• Nenhum resultado encontrado

Antidiferenciação e anti-subordinação, discriminação direta e indireta (teoria da discriminação por

3.2. O DIREITO DA ANTIDISCRIMINAÇÃO

3.2.2 Antidiferenciação e anti-subordinação, discriminação direta e indireta (teoria da discriminação por

antidiscriminação

Antidiferenciação e antisubordinação são perspectivas jurídicas que possibilitam o entendimento do direito da antidiscriminação. A primeira, como o próprio nome já demonstra, reprova tratamentos diferenciados, sejam eles prejudiciais ou benéficos, preocupando-se com a neutralidade das medidas adotadas por indivíduos e instituições103.

Tal perspectiva pode ser entendida como uma manifestação radical da igualdade formal – perante a lei –, gerando um “direito à indiferença”, através de políticas universalistas, imparciais e puramente meritocráticas, que advogam por uma aplicação simétrica do princípio de isonomia, sendo – parcialmente - eficaz apenas no enfrentamento da discriminação direta (ou intencional ou de facto), que será detalhada adiante104.

Já a perspectiva da anti-subordinação é o lado inverso da moeda, haja vista reprovar tratamentos que criem ou perpetuem situações de subordinação, admitindo políticas particulares desde que objetivem superar situações de discriminação, assim como também considera ilegítimos tratamentos neutros que acabam por reforçar a desigualdade de determinados indivíduos ou grupos105.

Tal preocupação com igual proteção aos membros de grupos subjugados investe o princípio da igualdade de um conteúdo substantivo, a ser concretizado em cada momento histórico, tendo como norte a investigação de quais os grupos são discriminados e a forma como isso ocorre. Neste cenário, transita-se de um modelo centrado no indivíduo isolado para um modelo cujo foco primordial é o contexto social no qual está inserido. Em breve suma, possível consignarmos que a preocupação primordial da anti-subordinação é verificar se tal

103 RIOS, Roger Raupp. Direito da Antidiscrimnação: discriminação direta, indireta e ações afirmativas. Porto

Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 16. p. 33.

104 Ibid., p. 33. 105 Op. cit., p. 36.

medida colabora ou não para a perpetuação ou agravamento da condição de subordinação de determinados grupos em posição de desvantagem social106.

Nesse passo, verificamos uma estreita relação entre as perspectivas de antidiferenciação e anti-subordinação com as hipóteses de discriminação direta e indireta. A discriminação direta é aquela intencional, trata-se da hipótese mais comezinha de discriminação de pessoas ou grupos.

Historicamente, no Brasil, tentou-se controlar a discriminação direta através de normas proibitivas, especialmente recorrendo à figura do direito penal – o que será abordado com maior profundidade nos capítulos subsequentes. O fato é que esta política se mostrou impotente, por si só, para rechaçar a profunda desigualdade social vivenciada pelas pessoas de cor negra no país. Não advogamos pela dispensabilidade do direito penal em casos tais – muito antes pelo contrário –, todavia, até mesmo pelas características deste ramo da dogmática jurídica, como presunção de inocência, inversão do ônus da prova, pois é a vítima ou o legitimado para defender seus interesses (no caso o Ministério Público, titular da ação na grande maioria dos casos) que tem o ônus de provar a ocorrência do crime – mas o certo é que não tem se mostrado eficiente para frear as ocorrências discriminatórias cotidianas.

Paulatinamente a doutrina tem percebido que leis universalistas e neutras acabam por reforçar (ou, no mínimo, não refluir) as profundas desigualdades dos grupos estigmatizados e subordinados socialmente. Nesse esteio, vem sendo consolidado o entendimento de que não basta proibir, mas também é necessário promover a identidade de tal grupo, seu efetivo reconhecimento através de políticas públicas que tenham por escopo desigualar (direito à diferença) para promover a isonomia (no aspecto substancial), sendo exemplo mais notável disso e na ordem do dia, as chamadas ações afirmativas ou discriminações inversas107.

Justamente nessa linha, sedimenta-se nos Estados Unidos, a chamada Disparate Impact Doctrine, aqui conhecida como discriminação por impacto desproporcional, decorrente da discriminação indireta (não deliberada ou intencional), ou seja, aquela que acarreta uma desigualdade não oriunda de atos concretos de manifestação expressa de discriminação, por parte de quem quer que seja, mas de práticas administrativas, empresariais

106 RIOS, Roger Raupp. Direito da Antidiscrimnação: discriminação direta, indireta e ações afirmativas. Porto

Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 38-39.

