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Os ônibus inseridos nas teias da mobilidade urbana oferecem por suas rotas o encontro as paisagens, desempenhando um papel central na relação estabelecida entre os citadinos e a cidade. Estes interferem não apenas sobre os meios de deslocamento pelo espaço, mas também no modo em que as pessoas o vivem, o percebem, o imaginam. Dimensões relacionais do construído e do vivido se apresentam nas rotas dos ônibus produzidas e definidas pelo espaço. Nelas os sujeitos são afetados pela forma como se estruturam as vias e os objetos da mobilidade.

O conceito de mobilidade também possui uma polissemia de definições que propiciam leituras e interpretações das interações no espaço de circulação, relacionadas as práticas espaciais de deslocamento. Possui abordagens políticas no que se refere aos movimentos migratórios; sociais acerca das condições de renda e a acessibilidade entre os grupos; cotidianas ou residenciais relacionadas aos movimentos diários; simbólica envolvida nas experiências de mobilidade. Assumem, cada vez mais, um protagonismo nos estudos sobre as cidades contemporâneas6. As discussões acerca da mobilidade são amplas, adotamos aqui a abordagem humanista para pensa-la a partir das experiências de mobilidade dos sujeitos no espaço.

6 Há expressivos estudos sobre a mobilidade urbana que discutem seu papel na análise das técnicas da

circulação urbana, na agenda do desenvolvimento e planejamento urbano, os significados da mobilidade na construção de uma cidade democrática nas lutas do direito à cidade, na relação entre mobilidade e imobilidade social, a gestão dos deslocamentos e o fortalecimento dos espaços públicos. (BALBIM, 2016; VASCONCELOS, 2001; 2005; ARDILA PINTO, PARENTE, 2016).

39 Mobilidade é própria a existência humana. Viver é permanecer em movimento, pelo espaço, entre os lugares. Aliado a necessidade de fixidez está a necessidade de mobilidade, afinal o espaço só pode ser experienciado na medida em que há lugares para se mover (TUAN, 2013).

As cidades enquanto expressão dos processos de urbanização trazem na raiz do seu crescimento a preocupação com a mobilidade. O avanço das técnicas aplicadas aos transportes e a comunicação resultou na formação de redes e conexões para promover articulações espaciais. As exigências de fluidez na modernidade ritmadas por um tempo veloz buscam encurtar as distâncias entre os lugares. A compressão do espaço-tempo (HARVEY, 2004) imprimiu múltiplas formas, processos e usos no espaço urbano para induzir os citadinos aos deslocamentos e as experiências cada vez efêmeras na cidade.

Um ritmo acelerado permeia a mobilidade com a sucessão de cenas, lugares, pessoas. Augé (2010, p.29) explicita: “Sob suas formas atuais, a urbanização estabelece, com efeito, a multiplicação dos pontos cegos, ou, se quisermos, ela cega o olhar dos habitantes da cidade. ”. No ir e vir o contato com a cidade se dá de modo fugaz e funcional.

Movimento é a ideia básica da mobilidade. Entretanto, Cresswell (2010) evidencia que os termos movimento e mobilidade não são sinônimos, o primeiro se restringe ao ato do deslocamento, direcionado por uma base material que organiza e dispõe os fluxos; o segundo envolve a produção de representações e significados a partir das experiências proporcionadas pelo deslocamento. Esta proposição reafirma o estabelecimento da mobilidade como relação social, abrangendo as estruturas, os meios, a experiência e os significados. O conteúdo da viagem no entrecruzamento entre espaço, tempo e lugares, ou seja, nas trajetórias (MASSEY, 2009) devem ser exploradas, pois possibilitam práticas espaciais, interações, visibilidades e acima de tudo são carregadas de significados (CRESSWELL, 2010).

Cresswell (2010) elucida três elementos relacionais na leitura e interpretação da mobilidade: 1) Como realidade empírica, passível de ser observada, mensurada e analisada, onde o foco está no movimento das pessoas entre os lugares; 2) Representações da mobilidade através da produção de significados, nos simbolismos que envolvem o deslocamento; 3) Mobilidade enquanto experiência que envolve a corporeidade do ser e estar no mundo.

40 Estes elementos estão imbricados nas práticas de mobilidade, a considerar que os movimentos se realizam a partir de uma base física que articula os lugares, conduzindo os deslocamentos pelas materialidades como as vias, corredores e/ou faixas exclusivas, viadutos e pontes. A escolha e uso do ônibus estabelece uma relação entre sujeito e a cidade, por meio das rotas e linhas. Entre idas e vindas trajetórias são construídas, ligam- se intimamente ao ver, pensar e produzir significados a partir de uma experiência no ônibus, nos contextos de fluxos e passagens narrativas são tecidas dentro e fora dos ônibus.

Os passageiros se colocam em uma posição de espectadores passivos e ativos, do corpo que se movimenta e ao mesmo tempo permanece em estado de pausa enquanto o ônibus os conduz por diversos lugares. Ao manter uma relação de proximidade e distanciamento nas trajetórias dos ônibus, conhecimentos e habilidades espaciais são apreendidos em deslocamento aos destinos, atividades e itinerários. Mapeamos a cidade a partir da vivência dos lugares de modo que a ação no mundo constrói em cada citadino uma cidade afetiva, subjetiva e simbólica.

