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Natureza e dimensões da acção humana

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Natureza e Dimensões

da Acção Humana

por

M. Barbosa da Costa Freitas

O desenvolvimento do meu trabalho tem um cunho, talvez acentuadamente, teórico. Mas eu digo já porquê: é que, embora precisemos muito de uma prática eficiente, também sabemos que a melhor prática é uma boa teoria. Sem princípios bem assentes não é possível obter eficácia, eficácia sobretudo na nossa acção, na nossa actividade de todos os dias. E isto porque, quer queiramos quer não, ela tem repercussões, a nível individual, social, etc., e não é por acaso que de todos os quadrantes, em todas as actividades humanas vemos surgir constantemente a exigência de urna ética em todas as actividades humanas. Enfim, são por demais sabidos os riscos abertos pelos novos avanços da ciência e da tecnologia em termos de perda ou salvação do próprio homem. Daí a necessidade de ideias bem claras a respeito da natureza e finalidade das acções humanas propriamente ditas.

Se abrirmos o "Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia " de Lalande, no vocábulo rlrlion, encontramos uma análise feita por Blondel, suficientemente abundante na sua lapidar concisão. Aí podemos ler que a palavra acção, mais concreta que atilo, exprime ao mesmo tempo o princípio o meio c o termo de uma operação, que pode permanecer imanente a si mesma. E acrescenta Blondel, para se compreender e hierarquizar as suas diversas acepções, é bom usar a distinção tradicional, presente em Ar•istóteles, entre poiésis (fazer ), theorein, (pensar)e 1rattein ( agir ). «A acção - continua Blondel - pode consistir em modelar uma matéria exterior ao agente, em encarnar urna ideia, em fazer cooperar para uma criação artificial diversas forças físicas ou ideais; a acção pode também consistir em afeiçoar o próprio agente, em adestrar os seus membros, em formar os seus hábitos, em fazer viver a intenção moral no organismo, espiritualizando assim a própria vida animal, e por ela, a vida social; e por ótimo, a acção pode consistir em realizar o pensamento no que este tem de mais universal e de eterno, á contemplação no sentido forte e técnico que é a acção por excelência, a adesão inflexível à verdade e ao bem». E explica: no primeiro sentido, que é o sentido do (acere, do fazer, a acção parece opor-se à ideia, pois luta por dominar uma matéria, mais ou menos rebelde, acabando no entanto, por aproveitar dessa mesma luta, enriquecendo-se com a colaboração dos seus meios de expressão; no segundo sentido, a acção parece opor-se à intenção, arriscando-se a traduzi-la imperfeitamente e a apoucá-la, quando pelo contrário, é chamada a pr•ecisá-la, secundá-la e a levá-la a bom termo, i,e„ a perfazê-la; no terceiro caso, a acção contemplativa parece opor-se aos processos e à agitação discursiva da meditação ou da prática, ruas na realidade a contemplação exprime a unidade perfeita de todas as potências exteriores, interiores e superiores reconciliadas,. hierarquizadas e actualizadas. Tem pois razão Blondel ao advertir que «não se deve concluir destes conflitos transitórios, uma heterogeneidade radical e decisiva entre pensamento e acção, q.d., a distinção corrente entre teoria e prática, não tem razão

Protcssor Ordinário da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa. revistaC E I'OI.IS

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de ser; pelo que revela de incompreensão e artificialidade. De facto, esta pretensa

oposição labora num duplo erro: para que tal oposição seja real seria necessário que

o pensamento se limitasse a ser um sistema de representações, de relações, de

abstracções nacionais descoladas ou isoladas da vida, prontas a substituí-la, o que é

falso. Além disso, seria necessário que a acção fosse um assomar de potências

obscuras que a consciência não pudesse de modo algum dominar e muito menos

esclarecer, o que é igualmente falso: A acção deve constituir e constitui, de facto, a

síntese da espontaneidade e da reflexão, da realidade e cio conhecimento, da pessoa

moral e cie ordem universal, da vida interior do espírito e das fontes superiores de

que ela se alimenta. Joubert disse

«pensar em Deus é uma acção». S.

