia horizontal praticamente desapareceu na Alemanha a partir de meados da década de cinquenta, tendo em vista reiteradas decisões adotadas pelo. 9. “Os direitos fundamentais, discriminados a seguir, constituem direitos diretamente aplicáveis e vinculam os poderes legislativo, executivo e judiciário”. ALEMANHA. Constituição Federal (1949). Lei Fundamental da República Federal da Alemanha. Disponível em: <https://www.btg-bestellservice.de/pdf/80208000.pdf> Acesso em: 07 dez. 2015. 10 SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2010, p. 188..

(18) 18. Tribunal Constitucional Federal – cunhadas a partir do precursor aporte teórico de Hans Carl Nipperdey –, dentre as quais se destaca o caso Lüth (1958). O cidadão alemão Erich Lüth, à época crítico de cinema e diretor do Clube da Imprensa da Cidade Livre e Portuária de Hamburgo, conclamou todos os distribuidores da indústria cinematográfica e o público em geral a boicotarem o filme lançado por Veit Harlan, um ícone do cinema nazista. Harlan e seus parceiros comerciais ajuizaram uma ação cominatória em desfavor de Lüth, com base no §826 do Código Civil alemão (BGB). Tal norma obriga a todo aquele que praticar uma ação ilícita, causando dano a outrem, uma prestação negativa (deixar de fazer), sob pena de pagar uma indenização pecuniária. Tal ação foi julgada procedente pelo Tribunal Estadual de Hamburgo, sendo que contra ela foi interposta uma apelação ao Tribunal Superior de Hamburgo e uma Reclamação Constitucional, alegando violação do direito fundamental à liberdade de expressão do pensamento, prevista no artigo 5, I, 1, da Grundegestz11. O Tribunal Constitucional Federal alemão ao julgar procedente a Reclamação Constitucional de Lüth adotou decisão paradigmática acerca da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, deixando assentado que tais normas superiores, são em primeira linha, direitos de resistência do cidadão contra o Estado. Todavia, representam um ordenamento axiológico objetivo, que vale para todas as áreas do Direito, sendo que no Direito Civil, o conteúdo jurídico dos direitos fundamentais se desenvolve de modo mediato, por intermédio das normas de Direito Privado, sobretudo via cláusulas gerais. O juiz da vara cível pode, por intermédio de sua decisão, violar direitos fundamentais ao ignorar a influência destes sobre o Direito Civil12. Portanto, coube ao pensamento alemão desenvolver o nominado efeito de irradiação dos direitos fundamentais, a partir de sua dimensão objetiva, identificada com os valores supremos cristalizados nas normas constitucionais, sendo que tais valores se irradiam por todo ordenamento, incluindo às relações entre atores privados13. Podemos então asseverar que a partir do paradigmático caso Lüth, a jurisprudência alemã adotou expressamente a eficácia externa em relação a terceiros (Drittwirkung) ou horizontal, mediata (ou indireta) dos direitos fundamentais às relações privadas. 11. O presente caso Lüth (BverfGE 7, 198) foi apresentado com riqueza de detalhes em: DIMOULIS, Dimitri. MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 259-274. 12 Ibid., p. 259. 13 SAMPAIO, José Adércio Leite. Teoria da Constituição e Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2013, p. 655..