107 Para maior aprofundamento no tema referente as ações afirmativas, sugere-: GOMES, Joaquim B. Barbosa.

Ação Afirmativa & Princípio Constitucional da Igualdade. O direito como instrumento de transformação social. A experiência dos EUA. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

ou políticas públicas, aparentemente neutras, dotadas de potencial discriminatório, sendo esta a grande inovação no que diz respeito à concretização da igualdade material108.

A teoria em questão surgiu na década de setenta nos Estados Unidos, após o fim das políticas públicas segregacionistas naquele país109. A Suprema Corte americana cristalizou o

posicionamento sobre a submissão de um estrito controle de constitucionalidade de normas que instituíssem discriminações baseadas em critérios raciais. Porém, em alguns casos, a ofensa à igualdade poderia ser mascarada em um texto normativo de conteúdo aparentemente neutro, motivo pelo qual passou referida Corte a dar sobrelevada importância ao impacto da medida sobre os grupos estigmatizados110.

O leading case foi Griggs vs. Duke Power Co. de 1970 (420 F.2d 1225), uma ação proposta por pessoas negras perante o Judiciário federal da Carolina do Norte, em desfavor da companhia Duke Power, empresa do setor elétrico, acusada de praticar discriminação contra negros, consistente em dificultar-lhes o acesso aos cargos mais relevantes de seus quadros, mantendo-os em funções manifestamente subalternas111. No caso concreto, os postulantes

negros se insurgiram contra uma política adotada pela empresa de aplicar “testes de

108 GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação Afirmativa & Princípio Constitucional da Igualdade. O direito como

instrumento de transformação social. A experiência dos EUA. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 23

109 Em preciosa sistematização acerca das políticas raciais americanas, Roberta Fragoso Menezes Kaufmann

explica a segregação por meio de leis ocorrida naquele país – reforçada jurisprudencialmente pela própria Suprema Corte – conhecida como o sistema Jim Crowe. O termo Jim Crowe tem origem em 1843, na Vírginia, onde formou-se um grupo composto de quatro artistas brancos, chamados Virginia Minstrels. Durante uma apresentação na cidade de Nova Iorque, o grupo pintou a pele de preto e realizou um número de canto – com forte sotaque sulista –, no que acreditavam estarem imitando os negros. Esse grupo fez um grande sucesso e passou a se apresentar em várias cidades, sendo que uma das músicas mais famosas tinha um refrão que terminava com a expressão Jim Crowe. A partir daí as normas que vedavam inúmeros direitos civis da população negra começaram a ser conhecidas como “leis Jim Crowe” e, posteriormente, tal expressão serviu para designar todo o sistema oficial de segregação estadunidense. Nesse lamiré, um dos precedentes mais célebres da Suprema Corte americana, que deu origem a toda uma política de segregação baseada na doutrina do separate but equal (iguais, mas separados), foi o caso Plessy v. Fergusson – 163 U.S. 537 (1896), tendo sido declarada a constitucionalidade do Estatuto da Lousiana de 1890, determinando que o transporte nas estradas de ferro deveria ser feito por meio de acomodações iguais, mas separadas para os brancos e para os negros. Plessy era branco, mas considerado negro pelo Código de Louisiana pelo sistema one drop rule, segundo o qual uma gota de sangue negro, enegrecia o descendente, assim (com 1/8 de descendência negra e 7/8 de descendência caucasiana) Plessy, por acreditar ser um homem branco, recusara-se a viajar no vagão que levava as pessoas negras. A Suprema Corte entendeu que o princípio da igualdade não significava que as raças devessem compartilhar o mesmo espaço físico. Posteriormente, tal precedente sustentou o alastramento da segregação para outros espaços públicos – tal como as escolas, nas quais foram separadas em escolas de negros e brancos – e até espaços privados como estabelecimentos comerciais (bares, restaurantes, et coetera). KAUFMANN, Roberta Fragoso Menezes. Ações afirmativas à brasileira: necessidade ou mito? Uma análise histórico-jurídico- comparativa do negro nos Estados Unidos da América e no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 137-143.

110 SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional e Igualdade Étnico-Racial. In: PIOVESAN, Flávia; SOUZA,

Douglas de (Coord.). Ordem Jurídica e Igualdade Étnico-Racial. Brasil. Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República. Rio de Janeiro: Lumem Juris. 2008, p. 73.