João da Cruz

tinha-o dittinha-o mais prtinha-ofundamente,

«a acção que envolve e completa todas as demais, consiste em pensar ruidade ramente em Deus».

Por sua vez, Lucien Laberthonniére, amigo e confidente de Blondel, anota no

mesmo vocabulário:

no sentido moral, a acção significa decisão, diligência, esforço, intervenção eficaz, perícia de uma actividade voluntária que não é determinada nem pela sua natureza nem por nada de exterior, de modo que a acção, assim entendida, nem sempre é criação de ser, mas, é sempre introdução de alguma novidade,

pelo menos de algum

fenómeno, e portanto, é demonstração ou prova de um começo responsável. No

sentido físico, como quando se fala da acção dos ácidos, do fogo, da massa etc., a

palavra acção significa, pelo contrário, qualquer coisa que resulta da própria

natureza cio agente. Normalmente distinguimos entre actos ou acções postos sem

conhecimento e sem liberdade -

acues hominis -

dos actos humanos propriamente

ditos -

actos Tomam/ .s -

actos postos com consciência e liberdade. Por outras palavras

distinguimos entre actos que o homem põe pela natureza que o constitui, portanto

sem intervenção da liberdade e actos humanos, actos que ele produz a partir da sua

liberdade.

No seguimento e aproveitamento de toda a especulação anterior,

particularmente de Platão e cie Aristóteles, Elouard Le Roi, e, sobretudo, Blondel,

aprofundaram e desenvolveram sistematicamente algumas ideias já referidas nos

textos citados. A exposição que se segue, pretende apenas resumir alguns aspectos

particulares interessantes e desconhecidos da tese de Blondel

L'Action

de 1893,

prestando assim homenagem a uma obra e a um autor que se tornaram clássicos.

A acção designa na perspectiva de Blondel a integridade da vicia espiritual, seja, o

pensamento, a vontade e a sua efectiva realização; neste sentido, pensamento e

acção condicionam-se e implicam-se mutuamente, de modo que não há acção sem

pensamento nem pensamento sem acção. Na verdade, pensamento e acção

designam instrumentos interdependentes e complementares de alguma coisa mais

profunda a que chamamos dinamismo espiritual. A acção só vale pela ideia que a

promove e a ideia vale pela acção em que se concretiza ou exprime. Daqui que a

busca da verdade tenha de ser, simultaneamente, vivida e pensada. Isto vale

sobretudo, no domínio das verdades espirituais que só podem ser percebidas

enquanto interiorizadas espiritualmente ou espiritualmente experienciadas. A

inteligência não pode antecipar-se a este dinamismo, a esta acção, ao superior

dinamismo das ideias, à orientação transcendente de uma finalidade ou sentido por

ela introduzido e determinado. A acção é constituída por tudo aquilo que de algum

modo envolve o pensamento, precedendo-o e preparando-o, para logo, por ele

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revislac EPOLIs i

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iluminada e esclarecida, o seguir e o ultrapassar; partindo da acção, o pensamento regressa à acção: morta e simplesmente verbal toda a ideia que não proceda de urna

experiência real da vontade; morto e sobretudo fictício, todo o conhecimento que não termine em acção. E tudo isto porque um dos limites congénitos do espírito humano reside na

sua incapacidade para deduzir o concreto; o contrário equivaleria a reconhecer o espírito humano como criador ou senhor de um saber absoluto, sem necessidade do conhecimento sensível, cio recurso às lições cia experiência. Esta mesma incapacidade significa que o homem jamais poderá dirigir a sua acção apenas com as suas ideias e as suas luzes, será sempre ao mesmo tempo agente e agido determinante e determinado, porque a acção, precisamente enquanto constitutiva cio próprio ser do homem, ao mesmo tempo que, nos é proposta é também imposta, tão voluntária como necessária. Isto mesmo significa que não precisamos de acção como se estivéssemos longe dela, não temos que a esperar mediante uma mediação explícita que a ela nos conduza; desde sempre e inevitavelmente ela se encontra connosco, nós é que nem sempre nos encontramos com ela. E impossível não agir mesmo quando nada fazemos: a acção é inevitável e inelutável. Para quê então o pensamento? Interior à acção o pensamento procura penetrá-la pouco a pouco, entrar nos seus desígnios, igualar a sua intencionalidade para, finalmente, a orientar e dirigir. Na óptica de Blondel, agir equivale a procurar afincadamente o acordo do conhecer ( gnoseologia ), do querer ( ética ) e cio ser ( ontologia ). Estas três dimensões convergem porque, nascem já, antes e previamente a todo o acto consciente, cio mesmo foco, do mesmo ponto de luz e de vida.