As disposições espaciais das materialidades interferem diretamente nas experiências de mobilidade, e consequentemente, reverberam nas percepções dos citadinos nos deslocamentos da periferia ao centro, de uma região a outra. Sabendo que o modo como nos movemos diz muito sobre o que vemos, pensar sobre mobilidade por uma perspectiva humanista nos encaminha para conhecer e apreender os lugares em movimento:

Os movimentos frequentemente são dirigidos para, ou repelidos por, objetos e lugares. Por isso o espaço pode ser experienciado de várias maneiras: como a localização relativa de objetos ou lugares, como as distâncias e extensões que separam ou ligam os lugares, e – mais abstratamente – como a área definida por uma rede de lugares. (TUAN, 2013, p.22)

O lugar enquanto centro de significado (RELPH, 1979), oferece as bases da existência humana (DARDEL, 2011) tecendo fortes conexões com o espaço e a paisagem. Para Tuan (2013, p.14) “se pensamos o espaço como algo que permite movimento, então lugar é pausa, cada pausa torna possível que localização se transforme em lugar”. Os sujeitos, no âmbito das trajetórias cotidianas, experimentam essas pausas dos ônibus, nos cruzamentos e semáforos que cortam as avenidas. Nesses breves momentos, de desacelerar a velocidade permite a identificação e reconhecimento de objetos e lugares, que podem suscitar sensações de medo, insegurança, conforto, bem-estar, alegria, tristeza.

41 O espaço indiferenciado, definido nas rotas pode se transformar durantes as trajetórias, em lugar.

O tempo vivido de modo efêmero se mistura aos lugares, as experiências e a mobilidade. Nos deslocamentos de ônibus o sujeito vai treinando o olhar para as pausas previsíveis, das cenas que se repetem no caminho. A paisagem combina elementos que se repetem num campo de visualidade e enquadramento, considerando a janela de ônibus. Permanência e previsibilidade parecem ser, em princípio, desencadeadores das afetividades e reconhecimentos que os lugares de passagem permitem. Segundo Relph (1979) é enganoso sugerir que para qualquer pessoa a fixação e a duração da permanência sejam os únicos modos de determinar um lugar.

Não há, entretanto, simples generalizações que possam ser feitas sobre os modos pelos quais as pessoas se relacionam com o lugar ou, o que é mais importante, aos lugares. Os lugares que conhecemos e gostamos são todos lugares únicos e suas particularidades são determinadas por suas paisagens e espaços individuais e por nosso cuidado e responsabilidade, ou ainda pelo nosso desgosto. (RELPH, 1979, p.16) As pausas em movimento dos ônibus, o encontro com a paisagem constitui um sentido de lugar, no entanto, o corpo ao mover-se pelas estruturas da mobilidade por meio dos ônibus percebe, reconhece e marca-os em seus mapeamentos. De modo que, as rotas dos ônibus inseridos na mobilidade constituem uma potência estruturante para a paisagem, transbordam a geograficidade, o conhecimento e habilidades espaciais desenvolvidas no cotidiano.

Explorar o fenômeno do movimento cotidiano no espaço em uma perspectiva fenomenológica é o que propõe Seamon (2013, p. 5), entendendo por movimento “qualquer deslocamento espacial do corpo ou corporalmente em parte iniciado pela pessoa”. O corpo sujeito (MERLEAU PONTY, 1996) é interpretado por Seamon como uma reciprocidade entre mente e corpo, envolvidos em atividades que os põe em movimento, acionam uma posição ativa de percepção, transformam necessidades em comportamento. Expressando-se em um agir automático, involuntário, mecânico, relacionados aos hábitos integrantes da vida dos sujeitos.

As idas e vindas pela cidade configuram coreografias do corpo pelos lugares, nas rotas dos ônibus, nas trajetórias dos sujeitos. Iniciando todos os dias com a espera no ponto de ônibus, a subida, o percurso nas linhas e rotas definidas, a chegada e descida no destino final, o retorno no mesmo percurso de volta para casa, conformam danças do

42 corpo inscrito espacialmente e temporalmente, integrando ações e comportamentos habituais.

Essas coreografias se inserem em rotinas espaço temporais praticadas nos deslocamentos pelas ruas. Os ônibus com suas linhas a percorrer as mesmas rotas colaboram com atitudes.

Em um ambiente físico que concede suporte, as rotinas espaço temporais e as danças-do-corpo dos indivíduos podem se fundir em um todo maior, criando um espaço-ambiente dinâmico chamado danças do lugar. A dança-do-lugar é uma fusão de muitas rotinas espaço temporais e danças-do-corpo em termos de lugar. (SEAMON, 2013, p.12) As danças dos lugares envolvem a mobilidade entre os lugares do mundo vivido. Segundo Brum (2017) o lugar transcende a mera condição locacional na medida em que ele abarca as interações entre os vários atores. Pensar, portanto, na experiência humana sob a perspectiva do dança-do-lugar é reconhecer que os movimentos cotidianos, realizados de maneira consciente ou não, fazem parte da construção de lugar.

