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3.2. O DIREITO DA ANTIDISCRIMINAÇÃO

5.1.1 O racismo biológico

Raça é um conceito relativamente recente, pois antes de adquirir qualquer conotação biológica, significou, por longo período, grupo ou categoria de pessoas ligadas por uma origem comum. As teorias biológicas acerca das raças são ainda mais novas, datando da segunda metade do século XIX, a partir das quais o vocábulo passou a ser utilizado no sentido de tipo, designando espécies de seres humanos distintos, tanto fisicamente quanto em termos de capacidade mental159.

A partir dos trabalhos do francês Joseph Artur Gobineau160, que exercia

representação diplomática no Brasil, destacando-se, principalmente, o Ensayo sobre la desigualdad de las razas humanas (1853-1855) foram importadas as teorias europeias racialistas a este país161. Por conseguinte, “os teóricos do darwinismo racial, fizeram de

atributos externos e fenotípicos elementos essenciais, definidores de moralidades e do devir dos povos”162.

No Brasil, autores como Nina Rodrigues, da Escola de Medicina da Bahia e Sílvio Romero, da Escola de Recife, apontados sarcasticamente por Lilian Moritz Schwarcz como “homens de sciencia”, passaram a refutar a ínsita natureza de igualdade da espécie humana e o próprio livre-arbítrio em nome de um suposto determinismo científico e racial. Pensamento este que permeou além dos trabalhos antropológicos e sociológicos da época, também a própria doutrina jurídico-penal, tendo em vista que Nina Rodrigues, em publicação ocorrida em 1894, nominada As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil – encampando ideários oriundos da Escola Positiva de Direito Penal, que teve como um dos seus principais expoentes Cesare Lombroso, desenvolvendo em sua principal obra (L'Uomo Delinquente, de

159 GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Racismo e Antirracismo. 3. ed. São Paulo: Editora 34. 2009, p. 23. 160 Conforme destaca Lilia Moritz Schwarcz: “Gobineau, que permaneceu na corte do Rio de Janeiro durante

quinze meses, como enviado fracês, queixava-se: “Trata-se de uma população totalmente mulata, viciada no sangue e no espírito e assustadoramente feia”. SCHWARCZ, Lilia Moritz. Racismo no Brasil. 2. ed. São Paulo: Publifolha, 2013, p. 25.

161 SILVEIRA, Fabiano Augusto Martins. Da criminalização do racismo: aspectos sociocriminológicos. Belo

Horizonte: Del Rey, 2006. p. 02.

1876) um “perfil” genético e físico do homem delinquente, com uma degenerescência atávica que lhe impulsionava inelutavelmente para o crime – advogava pela necessária existência de dois códigos penais, um deles para os brancos e outro para os negros, correspondentes aos diversos níveis de evolução apresentados por esses grandes grupos163164.

Todavia, uma importante característica da sociedade de nosso país não podia ser solenemente ignorada pelos “homens de sciencia” da época, qual seja, a miscigenação, fazendo com que a importação da doutrina racialista europeia, esteada na pureza e superioridade da raça branca, sofresse uma adaptação à brasileira.

Nesse passo, ainda que o contato interracial fosse visto inicialmente como um retrocesso, pois o mestiço era também tido como um ser biologicamente inferior, houve um esforço para reconciliar os conceitos de raça e nação, movimento conhecido como branqueamento. Assim, supostamente a nacionalidade brasileira estaria salva dentro de três ou quatro gerações, por intermédio de um inusitado poder eugênico conferido à miscigenação do mestiço com o branco, rumando, por fim, ao ápice do branqueamento da sociedade. Isso trouxe reflexos inclusive na própria política de imigração ocorrida no Brasil, pavimentada na figura central dos europeus (brancos, principalmente italianos e alemães) que aqui aportaram com grande fluxo entre os idos de 1880 a 1920, tendo como principais incentivos o trabalho livre e a ocupação territorial pela pequena propriedade, contando com o beneplácito e o incentivo estatal165.

A expectativa era de que tais imigrantes contribuíssem decisivamente nesse “redentor” processo de branqueamento da população brasileira, até então desenganadamente mestiça – acreditava-se, inclusive, em um processo de seleção natural, com prevalência da raça branca e paulatino desaparecimento dos negros e índios, vistos como imprevidentes, indolentes, doentes e criminosos –, pois quanto mais próximo do branco, tanto quanto melhor,

163 SCHWARCZ, Lilia Moritz. Racismo no Brasil. 2. ed. São Paulo: Publifolha, 2013, p. 22.

164 O determinismo racial impregnava o discurso jurídico da época, conclusão que pode ser facilmente percebida

na indagação feita por Nina Rodrigues no texto que segue, in verbis: “Pode-se exigir que todas as raças distintas respondam por seus actos perante a lei com igual plenitude de responsabilidade penal? Acaso, no célebre postulado da escola classica e mesmo abstrahindo do livre arbitrio incondicional dos metaphysicos, se pode admitir que os selvagens americanos e os negros africanos, bem como os seus mestiços, já tenham adquirido o desenvolvimento phisyco e a somma das faculdades psychicas, suficientes para reconhecer, num caso dado, o valor legal do seu acto (discernimento) e para se decidir livremente a commettel-o ou não (livre arbitrio)? Por ventura pode-se conceber que a conciencia do direito e do dever que teem essas raças inferiores, seja a mesma que possue a raça branca civilisada”. RODRIGUES, Nina. As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil. Apud SILVEIRA, Fabiano Augusto Martins. Da criminalização do racismo: aspectos sociocriminológicos. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 11-12.

chegando Nina Rodrigues até mesmo a cunhar a categoria de mestiço superior (aquele muito próximo do branco e, portanto, mais evoluído)166.

É até intuitivo que estas teorias racialistas foram posteriormente totalmente refutadas pela ciência. Principalmente depois dos horrores perpetrados na Segunda Guerra Mundial pelo Nazismo, tendo como lamentável desfecho o que ficou mundialmente conhecido como “Holocausto” – redundando no extermínio em massa de milhões de judeus, levado a cabo principalmente após a deflagração da “Solução Final” –, considerados pela doutrina do Partido Nacional Socialista como raça inferior a ariana (tal qual foi apregoado aqui no Brasil com relação aos negros).

A Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e a Cultura (UNESCO) promoveu em três oportunidades (1947, 1951 e 1964) grandes reuniões contando com a participação de biólogos, geneticistas e cientistas sociais para avaliar o estado da arte no campo dos estudos sobre “raças” e relações raciais, chegando-se a irretorquível conclusão que as diferenças fenotípicas entre os indivíduos e grupos humanos, tal como as diferenças intelectuais, morais e culturais, não podem ser atribuídas, diretamente, a distinções biológicas, sendo meramente decorrentes de construções socioculturais e condicionantes ambientais, restando afirmado categoricamente o seguinte: a quantidade de genes que proporciona uma diferenciação física não autoriza biologicamente uma diferenciação de raças humanas167.