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O estatuto da família e a legitimação do preconceito de gênero: uma quebra de paradigmas em busca do direito à diversidade / The status of the family and the legitimation of gender bias: a breakdown of paradigms in search of the right to diversity

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Academic year: 2021

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O ESTATUTO DA FAMÍLIA E A LEGITIMAÇÃO DO

PRECONCEITO DE GÊNERO: UMA QUEBRA DE

PARADIGMAS EM BUSCA DO DIREITO À

DIVERSIDADE

Alisson Rodrigo de Araújo Oliveira*

RESUMO: A amplitude dos temas relativos ao estudo dos direitos humanos,

principalmente no tocante ao direito à Diversidade, constituem-se uma das bases da presente investigação que tem por objetivo a construção de uma análise sócio-jurídica acerca da legitimação do preconceito de gênero proporcionado pelo projeto de lei nº 6583/13, que dispõe acerca do que fora denominado de “Estatuto da Família” com a justificativa de funcionar como garantia dos direitos da estrutura familiar. A partir da realização de várias pesquisas bibliográficas e da utilização da observação enquanto importante método científico de percepção dos fatos presentes na sociedade, como a criação de instrumentos de legitimação do preconceito, busca-se primeiramente fazer uma análise em torno do conceito de família e de suas releituras temporais até estar sob a ótica da atual conjuntura social brasileira. Assim, sempre com o suporte imprescindível das ciências sociais enquanto recursos de compreensão da sociedade, iremos confrontar de um lado o direito à diferença e diversidade em face de variáveis como a moral e a religião que são a principal fonte de suporte para a sustentação do conceito tradicional de família formada pela união de homem e mulher, recentemente aprovado pela comissão especial que discute o estatuto da família na câmara dos deputados.

PALAVRAS-CHAVE: Estatuto da família; direito à diversidade; gênero;

preconceito.

ABSTRACT: The range of topics related to the study of human rights,

particularly as regards the right to diversity, constitute one of the bases of this

*Acadêmico de Direito pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), Extensionista participante do Projeto Rondon 2015, monitor das disciplinas Direito Civil I (2013 -2014), Direito Civil III (2014- 2015) e Direito do Consumidor (2015-Atualmente), Bolsista da Pró-Reitoria de Extensão da UEPB no Projeto “Direito Financeiro e Mecanismos de Participação Popular na Atividade Financeira do Município”, Pesquisador no Projeto de Iniciação Científica (PIBIC) “Direito do consumidor e realidade social”, Presidente do Centro Acadêmico Sobral Pinto (2015 - 2016). E-mail: alissonrodrigocg@gmail.com.

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research which aims to build a socio-legal analysis about the legitimacy of gender bias provided by the project of law No. 6583/13, which provides about what was called the "Statute of the Family" with the justification function as guarantee of the rights of the family structure. From the realization of various literature searches and use of observation as an important scientific method of perception of present facts in society, such as the creation of prejudice legitimacy instruments, seeks to first make an analysis around the concept of family and their temporal readings until the perspective of current Brazilian social conjuncture. So, always with the necessary support of the social sciences as resource understanding of society, we will confront the one hand the right to difference and diversity in the face of variables such as morality and religion which are the main source of support for the concept of support traditional family formed by the union of man and woman, recently approved by the special committee discussing the family's status in the chamber of deputies.

KEYWORDS: Family laws; right to diversity; gender; prejudice. INTRODUÇÃO

O presente artigo é resultado de reflexões sobre temas atuais e de extrema relevância para as ciências sociais, em especial o direito, que possui o papel de regular as regras de convívio social e garantir o efetivo cumprimento daquilo que fora estabelecido no sistema jurídico-normativo de cada estado. Dentre as temáticas relativas ao direito à diversidade e identidades plurais, emerge a questão das famílias e da ampliação de seu conceito ao longo dos últimos anos.

