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Ver a cidade em movimento: fragmentos perceptivos das paisagens nas trajetórias dos ônibus

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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA MESTRADO EM GEOGRAFIA

LINHA DE PESQUISA DINÂMICA URBANA E REGIONAL

FAMARA DE SOUZA LEMOS

NATAL | 2019

VER A CIDADE EM MOVIMENTO:

FRAGMENTOS PERCEPTIVOS DAS PAISAGENS NAS TRAJETÓRIAS DOS ÔNIBUS

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FAMARA DE SOUZA LEMOS

VER A CIDADE EM MOVIMENTO: FRAGMENTOS PERCEPTIVOS DAS PAISAGENS NAS TRAJETÓRIAS DOS ÔNIBUS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito à obtenção do título de mestre em Geografia.

Orientadora: Prof. Drª. Eugênia Maria Dantas

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FAMARA DE SOUZA LEMOS

VER A CIDADE EM MOVIMENTO:

FRAGMENTOS PERCEPTIVOS DAS PAISAGENS NAS TRAJETÓRIAS DOS ÔNIBUS

Aprovada em 22 de fevereiro de 2019

_________________________________

Prof. Dr. Eugênia Maria Dantas – Orientadora PPGE – UFRN

__________________________________

Prof. Dr. Pablo Sebastian Moreira Fernandez - Examinador Externo ao Programa – UFRN

___________________________________

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA

Lemos, Famara de Souza.

Ver a cidade em movimento: fragmentos perceptivos das

paisagens nas trajetórias dos ônibus / Famara de Souza Lemos. - 2019.

170f.: il.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas Letras e Artes. Programa de Pós Graduação em Geografia. Natal, RN, 2019.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Eugênia Maria Dantas.

1. Trajetórias - Dissertação. 2. Percepções - Dissertação. 3. Experiências - Dissertação. I. Dantas, Eugênia Maria. II. Título. RN/UF/BS-CCHLA CDU 908(813.2)

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AGRADECIMENTOS

A minha mãe Marla e meu padrasto Ivan por acreditar, por vislumbrar futuros que sou incapaz de prever. Ao meu pai Fernando com seu jeito torto de ser. A minha irmã Franciely por me mostrar a simplicidade como conquista de vida.

A Eduardo Vinicius por estar junto e se tornar meu grande amor.

A Levy pela parceria no mestrado. A Maíra pela ajuda com a criação dos lambes. A Hiram pelas ajudas e conversas ao longo do caminho. A turma de 2017 do mestrado Julia, Denis, Silmara, Élida e Cristóvão nas aventuras das aulas, campos e preocupações compartilhadas. A Erre Rodrigo pela ajuda com os desenhos.

A Elian, Pedro, Larissa Consuelo, Carlaxs, pela amizade e risadas da família que a gente escolhe.

A Doris, Pituca e Luna por serem as melhores companheiras. A Ju Marta por ter aparecido quando eu estava perdida.

Aos moradores da Região Norte que compartilharam suas percepções e experiências na construção da dissertação.

Aos professores Dr. Pablo Fernandez por me inspirar com seus escritos, por estar presente na defesa e colaborar anteriormente junto a Dra. Maria Helena Vaz da Costa com importantes contribuições na qualificação.

Ao Programa de pós-graduação em Geografia da UFRN, em especial aos professores Dr. Raimundo Júnior por ter me oferecido a oportunidade de estagiar na turma Ensino de Geografia II e aos estudantes da Pedagogia com quem vivi a experiência da docência, a Dr. Alessandro Dozena por ser uma grande referência na graduação em Geografia. Ao professor Dr. Eduardo Marandola Júnior pelo fortuito encontro em Diamantina e por participar da defesa desta dissertação.

A orientadora, Eugênia Maria Dantas por traçar rotas e sentidos na construção da Geografia em minha vida para lá de acadêmica. Das aulas de Geografia Urbana no terceiro período, ao longo de dois anos de Iniciação Científica, na construção do projeto e tessitura desta dissertação, sempre presente. Agradeço por demais!

É preciso agradecer a vida que mesmo em dias difíceis me ilumina com a luz na cidade do sol, o sopro dos ventos vindos do mar e das dunas, das águas salgadas do litoral que acalmam meu coração. Aos caminhos por vir entre ruas reais e ilusórias que me levarão a sentir tanto.

Por fim, agradeço ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico por financiar a construção da pesquisa.

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Tem uns dias que eu acordo Pensando e querendo saber De onde vem O nosso impulso De sondar o espaço (Errare Humanum Est – Jorge Ben Jor)

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RESUMO

Viver nas cidades é viver em deslocamento. Nas idas e vindas cotidianas, de um lugar a outro, percorremos a multiplicidade que compõe o espaço, tecemos trajetórias indo ao encontro de paisagens que tocam o desejo. No movimento pelas ruas, os citadinos dão sentido à sua existência, percebem detalhes e fragmentos, se afetam em diferentes intensidades, conhecem e desenvolvem habilidades espaciais. A espacialidade dos objetos e ações atua na produção de visibilidades, as relações entre localização, simbolismos e significações, se reverberam nas percepções das cenas em exposição. O transporte público por ônibus, inserido na trama espacial da mobilidade urbana, oferece trajetórias para o deslocamento entre os lugares, interpõe olhares pelos enquadramentos das janelas, interfere nas experiências espaciais, ao possibilitar e por vezes limitar o espaço da vida. Rotas e linhas encaminham os sujeitos a construir mapeamentos a partir das paisagens percebidas nas ruas. No relacionamento entre corpo e cidade, revela-se a geograficidade contida nas trajetórias dos sujeitos nos ônibus. A presente dissertação tem como objetivo compreender a relação entre mobilidade urbana e percepção da paisagem nas trajetórias cotidianas dos moradores da Região Norte as regiões Leste e Sul na cidade do Natal/RN. A interpretação geográfica sob orientação da fenomenologia foi o caminho escolhido para construção teórica e prática da pesquisa. Partimos da revisão bibliográfica sobre os conceitos de paisagem, espaço e lugar; nas categorias mobilidade e trajetórias. Realizamos trabalhos de campo nos ônibus e nas ruas produzindo registros gráficos, fotográficos e audiovisuais; nos diários de campo e de rua sistematizamos as descrições das vivências; anunciamos a pesquisa através da intervenção urbana “Ver a cidade em movimento” e utilizamos das redes sociais para ir ao encontro aos moradores da Região Norte; nas entrevistas houve o compartilhamento dos mapeamentos advindos das experiências de mobilidade. Dos relatos construímos narrativas, um modo de descrever as percepções e situações que compõe as trajetórias nos ônibus dos moradores da Região Norte. No fim desta expedição a cidade se apresenta como um mapa de sobreposições das imagens, afetividades, lembranças dos citadinos. Indicando-nos um dos caminhos para decifrar a experiência do habitar citadino.

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ABSTRACT

Living in cities means living on the movement. On the daily comings and goings, from one place to another, we cross the multiplicity that produces the space, we make trajectories by meeting the landscapes that touch our desire. By the movement through the streets, the citizens give meaning to their existence, perceive details and fragments, affect themselves in different intensities, get to know and develop spatial abilities. The spatiality of objects and actions acts on the production of visibilities, the relations between location, symbolism and significations, they also reverberate in the perceptions of the scenes on display. The public transport by bus, inserted in the spatial plot of the urban mobility, offers trajectories for the movement between the places, it interposes glances by the window frames and interferes in the spatial experiences by enabling and sometimes limiting the space of life. Bus routes and bus lines make the subjects to map through the landscapes perceived on the streets. The relationship between body and city reveals the geography embodied in the trajectories of the subjects in the buses. This dissertation aims to understand the relationship between urban mobility and perception of the landscape in the daily trajectories of the inhabitants of North Zone, East and South Zone of Natal, RN. The geographical interpretation under the directions of the phenomenology was the chosen path for the theoretical and practical construction of the research. We start with a bibliographic review on the concepts of landscape, space and place; mobility and trajectories. We also carried out field work on buses and on the streets producing graphic, photographic and audiovisual records; in the field and street diaries we systematized the descriptions of the experiences; we announced the research through the urban intervention "See the city in motion" and we used social networks to meet the residents of the North Zone; in the interviews, we had the sharing of the mappings resulting from the mobility experiences. From the reports we constructed narratives, a way of describing the perceptions and situations that compose the trajectories in the buses of the inhabitants of the North Zone. At the end of this expedition, the city presents itself as a map of overlapping images, affectivities, and reminders of city dwellers. It indicates one of the ways to figure out the experience of the city inhabitant.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1. Mapa das trajetórias da pesquisa 54