Nascido da acção, o pensamento volta de novo à acção, ele próprio acção, mas esta passagem ela acção pelo pensamento não é um luxo, não é um acréscimo inútil, a acção não é a mesma antes e depois desta mediação do pensamento; antes dele, era espontaneidade, impulso, puro acontecimento, a modo de um simples cledesdobrar de uma força natural como um abrir de um botão de flor ou estender de uma mola elástica, depois, é um acto humano, deliberado ou pelo menos consciente e consentido, dirigido para um determinado fim, como parte integrante de um plano, de uni projecto global. Isto mesmo é indicativo de que o pensamento que intervém numa acção, que parece avançar sem o seu apoio, abre nela, na acção, no seu inter for, uni momento de escolha e de decisão irrepetível, mais exactamente, porque a cada momento da acção nos é dada uma situação autêntica de escolha e porque nenhuma acção se apresenta plenamente determinada antes de se realizar, o pensamento enforma e determina esta situaçãó decisória, transformando-a num momento ele escolha consciente e deliberada, e é neste preciso momento que podem intervir todas as mediações históricas, mediações culturais, sociais e religiosas. Com efeito, neste momento de decisão, o reconhecimento disto ou daquilo como um valor, torna-se imediatamente prático, permitindo-me escolher isto ou aquilo, de preferência a outras acções, ou fins ou motivações, igualmente possíveis: decido, sou eu, isto é, a minha liberdade, c por ele sigo, ainda que servindo-me de instrumentos, de mediações anteriormente dadas. Mas existe num dado momento, um corte, uma ruptura na sequência natural dos factores que me são oferecidos ou dados. Semelhante reconhecimento faz-se normalmente em virtude de mediações pré-filosóficas, mas à mediação filosófica impõe-se aqui, pelo grau de consciência e de reflexividade que implica; ela marca uma paragem mais

revislaGEI'UI,IS

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pronunciada, e, frequentemente, é a primeira paragem no curso de uma prática que, de outro modo, seguiria sem se dai por isso. Por conseguinte, a mediação filosófica dá lugar a uma decisão mais consciente e deliberada, introduzindo uma dimensão de verticalidade na horizontalidade do curso normal de antecedente e consequente; é por causa desta ruptura que se põe o problema de como passar de novo do pensamento à acção, problema que ficaria insolúvel se a ruptura, esta ruptura introduzida pela liberdade, fosse nela qualquer coisa de absolutamente novo, como por ex., a necessidade de introduzir uma ideia não se sabe como nem porquê e que teríamos de 1361 a funcionar, o que nunca será o caso. A verdade é que, mesmo o

pensamento mais especulativo, a ideia mais abstrusa, procede sempre de algum modo cia acção e continua a ser acção, de outra sorte não seria. O próprio IIegel observa não sem uma pontinha de ironia que o contrato social de Rousseau se revela irrealizável, precisamente porque Rousseau o concebeu fora de toda e qualquer realidade, não tendo em conta o agir e o ser social do homem, já previamente actuamos. A insistência hegeliana sobre a importância da continuidade histórica e sobre o carácter insubstituível das mediações dos actos e costumes mais não faz do que sublinhar o condicionamento de todo o pensamento pelo já dado e pelo já feito. No seguimento desta análise, poderíamos agora perguntar o que é que a ruptura, relativa e parcial, introduzida pelo pensamento filosófico no curso da acção, significa para esta mesma acção. Qual a mudança que provoca e se introduz algo de novo. Importa reconhecer que não é tanto pelas suas ideias novas e inéditas que a filosofia transforma a acção e o mundo, porque estas ideias podem muito bem revelar-se ineficazes. De facto as ideias e os projectos políticas propostos pelos filósofos, em pouco ou nada modificaram o curso da história. Obras como, por cx., A