A capacidade de constituir vínculos familiares é algo inerente à condição humana, sendo assim uma espécie de dom natural que possibilita ao homem a fuga do estado de isolamento social. Está mais do que claro que a família se constitui uma das mais antigas formas de grupos sociais, que segundo o filósofo francês Jean Paul Sartre em sua obra Crítica da Razão Dialética (1960) são formados a partir da superação da dispersão gradual e falta de interação dos homens, o qual denominou de “serialidade”, que encontrava a sua superação por meio do processo que se chama de “fusão social”. Assim, a construção de um conceito para o que hoje se entende por família não é algo que se possa analisar em desacordo com a atual realidade social do país, sendo inválido qualquer ato comparativo com conceitos estabelecidos em um outro momento.

A tutela dos direitos referentes à família é de extrema relevância para a ciência do direito, vez que esta possui um caráter organizacional da

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sociedade, entretanto faz-se necessário pontuar que a evolução histórica do conceito de família é algo que se deve analisar com calma, haja visto que a sua mutabilidade – fenômeno suscetível a todos os tipos e espécies de conceitos – se deu por meio da influência de variáveis como a religião, a moral e consequentemente pelo direito. É imprescindível, também, que façamos uma reflexão crítica a partir do Direito brasileiro com foco maior no Estatuto da Família (PL 6583/13), que se propõe a dispor sobre os direitos da família e o encaminhamento de políticas públicas de apoio ao núcleo familiar no sentindo de que se deve promover uma maior valorização daquilo que a comissão especial que discute o projeto entendeu por entidade familiar. Podemos assim corroborar que, como destaca Dias (2015, p. 29), “a família é um agrupamento informal, de formação espontânea no meio social, cuja estruturação se dá através do direito”.

Feita essa reflexão inicial acerca dos temas sob os quais iremos nos debruçar mais atentamente durante a evolução dessa pesquisa, faz-se necessário discutir os mecanismos jurídicos que tornam o PL 6583/18 totalmente inadequado para as demandas da sociedade brasileira pós-moderna33, sendo um instrumento inconstitucional caso passe efetivamente

pelo legislativo. É preciso estabelecer também quais os impactos da opinião pública nesse tramite e quais as suas implicações para essa tentativa de retrocesso de direitos conquistados.

1 A FAMÍLIA: ASPECTOS HISTÓRICOS, IDEOLÓGICOS E CONCEITUAIS

É inegável que a família se constitui uma das mais antigas e importantes formas de agrupamento humano, dessa maneira, tem desempenhado desde os mais remotos tempos um papel de destaque na construção das civilizações e no processo de formação e manutenção do próprio estado. A família, entretanto, sempre existiu nas mais diversas sociedades das mais diversas épocas, sempre carregadas de suas culturas e de seus respectivos valores. As compreensões foram sofrendo a influência direta

33 No decorrer do artigo, o termo pós-modernidade referir-se-á ao momento ou condição em que vive a sociedade atual após uma mudança ou ruptura ocorrida em razão da incredulidade nas metanarrativas (baseado nas discussões de pós-modernidade promovidas pelo filósofo francês Jean-François Lyotard), que são narrativas contidas nas próprias narrativas ou mais além destas. Outra característica importante é o ceticismo relativo aos valores anteriormente estabelecidos pela modernidade, fato este que se materializa em ondas de comportamentos e atitudes tidos como irracionais.

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do tempo e do contato com outras experiências sociais e culturais resultante da interação entre povos. Assim, é possível afirmar que a partir da origem do direito, os agrupamentos familiares começaram a formar-se de maneira mais estruturada como nos ensina Maria Berenice Dias ao dizer que:

Mesmo sendo a vida aos pares um fato natural, em que os indivíduos se unem por uma química biológica, a família é um agrupamento informal, de formação espontânea no meio social, cuja estruturação se dá através do direito. (DIAS, 2015, p. 29)

Para o filósofo grego Aristóteles em sua obra “A Política”, era bastante claro que o homem se constituía um ser social, sendo a associação entre estes um fato natural e decorrente do instinto e da necessidade de perpetuação da espécie. Deste modo, a família seria a primeira célula que compunha a cidade de modo a contribuir com esta para a sua formação de maneira estruturada. Portanto, vemos nesse contexto um modo organizado de família, com funções bem definidas dentro da sociedade e amparadas pelo modelo de estado da época.