(19) 19. Não obstante, é de bom alvitre destacar a ocorrência de algumas variantes de decisões posteriores do Tribunal Constitucional alemão, que atualmente trilha em um caminho intermediário entre a eficácia indireta e direta, com base no dever estatal de proteção dos direitos fundamentais ao invés do efeito de irradiação. Em alguns casos, o referido Tribunal, diante de evidente desequilíbrio de forças em relações contratuais, mesmo fazendo referências às cláusulas gerais do Código Civil (BGB), determinou que a justiça cível atuasse em favor dos direitos fundamentais para restabelecer bases de equilíbrio e justiça contratual, como decorrência do dever estatal de proteção (e não mais como efeito de irradiação)14. Outrossim, salta aos olhos que a aplicação inconsequente da doutrina da eficácia externa imediata para todos os casos implicaria a destruição tanto do direito contratual quanto da responsabilidade extracontratual, pois ambos seriam substituídos em larga escala pelo direito constitucional, fato que contradiz a autonomia do Direito Privado. No entanto, é evidente que a própria Constituição possa estabelecer a eficácia imediata de um direito fundamental em casos determinados nas relações entre particulares, tal como ocorreu na Alemanha no artigo 9.º, inciso III, alínea 2, da Lei Fundamental, onde restou expressamente afirmada a nulidade de acordos para a restrição da liberdade de coalizão de empregados ou empregadores. Para além de tais exceções, somente o Estado é destinatário dos direitos fundamentais, de acordo com a opinião dominante na Alemanha. Todavia, é inegável que eles produzem efeitos sobre as relações privadas, embora apenas mediatamente, devendo ser considerados na concretização das cláusulas gerais juscivilistas15. Segundo a jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão, endossada pela doutrina, os direitos fundamentais – além da clássica função de defesa contra intervenções do Estado nos bens jurídicos dos cidadãos – possuem uma função adicional, qual seja, a de obrigar o ente estatal à proteção de seus cidadãos: trata-se, nesse viés, dos direitos fundamentais como mandamentos de tutela ou deveres de proteção (Schutzgebote). Tal função desempenha um papel central também no direito privado, pois nesse, através dos mandamentos de tutela, é possível avaliar se o ordenamento protege um cidadão contra o outro nas relações entre eles16.. 14. Exemplo disso é o julgado BverfGE 81, 242. SAMPAIO, José Adércio Leite. Teoria da Constituição e Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2013, p. 669. 15 CANARIS, Claus-Wilhelm. A influência dos direitos fundamentais sobre o direito privado na Alemanha. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 214. 16 Ibid., p. 216..

(20) 20. De outra banda, no direito constitucional americano, a tese da não-vinculação dos direitos fundamentais aos particulares constitui um verdadeiro dogma, aceito universalmente pela doutrina e pela jurisprudência, sendo ideia corrente que os direitos fundamentais previstos na Bill of Rights da Carta estadunidense, impõem limitações apenas para os poderes públicos e não atribuem aos particulares direitos frente a outros iguais, com a exceção – que confirma a regra – da décima terceira emenda, proibitiva da escravidão. Nesse esteio, predomina massivamente a teoria do State Action: apenas o Estado se acha vinculado às normas jusfundamentais. Essa orientação tem por suporte a literalidade do texto constitucional, além da extrema preocupação americana acerca da autonomia da vontade e liberdade individual, viés marcadamente liberal que prevalece nos Estados Unidos. A Suprema Corte americana tem o arraigado entendimento consagrado na public function theory (denominada no Brasil como teoria analógica ou por equiparação), segundo a qual apenas quando particulares agirem no exercício de atividades de natureza tipicamente estatal estarão sujeitos às limitações constitucionais oriundas dos direitos fundamentais17.. 2.1.2. A experiência brasileira acerca da teoria horizontal dos direitos fundamentais Na atual quadra evolutiva da dogmática dos direitos fundamentais, é inegável que estes geram efeitos no âmbito da relação entre particulares, até mesmo em razão do teor literal do parágrafo primeiro da Constituição Federal. A dúvida que ainda persiste, descortinando acirrado debate doutrinário, reside na forma como tais efeitos serão notados, se de maneira imediata, sem a respectiva interposição legislativa, podendo o juiz, por exemplo, aplicar diretamente uma norma definidora de um direito fundamental para resolver um conflito ocorrido no âmbito do direito privado, ou apenas mediatamente, através do efeito de irradiação ou do dever de proteção (tutela) estatal, introjetando uma interpretação voltada às normas fundamentais, a partir das cláusulas gerais dispersas no âmbito do direito privado. A primeira corrente – aparentemente majoritária atualmente – prega a eficácia direta imediata, podendo ser ilustrada a partir do aporte teórico do autor Ingo Wolfgang Sarlet, reconehcendo a existência de uma eficácia direta prima facie nas relações envolvendo os. 17. SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2010, p. 189-190..