111 GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação Afirmativa & Princípio Constitucional da Igualdade. O direito como

inteligência”, exigência que supostamente não era necessária para o desempenho das funções, acarretando um impacto desproporcional nos empregados negros, já que estes, em sua grande maioria, tinham estudado em escolas segregadas de qualidade inferior de ensino (doutrina dos separados, mas iguais), impedindo, assim, as pessoas negras de disputarem o acesso aos cargos em paridade de condições com os brancos. Por conseguinte, uma exigência aparentemente neutra, operava, na prática, como poderoso mecanismo de perpetuação do status quo nas funções subalternas exercidas pelos empregados negros112.

A Suprema Corte americana, baseando-se no Civil Rights Act de 1964, decidiu que: “...as práticas, os procedimentos ou testes, facialmente neutros, não podem ser mantidos se eles operam no sentido de “congelar” o status quo de práticas empregatícias discriminatórias do passado113

Assim, à guisa de fechamento do presente Capítulo, podemos destacar, a partir da teoria da discriminação por impacto desproporcional, que a igualdade – apenas – perante a lei é incapaz de promover o reconhecimento dos grupos subordinados e mitigar as desigualdades, especialmente em um país onde o racismo está introjetado nas representações sociais, ainda que de forma dissimulada pelo mito da democracia racial. Urge que o Estado brasileiro adote políticas que ultrapassem a mera neutralidade, seja através do Poder Judiciário ao analisar o impacto desproporcional de atos – públicos ou privados – na população negra, seja através do Poder Legislativo, editando normas que tragam uma concretização maior à igualdade fática desse grupo étnico, seja no Poder Executivo implementando os mecanismos já disponíveis e articulando políticas públicas com esse desiderato.

112 SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional e Igualdade Étnico-Racial. In: PIOVESAN, Flávia; SOUZA,

Douglas de (Coord.). Ordem Jurídica e Igualdade Étnico-Racial. Brasil. Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República. Rio de Janeiro: Lumem Juris. 2008, p. 73.

4 O MANDADO EXPRESSO DE CRIMINALIZAÇÃO DO RACISMO: A CONSTITUIÇÃO PENAL

É perceptível a existência de uma íntima conexão entre a Constituição Federal e o Direito Penal. Tal relação se descortina no que tange aos princípios jurídico-penais dispostos na carta constitucional (como, por exemplo, o da legalidade estrita, irretroatividade da lei penal, presunção de inocência, dentre outros), mas, especialmente – considerando os objetivos propostos na presente dissertação – tendo em vista que a Constituição Federal constitui o principal fundamento material no processo de criminalização de condutas.

Com efeito, podemos afirmar que existe uma relação de circularidade entre a Constituição e o direito penal, assim, o desenvolvimento contemporâneo da compreensão jurídica haverá de conceber na Constituição a ordenação axiológica de que deriva o processo de criminalização114. Surge, portanto, o que Luciano Feldens denomina de Constituição Penal,

concebida “como o conjunto de diretrizes normativas estabelecidas à organização e ao funcionamento dos sistema jurídico-penal requerido pela Constituição”115.

O direito penal tem o viés da fragmentariedade116, a função de garantir os valores

fundamentais de determinada sociedade como desiderato primordial. Tais valores são, inicialmente, o que se convencionou chamar de bens jurídicos, e, posteriormente, quando assumem relevância ao direito penal, cumprindo um escopo político-criminal de delimitação do que é efetivamente relevante e passível de criminalização, transmudam-se em bem jurídico-penal.

O moderno Direito Penal se compromete fortemente com a legitimação do bem jurídico, justamente por este estabelecer limites à decisão do legislador em definir novas incriminações, motivo pelo qual deve estar necessariamente alinhado às pautas sociais essenciais, preocupando-se em proteger somente aqueles bens indispensáveis ao livre desenvolvimento do indivíduo117.

114 AZEVEDO, André Mauro Lacerda; NETO Orlando Faccini. O Bem Jurídico-Penal: duas visões sobre a

legitimação do direito penal a partir da teoria do bem jurídico. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 82.

115 FELDENS, Luciano. Direitos Fundamentais e direito penal: a constituição penal. 2. ed. Porto Alegre:

Livraria do Advogado, 2012, p. 60.

116 Nesse sentido, Rogério Greco pontua que: “O caráter fragmentário do Direito Penal significa, em síntese, que

uma vez escolhidos aqueles bens fundamentais, comprovada a lesividade e a inadequação das condutas que os ofendem, esses bens passarão a fazer parte de uma pequena parcela que é protegida pelo Direito Penal, originando-se, assim, a sua fragmentariedade”. GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Parte Geral. v. I. 7. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2006, p. 65.