O teórico alemão Friedrich Engels em sua obra A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, aborda o processo de formação da sociedade moderna através de um viés socioeconômico advindo do processo de declínio da família primitiva, pautada em uma cultura econômica de subsistência e marcada pelo afastamento da propriedade privada. Madaleno (2013, p. 31) aponta para o modo como Engels entendia o papel da família enquanto produto do sistema social ao qual estava inserida, funcionando também como um reflexo cultural da sociedade.

Em uma concepção Antropológica, Assis e Kümpel (2011, p. 133) nos relembram que “Para Radcliffe-Brown a família elementar é um grupo que constitui a unidade de estrutura da qual se constrói um parentesco”. Desse modo, a família seria constituída pela composição tradicional de homem, mulher e filhos (as), sendo essa composição o grande fato gerador de novas relações e interações sociais especiais entre os seus componentes de acordo com a ordem, portanto:

As conclusões de Radcliffe-Brown sobre a família elementar colocam em evidencia o tema do patrimônio como herança, que também repercute na esfera jurídica. A ideia de patrimônio vinculado à ideia de herança implica que algo deve ser deixado ou transmitido de um indivíduo para outro ou de uma geração para outra. (ASSIS; KÜMPEL, 2011, p.134)

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Por sua vez, o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss em suas inúmeras pesquisas sobre a estrutura familiar representou uma perspectiva diferenciada daquela em que se percebia a família apenas como uma unidade biológica. O início temporal da estrutura familiar se daria a partir do casamento, que seria a oficialização dos laços jurídicos, religiosos e também econômicos entre os indivíduos. Além disso, os membros componentes dessa estrutura estariam diretamente interligados por fatores psicológicos tais quais o amor e o respeito entre si. As raízes desse entendimento encontravam-se bem fincadas nas relações de parentesco e também nas questões referentes à procriação advinda do casamento.

Indo mais além, podemos encontrar nas palavras contemporâneas de Giselda Hironaka (1999 apud DIAS, 2015, p.29) ao colocar que, “não importa a posição que o indivíduo ocupa na família, ou qual a espécie de grupamento familiar a que ele pertence - o que importa é pertencer ao seu âmago, é estar naquele idealizado lugar onde é possível integrar sentimentos, esperanças, valores e se sentir, por isso, a caminho da realização de seu projeto de felicidade”. Assim, é possível ter uma percepção mais abrangente acerca dos elementos que vem a compor uma família como os sentimentos de amor e felicidade, em contraste com os valores familiares de um passado onde os interesses econômicos e também políticos eram predominantes sob o aspecto afetivo, constituindo marcas históricas de uma cultura patriarcalista onde o homem enquanto marido representava a figura central da estrutura, sendo o grande responsável pelo sustento e proteção da esposa e filho. Seguindo as ideias de Rolf Madaleno (2013, p.6) percebemos claramente que:

A família do passado não tinha preocupações com o afeto e a felicidade das pessoas que formavam seu principal núcleo, pois eram os interesses de ordem econômica que gravitavam em tomo daquelas instâncias de núcleos familiares construídos com suporte na aquisição de patrimônio.

Nos dias atuais é importante que se chegue a um significado para a palavra família que seja capaz de abarcar os anseios e direcionamentos que a sociedade pós-moderna está por tomar, assim, para fins conceituais – estando sempre conscientes de que a natureza dos conceitos é algo mutável – podemos considerar a família como sendo um conjunto ou grupo de pessoas que, independente do gênero, estão unidas por laços de parentesco ou não e que dividem e/ou compartilham um determinado espaço, estando afetivamente ligados entre os componentes do mesmo grupo. Além desse conceito social, a família é regulada também juridicamente através da carta constitucional de 1988 e de outros textos normativos, como veremos no decorrer do trabalho.