Figura 2. Cróqui da espacialização dos pontos de colagem da intervenção urbana 64

Figura 3. Intervenções na Região Sul 65

Figura 4. Intervenções na Região Leste 67

Figura 5. Intervenções na Região Norte 68

Figura 6. Publicação no perfil da autora na rede social Facebook 71 Figura 7. Publicação no perfil de Matheus Madson na rede social Facebook 72 Figura 8. Percurso da linha 10/29 entre as Av. Caboclinhos e Av. da Chegança. 79 Figura 9. Ponto Nodal da Av. Guadalupe com Av. João Medeiros Filho 80 Figura 10. Ponto nodal da Av. Tocantínea e Av. Rio doce 81 Figura 11. Ponto nodal da Av. Rio Doce com Av. Itapetinga 82 Figura 12. Paisagem da cidade vista da Av. João Medeiros 83 Figura 13. Estações de transferência na Av. João Medeiros Filho 83

Figura 14. Ponto nodal do Complexo viário de Igapó. 84

Figura 15. Terminal no conjunto Parque dos Coqueiros a Av. Tomaz Landim 85 Figura 16. Paisagem no horizonte na saída da Região Norte 87

Figura 17. Paisagens da travessia da Ponte de Igapó. 88

Figura 18. Comunidade do Mosquito e a pichação NEURA na Av. Felizardo Moura 89 Figura 19. Ponto nodal do Viaduto da Urbana com a Av. Bernardo Vieira 89 Figura 20. Ponto nodal no cruzamento com linha férrea e com a Av. Coronel Estevam

91 Figura 21. Marcos do Contact center da Riachuelo e do Shopping Midway Mall 92

Figura 22. Marcos na paisagem da Av. Salgado Filho 93

Figura 23. Ponto nodal do Complexo viário do Arena das Dunas 94

Figura 24. Marcos da paisagem na Av. Salgado Filho 95

Figura 25. Ponto nodal do viaduto de Ponta Negra 96

Figura 26. Terminal da Integração no bairro Potengi 98

Figura 27. Ponto nodal entre as Av. Senhor do Bonfim e Av. João Medeiros Filho 99 Figura 28. Ponto nodal da linha férrea com a Av. João Medeiros. 99

Figura 29. Terminal da linha 64A/43 100

Figura 30. Ponto nodal da Av. Tocantínea com Av. Moema Tinôco 101 Figura 31. Ponto nodal entre Av. Moema Tinôco e a rua Conselheiro Tristão 103 Figura 32. Ponto nodal entre Av. Moema Tinôco e João Medeiros 104

Figura 33. Complexo viário da Redinha 105

Figura 34. Paisagens na travessia da ponte Newton Navarro 106

Figura 35. Marcos na passagem pelo bairro das Rocas 108

Figura 36. Marcos da paisagem no bairro da Ribeira 109

Figura 37. Ponto nodal entre a avenida Ulisses Caldas e Rio Branco no bairro Cidade

alta. 110

Figura 38. Marcos na paisagem do bairro Petrópolis 110

Figura 39. Marcos na paisagem do bairro Petrópolis. 111

Figura 40. Idosos reunidos no Terminal da Integração no conjunto Soledade 126 Figura 41. Casas em construção onde antes haviam plantações na Av. Moema Tinôco

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Figura 42. Demolições na Av. Moema Tinôco, a esquerda um estabelecimento

comercial, a direita vista da janela de um terreno repleto de entulhos 130 Figura 43. Dois registros da Igreja católica na Av. Moema Tinôco, a esquerda em

janeiro de 2018, a direita em junho de 2018. 131

Figura 44. Dois registros das obras de restruturação da rua Conselheiro Tristão, a esquerda em janeiro de 2018, a direita em junho de 2018. 132 Figura 45. Canteiro de obras de condomínios residenciais verticais na Av. Moema

Tinôco 132

Figura 46. Complexo viário da Redinha inaugurado em julho de 2018. 134 Figura 47. Vista da cidade do alto da ponte Newton Navarro. 135 Figura 48. Obra do museu da Rampa as margens do rio Potengi 137

Figura 49. Casa ilha no rio Potengi 140

Figura 50. Comunidade do Mosquito 141

Figura 51. Conjunto de outdoors na Av. Salgado Filho 149 Figura 52. Conjunto de outdoors localizado nas proximidades do shopping Via Direta

na avenida Salgado Filho 150

Figura 53. Conjunto de outdoors localizado no cruzamento entre as avenidas Salgado

Filho e Amintas Barros 150

Figura 54. Anúncios de festa nos muros de um estabelecimento comercial na Av.

Bernardo Vieira 152

Figura 55. Hospital abandonado repleto de cartazes de festa, propagandas pintadas e

pichações na Av. Bernardo Vieira 152

Figura 56. Outdoors e anúncios pintados em propriedade particular na Av. Felizardo

Moura 153

Figura 57. Muro repleto de cartazes que anunciam festas na Av. João Medeiros Filho 154 Figura 58. Pichação de NEURA em estabelecimento comercial na Av. João Medeiros

Filho 155

Figura 59. Detalhes das pichações da antiga ponte de Igapó. 156 Figura 60. Graffiti na entrada da comunidade do Mosquito. 157 Figura 61. Intervenção de bombs e tags em muro de propriedade privada na Av.

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1. Linhas da empresa Reunidas Transportes Urbanos 52 Quadro 2. Linhas da empresa Transportes Guanabarra 52 Quadro 3. Moradores da Região Norte que colaboraram com a pesquisa 73

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 13

1 CAMINHOS DE UM PENSAR GEOGRÁFICO 21

1.1. Dos ensinamentos clássicos a Fenomenologia Geográfica 21

1.2. O encontro com a paisagem 31

1.3. Mobilidade e a perspectiva humanista 38

1.4. Trajetórias e visibilidades 44

2 EXPEDIÇÃO GEOGRÁFICA DO EFÊMERO 49

2.1. Linhas e rotas dos ônibus 51

2.2. Registros de campo 55

2.3. Intervenção urbana “Ver a cidade em movimento” 56

2.4. Encontros, entrevistas, mapeamentos 70

3 TRAJETÓRIAS PELA CIDADE 75

3.1. Região Norte a Sul 79

3.2. Região Norte a Leste 97

4 CIDADE EM MOVIMENTO: MAPEAMENTOS E NARRATIVAS 112

4.1. Conhecer a cidade pela janela do ônibus 118

4.2. Linha 84 125

4.3. Fronteiras e riscos na cidade 139

4.4. Ruas em exposição 147

4.5. Encantamentos 160

4.5.1 Surpresas 161

4.5.2 Floreios 164

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13 Dos trajetos pelas ruas percorremos por vias, entre regiões e lugares indo ao encontro às tonalidades, cheiros, texturas e gostos que expressam multipliCidades. Conflitos, transgressões e apropriações dos construtores e interventores compõem as paisagens urbanas, revestidas de um conteúdo efêmero, nas interações cambiantes do espaço sempre em devir e das paisagens a se dispersar.

Essas interações se manifestam na mobilidade urbana, que é uma das estruturas essenciais na organização das cidades sob a intenção de articular os lugares no tecido urbano. Vias, pontes, viadutos e os transportes urbanos são alguns dos objetos que favorecem a mobilidade indicando sentidos e direções, estabelecendo passagens e limites. Seu funcionamento corre em um ritmo veloz em contextos de fluidez que controlam a passagem entre vias movimentadas e ditam breves pausas nos semáforos, cruzamentos e engarrafamentos. Dispõe de um conjunto de materialidades e normas para articular os lugares no tecido urbano que se realiza por rotas produzidas no e pelo espaço possibilitando os deslocamentos.

As necessidades de fluidez se reverberam no cotidiano, nos horários de partida e de retorno. Na repetição dos percursos os citadinos criam suas próprias paradas para registrar fragmentos das cenas urbanas. No ir e vir diário percebem as diferentes dimensões das paisagens, seja a pé ou no uso do transporte urbano. Nos percursos cotidianos múltiplas trajetórias coexistem no espaço (MASSEY, 2006) e se entrecruzam nas experiências de mobilidade. De modo que o ato de se mover e o ato de ver unem-se nas trajetórias cotidianas: o espaço da cidade torna-se o espaço da vida.