República

de Platão, A

Cidade de Deus

de Sto. Agostinho, A

Utopia

de Thomas Moro ou O Contrato

Social de Rousseau pouco ou nada se reflectiram na sociedade, quer no que diz

respeito ao seu conteúdo, quer no que diz respeito ao dinamismo das suas ideias. A influência positiva cia ruptura filosófica sobre a prática há que procurá-la a outro nível; talvez possamos dizer que a filosofia é chamada a tornar a prática mais circunspecta, mais atenta e portanto mais vagarosa, mais livre. Mais circunspecta, porque a tomada de consciência filosófica situa quer a acção quer a escolha particular num horizonte mais largo, entre alternativas que de outro modo nem sequer seriam consideradas, e muito menos admitidas. A mediação filosófica torna próximas as mais longínquas situações, por isso mesmo, torna também a acção mais lenta, mais demorada, mais humilde, mais justa, mais segura, mais verdadeira e por isso, de si mesma mais eficaz e fecunda. Tomando consciência das opções de fundo implícitas nas decisões, aparentemente as mais triviais e frequentes, a mediação filosófica promove uma autêntica consciência política, a possibilidade de fazer a política não só com conhecimento de causa mas, sobretudo, com um conhecimento dos valores nela implícitos. Alargando o horizonte de referência, a ruptura filosófica torna a prática mais livre, situada explícitamente entre alternativas mais numerosas e melhor conhecidas. Se é verdade que o pior inimigo da liberdade não é a coação, mas o hábito ou a. rotina, a reflexão filosófica faz obra de verdadeira libertação. É deste modo que a filosofia se torna agente de mudança política, social e cultural. Libertando a acção das operações da rotina, a filosofia abre perspectivas para decisões novas e inovadoras oferecidas aos agentes históricos.

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Resumindo, a relação entre a filosofia e a prática, entre o pensamento e a acção, não deve conceber-se como um forjar ou escogitar novas ideias filosóficas, universais e abstractas, para uso de uma prática singular e concreta, mas antes, como impregnação de toda a prática, enquanto humana e pelo menos fundamentalmente racional, pelo trabalho de reflexão filosófica.

A acção traduz a irrupção no curso dos acontecimentos mais ou menos esperado a irrupção da liberdade que faz de um agente um autor, lastrando um instante da sua existência numa parcela de eternidade, com uma decisão pessoal: põe um desígnio num acto que o executa. Simone Weil afirmava ser necessário dizer coisas eternas para estarmos seguros da sua actualidade. Com efeito, apenas se cumprem aquelas acções que emergem da parte impessoal ou eterna do nosso ser (centro?), entendendo aqui por eterno, o que Goethe entendia quando notava que todo o homem é eterno quando está no seu lugar. E porquê? Porque a pessoa é uma realidade insubst:itu ível, inédita, irrepetível, de uma solidão invencível, é como uma ilha, só que é ilha, mas aberta para o mundo pela inteligência e pela liberdade que são instrumentos cla sua acção. Na acção, este instante crucial, capaz de modificar completamente uma situação, surge inesperado como um raio; falhar esse momento equivale a falhar urna vida, porque só o instante favorável permite obter, ainda que limitadamente, grandes efeitos. A essência da acção situa-se, assim, no coração desta incerteza ou perplexidade, quando o tempo perde a linearidade ou continuidade; é a partir daí, daquilo que na vida escapa mais radicalmente ao tempo, que os homens fazem história, é quando introduzem urna parcela, mínima que seja, de eternidade no tempo ligando os acontecimentos que passam a uma estrela que perdura.

