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3.2. O DIREITO DA ANTIDISCRIMINAÇÃO

4.1.1 Deveres de criminalização

A Constituição é, essencialmente, uma carta de liberdades. Não obstante, ao longo do seu texto, existem algumas normas direcionadas ao legislador ordinário, consubstanciadas em deveres obrigatórios de criminalização, relacionadas a direitos e valores de vital importância ao arcabouço dogmático jusfundamental. Dito por palavras menos congestionadas, curiosamente, a Lei Maior recorre ao direito penal – tido tradicionalmente como ferramenta cerceadora da liberdade individual – justamente para garantir efetividade de alguns direitos ou

137 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Deveres Fundamentais. In: Leite, George Salomão; Sarlet, Ingo

Wolfgang; Carbonell, Miguel. (Org.). Direitos, deveres e garantias fundamentais. 1. ed. Salvador: Jus Podivm, 2011, p. 325-345.

138 XLII – a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos

termos da lei.

139 XLIII – a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico

ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem.

140 XLIV – constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a

até mesmo de um dos fundamentos da República, a dignidade da pessoa humana141,

verdadeiro valor-fonte dos demais direitos, pois, tomando-se como exemplo o mandado de criminalização da tortura (inciso XLIII do artigo 5º), resta patente a sua correlação ao citado princípio, já que a prática da tortura acaba por instrumentalizar o indivíduo, retirando sua capacidade de resistência frente a dor física ou mental.

Todavia, apesar da peculiaridade e importância do tema, na medida em que “rompendo, porém, com a tradição liberal, a Constituição de 1988 também veiculou normas que visam proteger o cidadão contra o crime”142, ressalte-se que os mandados de

criminalização – gênero da espécie deveres fundamentais -, igualmente recebeu uma diminuta atenção por parte da doutrina constitucional.

Na segunda decisão sobre o aborto, prolatada em 28/05/1993, pelo Tribunal Constitucional alemão (já brevemente referida quando analisamos a proibição de proteção insuficiente) restou expressamente vincado que o Estado deve adotar medidas normativas e fáticas suficientes para cumprir seu dever de tutela dos direitos fundamentais (schutzpflicht). Sendo necessário, ainda, o estabelecimento de um projeto de proteção eficaz que combine elementos preventivos e repressivos. Outrossim, naquela decisão – que entendeu constitucionalmente adequada a descriminalização do aborto, desde que o Estado proporcionasse a proteção da vida intrauterina por outros meios, que, no caso em tela, foram sólidos programas de aconselhamento à gestante – ficou assentado que o direito penal não é o mecanismo primevo de proteção jurídica de bens, principalmente por causa de seu caráter de intervenção máxima, devendo sua utilização submeter-se à proporcionalidade. Ademais, mencionado Tribunal deixou claro que, nestas hipóteses, haveria uma margem de discricionariedade do legislador para avaliar, valorar e conformar os mecanismos aptos diante de uma imposição de proteção de bens jurídicos143.

Apesar da referida decisão ter estabelecido uma vinculação direta entre o direito penal e o dever estatal de tutela, no caso citado havia uma discricionariedade conferida ao

141 Partindo de uma interpretação literal e topológica do dispositivo, percebe-se que a dignidade da pessoa

humana não foi prevista como um direito fundamental, mas sim como um valor fundante da República Federativa do Brasil.

142 MORO, Sérgio Fernando. Direitos fundamentais contra o crime. In: CLEVE, Clémerson Merlin (Coord.).

Direito Constitucional Brasileiro: Teoria da Constituição e Direitos Fundamentais. v I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 560.