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2 O DIREITO E AS FAMÍLIAS PARA ALÉM DE UMA COMPREENSÃO CONSERVADORA

É sempre importante lembrarmos que antes do advento da Constituição Federal de 1988, também conhecida como “Constituição Cidadã”, o ordenamento jurídico brasileiro era regido sob as regras do Código Civil de 1916. Não havia de fato um cuidado com o aspecto humano nem com temas como a dignidade e a igualdade social, o grande foco do então vigente Código de 16 era principalmente a propriedade privada e as questões concernentes ao patrimônio. Sendo assim, com a chegada da Constituição de 1988 e posteriormente do Código Civil de 2002, passou-se a reconhecer entre outros princípios o direito à existência humana (personalidade), a igualdade social e a autonomia da vontade.

Com o direito de família não foi diferente, vez que este durante muito tempo sofreu diretamente os reflexos da sociedade e consequentemente das realidades de uma época onde a religião influenciara de maneira forte e até mesmo conservadora no direito, tornando-o igual.

É bastante clara a compreensão de que o direito só existe porque os fatos existem, afinal, o que seria do direito se não houvessem os fatos geradores das normas e igualmente o que seriam das normas se não houvesse direito que as regulasse? Pois bem, vivemos em tempos onde a sociedade é dinâmica, as relações sociais são dinâmicas e o direito deve tornar-se igualmente dinâmico para acompanhar as tendências que fazem dele necessário. A família é uma dessas tendências, como bem coloca Maria Berenice Dias (2015, p.19):

Como a lei vem sempre depois do fato e procura congelar a realidade, tem um viés conservador. Mas a realidade se modifica, o que necessariamente acaba se refletindo na lei. Por isso a família juridicamente regulada nunca consegue corresponder à família natural, que preexiste ao Estado e está acima do direito. A família é uma construção cultural. Dispõe de estruturação psíquica, na qual todos ocupam um lugar, possuem uma função - lugar do pai, lugar da mãe, lugar dos filhos-, sem, entretanto, estarem necessariamente ligados biologicamente.14 É essa estrutura familiar que interessa investigar e preservar como um LAR no seu aspecto mais significativo: Lugar de Afeto e Respeito.

Assim, além de garantir autonomia ao direito de família para trabalhar as suas especificidades, inclusive proporcionando a criação de leis

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específicas de acordo com as necessidades, a CF/88 proporcionou a quebra do isolamento e o consequente contato com outras ciências que trabalham a família e sua influência socio-jurídica.

Portanto, segundo leciona o jurista Paulo Lôbo (2011, p. 37) “o direito de família é um conjunto de regras que disciplinam os direitos pessoais e patrimoniais das relações de família”. Para que se perceba a dimensão da contribuição da Carta Constitucional de 1988 para as relações familiares, o mesmo autor reitera que:

Somente com a Constituição de 1988, cujo capítulo dedicado às relações familiares pode ser considerado um dos mais avançados dentre as constituições de todos os países, consumou-se o término da longa história da desigualdade jurídica na família brasileira.

A constituição atual representou um grande avanço no combate às desigualdades jurídicas as quais estava submetida a família. Em seu Título VIII, que trata acerca “da ordem social”, especificamente em seu capítulo VII a CF/88 traz novidades sobre situação jurídica da família ao preceituar o fim da distinção entre as entidades familiares matrimoniais e não matrimoniais além de conquistas como a igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres na sociedade conjugal e na união estável, também presente nos § 5º e 3º do art. 226:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

§ 5º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.