Uma das formas mais comuns de deslocamento ocorre por meio do transporte público por ônibus. Inseridos nas teias da mobilidade, os ônibus traçam rotas por ruas e avenidas, atravessam pontes, circulam de um lugar a outro, propiciam encontros com as paisagens da cidade. Nas trajetórias os citadinos assumem uma atitude ativa e passiva, por vezes percebem as tonalidades, cheiros, texturas e gostos; por outras anestesiam os sentidos, adotando comportamentos e atitudes de indiferença. Georg Simmel (1987) ao discutir como os fundamentos sensoriais se ajustam ao moderno ambiente metropolitano destacou que as imagens em constante movimento, a descontinuidade contida na apreensão em uma única vista, interfere na consciência e percepção, modulando os

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14 comportamentos em uma atitude blasé, fenômeno psíquico de alta impessoalidade que se traduz no desinteresse ou indiferença com os outros, com a cidade. Apesar disso, nos dias marcados pela repetição, o acaso é elemento do devir, da surpresa a romper com o mais do mesmo, deslocando o olhar para perceber detalhes que compõem e (re)significam a narrativa dos lugares.

Habitar a cidade significa muito para cada sujeito. No contato do corpo com o espaço vivências e significações são construídas, uma geograficidade permeia as trajetórias dos ônibus, numa relação estabelecida nas ruas, por onde habilidades e conhecimentos espaciais são desenvolvidos, registrando percepções e experiências em mapeamentos.

As experiências de mobilidade indicam os caminhos para realização de uma expedição geográfica em busca das essências do habitar urbano. Ao adentrar nas trajetórias dos ônibus, os enquadramentos das janelas se interpõem ao olhar, recortam o dentro e o fora; e ao mesmo tempo que aproximam, oferecem a distância ao observador, mediando a exibição de uma sucessão de cenas espontâneas nas ruas, construindo em cada sujeito mapas, imagens, imaginários sobre a cidade percebida.

As percepções são o ponto de partida desta pesquisa, compreendida numa perspectiva fenomenológica, no movimento do corpo pela concreticidade do espaço indo ao encontro sensível com as paisagens, o que demonstra um modo de ser-e-estar no mundo vivido (MERLEAU-PONTY, 1996; BESSE, 2014; 2006; DIDI-HUBERMAN, 2006).

Por sua vez, a percepção de algo se relaciona com a espacialidade dos objetos na composição e na exposição do campo de visibilidade, a partir do ponto de vista de observação, que traz em seu cerne a posição dos objetos e das ações em uma trama espacial nas interações entre localização espacial, simbolismos e significações (GOMES, 2013; 2008).

Nas subidas e descidas dos ônibus, os sujeitos tecem interpretações, dão sentido ao espaço e a própria existência, ao passo que sensações e memórias, habilidades e conhecimentos possibilitam a construção de mapeamentos nas trajetórias cotidianas. A espacialidade dos objetos da mobilidade urbana interfere nas percepções da paisagem e experiências espaciais dos sujeitos na cidade. Desse modo identificamos uma trama

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15 espacial formada entre Mobilidade, Percepção e Paisagem. Para refletir acerca desta trama escolhemos como campo de estudos a cidade do Natal/RN.

A escolha parte de uma experiência anterior, vivida sob a condição de moradora da Região Norte de Natal e usuária do transporte público. Cruzando todos os dias pontes, conhecendo a cidade pelos ônibus, vendo as mesmas paisagens, cercada as vezes pelas mesmas companhias, por vezes cansei de olhar o de sempre. Sentada ou de pé no ônibus, para escapar da repetição recorria à música, à leitura, ao cochilo ou tentava vencer o desinteresse. Ao buscar detalhes nas ruas, para ver nas paisagens de sempre algo novo. Na repetição dos trajetos passei a perceber que só sabia fazer o “caminho do ônibus”. O desvio por uma obra ou mesmo uma carona, me faziam estranhar onde estava. Meus mapeamentos estavam presos ao percurso das linhas da Região Norte para os lugares de trabalho ou estudo. Na busca por novidades algumas vezes notei mudanças, fosse a nova propaganda do outdoor ou a construção de um novo prédio; por detalhes como o floreio dos ipês, o vôo dos passarinhos, o pôr do sol na travessia das pontes. Acontecimentos que mobilizaram o desejo adormecido pela rotina, fazendo-me ver com os olhos da vontade, a encontrar sentidos nos fragmentos da cidade em meu próprio movimento. Ao refletir sobre meus estranhamentos e a diversidade de paisagens que compõem a cidade do Natal me perguntei: como os moradores da Região Norte veem a cidade?

Associado a isto estão certas condições próprias do transporte público, relacionadas aos lugares de partida e destino nos bairros, as rotas e linhas, que afetam diretamente as vivências dos passageiros e limitam suas trajetórias. A fronteira natural do Rio Potengi separa a Região Norte das demais regiões. O que torna as pontes objetos imprescindíveis para articulação entre as regiões da cidade. Sete bairros a compõem: Igapó, Nossa Senhora da Apresentação, Pajuçara, Lagoa Azul, Potengi, Redinha e Salinas. Dez terminais de ônibus se distribuem nos conjuntos habitacionais dos bairros. As empresas Guanabara e Reunidas, responsáveis por oferecer o serviço na região, dispõem de 35 linhas com destino a Petropólis, Mirassol e Ponta Negra, respectivamente para as Regiões Leste e Sul, em rotas pelas pontes de Igapó ou Newton Navarro.

As linhas são definidas a partir dos destinos: para a Região Sul a maioria realiza a travessia pela ponte de Igapó; para Região Leste a maioria segue pela ponte Newton Navarro. Esse quadro define trajetórias que não oferecem possibilidade de escolhas,

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16 obrigando os sujeitos a percorrerem rotas específicas, limitando as experiências espaciais dos moradores da Região Norte que têm o transporte público como único meio de deslocamento.

No contexto da mobilidade urbana, a paisagem percebida no ir e vir cotidiano compõe as trajetórias dos sujeitos nos ônibus e possibilitam a construção de imagens, imaginários, mapeamentos contendo ricas informações sobre a cidade. As percepções dos citadinos descortinam um jogo de posições, visibilidades e afetações, proporcionadas pela experiência do corpo em movimento, do ser no mundo, atribuindo valores e significados, assumindo atitudes diante das paisagens da cidade do Natal.

Observar as paisagens pelas janelas dos ônibus nos levou a questionar as percepções dos citadinos sobre suas trajetórias. Enquanto geógrafa e habitante envolvida pelo desejo e a curiosidade, minhas inquietações se reverberaram nos questionamentos: Quais paisagens podem ser percebidas nas trajetórias cotidianas dos moradores da Região Norte de Natal? Nos trajetos dos ônibus da Região Norte, que cenas marcam as paisagens, a considerar as paradas obrigatórias e a janela do ônibus? De que modo os ônibus interferem na experiência com a paisagem? As linhas oferecidas aos passageiros limitam espacialmente suas trajetórias? Quais narrativas são produzidas a partir da percepção das paisagens nas trajetórias cotidianas pela cidade?

Os questionamentos nos levaram a compreender a relação entre mobilidade urbana e percepção da paisagem nas trajetórias cotidianas dos moradores da Região Norte às regiões Leste e Sul na cidade do Natal/RN. De maneira mais específica: narrar os processos perceptivos que envolvem a leitura e interpretação das paisagens, considerando cenas e visibilidades nas trajetórias pela cidade; descrever a organização espacial da mobilidade urbana e as trajetórias dos ônibus; refletir sobre as habilidades e conhecimentos espaciais estimulados na experiência cotidiana.

A interpretação geográfica sob orientação da fenomenologia foi o caminho escolhido para a construção teórica e prática da pesquisa. Traçou-se uma expedição por uma geografia originária do saber da experiência (DARDEL, 2011; TUAN, 2011), explorando os modos pelos quais a geograficidade urbana se enlaça nas experiências dos sujeitos ao conhecer a cidade nas trajetórias dos ônibus. Encaminhamos o olhar para as paisagens a partir dos mapeamentos dos moradores da Região Norte, construímos

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17 narrativas sobre afetações, situações, conflitos e coexistências das paisagens percebidas pelos sujeitos nas trajetórias dos ônibus.

Para nos aproximarmos dos moradores da Região Norte utilizamos de estratégias metodológicas diversificadas. Primeiramente o trabalho de campo foi admitido como uma experiência na cidade, significou o momento de estar na rua, percorrer as rotas, contemplar as paisagens, ver e ouvir de dentro e de fora dos ônibus situações e acontecimentos que marcam as trajetórias.