I^ierlcegaard ilustra esta contradição opondo a reminiscência socrática e a conversão cristã, a primeira, a exigir a duração; e a segunda, a supor o instante, súbito e incompreensível em termos de mera causalidade determinada por um antecedente c um consequente. Num instante, o homem assume consciência de ter nascido, consciência de que é urna dádiva, uma pobreza invencível, porque o seu estado precedente, de que não pode valer-se, era de não ser. Enquanto tudo quanto há de patético no pensamento grego se concentra na reminiscência, na recordação, o patético da nossa hipótese concentra-se num instante, e nem é de admirar, pois não é indiferente passar do não ser ao devir, passar do não ser ao scr. Intervalo, nas malhas do espaço e do tempo, por onde se infiltra tudo quanto há de livre e de original e de inédito, de surpreendente e gracioso nos homens, por onde irrompe, humilde e silencioso, o milagre inesgotável da graça e assistência divinas.

Na medida em que urna acção rompe o encadeamento ordinário das coisas, o seu autor não se comporta como um simples executante, mesmo que se mostre fiel a um imperativo moral ou a uma causa; introduz novidade no mundo, mesmo quando julga conformar-se com um modelo; não tem precursores, nem continuadores; mesmo que pense numa longa posteridade, está sempre só. A acção constitui por natureza uma singularidade, uma emergência inapagável, indelével; como tal, comporta um elemento que a subtrai ao tempo; o exame atento da acção pessoal mostra que como agente, ela é, antes de tudo, ruptura, inovação e risco, mas com ela, o próprio agente cresce, se dignifica e também, se pode aviltar; é aí que está aberto o campo da sua realização ética. Se a acção não consiste em inserir-se num campo de forças, mas em assumi-lo e dele se demarcar para o dirigir, é porque no

revlstaC E I >(t I , I5

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seio da acção mais pessoal surge um elemento impessoal e intemporal, uma

inspiração que é, simultaneamente, docilidade e ordem, submissão à necessidade e

invenção da liberdade, apagamento do eu e assinatura pessoal e singular. Em toda a

acção se encontram estas determinações opostas, a não ser que o agente, em vez de

aceitar esta espécie de visitação do desconhecido, que preside sempre a uma acção

autêntica, deixe resfriar e esmorecer a sua energia, a ocasião ou o objectivo. A acção

comporta sempre as mesmas características, é ruptura e começo, incerteza e risco,

demanda de um objectivo e proclamação de uma exigência, mudança nas coisas

e

revelação de si a si mesmo, iniciativa e obrigação, imperativo e gratuidade; como

tantas realidades enigmáticas e familiares, a acção define-se mediante determinantes

contrárias. Paradoxalmente, a acção aparece ao mesmo tempo inscrita no tempo e

fora do tempo; quando a analisamos na pessoa singular é ruptura, começo, iniciativa,

mas igualmente, efeito, modificação, consequência, resultado; o agente não percebe

a sua iniciativa como encadeada ou solidária com o que o precede, sente-se sózinho,

mesmo se inspirado no exemplo de outros, porque estes últimos, no instante da

passagem a acto, de nada lhe aproveitam, de nada lhe servem.

Pela acção, emerge um acontecimento que é intencional e contingente,

acontecimento querido, conduzido e realizado por um homem; sem ele, sem o

homem, sem este agente, o acontecimento não teria lugar; não é necessário, mas o

agente sente que o seu gesto lhe foi ditado pelas circunstâncias como uma obrigação,

que, importa ou que se impõe a todo o homem livre, a todo o sujeito moral posto na

mesma situação que ele - daí a sua universalidade. Esta aliança da necessidade e da

liberdade, da contingência e da obrigação, da iniciativa e da resposta é marca

característica da acção. Estas condições que integram a acção, que a promovem e a

alimentam, tornam-na em grande parte enigmática e imprevisível. A acção parece

não querer revelar inteiramente os seus segredos. Sem dúvida que é histórica pelas

suas confissões, pelos seus projectos e suas técnicas.