(21) 21. particulares, sem deixar de reconhecer que o modo como se opera tal aplicação direta não é uniforme18. Portanto, o referido doutrinador, não advoga uma aplicação imediata dos direitos fundamentais a todas as hipóteses de conflitos privados, todavia, insiste em que diante da dogmática dos direitos fundamentais, é possível sustentar a aplicação direta (imediata), independentemente da falta de regulação legal nesse sentido, a depender do caso concreto, adotando-se o princípio da máxima efetividade das normas fundamentais, como um mandado de otimização (não estando sujeita à lógica do tudo ou nada), notadamente em casos de desequilíbrios entre as partes envolvidas, aliás, sustenta, ainda, uma razão prática para tal tese, qual seja, a limitação do poder como resposta às persistentes desigualdades sociais, culturais e econômicas, mormente acentuadas em sociedades periféricas como o Brasil19. De outro lado, podemos demonstrar a corrente contrária com base nos ensinamentos de Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins, que sustentam a tese da eficácia indireta (mediata) baseada no parágrafo primeiro do artigo quinto da Constituição Federal, o qual aponta a obrigação do Estado de fazer respeitar os direitos fundamentais contra uma agressão promovida por um particular. Para os referidos autores, sempre estaremos diante de uma relação triangularizada, citando a seguinte ilustração: o direito do particular A foi desrespeitado pelo particular B e, na falta de uma norma infraconstitucional taxativamente aplicável para repelir a injusta agressão, o Estado, por meio do Poder Judiciário, aplica uma determinada norma de direito constitucional para preservar o direito de A. Ainda que no caso em comento possa ter ocorrido uma aplicação direta da Constituição, as relações entre particulares só ficam submetidas ao direito fundamental mediante atuação (decisão) do próprio ente estatal, de tal sorte que apenas o Estado-Juiz está diretamente vinculado ao direito jusfundamental, já o particular, por seu turno, está vinculado ao direito privado e penal, do qual é o destinatário primordial. A aplicação é sempre indireta, necessitando da intermediação das cláusulas gerais infraconstitucionais sobre as quais incidem o efeito de irradiação20.. 18. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 382/383. 19 SARLET, Ingo Wolfgang. Neoconstitucionalismo e influência dos direitos fundamentais no direito privado: algumas notas sobre a evolução brasileira. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 214. p. 28/35. 20 DIMOULIS, Dimitri. MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 110-111..