Associada aos campos, a revisão bibliográfica mobilizou discussões acerca do conceito de paisagem, espaço e lugar; as categorias mobilidade e trajetória, nos ajudaram a ler e interpretar as relações tecidas nas ruas. As fontes de informação para construção dessa pesquisa, numa perspectiva analítica foram provenientes do levantamento de dados com as Secretarias Municipais de Mobilidade e de Transporte e Trânsito sobre a organização espacial dos objetos da mobilidade, as condições da oferta do transporte público por ônibus, no que diz respeito as linhas e rotas. Em uma perspectiva qualitativa vieram os registros gráficos, como os croquis e desenhos; as fotografias e vídeos produzidos e sistematizados para leitura e interpretação do campo de visibilidade das ruas, captamos a sucessão de cenas repetidas e inesperadas, os elementos visíveis da paisagem, na interrogação do visto para adentrar nos elementos invisíveis e constitutivos do espaço; o diário de campo a partir da descrição das trajetórias sob o ponto de vista da pesquisadora enquanto usuária do transporte coletivo; os mapeamentos dos moradores da Região Norte em seus relatos orais.

Afinal, para ver a cidade, ler sua imagem, interpretar seus arranjos exige movimentos de religação das partes ao todo. Portanto as estratégias relacionais dos registros, entrevistas e mapeamentos foram os principais acessos na construção da pesquisa.

Para nos aproximarmos dos sujeitos da pesquisa realizamos a intervenção urbana “Ver a cidade em movimento” com a colagem de lambe-lambes1 pelos pontos de paradas

e terminais de ônibus nas regiões Norte, Sul e Leste. Com essa estratégia tivemos a intenção de anunciar a pesquisa aos moradores da Região Norte. Este foi um dos modos

1 Expressão da arte de rua que encontra nos espaços públicos um lugar de exposição. Se insere, assim como

o graffiti e a pichação, enquanto intervenção urbana. Realizada com a colagem de cartazes feitos manualmente ou impressos sejam em postes, praças, pontos de ônibus, edifícios.

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18 que encontramos de marcar a paisagem, de problematiza-la, de atrair a percepção dos sujeitos. Aqueles que ficaram curiosos para saber o que estava por trás da intervenção, entraram em contato virtual via e-mail ou aplicativo de conversa disponibilizados no anúncio. A partir daí pude obter o caminho para entrevistas presenciais sobre o conteúdo que alicerça essa pesquisa.

Os encontros com alguns dos moradores da Região Norte também ocorreram nos ônibus, local onde nossas trajetórias se entrecruzaram. Nas linhas reconheci passageiros e deles me aproximei afim de conversar sobre suas experiências e percepções. As redes sociais também constituíram uma fonte de informação que possibilitou encontros, devido a publicação de matérias de jornal e de um texto sobre as situações relacionadas a mobilidade vividas pelos moradores da região.

Ao conhecê-los pude descobrir as paisagens percebidas e reconhecidas, os valores e significados atribuídos aos lugares na trajetória. Durante os encontros houve o compartilhamento de experiências, histórias de vida, lembranças, sensações de medo ou de encantamento nas trajetórias pelas ruas.

Dos relatos adentramos nos mapeamentos, concebendo o ato de mapear enquanto prática integrante das ações cotidianas relacionados às habilidades e conhecimentos espaciais desenvolvidos na vivência citadina. Desse modo os relatos foram a base para construirmos uma linguagem carto(gráfica) (SEEMANN, 2003; 2013) traduzindo o simbólico em informações concretas, mapeando as percepções subjetivas e as intersubjetividades das paisagens nas trajetórias dos ônibus.

A potência dos relatos nos levou a visualizar um mapa de sobreposições das afetações, narrativas, memórias e desejos. Dos mapeamentos construímos narrativas geográficas tecidas pelas percepções dos sujeitos, inseridos nas tramas espaciais que revelam simbolismos e significações em registros visuais, olfativos, sonoros.

As narrativas evidenciam como as trajetórias dos ônibus oferecem um caminho seguro, identificado e reconhecido pelos sujeitos. Tanto é que a mudança de rota causada por uma obra ou a alteração do percurso é capaz de causar estranhamentos, uma sensação de desconhecer a cidade que lhe pertence. Na repetição dos percursos a cidade parece continuar sempre a mesma pelo olhar habitual dos sujeitos, desinteressados ou cansados demais para desprender atenção as paisagens das ruas.

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19 As imposições de rotas e limitações são evidentes, situação que colabora com o desconhecimento sobre os bairros e conjuntos que constituem a Região Norte. Apenas a linha 84 propicia a mobilidade e oferece um percurso privilegiado para ver a cidade da periferia ao centro histórico. De um lugar a outro a paisagem é marcada por obras, sejam as da mobilidade urbana ou do patrimônio histórico da cidade, a maioria incompleta, sem previsão de término.

Fronteiras físicas e imaginárias se relacionam à violência urbana, envolvendo riscos ambientais e sociais do habitar. A localização espacial das comunidades entre o rio, o mangue e o asfalto denota como a trama espacial atua não apenas na produção de visibilidade e invisbilidade, assim como nas estratégias espaciais de assaltos aos ônibus em trechos onde os riscos se associam a insegurança, sobretudo do medo ao crime.

Nas ruas as paisagens são marcadas por transgressões e apropriações que atuam na produção de visibilidades e ressignificação dos lugares, tramando narrativas visuais preenchidas por simbolismos e intenções voltadas a exposição de imagens no espaço público. Conflitos e coexistências se fazem pela ação de grupos que o utilizam como meio de publicitar produtos e eventos e nas intervenções urbanas dos sujeitos que marcam a cidade com desenhos, colagens e pinturas. Pelas ruas as paisagens tocam o desejo, a curiosidade e a imaginação numa dimensão sensível e afetiva propiciada pelos encontros esperados e inesperados, dos floreios e das surpresas que arrancam sorrisos no cotidiano de repetição.

Na construção dessa dissertação pretendemos articular o sentir, o pensar e o dizer sobre as paisagens percebidas e vividas nas trajetórias dos ônibus. Entrecruzando experiências, revelando afetações, gostos, subjetividades envolvidas na narrativa da vida cotidiana. Com essa finalidade, a dissertação estrutura-se em quatro capítulos.

No primeiro capítulo construímos um diálogo teórico com as bases que orientam nosso pensar geográfico, ao assumirmos uma orientação fenomenológica fomos guiados pelos caminhos da experiência, na mobilidade do corpo pelo espaço indo ao encontro com as paisagens. No segundo capítulo serão expostas as estratégias metodológicas utilizadas para as expedições geográficas em busca do efêmero, na construção de uma pesquisa feita pelas ruas, ao caminhar, esperar, pegar ônibus, subir e descer, conversar, intervir na paisagem. Nos trabalhos de campo ao mapear ruas, paisagens e lugares, registrando-as em diferentes linguagens. Neste momento, adotamos a prática caminhante e fotografante

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20 inspirado no trabalho dissertativo “Narrativas Urbanas de um Caminhante” (FERNANDEZ, 2008), alimentado pela figura do flâneur contemporâneo, a observar, frequentar e refletir sobre as relações corpo-cidade.

No terceiro capítulo descrevemos as trajetórias da Região Norte a Sul, de Norte a Leste, nas linhas e rotas dos ônibus que dão a ver a cidade. Utilizou-se como guia de observação e descrição as vias, pontos nodais, marcos, limites e bairros, elementos da cidade indicados por Lynch (1997). Teceu-se conexões entre localização espacial, simbolismos e significados presentes na trama espacial entre Mobilidade, Percepção e Paisagem. No quarto capítulo construímos as narrativas geográficas sobre ver a cidade pela janela do ônibus. Cada escrito está repleto de informações espaciais advindas das experiências, dos conhecimentos e habilidades desenvolvidos na vivência dos moradores da Região Norte. No encontro a paisagem suas reverberações no corpo acionam o olhar, o inalar e ouvir. Desse modo, as narrativas revelam os mapeamentos da cidade nas trajetórias dos ônibus. O intuito das narrativas foi possibilitar ao leitor a vivacidade dos cenários, atiçar a imaginação como propõe Wright (2014) utilizando uma escrita em diálogo, em proximidade da realidade vivida e percebida.

As paisagens e narrativas descritas aqui são tramadas em um espaço marcado pela multiplicidade, de cenas em deslocamentos fluídos e constantes. O que descrevo advém das percepções justapostas dos sujeitos que se deslocam nos ônibus pela cidade. Olham, escutam, sentem com os olhos do desejo, da curiosidade, mobilizando o corpo, percorrendo trajetórias.