Muito se avançou no sentido de garantir à família o direito à igualdade e a proteção que lhes foram outrora negligenciados pelo estado. Entretanto, as construções jurídicas devem sempre acompanhar os anseios sociais, como já fora dito, sempre no intuito de atender e promover uma melhor regulamentação das relações humanas. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal (STF) em uma decisão histórica e inédita, ocorrida no ano de 2012, reconheceu a união estável para casais do mesmo sexo, que se formaria a partir de então pelas mesmas regras e teria as mesmas consequências de um casamento entre homem e mulher, sendo igualmente considerada uma entidade familiar.

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Os entendimentos utilizados pelos ministros basearam-se principalmente no artigo 3º da Constituição Federal, que em seu inciso IV preceitua que:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Assim, essa decisão representou uma grande vitória em tempos contemporâneos onde ainda se luta constantemente para superar todas as barreiras de preconceito e discriminação de gênero existentes no Brasil, que muitas vezes encontra estimulo entre os próprios componentes do nosso sistema político por meio de propostas e projetos de lei pautados no fundamentalismo religioso e em valores morais que lhes são convenientes, a exemplo do Estatuto da Família (PL 6583/13) que contraria diretamente o entendimento do STF e fere os Direitos Humanos ao insinuar que a composição da família se dá única e exclusivamente a partir da união entre homem e mulher, com justificativas pautadas na reprodução.

3 GÊNERO E PRECONCEITO: REFLEXOS DE UMA POLÍTICA BRASILEIRA

As questões referentes ao gênero têm se tornado cada vez mais presentes no cotidiano da sociedade pós-moderna, principalmente devido ao pouco ou nenhum conhecimento que grande maioria da população possui acerca das suas implicações e significações. Esse desconhecimento muitas vezes leva ao que Lévi-Strauss chamou de “técnica do estranhamento”. Convergindo para isso, o antropólogo François Laplatine em seus estudos sobre o homem em sua diversidade atribui ao estranhamento “a perplexidade provocada pelo encontro das culturas que são para nós as mais distantes, e cujo encontro vai levar a uma modificação do olhar que se tinha sobre si mesmo” (2007, p.21-22).

Como dito anteriormente, é preciso ter em mente que os conceitos possuem natureza mutável, desse modo, o próprio conceito de família é uma construção cultural marcada pelas relações de gênero. O entendimento que se tem acerca do que vem a ser de fato o gênero, está longe de ser unânime. Na opinião de Guacira Lopes Louro, o conceito de gênero “está ligado diretamente à história do movimento feminista contemporâneo. Constituinte desse movimento, ele está implicado linguística e politicamente em suas lutas” (2003, p.14). Ainda segundo ela:

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É necessário demonstrar que não são propriamente as características sexuais, mas é a forma como essas características são representadas ou valorizadas, aquilo que se diz ou se pensa sobre elas que vai constituir, efetivamente, o que é feminino ou masculino em uma dada sociedade e em um dado momento histórico. Para que se compreenda o lugar e as relações de homens e mulheres numa sociedade importa observar não exatamente seus sexos, mas sim tudo o que socialmente se construiu sobre os sexos. O debate vai se constituir, então, através de uma nova linguagem, na qual gênero será um conceito fundamental.

Desse modo, o gênero abrange muito além das características biológicas, ele é de certa forma a manifestação de um conjunto de percepções e compreensões construídas em sociedade, onde os traços sexuais não são analisados enquanto elementos condicionantes, mas sim enquanto elementos representativos que devem falar sobre si mesmos de acordo com cada entendimento construído empiricamente.

É importante que se ressalte que a utilização da palavra gênero enquanto remetente às desigualdades derivadas da sexualidade surgiram mais profundamente nas décadas de 1970 e 1980, com o aparato das ciências sociais. Sendo assim, a socióloga e feminista brasileira Heleieth Saffioti já alertava para o fato de que “não basta que um dos gêneros conheça e pratique as atribuições que lhe são conferidas pela sociedade; é imprescindível que cada gênero conheça as responsabilidades-direitos do outro gênero” (SAFFIOTI, 1995, p. 193).