(22) 22. De nossa parte, podemos destacar o perfilhamento a essa segunda corrente, pois vislumbramos necessária a interposição do legislador ordinário, transportando o valor objetivo das normas jusfundamentais aos conceitos da dogmática privada, a fim de que a eficácia horizontal se produza. Caso contrário, ocorreria uma indevida colonização do direito privado pelo direito público (constitucional). Ademais, vemos com ressalva o fato de equiparar o particular ao Estado como destinatário das normas de direitos fundamentais, pois inúmeras dificuldades ocorreriam se o mesmo sujeito, ao mesmo tempo, fosse titular de direito fundamental e um garantidor (dever de proteção) de seu cumprimento, isso não quer dizer que o particular está totalmente desobrigado de respeitar os direitos fundamentais alheios, somente que não pode ser equiparado ao Estado nessa função21. Mas não é só, parece que a discussão do ponto de vista prático é um tanto quanto estéril. Com a atual evolução do constitucionalismo, notadamente com a revitalizada força normativa da Constituição e os postulados mais hodiernos da hermenêutica constitucional, como, por exemplo, a concretização das normas através da teoria estruturante de Friedrich Müller22, além da concordância prática dos diversos direitos fundamentais, é inescapável o raciocínio de que toda a legislação deve ter sua lente voltada à Constituição, sob pena de inconstitucionalidade, ou na melhor das hipóteses, de uma interpretação conforme. Com efeito, é evidente que o legislador ordinário deve estar atento e vigilante à dogmática jusfundamental também na elaboração de diplomas afetos ao direito privado, assim como o operador do direito, notadamente na concretização dos conceitos jurídicos indeterminados ou cláusulas gerais. Logo, o juiz ao decidir um conflito de direito privado, pode (e deve) interpretar tais institutos (notadamente os anteriormente referidos, tendo em vista que mais porosos e abertos à tarefa interpretativa) à luz da orientação jusfundamental e, no mais das vezes, quando lança mão diretamente da dogmática dos direitos fundamentais para a fundamentação de sua norma de decisão, o faz muito mais como uma espécie de 21. SCHENK, Marcelo Duque. Curso de Direitos Fundamentais: teoria e prática. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 66-67. 22 Nesse particular, pode-se afirmar que a teoria (e metódica) estruturante de Müller iniciou por repelir a sempre decantada dicotomia existente entre Direito e realidade – o que corresponde hermeneuticamente à (equivocada) equiparação entre norma e texto da norma, tratando-se, em verdade, da arraigada influência neokantiana adotada pelo positivismo do dualismo entre o “ser” (realidade/faticidade) e “dever ser” (norma jurídica) -, que alicerçava a separação entre teoria e prática jurídicas, ou entre interpretação e aplicação. Assim, o pilar central da teoria estruturante de Müller é justamente a distinção (não identificação) entre norma jurídica e texto da norma, sendo que a primeira é mais que o último, já que composta também por elementos da realidade (elementos materiais). A norma não estaria pronta para a sua aplicação, devendo ser concretizada. MIOZZO, Pablo Castro. Interpretação jurídica e criação judicial do direito: de Savigny a Friedrich Müller. Juruá: Curitiba, 2014, p. 214230..

(23) 23. reforço argumentativo (ou simples retórica), sendo que, em verdade, a decisão já está esteada com base na própria legislação jusprivatista23. Citemos um exemplo elucidativo: a Constituição prevê o direito fundamental de proteção do consumidor24. Ao invalidar um hipotético contrato prejudicial a este, envolvendo fornecedor que não informou devidamente os riscos do produto ao seu cliente, o magistrado poderá fazê-lo com base no direito de informação já previsto na Lei Federal nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), como um dos direitos básicos do consumidor (artigo 6º, III25), motivo pelo qual não se faz necessário recorrer a uma norma fundamental para solucionar o impasse. Não obstante, o Supremo Tribunal Federal tem se inclinado pela adoção da eficácia horizontal direta e imediata dos direitos fundamentais às relações privadas. Nesse sentido, os dois primeiros casos paradigmáticos – apesar de não ter sido sequer ventilada expressamente nos acórdãos a posição acerca do entendimento do Tribunal sobre a eficácia horizontal imediata – são o Recurso Extraordinário nº 158215-4/RS26, de relatoria do Ministro Marco Aurélio e o Recurso Extraordinário nº 161-243-6/DF27, em que foi Relator o Ministro Carlos Mário Velloso, ambos julgados pela 2ª Turma. O primeiro versa sobre a exclusão punitiva de um associado de determinada cooperativa (Cooperativa Mista São Luiz Ltda.), que irresignado interpôs recurso extraordinário alegando a violação direta de seu direito fundamental à ampla defesa (artigo 5.º, LV, da Constituição Federal). O Tribunal deu provimento ao extraordinário fundamentando a aplicação do dispositivo constitucional violado aos processos (lato sensu) em geral. Assentou, no brevíssimo acórdão, que: “A exaltação de ânimos não é de molde a afastar a incidência do preceito constitucional assegurador da plenitude de defesa nos processos em geral.28”.. 23. De certa forma este entendimento também é adotado por: SAMPAIO, José Adércio Leite. Teoria da Constituição e Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2013, p. 664-665. 24 “XXXII - o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”. BRASIL. Constituição Federal (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. 25 “Art. 6º São direitos básicos do consumidor: [...] III – a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem”. Lei Federal nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. 26 Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 158215-4/RS. 2ª Turma, Relator: Ministro Marco Aurélio. Data da Publicação: DJ 07/06/1996. 27 Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 161.243-6/DF. 2ª Turma, Relator: Ministro Carlos Mário Velloso. Data da Publicação: DJ: 19/12/1997. 28 Ibid..