143 BVerfGE 88, 203 (Schwangerschaftsabbruch II) in MARTINS, Leonardo. Tribunal Constitucional Federal

Alemão: decisões anotadas sobre direitos fundamentais [Obra em 5 volumes]. v. 1: Dignidade humana, livre desenvolvimento da personalidade, direito fundamental à vida e à integridade física, igualdade. Natal, 2016 [no prelo].

legislador para ponderar os mecanismos que utilizaria a fim de proteger os direitos fundamentais (lá, não existindo uma ordem de criminalização constitucional expressa em tal caso, pode-se optar por instrumentos diversos do Direito Penal), já com relação ao mandados de criminalização do direito brasileiro, essa margem de escolha não é permitida ao legislador ordinário, porquanto a própria Constituição já expressou tal opção política fundamental, asseverando que, por exemplo nos casos de racismo (e vários outros, como a tortura, o tráfico de entorpecentes, o terrorismo, a ação de grupos armados, et coetera), diante da magnitude do bem jurídico tutelado (como vimos o direito fundamental à igualdade em seus viés negativo) torna-se obrigatório o recurso ao direito penal com escopo preventivo e repressivo.

Portanto, podemos afirmar que a existência de um mandado de criminalização expresso cumpre duas funções na ordem jurídica brasileira, quais sejam: a de norma/princípio, ao editar no próprio texto constitucional uma conduta a ser necessariamente regulada pelo direito penal, demonstra-se cabalmente que tal ação é vedada no ordenamento jurídico, bem como a função de criminalização propriamente dita, criando um vínculo de compulsoriedade entre o legislador ordinário e a matéria contemplada no mandado imperativo144.

Torna-se evidente a situação de intrínseca conexão entre o dever de prestação normativa em matéria penal e a prospecção objetiva dos direitos fundamentais, justamente frente a exigência que se impõe ao Estado de protegê-los. A razão que fundamenta a existência dessas normas relaciona-se à importância atribuída ao bem jurídico (merecimento ou dignidade penal) e a necessidade do recurso à pena, considerada – no caso por opção de política constitucional expressa – como instrumento capaz de garantir uma tutela eficiente, notadamente tendo em vista uma das funções primordiais da pena, tal seja, a prevenção geral. Situações existem em que esse merecimento (dignidade) e essa necessidade (do recurso à pena) decorrem, explícita ou implicitamente – apesar de não haver consenso na doutrina acerca dos mandamentos implícitos – da Constituição, hipótese a traduzir, portanto, uma obrigação dirigida ao legislador no sentido de que elabore os respectivos tipos penais145.

Assim como ocorre nas demais hipóteses dos deveres fundamentais, impende ao legislador ordinário atuar na concretização dos respectivos tipos penais –, sob pena, inclusive, de declaração de inconstitucionalidade por omissão, abrindo flanco a remédios de jurisdição constitucional, como o mandado de injunção –, delimitando o comportamento criminoso

144 ÁLVARES, Silvio Carlos; MARCHERI, Pedro Lima. A epistemologia do racismo no Brasil. Revista de

Informação Legislativa. v. 52, nº 208, p. 149-166, out./dez. 2015.

145 FELDENS, Luciano. Direitos Fundamentais e direito penal: a constituição penal. 2. ed. Porto Alegre:

(preceito primário) e a sanção a este cominada (preceito secundário), caso contrário, estaríamos diante do que Luiz Carlos dos Santos Gonçalves denominou de “tipo constitucional de crime”, o que não é totalmente recomendável, haja vista a menor flexibilidade das normas constitucionais, impossibilitando que as condutas criminosas acompanhem o influxo evolutivo da sociedade146.

Outrossim, merece ser salientado ainda que - metodologicamente - concordamos com a posição defendida pelo supramencionado autor no que tange a adoção do critério restrito de identificação dos mandados expressos de criminalização, o qual nega reconhecimento de tais categorias normativas às expressões constitucionais que se referem somente “às penas da lei”, sem elementos adicionais que tornem inequívoca a opção pelo recurso ao direito penal (ao revés do que ocorre nas hipóteses em que a Constituição afirma categoricamente que o racismo, a tortura, o tráfico de entorpecentes, o terrorismo, entre outros, constituem crime)147.

4.1.2 O mandado expresso de criminalização previsto no artigo 5º, inciso XLII da