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Em alguns trechos da trajetória o que chama atenção ao olhar é a curiosidade. Por vezes, aquilo posicionado para não ser visto atrai atentos olhares. Impulsionados por algo que não está completamente visível, diante do interesse sobre o habitar em condições tidas como inapropriadas, envoltas em um imaginário do medo relacionado a violência urbana.

É assim que a trajetória rumo a Região Sul, na rota via ponte de Igapó, configura- se na paisagem num jogo de invisibilidade, enredando uma narrativa sobre a insegurança, associada as moradias em área de risco, assaltos a ônibus e operações policiais, ocorridos no curto trecho da ponte de Igapó até o viaduto da Urbana no início do corredor de ônibus da avenida Bernardo Vieira.

140 Na saída da Região Norte, na fronteira do rio Potengi, encontra-se um entrave territorial marcado pela presença de uma comunidade e a recorrência de situações relacionadas ao crime, em especial aos assaltos, ao tráfico e o consumo de drogas. Lugar que desperta tensões causadas pelos relatos de situações vividas e o medo associado a um dos trechos onde a cidade se expressa de modo conflituoso tanto com a natureza quanto com seus habitantes.

Ao cruzar a ponte há no horizonte uma casa ilha formada no espaço entre a terra e o rio, com os barcos paradas durante a maré seca na lama do mangue, na maré alta navegam sob as águas (figura 49). A casa abraçada pela maré mantém o acesso à terra por uma passarela, que a liga ao conjunto de pequenas casas, construídas lado a lado, entrecobertas por árvores e materiais recicláveis, matéria-prima para o trabalho das famílias que habitam a pequena porção de terra ao lado da ponte. Olhares curiosos são lançados pelos passageiros que pelas janelas dos ônibus observam homens trabalhando com os materiais, crianças brincando com animais, famílias reunidas sentadas nas cadeiras em frente de suas casas. Ao notar essa presença marcante, muitos passageiros se questionam “Como as pessoas moram ali?” “Como a casa pode ficar ali?” “Como habitam um lugar feito para ser rio e não lar?”. A ocupação daquele espaço toca as percepções dos passageiros, sobretudo por situar-se em uma área de risco, claramente ambiental, evidentemente social. Para Jocilene, a casa ilha:

Deveria ser preservado aquele canto, não deveria ter mais nenhum tipo de construção. Eu sei que é complicado tirar pessoas que estão ali faz tempo. Eu acho que as pessoas não deveriam estar ali, deveria ser mangue de um lado e do outro. Mas é difícil, é um problema social.

Foto por Famara Lemos, 2018

141 De um lado da avenida o risco ao habitar se expõe na ocupação de uma área de mangue. Do outro lado, encoberta entre os trilhos de trem e outro trecho do manguezal está a comunidade do Mosquito que usufrui da sua posição espacial para se camuflar. A altura dos trilhos do trem e a copa das árvores encobrem o conjunto de residências que formam a comunidade. Na paisagem se expõe num primeiro momento somente um campinho de futebol com duas traves improvisadas, uma igreja evangélica, algumas pequenas casas, para em seguida somente o telhado das casas estar à vista (figura 50).

Fotos por Famara Lemos, 2018

O pouco que se vê da comunidade são apenas algumas pessoas sentadas nos trilhos, no portal de entrada. Nunca o seu interior. A posição que ocupa suscita um mistério. Redobrando a atenção e recebendo olhares curiosos, como os de Raphael:

Já me peguei várias vezes passando no ônibus e dando uma levantadinha na cabeça. Sempre tem algo acontecendo. Eu fico sacando que tem um culto rolando, pessoas jogando futebol, alguém entrando ou a galera que fica sentada nos trilhos... o cara que mora lá, ou não sei se mora, mas tá passando pela linha do trem aí depois some e você não vê mais nada.

A curiosidade sobre a comunidade, as ruas, as casas, como vivem os moradores sempre se fizeram presente nos passageiros. Porém, acontecimentos de violência urbana associados a intensificação entre 2016 e 2018 da crise da segurança no Rio Grande do Norte, com o embate de facções criminosas nos presídios e nas ruas, exigiram o reforço nas operações policiais. Sob comando de uma das facções, a comunidade inserida

142 espacialmente em uma zona de fronteira está em um ponto chave na mobilidade de Natal35.

O agravamento da violência se reverbera no sentimento de insegurança, interferindo nos olhares dos passageiros, antes curiosos sobre como se dava o habitar na comunidade para uma tensão na passagem. No relato de Débora a mudança se evidencia: “Eu olhava para o Mosquito, não com a percepção que tenho hoje, do medo”. A possibilidade de ser vítima de um crime nas proximidades da comunidade ou de presenciar alguma situação de violência, sobretudo com as operações da polícia, interferem na percepção da paisagem.