(24) 24. O segundo caso, por seu turno, trata acerca de uma controvérsia envolvendo um trabalhador brasileiro (exercendo atividade laboral no Brasil), empregado da empresa multinacional Air France, que pretendia o reconhecimento dos mesmos direitos trabalhistas assegurados no estatuto da referida empresa, estes que inicialmente só beneficiavam aos trabalhadores franceses. O Supremo Tribunal Federal deu provimento ao recurso extraordinário e determinou que seria aplicável ao caso os artigos 153, §1º da Constituição Federal de 1967 e 5º, caput, da Constituição Federal de 1988, ou seja, determinou a aplicação direta à controvérsia da norma constitucional que prevê o direito à isonomia, assentando que a distinção – dos benefícios entre os trabalhadores franceses e brasileiros – baseada em atributo pessoal, no caso a nacionalidade, não era compatível com o princípio da igualdade. Outrossim, mais recentemente, por ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário nº 20181929, novamente a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, agora por maioria, tendo como Relator o Ministro Gilmar Mendes (que abriu a divergência, pois a Ministra originalmente Relatora, Ellen Gracie, votou em sentido contrário), pela primeira vez deixou vincada expressamente a adoção da teoria da eficácia horizontal direta dos direitos fundamentais às relações privadas. Trata-se de recurso interposto pela União Brasileira de Compositores (sociedade civil), que tinha excluído de seus quadros societários determinado compositor (recorrido), por alegado descumprimento das resoluções sociais, sem que tenha oportunizado as garantias do contraditório e ampla defesa. Na própria ementa do acórdão ficou assentado que: I. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionadas também à proteção dos particulares em face dos poderes privados. [...]30. Não obstante a clareza do trecho ementado supracitado, é importante destacar que em seu voto, o Ministro Gilmar Mendes levou em consideração a natureza das funções exercidas pela recorrente a fim de decidir pela adoção da eficácia horizontal direta, pois a União Brasileira de Compositores, apesar de ser pessoa jurídica de direito privado, integra o sistema 29. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n.º 201819/RJ. 2.ª Turma, Relatora Originária: Ministra Ellen Gracie. Relator para o Acórdão: Ministro Gilmar Mendes. Data da Publicação: DJ 27.10.2006. 30 Ibid..