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21 1 CAMINHOS DE UM PENSAR GEOGRÁFICO

O conhecimento científico ao encontrar-se com o saber da experiência oferece caminhos à investigação acerca das percepções, sensações e atitudes do ser no mundo. Neste capítulo traçamos os caminhos teóricos da pesquisa, aqui remontamos ao período clássico, nas obras dos geógrafos que investiram na observação dos elementos e descrição dos fenômenos contemplados como procedimentos essenciais para compreender as interações espaciais. Servindo-nos de inspiração na interpretação geográfica tendo como ponto de partida a paisagem.

Na contemporaneidade esses procedimentos colocam em diálogo Fenomenologia e Geografia. Ambas buscam as estruturas essenciais da experiência humana nas relações fundamentais entre o Homem e a Terra. Partindo dessas relações Eric Dardel (2011) entende a realidade geográfica como mundo vivido dissolvido em matérias e substâncias do habitar na convergência entre existência e experiência. Do encontro sensível emergem as paisagens que afetam o desejo, tocam a curiosidade, envolvidas nas dimensões relacionais do estético, do simbólico e do experiencial.

A realidade geográfica expressa no cotidiano evidencia a mobilidade como parte imprescindível da vida urbana. Ao possibilitar os deslocamentos dos citadinos, colabora com as experiências dos sujeitos no espaço da vida. Nas relações entre os lugares, nas efêmeras pausas no movimento, os sujeitos constroem e atribuem sentidos e significados ao que percebem. Na trama entre mobilidade, percepção e paisagem expomos ideias e relações tecidas pelo espaço, a compor paisagens nas trajetórias dos ônibus.

1.1. Dos ensinamentos clássicos à Fenomenologia Geográfica

Pensar geograficamente o espaço e a paisagem exigem um mergulho nas relações inalienáveis entre o ser e o mundo, um envolvimento que transversaliza dimensões sensíveis, materiais, espaciais. A existência humana, por natureza geográfica, como bem afirmou Eric Dardel (2011), se encaminha perpetuamente aos movimentos e encontros do corpo no mundo, construindo as experiências no contato com os lugares, alimentando um modo de sentir, perceber e conhecer.

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22 A geografia enquanto saber e conhecimento lança olhares ao mundo a fim de compreender suas dinâmicas e estruturas. Em sua constituição científica, os parâmetros da ciência moderna a revestiu com a intenção de explicar as relações entre sociedade e natureza, para isso trilhou caminhos de uma pretensa objetividade com preocupações voltadas à adequação de métodos e procedimentos a fim de alcançar uma verdade universal. Anterior às tentativas de objetivação, o saber permaneceu entre os laços existenciais singulares e coletivos nas relações concretas que ligam o Homem e a Terra.

Apesar das determinações impositivas da ciência modelarem a forma de conceber o espaço, uma inquietude esteve sempre latente ao espírito dos geógrafos, que traziam em seu interior a vontade de percorrer o mundo, explorar os lugares, navegar pelos oceanos, perder-se e encontrar-se na diversidade que compõe a terra. Esses expedicionários que são os geógrafos almejavam “conhecer o desconhecido, atingir o inacessível, a inquietude geográfica precede e sustenta a ciência objetiva” (DARDEL, 2011, p.1).

Os geógrafos a partir da sua presença no mundo envolvidos pela curiosidade e o desejo da descoberta por terrae incognitae (WRIGHT, 2014), utilizavam a observação e a descrição como procedimentos fundamentais na condução da leitura e interpretação geográfica; para a sistematização do conhecimento das leis e princípios fundamentais que regem a Terra; para compreender a relação do todo e das partes; para situar a conexidade dos fenômenos.

No período clássico da ciência geográfica, Gomes (1996) identificou a dualidade de polos epistemológicos na construção científica da disciplina. Com ênfase na corrente do racionalismo, pautada na lógica que se utilizava da mediação, do cálculo e da análise para explicar os fenômenos. Entretanto, as contracorrentes da Filosofia da Natureza, o Romantismo, a Hermenêutica e a Fenomenologia também ressoaram na constituição da disciplina. De modo que apesar do discurso moderno e científico transpassa-los, o trabalho dos geógrafos demostrava uma busca pela complementação entre razão e sensibilidade.

Nas obras de Alexander Von Humbolt e Vidal de La Blache a construção de um pensar e fazer geográfico esteve voltado ao conhecimento científico com a intenção de edificar a unidade da ciência. Em seus trabalhos evidencia-se a preocupação com a lógica, ao mesmo tempo em que são tomados por afetações provenientes do contato em campo. Observar e descrever, decifrar os arranjos e fisionomias das paisagens são as ações e

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23 atitudes adotadas. As finalidades que revestiam esse olhar estavam envoltas em análises e sínteses, visto que para explicar geograficamente as conexões entre as partes faz-se necessário uma visão do todo. Tais análises explicitam, sobretudo, uma das questões chaves da Geografia: o Lugar onde se posicionam e localizam os fenômenos.

Em um período de viagens e expedições ao redor do mundo, o naturalista Humboldt partiu em expedições científicas, dedicando-se a descrever os diversos arranjos da natureza. Realizou suas observações com o devido rigor, ao contemplar a harmonia dos elementos, especialmente a conexão entre os organismos terrestre e os fenômenos físicos. Em seu trabalho esclarece “ao lado do prazer que exala da simples contemplação da natureza, está o gozo que nasce do conhecimento das leis e encadeamento desses fenômenos” (HUMBOLDT, 1848, p.16, apud GOMES, 2017, p.65)

Tais observações se concretizavam na criação de Quadros Geográficos, inspirados nas representações pictóricas. Humboldt acreditava que o geógrafo deveria descrever a terra, pintar o mundo geograficamente, produzir imagens em um pequeno quadro como faziam os pintores. Ao contemplar o ambiente ou suas representações as conexões poderiam então ser reveladas, ao descrever os elementos constituintes dos lugares, bem como tocar o espírito e a imaginação através das imagens. Em suas obras há um discurso racional e ao mesmo tempo poético, com atenção a descrição dos fenômenos físicos, botânicos e humanos. A ideia preconizada nos Quadros Geográficos pode ser compreendida como um dos constituintes básicos da ideia de paisagem, segundo Gomes “a noção de quadro foi fundamental para Geografia como forma de pensá-la, construí-la e de apresentá-la” (GOMES, 2017, p.55).

No final do século XIX, Vidal La Blache foi um dos principais geógrafos envolvidos na institucionalização e manutenção de um status moderno e científico a disciplina. O autor admitiu a unidade terrestre como um todo, onde os fenômenos interagem e manifestam a diversidade das relações entre os grupos humanos e o meio na formulação dos gêneros de vida.

Apesar do rigor e das preocupações científicas permearem sei trabalho, acreditava na existência de um espírito geográfico precedente ao período das explorações nas viagens continentais e marinhas, reafirmando a força da geografia que se realiza pelo mundo:

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24 A geografia se interroga sobre o meio de explicar as diferenças de fisionomia apresentadas pelas regiões. Eu acreditaria, de bom grado, que essas diferenças (provenientes do espetáculo que a terra expõe aos nossos olhos) são o princípio mesmo da curiosidade que despertou a origem do instinto geográfico. Desde que o homem, superando o círculo estreito em que toda a curiosidade se enfraquecia, pôde comparar outros lugares ao seu, sua atenção encontrou novo alimento; seu espírito, objeto de interrogação [...] É a sensação dessas diversidades que desperta, pode-se dizer, o geógrafo que dorme em cada um de nós. (LA BLACHE, 2012b, p.80)

A curiosidade despertaria o interesse, o desejo por interpretar a diversidade do mundo. A paisagem seria o primeiro acesso na análise dos elementos e dos aspectos heterogêneos em interação a compor as ruínas do passado e as permanências do presente na leitura visual da paisagem, levando a construção de sínteses ao identificar no todo o encadeamento dos elementos que refletiriam acima de tudo a presença do homem enquanto parte integrante da paisagem, humanizando-a e modificando-a (LA BLACHE, 2012a).

Segundo La Blache (2012a) diante da contemplação o geógrafo perceberá a paisagem a se dispersar pela ação impiedosa do tempo, assim como pela ação dos homens a modificar os ambientes de existência. No movimento dos fenômenos, os constantes rearranjos do espaço geográfico, lembra-nos das forças dos homens capazes de remodelar estruturas, construir novas, produzir objetos e formas próprias ao habitar. A cidade como obra do homem é uma das principais expressões do poder que exerce na transformação do espaço geográfico.