A patrulha ostensiva aparenta ser a solução para segurança pública, com a presença de viaturas e policias com armas nas mãos e fuzis a tira colo. Uma das ações recorrentes são as “revistas”, chamadas também de “baculejos”, quando os policiais param os ônibus e ordenam que os passageiros, geralmente homens, desçam para realização de procedimento de revista, situação vivenciada por Raphael:

Nessas últimas experiências o Mosquito me chamou atenção porque passei algumas vezes e tinha carro da polícia na frente. Aquela região tá se tornando muito securitária, com obsessão por segurança. Semana passada eu tomei uma revista. A polícia entrou no ônibus e pediu para todos os homens descerem e nos revistaram com força. Eu já tinha sido revistado, mas não daquele jeito como foi dessa última.

Durante o trabalho de campo, ao cruzar a ponte caminhando por essa zona de fronteira, a comunidade permaneceu um mistério. Apesar de estar fisicamente próxima não adentrei em seu interior, a barreira do possível perigo se colocou como intransponível. Toda essa situação fez minha mãe decidir ir comigo. Estar na rua só, em área de risco, na fronteira, não lhe pareceu boa ideia. Fomos juntas. Durante a caminhada, ela recordou um projeto de urbanização da comunidade do Mosquito, quando gramaram todo o morro da linha do trem, pintaram a entrada, fizeram um arranjo com plantas e material reciclável, porém a manutenção pouco durou. Seu relato me fez refletir sobre a paisagem, o cuidado com o exterior, com a imagem do lugar visto da rua em contraposição a falta de interesse na prestação de serviços básicos aos moradores da comunidade. Estes padecem de uma

35 Trânsito para e moradores fogem da Comunidade do Mosquito após tiroteio entre facções criminosas

em Natal. Matéria do portal de notícias G1 disponível em https://g1.globo.com/rn/rio-grande-do- norte/noticia/transito-para-e-moradores-fogem-da-comunidade-do-Mosquito-apos-tiroteio-entre-faccoes- criminosas-em-natal.ghtml

143 invisibilidade, relacionada aos estereótipos da marginalidade sobre quem são e onde vivem.

Assaltos, tiroteios e os boatos de arrastão ocorridos no trecho da comunidade colaboraram no agravamento da sensação de insegurança. Em novembro de 2017, os passageiros do ônibus da linha 60 – Pajuçara Mirassol, ao retornar por volta das 20h, viveram momentos de tensão. Nos relatos das passageiras Ioanna e Cazuza descrevemos as cenas ocorridas durante a tentativa de assalto.

A viagem fluía em um horário considerado tranquilo, após o pico das 17h às 19 horas. O ônibus parcialmente cheio com todas as cadeiras ocupadas seguia rumo a Região Norte. Na última parada da Avenida Bernardo Vieira um rapaz subiu no ônibus, sentou- se e aguardou a passagem pelo viaduto da Urbana, a última parada antes da ponte na Avenida Felizardo Moura. Nas proximidades da comunidade do Mosquito, ele se encaminhou para a roleta de passagem no centro do ônibus, e com uma arma em punho ameaçou o motorista e anunciou o assalto. Rapidamente ordenou que os passageiros lhes entregassem celulares e objetos de valor. Ao segurar o kindle36 da primeira passageira, a Ioanna, um homem sentado no fundo do ônibus surpreendentemente sacou uma arma e atirou no assaltante. Ao ser atingido, ele reagiu iniciando uma troca de tiros no ônibus que seguia em movimento, os passageiros tentavam se proteger, mantendo-se abaixados, na tentativa de não ser atingidos pelos projéteis disparados nas duas direções.

O assaltante baleado obrigou o motorista a parar exatamente na comunidade do Mosquito, onde um grupo de amigos o aguardavam. Cambaleante desceu do ônibus caindo morto nos braços de sua companheira. No ônibus os passageiros ficaram assustados e nervosos com a cena que acabará de ocorrer. Atordoado o motorista seguiu para unidade de pronto atendimento, com alguns dos passageiros em um estado de choque, outros feridos por estilhaços de balas ou mesmo atingidos de raspão.