(25) 25. do ECAD, responsável pelo pagamento dos direitos autorais dos compositores, ou seja, exerce uma função quase pública. Isso fica nítido durante seu voto, in verbis: “Esse caráter público ou geral da atividade parece decisivo aqui para legitimar a aplicação direta dos direitos fundamentais concernentes ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa […].”31 Portanto, conforme a orientação teórica externada por Ingo Wolfgang Sarlet, anteriormente apresentada, foi considerada, em verdade, uma eficácia horizontal imediata prima facie dos direitos fundamentais às relações privadas, considerando as circunstâncias do caso concreto, notadamente as funções semipúblicas exercidas pela União Brasileira de Compositores. Ainda que consideremos a posição teórica preconizada por Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins (também já explanada), de que mesmo nestes casos não se trata de uma verdadeira eficácia imediata, mas sim uma triangularizada relação entre Estado-particular A (no caso o compositor excluído)-particular B (União Brasileira de Compositores), posto que foi o próprio Estado-Juiz que determinou e ficou vinculado à aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas, o certo é que a doutrina constitucionalista pátria32 vem afirmando, baseando-se nos julgados anteriormente citados, que o Supremo Tribunal Federal passou a adotar a eficácia horizontal imediata dos direitos fundamentais às relações privadas.. 2.2 O DUPLO CARÁTER DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: DIMENSÕES SUBJETIVA E OBJETIVA Como destacado alhures, os direitos fundamentais surgem com a finalidade primordial de limitação da atuação estatal, conferindo aos seus titulares (indivíduos) posições jurídicas de abstenção (ainda que haja um conteúdo mínimo de ação mesmo nos direitos clássicos de defesa, como, por exemplo, a elaboração de determinado aparato estatal, necessário à garantia do respectivo direito) e defesa à liberdade individual, mais identificado com o modelo inicial do Estado de Direito, de viés marcadamente liberal, ou de prestações,. 31. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 201819/RJ, 2.ª Turma, Relatora Originária: Ministra Ellen Gracie. Relator para o Acórdão: Ministro Gilmar Mendes. Data da Publicação: DJ 27.10.2006. 32 Expressam tal posicionamento, por exemplo; SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2010, p. 250-253; LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado. 15. ed. São Paulo: Saraiva. 2011, p. 869-870, entre outros..

(26) 26. que se coadunam mais ao modelo de Estado Social. Tais posições jurídicas correspondem à dimensão subjetiva dos direitos fundamentais. As normas de direitos fundamentais criam posições jurídicas subjetivas, divididas em três grupos, quais sejam: liberdades, direitos a algo e competências33. Liberdades, havendo aí um lado negativo correspondente ao dever de abstenção do Estado, assegurado por um direito de defesa, e positivo, contemplando um fazer ou não fazer pelo titular (tem um direito consagrado, pode exercê-lo ou não); direitos a algo, que podem ser tanto a ações negativas (de não eliminação ou afetação do direito, quanto direitos a ações positivas ou prestacionais, tanto de natureza fática como a criação de determinada estrutura para a prestação de um serviço público) quanto normativas, aprovação de leis que tragam a previsão de procedimentos para o exercício; por fim, competências, significando o poder do titular – agregam ao indivíduo uma capacidade de ação que ele não tinha por natureza - para realizar o objeto do direito fundamental, podendo ser ilustrado com as garantias instrumentais aos direitos fundamentais34. Ainda que a perspectiva subjetiva dos direitos fundamentais seja sua dimensão mais saliente, ela convive com uma perspectiva (ou dimensão) objetiva destas normas jusfundamentais, havendo entre elas uma relação de complementariedade e reciprocidade. Essa dimensão objetiva resulta do significado dos direitos fundamentais como princípios básicos da ordem constitucional. Tais direitos participam da própria essência do Estado Democrático de Direito, operando como limite e diretriz de sua ação. Esse fenômeno faz com que os direitos fundamentais influam decisivamente sobre todo o ordenamento jurídico, servindo como norte para a ação dos poderes constituídos35. A perspectiva objetiva produz notáveis consequências, primeiro porque os direitos fundamentais não são mais considerados apenas sob uma perspectiva individualista, mas que os bens jurídicos por eles tutelados possam ser entendidos como valores em si, a serem preservados e fomentados. Ademais, enseja por parte do Estado um dever de proteção dos direitos fundamentais contra agressões dos próprios poderes públicos ou de particulares, 33. No mesmo sentido, Robert Alexy já havia igualmente sistematizado as posições jurídicas oriundas da dimensão subjetiva dos direitos fundamentais, conforme segue: “A base da teoria analítica dos direitos é uma tríplice divisão de posições que devem ser designadas como “direitos” em (1) direitos a algo, (2) liberdades e (3) competências”. ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 193. 34 SAMPAIO, José Adércio Leite. Teoria da Constituição e Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2013, p. 585. 35 BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 266..