Na história das relações humanas, o contato com o outro sempre tem se desenvolvido de modo a gerar impressões preliminares acerca dos aspectos mais visíveis e inerente ao processo de relacionamento interpessoal, dessa maneira, nos retraímos ou não de acordo com a imagem que criamos do outro. É o chamado pré-conceito ou conceito prévio, relativo às nossas percepções iniciais acerca de algo ou alguém. É importante perceber, que no processo de relacionamento e consequente conhecimento humano, conceito prévio não implica necessariamente em preconceito, este último por sua vez, remete a algo que não fora superado com o fator tempo e que afeta negativamente as relações entre os indivíduos.

Em contraponto ao preconceito, a busca pela igualdade nas relações humanas é algo que tem sido amplamente debatido e perseguido não apenas pelo direito, mas, principalmente por ele – enquanto instrumento regulador das interações humanas – em áreas onde há o conflito inerente entre gêneros, raças e demais variáveis. Assim, o jurista Valerio Mazzuoli (2014, p.200) nos

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esclarece um pouco acerca do posicionamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos ao dizer que:

A Corte Interamericana de Direitos Humanos interpretou o conceito de igualdade no sentido de que ela “advém diretamente da natureza una do gênero humano e é inseparável da dignidade essencial da pessoa, diante da qual é incompatível toda situação que, por considerar superior um determinado grupo, venha a tratá-lo com privilégio; ou que, por outro lado, por considerá-lo inferior, o trate com hostilidade ou de qualquer forma o discrimine do gozo de direitos que se reconhecem a quem não se considera incluído em tal situação de inferioridade.

A política brasileira, ressalte-se, possui um papel fundamental na promoção da desigualdade e na disseminação do preconceito de gênero, como podemos perceber a partir dos projetos de lei que “criam vida” a partir da vontade criadora de políticos cada vez mais conservadores e influenciados por valores morais e religiosos no sentido de não serem capazes de compreender as transformações sociais que estão acontecendo bem diante de nossos olhos. A título de exemplo, temos o Projeto de Lei 1672/2011, de autoria do atual presidente da Câmara, o deputado Eduardo Cunha (PMDB/RJ), que visava instituir o “Dia do Orgulho Heterossexual” em uma sociedade que já é inegavelmente heteronormativa e intolerante com questões de diversidade de gênero. Ou até mesmo o Projeto de Lei 7382/2010, que tem como prerrogativa a criminalização da heterofobia – prevendo como crime a discriminação contra heterossexuais - em um país onde as taxas de mortes com justificativas de preconceito de gênero são extremamente altas.

É importante se ressaltar que, os projetos mencionados são apenas precedentes e demonstrações de todo o ultraconservadorismo advindo das bancadas religiosas que guiam o Projeto de Lei 6583/13 ou “Estatuto da Família”, que no último dia 24 de setembro de 2015 teve o seu texto principal aprovado pela comissão especial que discute o projeto na Câmara dos Deputados. O texto define a Família como sendo a união entre homem e mulher, contrariando a decisão já proferida pelo STF em 2012.

No intuito de fechar o círculo de raciocínio sobre a temática de gênero e preconceito manifesto através da dominação, recorremos aos estudos imprescindíveis do filósofo e sociólogo francês Pierre Bourdieu acerca da dominação e do gênero. Em sua obra “A Dominação Masculina” nos são apresentados alguns conceitos fundamentais no entendimento da realidade das relações sociais entre os sexo. Um desses conceitos é o de Violência Simbólica, que vem a ser a prática mascarada de manutenção do poder que se

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exerce sobre os indivíduos, onde esse poder encontra-se impregnado no nosso modo de agir, falar e pensar, funcionando como uma verdadeira “consciência inconsciente”.