La Blache destaca o estudo dos estabelecimentos humanos, elementos de fixidez nas relações geográficas, pontos de apoio das alterações que o homem produz sobre o meio. Dentre as obras ressalta as vias de comunicação e as redes de estradas na manutenção das relações entre os lugares. A transitoriedade do habitar, nas constantes mudanças na sociedade, repercute no espaço da vida. Formas, funções, objetos, ações se tramam produzindo paisagens, a se dispersar a cada novo movimento, algumas mantendo cicatrizes, outras totalmente reconfiguradas.

Das contribuições de Humbolt e La Blache destaca-se o forte valor atribuído à observação dos elementos e descrição dos fenômenos contemplados. Especialmente da sensibilidade do olhar do geógrafo transpondo os arranjos e fisionomias da natureza numa linguagem concreta e qualitativa que liga o detalhe ao todo. Dardel (2011, p.3) aproxima a linguagem do geógrafo à do poeta e do artista, “linguagem direta, transparente, que

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25 ‘fala’ sem dificuldade a imaginação, bem melhor, sem dúvida que o discurso ‘objetivo’ do erudito, porque ela transcreve fielmente o texto traçado sobre o solo”. Tal aproximação preenche de vivacidade as narrativas ou as representações imagéticas sobre a Terra evoca ao leitor a natureza dos fenômenos observados.

Entretanto, o legado destes geógrafos subverteu-se a uma interpretação meramente racional pela crescente preocupação com a legitimidade do conhecimento científico, especialmente com o avanço do neopositivismo nas décadas de 1950 do século XX, interferindo nas formas de fazer geografia ao priorizar análises espaciais e quantitativas. Durante décadas a curiosidade proveniente das experiências geográficas, a bagagem de viagens, vivências, afetações foram deixadas a margem. Porém nos movimentos de crise e crítica próprios a ciência moderna, a renovação do horizonte humanista na geografia rompeu com ideias positivistas e conservadoras, encontrando no retorno ao humanismo, a complexidade cultural e antropológica para construção de um entendimento sobre o mundo (GOMES, 1996).

A irrupção das filosofias do significado, especialmente da corrente existencialista da Fenomenologia, sensibilizou os geógrafos inconformados a ver apenas os aspectos objetivos e quantificáveis de um espaço geométrico, amorfo a presença do ser, por aqueles que percebiam na experiência um rico campo de revelação dos significados nas relações entre os sujeitos e o espaço. Contribuiu com a renovação de formas de pensar e fazer geografia, ao propor uma leitura e interpretação do espaço geográfico sob a perspectiva da experiência (CLAVAL, 2011; CORRÊA, 2003). Assumiu-se uma atitude mais aberta na definição dos objetos, na escolha dos métodos e nos campos de pesquisa, ampliando o horizonte humanista, explorando terras incógnitas das geografias do ordinário, do corpo, do cotidiano, das relações pessoais, dos conhecimentos e habilidades desenvolvidos na vivência.

Ideias, intenções e ações envolvem Fenomenologia e Geografia. Ambas buscam as estruturas essenciais da experiência humana no mundo vivido. Entre suas afinidades está o retorno a uma visão primeira do mundo, anterior a ciência, inscrita na dimensão do vivido e do percebido, do corpo ao ser-e-estar-no-mundo:

É preciso que o pensamento de ciência – pensamento de sobrevoo, pensamento do objeto em geral – torne a se colocar num “há” prévio, na paisagem, no solo do mundo sensível e do mundo trabalhado tais como são em nossa vida, por nosso corpo [...] esse corpo atual que

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26 chamo meu, a sentinela que se posta silenciosamente sob minhas palavras e sob meus atos. (MERLEAU-PONTY, 2004, p.14)

A Fenomenologia é uma filosofia para o qual o mundo já está sempre “ali”, antes da reflexão, como uma presença inalienável. Trata-se de um esforço contínuo de aproximação ao mundo vivido que se apresenta aos sujeitos no deslocamento do corpo pelo espaço, na “busca as coisas mesmas” constituídas a partir das experiências. No movimento em direção ao fenômeno tal como se apresenta no real, em sua facticidade, com vistas a reencontrar um contato ingênuo com o mundo, para dar-lhe um estatuto filosófico (MERLEAU-PONTY, 1996).

Uma dimensão sensível se faz na obra “Fenomenologia da Percepção” de Merleau-Ponty (1996) que ao desmistificar os prejuízos clássicos sobre a percepção, define que somos corpo no mundo, já que as percepções partem da atitude corpórea, do ser ao mover-se. O que faz com que a espacialidade ganhe sentidos a partir da corporeidade:

A experiência revela sob o espaço objetivo, no qual finalmente o corpo toma lugar, uma espacialidade primordial da qual a primeira é apenas o invólucro e que se confunde com o próprio ser corpo. Ser-corpo é estar atado a um certo mundo, nosso corpo não está primeiramente no espaço: ele é no espaço. (MERLEAU-PONTY, p.205, 1996)

Aliado as percepções estão as sensações que se abrem aos canais sensoriais e sinestésicos, toda sensação é espacial “enquanto contato primordial com o ser, enquanto retomada pelo sujeito que sente, de uma forma de existência indicada pelo sensível, ela própria é constitutiva de um meio de experiência, quer dizer, de um espaço. ” (MERLEAU-PONTY, p. 295, 1996).

Nóbrega (2008) esclarece que na concepção fenomenológica da percepção a apreensão do sentido ou dos sentidos se faz pelo corpo, tratando-se de uma expressão criadora, a partir dos diferentes olhares sobre o mundo. O corpo produz sentidos mediante os acontecimentos advindos da existência. A corporeidade, por sua vez, passa a ser um motivador dos encontros, pela ação de deslocar, pôr o corpo em movimento, do contato com a paisagem emergem os significados construídos ao sentir e perceber objetos e substâncias do mundo.

A descoberta e revelação dos fenômenos se empreende a partir da experiência, uma aproximação se realiza a partir da arqueologia fenomenológica (MARANDOLA JR, 2005) entendida como uma escavação dos seus elementos constitutivos a partir das

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27 operações sensoriais e perceptivas que formam o mundo da experiência. A procura do sentido original ou do conhecimento intuitivo.

Ao acessar o mundo da experiência, enquanto pesquisadores, estamos nele implicados e dele não podemos nos abster. Há de se realizar a redução fenomenológica, ou seja, suspender-se do movimento de relação com o mundo, tomar certa distância para romper com a familiaridade, livrar-se de concepções e predicações. A intenção é fazer o mundo aparecer tal como é antes de qualquer retorno sobre si, colocando-se na posição daqueles que experienciam os fenômenos, estabelecendo um diálogo com a subjetividade do pesquisador e a intersubjetividade dos sujeitos.

A reflexão não se retira do mundo em direção a unidade da consciência enquanto fundamento do mundo; ela toma distância para ver brotar as transcendências, ela distende os fios intencionais que nos ligam ao mundo para faze-las aparecer, ela só é consciência do mundo porque o revela como estranho e paradoxal (MERLEAU-PONTY, 1996, p. 10) Sabendo da impossibilidade de mergulhar na experiência do outro, a redução fenomenológica oferece condições ao pesquisador de descrever a experiência, sabendo que essa atitude será sempre incompleta, pela insuficiência da linguagem e da ausência da experiência. A descrição, por sua vez, é uma estratégia para se posicionar o mais próximo do real vivido. A fenomenologia trata-se de descrever e não de explicar, de revelar os fenômenos em sua facticidade para compreender o modo como se desdobram as experiências, como transparecem na interseção com o mundo, consigo e com o outro, para assim conceber suas relações.

Tais procedimentos almejam acessar a realidade no envolvimento do ser-no-mundo com os outros imergindo na intersubjetividade do ser-no-mundo vivido. A atitude fenomenológica se desdobra nas ações do pesquisador, de modo que admitimos nossa posição enquanto passageira-caminhante-observadora. Das percepções individuais às percepções coletivas compõem ricos dados das experiências de mobilidade nas trajetórias dos ônibus pela cidade.