(27) 27. devendo o ente estatal adotar até mesmo medidas de ordem penal que protejam efetivamente os direitos fundamentais36 – sendo este um ponto nodal à presente dissertação, como será visto mais adiante –, portanto acarreta uma prestação positiva de atuação do Estado37. Existem quatro aspectos pertencentes à dimensão objetiva dos direitos fundamentais, a saber: em primeiro lugar, representam objetivamente normas de competência negativa, na medida em que o quanto foi outorgado ao indivíduo em termos de liberdade, está retirado da esfera de disposição estatal, independentemente de o particular exigir em juízo o seu respeito, sobrelevando aqui a importância de tal aspecto ao controle abstrato de constitucionalidade; em segundo, a dimensão objetiva funciona como critério de interpretação e configuração do direito constitucional, tendo em vista o difundido efeito de irradiação (inicialmente desenvolvido no caso Lüth, apresentado anteriormente); em terceiro, uma limitação nos direitos fundamentais no seu tradicional alcance subjetivo – por isso que se disse acima que as dimensões têm um caráter recíproco e complementar – mediante uma intervenção do Estado em prol do seu próprio titular, como a obrigação de usar o cinto de segurança, por exemplo – apesar de os citados autores entenderem que o Estado não pode assumir essa postura paternalista, sendo as limitações dos direitos fundamentais medidas muitos onerosas, só se justificariam em hipóteses de conflitos e não sob o pretexto de tutelar um direito do titular; por fim, a doutrina alemã vislumbra um quarto desdobramento, denominado dever estatal de tutela dos direitos fundamentais, o qual, diante de sua relevância aos fins colimados na presente dissertação, será desenvolvido separadamente, logo adiante38.. 2.2.1 O dever estatal de tutela aos direitos fundamentais A dogmática constitucional proporcionou significativos avanços à aptidão funcional dos direitos fundamentais, expandindo sua eficácia garantista muito além do abstencionismo estatal. Sendo o ente estatal o detentor do monopólio da força, passa a ter uma dupla missão: não somente respeitar as normas jusfundamentais (perspectiva negativa), mas também 36. Neste sentido: “Essa dimensão objetiva dos direitos fundamentais tem reflexo direto no campo do direito penal, notadamente porque este constitui um dos mais importantes meios pelos quais o Estado realiza a proteção de direitos fundamentais”. GAVIÃO, Juliana Venturela Nahas. A proibição de proteção deficiente. Porto Alegre: Revista do Ministério Público do RS, n. 61, maio/out. 2008, p. 96. 37 BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 267. 38 DIMOULIS, Dimitri. MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 119-120..

(28) 28. protegê-las (perspectiva positiva) contra violações e ameaças de terceiros39. Eis aí a dimensão objetiva dos direitos fundamentais na qualidade de imperativos de tutela. O Objetivo principal da função de imperativo de tutela no âmbito das relações entre os particulares é o de proteger os bens jurídicos fundamentais de intervenções fáticas por parte de outros sujeitos de direito privado, assegurando a sua efetiva capacidade funciona40.. Assim, o Estado deve implementar mecanismos, notadamente através do poder legislativo – a fim de concretizar o dever de tutela através da legislação infraconstitucional, pois esta não é a missão do direito constitucional, já que a Constituição é, essencialmente, uma carta de liberdades –, geralmente recorrendo a normas proibitivas de natureza penal ou administrativa, teoricamente aptas à proteção dos direitos fundamentais contra violações praticadas pelos particulares. Importante destacar que essa diretriz constitui uma explicação dogmática (também) bastante convincente para a eficácia mediata dos direitos fundamentais em relação a terceiros, na medida em que se mantém a posição de ser apenas o Estado o destinatário dos direitos fundamentais, já que sobre ele também recai o dever de protegê-los41. O autor alemão anteriormente citado muito se debruçou sobre o tema