E

no entanto provável que

permaneça fora da história enquanto reveladora essencial, tanto das falhas como das

virtudes pessoais. Por sobre a sua necessidade prática, ela assume na existência

humana uma função metafísica; ela possibilita-nos um auto-conhecimento decisivo

pois nela se compromete por inteiro o homem que somos. Não é apenas no

pensamento que o devemos procurar, não é apenas no pensamento que devemos

procurar o homem, ê para a acção que é necessário transpor o centro da filosofia,

porque é aí que se encontra o centro da própria vida. Não será que a acção, tal

como

a pensamos e vivemos no nosso unindo ocidental, provém da fusão da racionalidade

grega com o profetismo de Israel?

Na legenda do grande inquisidor, Dostoievsky mostrou

à

evidência que o pior

inimigo da liberdade é ela própria, na medida em que não é apenas uma graça, mas

um fardo. Todos aqueles que procuram instaurar um reino de liberdade deparam

com situações que ameaçam toda e qualquer poder, vendo esboroar-se e

fragmentar-se o poder sem o qual nenhuma obra colectiva é possível. E inevitável a

tentação de submeter tudo à ordem da força, supremo recurso de que muitos não

hesitam lançar mão... a força a substituir a autoridade, a sobrepor-se

a

todos os

compromissos e juramentos. Contudo, o nosso século, que soube tão bem

concentrar o poder, aplicar a força e exercer a violência, sonha com outras formas

de acção, aspira a outras relações mais livres entre os homens. Cumpre a todos

a

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tarefa colectiva de substituir a violência pelo direito, a força pela autoridade, a coacção pela liberdade. Caminho difícil, mas praticável como um ideal de convivência social no respeito pelas liberdades pessoais.

Tal cromo hoje a entendemos, a acção nasceu da convergência da racionalidade grega com o profetismo de Israel. Nela se mistura, com uma eficácia superior, urna teoria do universo, uma teoria cla salvação e cla história e, finalmente, urna teoria do povo e cla cidade. Nesta perspectiva, a leitura dos padres gregos ou, mais simplesmente, cla Cidade de Deus de Agostinho é fascinante. Aí se vê, ao correr das páginas, como Agostinho combina a Bíblia com Platão ou S. Paulo com os estóicos. Com efeito, a invenção ou descoberta da acção coincide com a descoberta da bondade, da verdade e da liberdade. Para os estóicos, como refere Cícero nas Tustuianas, a vontade só existe no sábio. O poder cla alma que se caracteriza pela ponderação e pela prudência, é considerada pelos estóicos como encontrando-se apenas no sábio para quem a vontade é o desejo conforme à razão. O profetismo de Israel assumiu ou assume toda esta doutrina, mas, ampliando-a e, de algum modo, aprofundando-a, sobretudo, e levando esta realidade da liberdade ou da vontade, que segundo os estóicos seria apanágio exclusivo do sábio, à categoria de um transcendental como atributo de todos os homens. Agostinho introduziu aqui uma modificação fundamental: em vez de considerar a vontade apanágio do sábio, corno fizeram os estóicos, reconhece-lhe valor universal. Estudando os movimentos cla alma, conclui que aquilo que dignifica o homem é a vontade; se desregrada, os seus movimentos serão desregrados; se recta, os seus movimentos serão dignos de louvor. C) que Agostinho diz expressamente é que todos os movimentos da alma, mesmo os movimentos actualmente incontroláveis pela liberdade e pela inteligência, são expressões cla alma, e como a alma define o homem, todos os homens são vontade, definem-se pela vontade. St" Agostinho opera aqui duas transformações: universaliza a vontade e atribui as paixões da alma às inclinações ou opressões da vontade. 1 certo que Agostinho não é o autor desta modificação já expressa em S. Paulo, tão atento corno ele às contradições internas da vontade, e preocupado em mostrar a dimensão universal do profetismo judaico. Todavia, serão os Padres da Igreja que irão fundar estas duas tradições, a tradição profética de Israel e a tradição racional da Grécia. Agostinho, além de ser um grande filósofo, apresenta a vantagem incomparável de se encontrar na viragem de dois mundos: formado na cultura clássica cla antiguidade, convertido ao cristianismo, seduzido pelo maniqueísmo, eleito e ordenado bispo, morre em 430, no momento em que, sob pressão dos bárbaros, desaparece o mundo antigo e se anuncia uma nova era. Não admira que ainda hoje continue a inspirar filósofos como Hannah Arendt a qual lhe dedicou o primeiro e o último dos seus livros, no qual afirma que o grande Agostinho, foi o único filósofo que os romanos alguma vez tiver;am, é também o primeiro grande filósofo da vontade. Numa palavra, a descoberta da liberdade, da vontade livre, que determina o conceito de acção tem dupla origem, cristã e grega. Como diz Etienne Gilson, é à Escritura que devemos uma filosofia cristã, mas é à tradição grega que o cristianismo deve uma filosofia.