As intenções da Fenomenologia se unem as intenções próprias da Geografia, ambas estão envoltas pela sensibilidade e curiosidade atribuídas ao corpo na diluição entre sujeito e objeto a interpretar o mundo vivido. Edward Relph um dos principais geógrafos que contribuiu com a renovação da geografia sob inspiração fenomenológica declarou: “A ciência geográfica tem uma base fenomenológica que deriva de uma consciência geográfica” (RELPH, 1979, p. 2). Sua afirmação parte da reflexão da obra de

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28 Eric Dardel que reforça o clássico enunciado fundamental: a Geografia trata das relações do Homem com a Terra. Este desenha uma geografia interior que trata dos interesses do homem, suas inquietações, afetividades, imaginações. Daqueles que ao habitar a Terra, enraízam-se e constroem o espaço de vida.

Por opor-se a redução da geografia como mera disciplina científica, ao ser publicada em meados da década de 50, durante o período teorético, a obra de Dardel permaneceu as margens do pensamento geográfico. Foi com a renovação do horizonte humanista que enfim recebeu a devida importância. Sobre Dardel, Besse (2014, p. 112) diz “a diversidade de seus interesses o conduzem a ver a geografia do ponto de vista geral de uma reflexão sobre as atitudes humanas no mundo”.

A base de uma fenomenologia geográfica encontra na dimensão espacial da existência uma geografia original, em ato, desenvolvida ao frequentar o mundo, afinal:

A geografia não é, de início, um conhecimento; a realidade geográfica não é, então, um “objeto”, o espaço geográfico não é um espaço em branco a ser preenchido com cores. A ciência geográfica pressupõe que o mundo seja conhecido geograficamente, que o homem se sinta e se saiba ligado a Terra como ser chamado a se realizar em sua condição terrestre. (DARDEL, 2011, p.33).

Conhecer o mundo envolve necessariamente as experiências vividas nos lugares, nos caminhos e direções, formas e objetos. Uma geograficidade transpassa o corpo na relação concreta entre o Homem a Terra como modo de sua existência e seu destino (DARDEL, 2011). Ocupa uma centralidade nas experiências, diz respeito a forma pelas quais conhecemos e sentimos os ambientes, em um relacionamento íntimo construído e reconstruído no contato com o mundo.

Seja na sensação motivada por um cheiro, a contemplação da beleza de um pôr do sol, na irritação do ir e vir cotidiano. O que faz com que a geograficidade seja mais vivida do que expressa. Esta se refere segundo Relph (1979) a base consciente e pré-conceitual da geografia fenomenológica. Verificada na cumplicidade e nas condutas dos corpos, dos hábitos, pensamentos e emoções, coloridos com as tonalidades da realidade geográfica, a convidar o homem a um tipo de animação, de fisionomia que ele revê sua existência.

A realidade geográfica assume dimensões espaciais, práticas e simbólicas dos lugares onde o homem desfruta de sua vida e do seu trabalho. Exige uma adesão total do sujeito ao espaço através de sua vida afetiva. Na interpretação de Dardel o espaço, sempre

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29 em movimento, assume texturas e substâncias, de solidez e de profundidade, cambiantes no decorrer do tempo.

A dimensão material se refere à apropriação do espaço pelo homem, por meio das técnicas aperfeiçoadas pela necessidade de fixidez e de mobilidade, essenciais a existência humana, que dispõe e estrutura materialidades para habitar e prover a comunicação entre os lugares. As estradas, por exemplo, são obras edificadas que indicam direções e diminuem distâncias, suscitam sentidos e significados nos caminhos.

As substâncias do espaço telúrico tocam o desejo, o sonho e a imaginação ao promover o encantamento: “é como se a feição da Terra respondesse a nossa mobilidade inquieta que espera que o mundo se anime, se dobre, se mova sobre nossos olhos” (DARDEL, 2011, p.18). O telurismo parte de um enraizamento, de uma intimidade expressa nas afetações proporcionadas ao encontro sensível. O que leva Dardel (2011, p. 26) a afirmar que “a geografia autoriza uma fenomenologia do espaço, que dá e responde, um espaço generoso e vivo diante de nós. ”

As obras do homem refletem os diversos e singulares modos de habitar do espaço construído. Uma das principais expressões são as cidades, nas tessituras do espaço urbano, condutas e hábitos instituem um modo de vida. Na contemporaneidade as reverberações do espaço urbano estão presentes no corpo, nas paisagens, no cotidiano. Vemos isto nas relações funcionais em detrimento das relações afetivas, estabelecidas entre os citadinos impacientes, cansados das repetições e limitações impostas pela vida urbana.

Refletir acerca da realidade geográfica, particularmente a uma geograficidade urbana traz à discussão as afetações dos sujeitos em um mundo dotado de complexidade e ambiguidades, expresso especialmente nas ruas das cidades:

A rua como centro e quadro da vida cotidiana, onde o homem é passante, habitante, artesão; elemento constitutivo e permanente, as vezes quase inconsciente, na visão de mundo e no desamparo do homem; realidade concreta, imediata, que faz do citadino “um homem da rua”, um homem diante dos outros, sob o olhar de outrem, “público” no sentido original da palavra (DARDEL, 2011, p.28)

Nas ruas os movimentos cotidianos se realizam, a mobilidade dos sujeitos através dos ônibus os encaminha para o encontro com as paisagens que manifesta o movimento interno do mundo em suas dimensões estéticas, simbólicas e experienciais. Pensar numa geograficidade urbana se enlaça a compreensão sobre o modo como o fenômeno do

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30 movimento cotidiano se interioriza nas atitudes e experiências dos sujeitos ao conhecer a cidade nas trajetórias dos ônibus; se exterioriza na composição das paisagens, constantemente a se dispersar, sendo percebidas de modo tão efêmero no ir e vir entre os lugares.

Na paisagem os elementos da realidade geográfica interagem. Ao compreendê-la como tudo “o que está em torno do homem, como ambiente terrestre” (DARDEL, 2011, p.30), no contato direto, num movimento unificado em torno de uma tonalidade afetiva dominante que pressupõe afeições e sentimentos construídos na existência: “Ela coloca em questão a totalidade do ser humano, suas ligações existenciais com a Terra, ou, se preferimos, sua geograficidade original: a terra como lugar, base e meio de sua realização. ” (DARDEL, 2011, p. 31).

A paisagem entendida como expressão fiel da existência, não limitando-se a expressão, e sim como abertura da possibilidade e do movimento. Do mesmo modo que La Blache, Dardel afirma que através da paisagem o homem toma consciência que habita a Terra. As temporalidades se dispersam nos arranjos do espaço, que por sua vez, dão a ver coexistências e novidades a compor paisagens.

Na realidade geográfica as percepções e sensações partem de uma base material, espacial e física. De modo que toda percepção é espacial e não existe percepção sem espaço, já que este não é um simples meio onde os objetos se dispõem (MERLEAU-PONTY, 1996). Sendo assim, a paisagem do ponto de vista fenomenológico está entre o ver, o sentir e o ser, envolto nos aspectos materiais e simbólicos, nas sensibilidades e subjetividades se realizam pelo mundo, na apreensão daqueles que percebem os arranjos e fisionomias das paisagens.

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31 1.2 O encontro com a Paisagem

As paisagens percebidas pelos sujeitos em suas trajetórias oferecem um dos percursos para a decifração da experiência do habitar citadino e suas relações espaciais. O olhar em deslocamento cria pausas, captura detalhes e fragmentos, estabelece marcos relativos ao ponto de vista de observação, bem como as afetações subjetivas.

As percepções estão intrinsecamente relacionadas à forma como se organizam espacialmente os objetos numa trama, sobretudo os aspectos materiais e espaciais, que os tornam legíveis oferecendo visibilidade ou a invisibilidade na composição de uma cena. Somente um vocabulário afetivo possibilita o desdobramento das afetações proporcionadas pela experiência paisagística, articulando formas de dizer sobre o vivido. Para observar, descrever e interpretá-las adentramos nas dimensões relacionais do estético, que se refere à sensibilidade e afetações do corpo ao que percebe na paisagem, nos enquadramentos das janelas dos ônibus; do simbólico, nos objetos e formas advindo das apropriações e interações da ação do homem no espaço e por consequência na paisagem; experiencial, do encontro do ser no mundo nas vivências cotidianas.

A linguagem poética e literária de Fernando Pessoa nos ajuda a pensar sobre os encontros, ao entender por paisagem tudo o que forma o mundo num determinado momento de nossa percepção. Duas paisagens se justapõem no mundo interior dos pensamentos, humores e emoções cotidianas, os sujeitos apreendem as formas e cenas em exposição. Há uma reversibilidade e entrega do olhar, Pessoa (2002, p.1) nos diz:

Todo o estado de alma é uma passagem. Isto é, todo o estado de alma é não só representável por uma paisagem, mas verdadeiramente uma paisagem. Há em nós um espaço interior onde a matéria da nossa vida física se agita. Assim uma tristeza é um lago morto dentro de nós, uma alegria um dia de sol no nosso espírito. E — mesmo que se não queira admitir que todo o estado de alma é uma paisagem — pode ao menos admitir-se que todo o estado de alma se pode representar por uma paisagem. Se eu disser “Há sol nos meus pensamentos”, ninguém compreenderá que os meus pensamentos são tristes.