Para Ioanna essa situação lhe pareceu surreal. No meio dos disparos não entendeu como nenhum dos tiros a atingiu. O homem que reagiu era um policial militar. Ele desceu no batalhão de operações espaciais na Avenida João Medeiros Filho, sem dar nenhuma explicação. Durante a conversa Ioanna refletiu sobre a existência de um código de reação, para subsidiar a ação do policial:

Eu tô ligada que não é só atirar, é uma questão de vida das pessoas que estão em risco no transporte coletivo. A ideia é não reagir, só que ele

36 Leitor de livros digitais

144 não falou nada só atirou. O cara anunciou e ele reagiu. Todo mundo no ônibus ficou questionando, mas ninguém falou nada. Eu não queria falar com uma pessoa dessa com uma arma na mão. Não me senti nenhum pouco segura, porque além de ter havido uma tentativa de assalto, havia uma outra pessoa armada dentro do ônibus.

Cazuza compartilhou a mesma posição de Ioanna. Para ela o policial não podia ter reagido, em suas palavras me disse que “preferia ser assaltada do que passar por uma situação dessa”. A tentativa de assalto acompanhado da reação do policial terminou com a morte do assaltante, o desespero dos passageiros e o silêncio daquele que reagiu de modo inesperado.

O lugar na trajetória recebeu mais uma marca da violência na cidade. O sangue, o desespero e o medo pareciam não ter existido no outro dia, por onde novamente os passageiros tiveram de passar e relembrar do acontecido. Ao questioná-las sobre a sensação na passagem no outro dia, Ioanna ponderou, disse racionalizar os riscos sobretudo de assaltos naquele trecho de fronteira na ponte, como se para viver na cidade fosse preciso aceitar as condições e as possibilidades de riscos que se impõem aos citadinos. Depois desse acontecimento, Cazuza passou a utilizar a linha 84, numa tentativa de evitamento diário no percurso pela comunidade do Mosquito.

Sobre as imagens e o imaginário associados ao Mosquito, Ioanna evidenciou o modo pelo qual repercutem nas percepções dos sujeitos o medo e a insegurança, especialmente diante na reprodução de informações midiáticas, no qual se associa o lugar apenas ao crime e a delinquência, o que contribui com a invisibilidade dos moradores da comunidade. Uma situação em seu relato explicita a indiferença com que são tratados os moradores da comunidade. Uma vez ela percebeu que um homem no ponto de ônibus pediu parada e o motorista fingiu não o ver, passou direto. O homem correu atrás do ônibus gritando que ia pagar, tinha dinheiro. De nada adiantou.

Na hora eu fiquei chocada, fiquei pensando o quanto a pessoa tem que se humilhar pra pegar só um ônibus. Depois do assalto eu vi bem como se sustenta o estigma social que a realidade produz, é uma coisa horrível esse resultado e você vê acontecendo. Suspeita de quem pede parada no Mosquito, pensa “olha o favelado véio vai descer no Mosquito”. Eu já vi gente falando “quem desce no Mosquito é favelado, vagabundo! ” Teve uma única vez que fui no bairro nordeste e peguei ônibus na favela, na parada eu pedi várias vezes e o motorista nem olha.

O trecho de tensão não se encerra quando a comunidade fica para trás. Na Avenida Felizardo Moura adentramos no Bairro Nordeste, na rápida passagem pela Região Oeste.

145 A percepção dos riscos sobre o habitar continua, sobretudo pela presença de casas no alto de uma área de risco de desmoronamento com habitação imprópria da população.

A avenida dá acesso ao Viaduto da Urbana direcionando o fluxo para as regiões Leste e Sul. Nas conversas os sujeitos indicaram esse trecho como de potencial risco de crimes, principalmente de assalto, por estar próximo a comunidade do Japão na Avenida Bernardo Vieira. Os acontecimentos e o imaginário repercutem nessa tensão quando o ônibus se aproxima desse trecho. O relato de Igor revela:

Chegando ao viaduto da urbana, lá é outro ponto que sinto medo da área, como no Mosquito. Entre Zezo37 e a Bernardo Vieira já ouvi gente falando de assalto e arrastão. De gente subindo no Mosquito, faz o arrastão na ponte e desce pro outro lado.

Jocilene admite ter péssimas lembranças toda vez que ao ir para Região Sul cruza esse trecho na trajetória. Relembra de quando foi vítima de um assalto que teve como alvo as mulheres. Semelhante ao ocorrido na comunidade do Mosquito, os assaltantes utilizaram a mesma estratégia em um sentido oposto. Subiram no ônibus no ponto de parada próximo a comunidade do Mosquito, esperaram chegar no viaduto da Urbana, direcionaram-se para a porta de saída do ônibus e anunciaram o assalto. Recolheram os celulares apenas das mulheres sentadas próximo a porta e rapidamente desceram no primeiro ponto de parada na Avenida Bernardo Vieira. Depois do acontecido Jocilene que nunca havia sofrido ou presenciado um crime como esse, diz ter entrado em um estado de choque. Em seu relato demonstra a sensação diária de estar em risco ao simplesmente se deslocar no ônibus.