117 AZEVEDO, André Mauro Lacerda; NETO Orlando Faccini. O Bem Jurídico-Penal: duas visõe sobre a

Por muitas décadas a doutrina tem se debruçado sobre o tema relativo ao bem jurídico penal, logicamente a minuciosa análise histórica e evolutiva refoge aos objetivos aqui propostos, todavia, cumpre ressaltar, por oportuno, hodiernamente tem prevalecido a escola constitucionalista eclética para a definição de seus contornos. Referida teoria constitucional parte da seguinte premissa: o bem objeto de proteção do direito penal possui fundamento na Constituição, ou seja, na criminalização de condutas o legislador deve se ater em tipos penais que ofendam ou coloquem em risco de lesão bens estabelecidos na ordem de valores constitucionais118.

Assim, a Constituição, notadamente em uma sociedade democrática, há de ser o ponto jurídico-político de referência no que diz respeito ao injusto penal – reduzido às margens da estrita necessidade – como afirmação da imprescindível conexão material entre o bem jurídico (penal) e os valores constitucionais consagrados119.

Logicamente que o mencionado liame não é de total identidade ou de recíproca cobertura, mas de coerência substancial, esteada numa correspondência de sentido, a permitir que a ordem de valores jurídico-constitucional funcione como quadro de referência e, simultaneamente, critério regulativo no âmbito de atuação da atividade punitiva do Estado120.

Esse quadro de referência, dedutível da ordem objetiva de valores, prevista na Lei Fundamental, tem por prioridade a tutela de direitos fundamentais, sendo estes o epicentro da relação entre Constituição e direito penal121.

Esta relação axiológica-normativa entre a Constituição e o direito penal se exterioriza de forma tríplice, na perspectiva de mandados, proibições e discricionariedade na criminalização de condutas122.

As proibições seriam preceitos negativos de competência criminalizante, a exemplo de comportamentos protegidos pela área de proteção de algum direito fundamental de resistência (liberdade de reunião, de pensamento etc). Já a discricionariedade, como é intuitivo, reporta-se à liberdade de escolha pelo legislador infraconstitucional, que

118 CAVALCANTI, Eduardo Medeiros. Crime e sociedade complexa: uma abordagem interdisciplinar sobre o

processo de criminalização. São Paulo: LZN, 2005, p. 245.

119 PRADO. Luiz Regis. Bem jurídico-penal e Constituição. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p.

106.

120 Ibid., p. 107.

121 FELDENS, Luciano. Direitos Fundamentais e direito penal: a constituição penal. 2. ed. Porto Alegre:

Livraria do Advogado, 2012, p. 64.

dependendo de questões relacionadas à política criminal, pode ou não editar normas de criminalização.

Os mandados (de criminalização ou de tutela penal) – os quais têm especial relevância ao tema ora desenvolvido – encontram guarida na teoria dos deveres fundamentais, e são exigências de intervenção estatal, compulsoriamente pela via do direito penal – opção política já determinada pelo próprio constituinte. Portanto, a Constituição Federal funciona como verdadeiro fundamento normativo no processo de criminalização, selando pontos de não retorno (o mandado de criminalização do racismo, por exemplo) e de concretização indispensável pelo legislador infraconstitucional, no afã de garantir direitos fundamentais que lhe são subjacentes123.

4.1 APONTAMENTOS SOBRE TEORIA GERAL DOS DEVERES FUNDAMENTAIS

A Constituição Federal prevê na epígrafe do Capítulo I, do Título II, a existência de deveres fundamentais. Ocorre que o tema dos deveres fundamentais historicamente sempre recebeu diminuta atenção, sendo, lamentavelmente, um dos assuntos mais esquecidos pela doutrina constitucional, apesar da sua riqueza e relevância à dogmática jusfundamental.

Tal esquecimento pode ser explicado pela origem do próprio Estado, tendo em vista que surgiu com feições liberais, por conseguinte, a partir desse modelo, não seria crível estabelecer deveres com a mesma estrutura e relevância atribuídas aos direitos, já que a primordial função do estado liberal é justamente garantir a liberdade dos indivíduos, limitando o poder do ente artificial estatal124. Assim, a hipertrofia dos direitos guarda estreita ligação

com o padrão do homem capitalista-burguês pouco (ou quase nada) comprometido com os valores essenciais de sua comunidade, panorama que se alterou (em certa medida) na perspectiva do Estado social125.