Atravessando os séculos, a planetarização material e técnica do mundo que habitamos, faz dele um imenso laboratório da razão construtora, separada do universo humano e livre cla pessoa que entretanto desfigura e destrói. Tudo se passa

revfslaCEPOLIS

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como se nos encontrássemos perante o absoluto de racionalidade demiúrgica e uma

natureza que forçada, se opõe e resiste. Daqui o programa de um Husserl a exigir o

regresso às coisas. Este regiesso às coisas mesmas não passa de uma primeira etapa

de um regresso a algo que verdadeiramente é ou há, o regresso da técnica, de uma

razão demasiado unilateral, perdida entre as coisas,, à ontologia, de uma tirania da

razão a uma razão mais humilde, mais humana, mais atenta, mais contemplativa.

Mas será possível ir além de uma simples ciência dos fenómenos e chegar com

Aristóteles a um conhecimento pelas causas? Será possível unificar o sensível e o

inteligível? Será possível distinguir melhor no processo do conhecimento o que

pertence à razão e o que pertence às coisas, de tal modo que estas últimas não sejam

apenas reconstruídas pela inteligência, mas se nos entreguem abertamente na sua

autenticidade original? Eis todo um programa de ontologia, programa que, reatando

com um passado imemorial, se vai de novo cumprindo de modo positivo e afirmativo

no esforço de estabelecer que ver é uma operação simples, que do mesmo modo que

os olhos do corpo não alteram o que vêem, também o espírito não anula o que

foima, o que compreende; como ensina S. Tomás, no seguimento de Aristóteles e

sendo voz de muitas outras vozes menores, o acto de inteligência não termina nas

fórmulas, nas representações, nas ideias, mas nas coisas mesmas.

Os trabalhos de aproximação da ontologia consistem em mostrar que as

operações do espírito procedem de uma parte da alma tão elevada, tão pessoal, tão

recta que fica logo à partida legitimada nos seus actos. Por aqui se percebe a íntima

solidariedade das virtudes intelectuais e das virtudes morais. Talvez seja necessário

uma aprendizagem, uma ascese, uma iniciação, para que a alma sirva de suporte às

operações universais do espírito. Exercício este que não diz respeito apenas à

inteligência, antes se inscreve num processo ético, numa espécie de libertação

voluntária que pelo acto se faz disposição interior, graças à qual a ontologia se torna

subjectivamente possível. Será também objectivamente possível? Por outras palavras,

haverá uma analogia suficiente, haverá afinidades bastantes entre o espírito do

homem c a natureza das coisas, para que a ciência se eleve do estado actual de

reconstrução coerente dos fenómenos ao estado a que os antigos sonhavam

conduzi-la, à contemplação activa e fiel daquilo que é? A reflexão filosófica sobre a ciência

corresponde a uma série de tentativas para responder a esta questão. Mesmo que o

homem se encontre em condições de mudar a face da Terra, de suprimir, de uma só

vez, milhões de homens, de intervir na procriação, na transmissão da

hereditariedade, esta questão põe-se de novo com renovada acuidade. Mais do que

suporte de toda a ciência, o ser vivo é hoje objecto de ciência, não apenas a sua