Quando começou essa onda de assalto nos ônibus, lembro que muita gente não sentava perto do motorista, ficava mais lá pra trás, porque se ele assaltasse na frente não tinha problema, poderia ser que ele não pegasse nada das pessoas que estavam lá atrás. Até hoje ainda tenho isso de não sentar perto do motorista, principalmente quando eu tô com o computador. Sento num canto mais longe. Antes eu não queria sentar lá atrás porque eu ficava com medo de algum homem vir pra perto de mim e fazer alguma coisa. Hoje minha preocupação maior é de ser assaltada. Triste né?!

Em conversa com as mulheres, todas relataram situações relacionadas ao medo dos assaltos e também do assédio sexual. Situação já sentida por algumas e constantemente percebida diversas vezes dentro dos ônibus, fazendo-as adotar posturas

146 de proteção e evitamento diante das “fragilidades” vinculadas ao corpo feminino, tornando-as alvos da ação de bandidos ou das más intenções de passageiros promíscuos. Isto exige das mulheres atenção redobrada, especialmente na observação atenta aos homens e seus comportamentos. Esse é o modo como Cazuza lida com o risco, ao reparar especialmente nos homens e nos assédios que ocorrem no ônibus.

Reparo em homens, da forma que eles... não sei se você soube que uma menina foi assediada e ele gozou na cara da menina. Depois dessa história eu passei a reparar muito nos homens, quando eles entram e tá lotado que eles ficam em pé, se encostam nas cadeiras. Teve um dia que eu peguei o 84 pra Praia do Meio, foi um feriado, tinha muito homem dentro do ônibus e alguns estavam bebendo, eu vi muitos homens se esfregando nas meninas naquela cadeira que fica no corredor.

Gosto sempre de sentar na janela pra evitar essas coisas. Coloco logo a cara feia quando eles ficam me olhando ou pra alguém que eu conheça, ou pra outra mulher. Quando olham as pernas ou os seios das mulheres fico olhando eles com vontade de falar, não comento, mas fico observando.

Situações como as relatadas por Cazuza são vividas por mulheres nos ônibus. A recorrência de relatos evidencia mais um risco construído socialmente nas trajetórias. No relato da Jeannie, apesar dessa situação infelizmente fazer parte do cotidiano, os silenciamentos perante o assédio parece não estar mais se mantendo.

Houve uma vez que eu fiquei com muito medo de um homem que encostava na gente eu afastava e aquele homem ia de novo. Aí eu desci na Av. Chegança porque um amigo meu é policial e eu ia na casa dele, mas o cara desceu antes. Hoje diminuiu mais esse assédio porque agora a gente escandaliza.

O ato de escandalizar é uma ação das mulheres cansadas dos silenciamentos, colocando sua voz para denunciar atos e comportamentos impróprios dos homens dentro dos ônibus. Nas trajetórias marcadas por riscos ambientais, sociais e ao corpo.

Na trajetória, quando cai a noite aumenta a ênfase na insegurança. Questionados acerca dos horários de ida e volta e em qual se sentia mais inseguro, a percepção do Mateus explicita a dos demais conversantes:

De manhã você não se sente inseguro – apesar de hoje já ouvir relatos, você está mais atento ao rio, ao arco-íris. A tarde na volta vê o sol, o rio, ainda é dia. De noite sinto muito essa insegurança, por mais que seja o mesmo caminho parece outra cidade.

Essa outra cidade configura uma paisagem de luzes amareladas, onde a ausência de atividades nas vias de função eminentemente comercial e a diminuição de fluxo de

147 veículos nas ruas, marcam o esvaziamento da noite. Momento em que o pensamento nos riscos se tornam mais intensos, fazendo com que o desejo de chegar em casa na Região Norte seja marcado pelo medo. No retorno, o trânsito em horário de pico, o congestionamento no viaduto da urbana ou na ponte de Igapó, a lotação dos ônibus me recordam um dos campos realizados à noite. De pé em um ônibus lotado de passageiros, uma senhora tentando chegar a um lugar minimamente confortável, falou em voz alta “ônibus lotado é bom, nenhum assaltante vai subir”, levando as gargalhadas os sujeitos cansados depois de mais um longo dia de trabalho.

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