123 FELDENS, Luciano. Direitos Fundamentais e direito penal: a constituição penal. 2. ed. Porto Alegre:

Livraria do Advogado, 2012, 73-74.

124 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Deveres Fundamentais. In: Leite, George Salomão; Sarlet, Ingo

Wolfgang; Carbonell, Miguel. (Org.). Direitos, deveres e garantias fundamentais. 1. ed. Salvador: Jus Podivm, 2011, p. 325-345.

125 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais

Se é certo que os deveres fundamentais também integram o que se convencionou chamar de (sub)Constituição do indivíduo ou do cidadão126, ladeados pelos próprios direitos

fundamentais, com eles não se confundem. Durante algum tempo, a partir da concepção de Otto von Gierke, entendeu-se que os deveres fundamentais seriam o outro lado da moeda dos direitos, haja vista a clássica afirmação do mencionado autor alemão de que não há direito sem dever127.

Atualmente este paralelismo – muito comum nos regimes totalitários que costumavam correlacionar direitos e deveres, basicamente colonizando os primeiros – é mitigado, não com o escopo de negar a existência de tais deveres fundamentais, mas justamente a fim de reafirmá-los, principalmente após a assunção dos estados sociais.

Nada obstante, ainda que com os direitos não se confundam, prevalecendo a tese da assimetria, é inegável que com eles se relacionam, notadamente por – no mais das vezes – estabelecerem limites coletivos aos direitos individuais ou, ainda, em razão de funcionarem como garantias a direitos que lhe são conexos, por intermédio da dimensão objetiva destes (tema tratado anteriormente).

Acerca da conceituação dos deveres fundamentais, Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins assim se manifestaram, in verbis:

Definimos os deveres fundamentais como deveres de ação ou omissão, proclamados pela Constituição (fundamentalidade formal), cujos sujeitos ativos e passivos são indicados em cada norma ou que possam ser deduzidos mediante interpretação. Muito frequentemente tanto a titularidade quanto os sujeitos passivos são difusos e conteúdo do dever (conduta exigida) só pode resultar de concretização infraconstitucional128 129.

126 NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos: contributo para a compreensão

constitucional do estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina, 2012, p. 22.

127 SCHENK, Marcelo Duque. Curso de Direitos Fundamentais: teoria e prática. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2014, p. 102.

128 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Deveres Fundamentais. In: Leite, George Salomão; Sarlet, Ingo

Wolfgang; Carbonell, Miguel. (Org.). Direitos, deveres e garantias fundamentais. 1. ed. Salvador: Jus Podivm, 2011, p. 325-345.

129 Gregorio Peces-Barba Martinez também elabora interessante conceituação dos deveveres fundamentais,

conforme segue, in verbis: “Com todas estas precisiones podemos estipular el uso do conceito deberes fundamentais como aquellos deberes jurídicos que se refieren a dimensiones básicas de la vida del hombre en sociedad, a bienes de primordial importancia, a la satisfacción de necesidades básicas o que afectan a sectores especialmente importantes para la organización y el funcionamento de las Instituciones públicas, o al ejercicio de derechos fundamentales, generalmente en el ámbito constitucional. El ejercicio de un deber fundamental no reporta beneficios exclusivamente al titular del derecho subjetivo correlativo, cuando existe, sino que alcanza una dimensión de utilidad general, beneficiando al conjunto de los ciudadanos y a su representación juridica, el Estado”. MARTINEZ, Gregorio Peces-Barba. Los Deberes Fundamentales. Cuadernos de Filosofia del Derecho. Num. 04. 2012. p. 329-341. Disponível em: <http://www.cervantesvirtual.com/obra/los-deberes-fundamentales- 0/>. Acesso em: 26 jun. 2016.

Deste modo, podemos aduzir que os deveres fundamentais constituem uma categoria de normas constitucionais próprias (de obrigação), expressão imediata dos valores e interesses essenciais coletivos erigidos constitucionalmente e, portanto, dotados de uma fundamentalidade formal.

A primeira divergência que se apresenta com relação ao tema dos deveres fundamentais é relativa aos seus destinatários. Por um lado, autores como José Casalta Nabais130 e Marcelo Schenk Duque entendem que estes devem ser distinguidos dos chamados

deveres de proteção, sendo que aqueles (deveres fundamentais) dirigem-se aos cidadãos, impondo-lhes obrigações diferenciadas, enquanto estes (deveres de proteção) apenas ao Estado131. De outra parte, Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins adotam posicionamento

contrário ao sustentar deveres diretamente direcionados ao ente estatal, como, por exemplo, os