Segundo Bourdieu, o exercício do poder de modo desigual é responsável por gerar sob os dominados uma espécie de aceitação tácita, podendo também chegar à submissão ao exercício desse mesmo poder. Sendo então os papéis de homem e mulher uma definição cultural aprimorada através das práticas as quais estão submetidos os indivíduos, o sociólogo analisa a dominação heteronormativa sobre os movimentos LGBTI como uma forma particular de dominação simbólica onde se objetiva mascarar algo que não se reconhece como real através da opressão, onde se usa:

A opressão como forma de “invisibilização” traduz uma recusa à existência legítima, pública, isto é, conhecida e reconhecida, sobretudo pelo Direito, e por uma estigmatização que só aparece de forma realmente declarada quando o movimento reivindica a visibilidade. Alega-se, então, explicitamente, a “discrição” ou a dissimulação que ele é ordinariamente obrigado a se impor. (BOURDIEU, 2010 p. 143-44)

Essa diferença cultural e consequentemente o exercício de um poder simbólico no intuito de promover a dominação é o que leva ao estranhamento, que por sua vez nos leva a crer que algo natural passe logo mais a ser problemático. Algumas experiências políticas brasileiras – é importante haver a preocupação de não cair no recorrente erro da generalização – mostram que nesse sentido o conservadorismo advindo das influências de variáveis como a religião e a moral na atuação de parte dos políticos brasileiros tem tolhido o direito à diversidade, apenas preocupando-se com a disseminação dos discursos de ódio e do preconceito revertido em Projetos de Lei com objetivo de restringir aquilo que não está nos padrões patriarcais.

4 O ESTATUTO DA FAMÍLIA SOB A ÓTICA SOCIO-JURÍDICA

Sob o prisma do Direito, o estatuto da família representa um conjunto de 15 artigos que dispõe acerca dos direitos da estrutura familiar, políticas públicas de proteção à família e de apoio à mesma. Trata-se de um projeto proposto pelo deputado Anderson Ferreira (PR/PE) e que está em trâmite na câmara desde o ano de 2013. No presente ano de 2015, o projeto teve seu texto aprovado por uma Comissão Especial que discute acerca deste, e após o final da votação a regra é que não haja a necessidade de se votar o projeto no plenário da câmara dos deputados, passando assim diretamente para

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o Senado Federal.

Entretanto, é possível que os deputados apresentem recurso para que o projeto passe pelo plenário e seja por ele votado, caso este que já foi feito por alguns deputados contrários à aprovação do texto base que define a família como sendo fruto da união entre homem e mulher apenas, por 17 votos a 5. O relator do projeto, o deputado Diego Garcia (PHS/PR), utilizou-se predominantemente de preceitos religiosos para elaborar seu relatório, o que claramente demonstra a influência de fatores alheios às questões inerentes ao Direito à diversidade.

Em entendimento já firmado, o Supremo Tribunal Federal já decidiu que o conceito de família presente na Constituição Federal é também extensível às uniões homoafetivas. Sendo assim, caso o projeto de lei seja aprovado, deverá ser alvo de inconstitucionalidade.

Sob o aspecto das ciências sociais, é inegável que o Estatuto da Família não representa um avanço, mas sim um retrocesso no que se refere à elaboração de políticas públicas e garantia de direitos para a comunidade LGBTI, sendo a pura representação de um parlamento que não está preocupado em abarcar as transformações e necessidades de uma sociedade que ainda vive realidades como o preconceito contra os grupos aos quais se chama de “minorias” e perseguição – com inúmeros casos de morte – de pessoas devido à condições sociais de gênero.

Acerca das questões relativas ao direito à livre orientação sexual, André de Carvalho Ramos (2014, p.477) nos diz que:

O direito fundamental à livre orientação sexual consiste no direito ao respeito, por parte do Estado e de terceiros, da preferência sexual e afetiva de cada um, não podendo dela ser extraída nenhuma consequência negativa ou restrição de direitos. Apesar de não expresso na Constituição de 1988, esse direito é extraído da previsão do art. 5º, § 2º (os direitos expressos não excluem outros decorrentes do regime, dos princípios e dos tratados de direitos humanos), bem como do princípio da dignidade humana (art. 1º, III) e da proibição de toda forma de discriminação (objetivo fundamental da República). Além disso, a orientação sexual advém da liberdade de cada um e faz parte das decisões abarcadas pela privacidade, não podendo o Estado abrigar preconceitos e punir com base nessa opção íntima, negando direitos que somente outra orientação sexual pode exercer.