fonte, mas o que na acção e pela acção, guiada pela ciência e pela técnica,

ultimamente se ali -isca e põe em jogo. Numa palavra, para que alguma vez se possa

realizar o reencontro do saber com o ser é necessário uma dupla série de condições,

subjectivas urnas, a explicitar e realizar a conaturalidaçle do espírito e do real;

objectivas outras, capazes de reconduzir a actual ciência dos efeitos e das causas, ao

agostiniano fruir, vendo e contemplando o que há. A nessa actual experiência da

acção parece impregnada já de alguns destes traços promissores. A história da acção

nascida de Israel e da Grécia, apresenta-se cada vez mais como uma aventura

universal, na qual os homens se encontram comprometidos quer queiram quer não.

Hoje, mais do que nunca, tornou-se impossível separar a moral da política.

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Recordando uma máxima célebre de Kant, podemos dizer que a ética sem a política

é vazia, mas a política sem a ética é cega. A interacção entre os homens cresceu

consideravelmente neste final do século XX. Quer queiram quer não, os povos e os

indivíduos são cada vez mais interdependentes, chamados a compreenderem-se, a

dialogarem, a respeitarem-se mutuamente, apesar da diversidade das opções políticas

e religiosas. E certo que o homem é uma obra maravilhosa, mas está longe de ser

uma obra prima, diz um personagem de Konrad. Com efeito, agir é ser causa de tuna

transioruiação das coisas, é instilar no mundo natural e social mudanças que

resultem das escolhas que fazemos. A acção estende-se tão longe quanto a

causalidade, mas, como nota Platão, existem duas espécies de causas: umas, errantes,

não visam qualquer fiar e não estabelecem nenhuma ordem; outras, dispõem de

determinados meios em vista de um fim, cuja conjugação é inspirada por um bem

ideal a atingir, servindo portanto de sustentáculos para uma acção rectamente

ordenada, pois que o ordenar, o mandar, ou provém da razão ou é tirania e a tirania

é a confiscação cla liberdade e, portanto, da pessoa.

Porque será que uma reflexão sobre a acção nos provoca a regressar a Platão, a

Aristóteles e à Bíblia? O acerto e convergência das suas grandes ideias demonstram

que as verdades profundas são simples e que apenas nos falta um pouco de coragem

para nos familiarizarmos com elas. Meditando-as e contemplando-as, elas

revelam--nos, sem ilusões, o que a nossa condição humana encerra de contingência e de

eternidade, A acção revela-se sob urna dupla condição de eficiência e de deficiência.

Se se perde o sentido da distância que separa, inelutavelmente no homem, as obras

icicas cla intenção que as faz nascer, a acção perde a sua inspiração messiânica, o seu

sentido de absoluto, de exílio, reflexo indesmentível da sua condição itinerante, da

precaridacle irrecusável das instituições. As instituições são segundas em relação à

pessoa; é a pessoa que cria e utiliza as instituições; por isso é-lhes, irredutível. As

constituições são chamadas a favorecer a amplitude, a diversidade c a continuidade

da acção. Uma má constituição limita o seu alcance, a sua frequência e a sua

duração, podem tornar-se máquinas que confiscam e anulam a liberdade. A

compreensão cósmica da acção, olha para tudo o que está aí a pedir e a oferecer-se

como condição de um correcto e fecundo agir. Este sentido cósmico da acção, como

na visão de Israel e da Grécia, impôr-se-á sempre, mesmo que a referência a Deus

seja nula ou implícita. Assim entendida, a acção realiza a exigência conjunta de

fidelidade à natureza e ao homem e implícitamente ao ser e aos deuses, na medida

em que, como afirma St" l:reneu,

Gloria Dei, vivers p omo,

a glória de Deus consiste na

realização do homem, no levar a termo, todas as suas possibilidades, inseridas na

natureza e assumidas pela sua inteligência e liberdade, Contemplar o ser que há, que

está aí a solicitá-lo para que o devolva em consciência e liberdade à sua fonte e

origem e à convicção imprescindível da mais verídica e fecunda acção humana.

revlslac El'nI.IS

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