Rotinas de natureza habitual são marcadas pelo desinteresse com a paisagem. Durante os percursos nada parece afetar o olhar; o corpo adormece e os sentidos se recolhem à indiferença para com a sucessão de imagens que passam pelas janelas dos ônibus. Os sujeitos evitam desprender atenção, comportamento que afeta as experiências com as paisagens, pois tudo aquilo que se impõe a percepção estrutura de modo radical ou elementar a experiência, assim como o pensamento sobre o mundo (BESSE, 2006), bem como a construção da imagem e do mapeamento nas trajetórias.

Conforme Levy (2001, p.3) “pode-se considerar que uma cidade permite até certo ponto a cada citadino fabricar a sua cidade e que, justamente, a oferta de mobilidade constitui um elemento decisivo dessa margem de liberdade”. Uma das interpretações sobre mobilidade nos é oferecida por ele, como:

A relação social ligada à mudança de lugar, isto é, como o conjunto de modalidades pelas quais os membros de uma sociedade tratam a possibilidade de eles próprios ou outros ocuparem sucessivamente vários lugares. Por esta definição, excluímos duas outras opções: aquela que reduziria a mobilidade ao mero deslocamento, eliminando assim as suas dimensões ideais e virtuais, e aquela que daria um sentido muito geral a este termo, jogando com as metáforas (tal como a mobilidade social) ou com extensões incontroladas (a comunicação, por exemplo). (LEVY, 2001, p.1)

Trata do modo como os lugares se engendram a partir das distâncias e do movimento, mediando as relações entre os sujeitos com a cidade. Para o autor, a

43 mobilidade enquanto movimento potencial é entendida como virtualidade a partir de três pontos de vista: possibilidade, competência e capital.

Para que haja a possibilidade de mobilidade são necessárias condições de acessibilidade e oferta dos transportes, no que se refere a dimensão material, ou seja, a estrutura espacial. Dela surge uma relação triangular entre o desejado, o possível e o realizado, com vistas a transformar as potencialidades de deslocamento em realidade. Para que estas se realizem é preciso haver uma competência de mobilidade, ou seja possuir meios materiais, como a renda, que podem facilitar ou dificultar o acesso aos meios de deslocamento.

O sentido da mobilidade compõe o capital social dos indivíduos, a partir das possibilidades e, sobretudo, das competências que os sujeitos dispõem para os deslocamentos. Na construção do capital social, desdobram-se estratégias no interior da sociedade, para que os sujeitos percebam, inventem e desbravem a infinidade de cidades dentro da sua cidade. Escolhe-se lugares de interesse, exclui-se outros. Aliado ao capital social estão as novas identidades móveis, que trazem o questionamento acerca das práticas e representações, usos e apropriações dos lugares envolvidos em velocidades cada vez mais fluídas do mundo contemporâneo.

Os imperativos da vida urbana envolvem a experiência dos sujeitos com seu bairro, região, lugares e paisagens. Pelas rotas dos ônibus os sujeitos se deslocam, e passam a viver e ver a cidade nos percursos das linhas. Na efemeridade das passagens, com a repetição dos percursos as paisagens parecem adquirir velocidades distintas, de modo a interferir e colaborar com um modo de experimentar a cidade, pelos corpos em deslocamento. Como relação social, a mobilidade “tem um papel fundamental na estruturação do cotidiano das pessoas, compondo sua própria essência” (MARANDOLA JR, 2008, p. 104).

Para Marandola Jr (2008), a mobilidade corresponde à morfologia do dia-a-dia, responsável por estruturar o espaço da vida em um conjunto de itinerários e lugares. Em seu trabalho de tese “Habitar em risco – mobilidade e vulnerabilidade na experiência metropolitana”, defende que as transformações na região metropolitana de Campinas, propiciadas pelo incremento da mobilidade colaboram com a alteração do significado ontológico do habitar na contemporaneidade. A mobilidade possibilita o deslocamento, ao mesmo tempo em que gera implicações nas experiências do ser e estar na metrópole,

44 resultando em vulnerabilidades e risco com a fragilização dos relacionamentos com a casa, a comunidade, as identidades territoriais. O autor traça um caminho fenomenológico de pesquisa, assumindo o ponto de vista do habitante metropolitano.

A organização espacial das materialidades no espaço de circulação se estrutura de modo funcional e utilitário, pelos objetos e normas que direcionam os sentidos dos deslocamentos, produzindo caminhos e rotas, articulando as funções e usos especializadas pelo tecido urbano. A partir de um conjunto de fixos como vias, viadutos, pontes, túneis os lugares se conectam, as distâncias diminuem, os movimentos pelo espaço se ampliam de maneira cada vez mais fluída. Os ônibus inseridos nas teias da mobilidade expõem as ruas por suas rotas e linhas, ao mesmo tempo em que estabelecem uma relação entre sujeito e a cidade.

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