Deste modo, torna-se fácil a compreensão de que as questões inerentes à liberdade individual fazem-se um dos pontos centrais acerca das

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questões relativas ao gênero e à sexualidade, como observa José Afonso da Silva (2009, p.232) “[...] a história mostra que o conteúdo da liberdade se amplia com a evolução da humanidade. Fortalece-se, estende-se, à medida que a atividade humana se alarga”. A liberdade, então, é matéria de direito presente no cotidiano de cada indivíduo e assegurada pela Constituição Federal em seu artigo 5º em seus mais amplos sentidos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da leitura da presente pesquisa, fruto de uma série de estudos acerca do Projeto de Lei 6583/13, que vem erroneamente sendo denominado como “Estatuto da Família”, é possível convergir para o entendimento de que a plena efetivação do direito à diversidade ainda encontra inúmeras barreiras no próprio sistema político brasileiro, que traz consigo as marcas de políticas ultraconservadoras difundidas por políticos representantes de correntes pautadas em valores religiosos e morais, sendo reflexo da representatividade de grupos sociais que também comungam dos mesmos valores e princípios.

Muito se foi conquistado até o presente momento, uma vez que vivemos em uma época onde as questões pertinentes ao gênero e sexualidade estão recebendo cada vez mais espaço e sendo desmistificadas aos poucos. Um tema que durante algum tempo foi “invisibilizado” na sociedade brasileira, hoje é protagonista de várias batalhas pela confirmação e garantia de direitos constitucionais como o direito à Família e à identidade plural. Entretanto, ainda se tem um longo caminho pela frente, onde os principais obstáculos encontrados são, sem sombra de dúvidas, as culturas de preconceito e estranhamento pelas quais uma grande parcela conservadora da sociedade brasileira tem justificado a perseguição, morte e hostilidade aos indivíduos que fogem aos padrões heteronormativos.

Como produto da análise linear dos momentos históricos pelos quais tem passado o ser humano e as suas relações sociais, principalmente no que tange à família, podemos ter certeza de que os laços afetivos pelos quais se interligam as pessoas são muito mais importantes para se estabelecer e conceituar uma estrutura familiar do que resumir a questão meramente aos aspectos reprodutivos e biológicos. Assim, é evidente que o Estatuto da Família constitui-se a representação de família pautada em valores morais e religiosos de uma sociedade ainda conservadora, sendo ainda um instrumento de perpetuação e disseminação do ódio e do preconceito de gênero, produtor e reprodutor de relações de poder embasadas naquilo que se entende por violência simbólica.

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REFERÊNCIAS

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jurídica. São Paulo: Saraiva, 2011.

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BRASIL. Código Civil (2002). Código civil brasileiro. Brasília, DF: Senado, 2002.

______. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do

Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.

DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 10. ed. São Paulo: RT, 2015.

ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade e do Estado. 4. ed. Lisboa: Editorial Presença, 1980. p. 109.

HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Família e casamento em evolução. Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: IBDFAM/Síntese, n. 1, p. 7-17, abr.-jun. 1999.

LAPLATINE, François. Aprender antropologia. São Paulo: Brasiliense, 2007.

LÔBO, Paulo. Direito civil: Famílias. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. MADALENO, Rolf. Curso de direito de família. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013.

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RAMOS, André de Carvalho. Curso de direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2014.

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Revinter, 1995.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 32. ed. rev. Atual. São Paulo: Malheiros Editores. 2008.

Recebido: 16/06/2016 Aceito: 19/10/2016

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