A profusão do estado de alma faz parte da experiência com a paisagem, evocam, sobretudo, uma polissensoriedade repleta de sonoridades e texturas, cheiros e sabores que vão além do mero elemento visual circunscrito ao olhar. Tocam o corpo. As diversas afetações conduzem as essências aos significados da experiência para os sujeitos. O que

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32 faz com que a paisagem não exista em si, apenas em relação ao pensamento derivado numa dimensão da apropriação sensível do mundo.

O conceito de paisagem na geografia é uma tradição, como tal se realiza enquanto discurso e principalmente como representação (MACIEL, 2001). Traz em seus princípios a ordem da imagem pela necessidade de apresentar os lugares. Possui uma polissemia de definições constituídas na diversidade de campos científicos que nela encontraram um modo de ver e representar o real. A História, Arte, Arquitetura, Filosofia traçaram um percurso teórico com associações às concepções de natureza, aos produtos materiais da cultura, aos jardins, ao projeto. Com larga expressão nas representações literárias, artísticas, cartográficas (BESSE, 2014).

Sobre a problemática paisagística, Besse (2014) anuncia as cinco portas de entrada ao conceito de paisagem: considerada como uma representação cultural; território produzido pelas sociedades; complexo sistêmico; espaço de experiências sensíveis; local ou contexto de projeto. Cada porta expressa uma forma de compreender, assim como um rebatimento no pensamento e interpretação geográfica, durante os processos de construção e renovação da ciência.

Como vimos, a arte de interpretar a paisagem através de um exercício do olhar movido pela observação, contemplação e descrição, se mostrou como um dos acessos originários a decifração do texto inscrito na superfície da Terra. Na contemporaneidade, sobretudo numa perspectiva fenomenológica, a interpretação geográfica compreende:

A paisagem é, antes de tudo, uma experiência. Mas, no sentido geral, essa experiência paisagística, ou melhor dizendo, essa paisagem que se apresenta como experiência só remete, para o ser humano, a certa maneira de estar no mundo e ser atravessado por ele. (BESSE, p.47, 2006)

As ruas convidam a corporeidade e a espacialidade nas trajetórias cotidianas. Em contato direto e indireto no mundo, nos enquadramentos das janelas dos ônibus, as composições espaciais se expõem, proporcionam sensações e emoções na repetição cotidiana onde “nada de novo” parece romper com o “mais do mesmo”. Desvendar as afetações provenientes do encontro com a paisagem nos diz sobre as experiências de mobilidade dos sujeitos no espaço apreendidas em contextos de fluxos e passagens.

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33 A construção teórica da paisagem nos encaminha aos modos pelos quais as leituras e interpretações colaboram com um dizer sobre a realidade, envolto na complexidade e ambiguidades que constituem o espaço geográfico e se ramificam na paisagem.

As raízes da paisagem estiveram vinculadas à arte, nas representações pictóricas preconizadas a partir do Renascimento. A pintura construiu imagens sobre o mundo a partir dos olhares e da produção dos pintores que ao contemplarem os arranjos da natureza assumiram um compromisso de descrever a realidade ou a ordem do mundo pelas imagens. O enquadramento adotado pela pintura delimitou o dentro e o fora; depois, a técnica da perspectiva ofereceu distanciamento, ao intervir nos pontos de vista de observação. Cauquelin (2007) evidencia que a janela interpõe olhares, entre sua forma e nós, colaborando com um modo de ver.

A questão da pintura depende disso: ela projeta diante de nós um ‘plano’, uma forma a qual se cola a percepção; vemos em perspectiva, vemos quadros, não vemos nem podemos ver se não de acordo com regras artificiais estabelecidas em um momento preciso, aquele no qual, com a perspectiva, nascem a questão da pintura e da paisagem. (2007, p. 79).

A representação pictórica culminou na invenção da paisagem ao estabelecer uma ordem da visão, ao expor a realidade em enquadramentos, o que tornou visível a harmonia da natureza e a presença do homem. Contribuiu não apenas com os movimentos artísticos-culturais, como também na apreensão do mundo pelas imagens ao conformar esquemas mentais, a ponto de Cauquelin (2007, p.77) questionar-se “como pode ocorrer que, em um domínio tão restrito – tela, madeira, parede, cores – aquilo que os pintores da Renascença fabricaram tenha se tornado a própria escrita de nossa percepção visual? ”.

Paisagens passaram a ser representadas em suportes diversos por pintores que partilhavam o desejo de colaboração com o real2, almejavam transpor em tela os arranjos dos objetos e da natureza servindo-lhes de guia ao olhar3; as imagens em narrativas

contidas no relatos das lembranças de um sonho4; das viagens nos cenários da

2 Segundo Berger (2004) o impulso do pintor não nasce da observação, tampouco da alma, e sim do

encontro entre pintor e objeto.

3 Como não lembrar dos vapores do céu nas obras de Claude Lorrain a guiar o olhar de Goethe durante sua

viagem à Itália. Nos quadros do pintor, o escritor-viajante reencontrava a fisionomia particular da paisagem, na atmosfera do céu sob efeitos de sombra e luz produziam a umidade, as cores e tonalidades particulares (BESSE, 2006).

4 O relato do sonho de um Jardim tão perfeito da mãe de Anne Cauquelin (2007) emerge da constituição

ilusória por meio da retórica, suscita reflexões acerca da linguagem do relato de histórias e das memórias, dos sonhos e desejos expressos em palavras, na fala ao outro, atuam livremente na imaginação que toma de

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34 imaginação5. Seja de imagens ou relatos a composição dos objetos visíveis e invisíveis na paisagem tecem narrativas sobre o mundo.

A geografia trouxe para si os elementos da pintura com a intenção de descrever a Terra num pequeno quadro como faziam os pintores. Ambos desenvolveram a arte de leitura visual dos signos que constituem a qualidade própria de uma paisagem. Ambos descobriram na fixidez da representação imagética um modo de dizer sobre o real. De modo que no período clássico da ciência geográfica o vocabulário adotado pela pintura era o mesmo dos cartógrafos (BESSE, 2006). A ordem da imagem se inseriu na leitura e a interpretação do real pela necessidade de registrar o que se vê. Pinturas e mapas foram suportes que historicamente apresentaram a imagem do mundo com seus elementos naturais e artificiais.

A pintura estabeleceu pela técnica da perspectiva um modo de ver, afetando significativamente a maneira pela qual olhamos e percebemos o mundo, o que fez da paisagem uma construção cultural (CAUQUELIN, 2007). Ao mesmo tempo em que possui um conteúdo iconográfico, é produzida pelo homem, e suas obras e impressões são permeadas por simbolismos.

A dimensão estética se apresenta como primeiro acesso, por ser relativo a sensibilidade, à percepção que se dá pelos sentidos, a abertura para ver a trama espacial envolvidos nas narrativas sobre os lugares, interpretados a luz da experiência na relação estabelecida entre os sujeitos com a cidade mediada pelas rotas dos ônibus. As trajetórias revelam a multiplicidade de cores, usos, atividades que conformam o espaço e a paisagem urbana. Qualificada como tal possui uma construção marcante, “ali tudo é moldura e enquadramento, jogos de sombra e luz, clareira de encruzilhadas e sendas tortuosas, avenidas do olhar e desregramento dos sentidos” (CAUQUELIN, 2007, p.150).

Anterior a qualquer dizer sobre as paisagens, a qualquer forma de representação, está o encontro do corpo no espaço, na realidade vivida com todas as tonalidades e sensações (MERLEAU-PONTY, 2004). Durante as trajetórias, a mobilidade como parte imprescindível da vida na cidade constrói nos sujeitos, percepções e imagens das cenas expostas nas ruas. A realidade assim como um rio, flui sempre mutável, apenas

5 Nos encontros entre Marco Polo e Kublai Klan (CALVINO, 1990) conduzem a imaginação do imperador

sobre o seu vasto império, ao ouvir os relatos do seu mais aventureiro explorador descobre as razões invisíveis pelas quais existem as cidades em seu tempestuoso império.

Referências

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