relativo ao dever estatal de tutela dos direitos fundamentais, tentando sistematizar elementos a uma determinação dogmática sobre o se e o como o Estado deve se desincumbir de tal mister. A primeira questão (o se) tem relação com a investigação de quais direitos fundamentais trariam em seu bojo um imperativo de defesa contra o particular, e como (segunda questão) se configura tal proteção42. Com relação a primeira (se), existem algumas condições para o reconhecimento de um imperativo de tutela, quais sejam: aplicabilidade normativa (ou tipicidade) de um direito fundamental, verificando se determinada conduta é teoricamente apta a violar a área de proteção de um direito fundamental; caso superada a primeira condição, deve-se perquirir acerca da ilicitude da intervenção, esse juízo pode resultar expressamente previsto na própria Constituição - como nos casos em que a carta política determina que tais condutas sejam 39. FELDENS, Luciano. Direitos Fundamentais e direito penal: a constituição penal. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 44. 40 Canaris, Claus-Wilhelm. Direitos fundamentais e direito privado. Trad. Ingo Wolfgang Sarlet e Paulo Mota Pinto. Coimbra: Almedina, 2012, p. 107. 41 Ibid., p. 58. 42 Ibid., p. 102..

(29) 29. vedadas e até criminalizadas (os mandados de criminalização, por exemplo) ou ser uma decorrência lógica; adiante, é necessário verificar se a conduta efetivamente coloca em perigo o direito fundamental tutelado, realmente ameaçando aquele bem jurídico-constitucional protegido e, por fim, a chamada relação de dependência entre as condutas dos particulares. O critério da dependência da garantia do direito fundamental do titular tendo em vista a relação com o comportamento do outro sujeito de direito privado (se b praticar tal conduta, a tem seu direito violado, deve necessariamente existir essa relação de dependência entre os comportamentos dos particulares)43. Por outro norte, a segunda indagação (o como) guarda pertinência com a forma de proteção estatal dada ao direito fundamental. Se o Estado deve tutelar um determinado direito, é mister que essa proteção seja eficiente, surgindo, nesse ponto, a conhecida proposição teorética desenvolvida por Canaris acerca da proibição da proteção deficiente, como decorrência direta do princípio da proporcionalidade, que será abordado a seguir.. 2.2.2 A proibição de insuficiência e as dificuldades metodológicas de estabelecimento de seus parâmetros Na célebre segunda decisão sobre o aborto, prolatada em 28/05/1993, o Tribunal Constitucional alemão44 cunhou uma figura jurídica ligada à proteção dos direitos fundamentais (a partir do aporte teórico de Canaris): o princípio da proibição de proteção deficiente. Toda a proteção estatal conferida aos direitos fundamentais deverá ser suficiente (adequada e necessária). O princípio da proporcionalidade é uma moeda de duas faces, de um lado a proibição de. excesso. (Übermassverbot). e. de. outro. a. proibição. de. proteção. deficiente. (Untermassverbot), sendo que o legislador infraconstitucional deve transitar entre este que é o limite mínimo e aquele que é o máximo. O próprio Canaris – autor da teoria em voga - concluiu que a conjugação do dever estatal de tutela com a proibição de proteção deficiente tem uma eficácia mais tênue (fraca) do 43. Ibid., p. 104-112. BverfGE 88, 2003. Nessa decisão o Tribunal entendeu pela constitucionalidade da lei que descriminalizava o aborto em determinadas circunstâncias e até certo período de gestação (12ª semana), todavia, frisou que o Estado deveria cumprir o seu dever estatal de tutela (ainda que não sob o viés penal), como, por exemplo, promovendo o aconselhamento obrigatório da gestante a fim de demovê-la da ideia do aborto e possibilitar (tanto quanto possível) uma maternidade responsável, dentre outras medidas educativas deste jaez. FELDENS, Luciano. Direitos Fundamentais e direito penal: a constituição penal. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 164-165. 44.

Referências

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