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Dimensões do eu contemporâneo nos quadrinhos autobiográficos MESTRADO EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC - SP

Clívia Ramiro

Dimensões do eu contemporâneo

nos quadrinhos autobiográficos

MESTRADO EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA

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Clívia Ramiro

Dimensões do eu contemporâneo

nos quadrinhos autobiográficos

MESTRADO EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Literatura e Crítica Literária sob a orientação da Profa. Dra. Maria Rosa Duarte de Oliveira.

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BANCA EXAMINADORA

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RAMIRO, Clívia. Dimensões do eu contemporâneo nos quadrinhos autobiográficos. Dissertação de mestrado. Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP, Brasil, 2014. 80 p.

A autobiografia em quadrinhos é uma forma narrativa capaz de propiciar significativas visões sobre a autoexpressão da identidade e dos conflitos do homem na atualidade. Nesta dissertação, o objetivo é o estudo das dimensões assumidas pelo eu nos quadrinhos autobiográficos, tendo por corpus o testemunho do Holocausto na Europa da primeira metade do século XX, em Maus, de Art Spiegelman (2009); e a desintegração familiar aliada às desigualdades sociais no Brasil atual, em Memória de elefante, de Caeto (2010). Nesse contexto, em que se destacam a multiplicidade de tempos e espaços, o plurilinguismo, a metanarratividade, a ex-centridade e a diluição do eu, o problema que se coloca é o de investigar como as histórias em quadrinhos selecionadas respondem, na singularidade de sua sintaxe, à complexidade do contemporâneo por meio da construção autobiográfica. A hipótese é a de que é possível flagrar, nos quadrinhos autobiográficos de duas culturas diferentes, o anseio comum de um “eu” que enfrenta os dispositivos de opressão por meio de processos autorais de subjetivação e dessubjetivação. Os fundamentos teóricos da pesquisa foram: Santaella (2012), Eisner (2001, 2005) e McCloud (2004, 2006) para a leitura da linguagem dos quadrinhos; Lejeune (2008), Miraux (1996), Nigro, Busato e Amorim (2010) para a questão autobiográfica; Todorov (1982, 2010), Benjamin (1994, 2006) e Agamben (2007, 2008, 2010) para as questões de narrativa e (des)subjetivação do eu. A partir da análise, a conclusão é a de que há uma diferença essencial na composição das duas autobiografias, isto é, o modo como o autor engendra seu desaparecimento e se dessubjetiva em Maus, em oposição ao fortalecimento da identidade e da subjetivação, em Memória de elefante, como reação aos dispositivos de poder dos grandes centros urbanos. Embora tratem de perspectivas espaço-temporais diferentes entre si, as autobiografias de Spiegelmans e Caeto têm em comum a indissociabilidade entre a crítica social e suas traumáticas vivências individuais. São compostas por sujeitos que vivem, narram e escrevem a trajetória de “eus” que já não cabem mais em si e enfrentam, por meio da arte narrativa em quadrinhos, os dispositivos que aniquilam a identidade do sujeito contemporâneo.

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RAMIRO, Clívia. Dimensions of the contemporary self in the autobiographic comics. Mastership dissertation. Program of Post-Graduation Studies in Literature and Literary Critics. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP, Brasil, 2014. 80 p.

The comics’ autobiography is a narrative form capable of providing significant views on the self-expression of the man identity and conflicts in the contemporaneousness. This dissertation objective is to study the dimensions assumed by the self of the autobiographic comics, having as corpus the Holocaust testimony in Europe on the 20th century first half, in Maus, by Art Spiegelman(2009); and the familiar disintegration linked to the Brazilian social inequalities nowadays, in Memória de elefante, by Caeto ( 2010). In a context of multiple times and spaces, plurilinguism, metanarrativity, ex-centricity and dilution of the self, the problem which emerges is how the selected graphic novels answer, in their singular syntax, on the contemporary complexity in the autobiographic structure. The hypothesis is that it is possible to apprehend, in autobiographic comics from two different cultures, a common yearning by a self that confront the oppression devices through subjectivation and desubjectivation authorial processes. This research theoretical basis was: Santaella (2012), Eisner (2001, 2005 and McCloud (2004, 2006) for the comics language reading; Lejeune (2008), Miraux (1996), Nigro, Busato e Amorim (2010) for autobiographic topics; Todorov (1982, 2010), Benjamin (1994, 2006) and, specially, Agamben (2007, 2008, 2010) for the contemporary narrative and the (de)subjectivation matters. According to the analysis, our conclusion is that is a fundamental compositional difference between the two autobiographies: the way the author configures his disappearance and dessubjectivates himself in Maus, in opposition to the identity strengthening and subjectivation, in Memória de elefante, as a reaction to the power devices in the urban centers. Although they have different time and space perspectives, the Spiegelman and Caeto autobiographies keep in common the indissolubility between social critics and traumatic personal experiences. They are composed by subjects that live, narrate and write the trajectories of selves who do not fit in themselves anymore, and face, through the comics narrative art, the devices which annihilate the contemporary subject.

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Sumário

Introdução

1. Literatura e quadrinhos:

configurações contemporâneas da arte primeva de narrar o humano

1.1 Palavras, imagens e a arte narrativa...12

1.2 Literatura, quadrinhos e a contemporaneidade...15

1.3 Narrativas em quadrinhos: uma breve leitura histórico-crítica...18

1.4 Ler imagens lendo palavras, ler palavras lendo imagens...21

2. O autobiográfico e os (não)lugares do eu 2.1 Sobre a autobiografia: conceitos essenciais...28

2.2 Motivações, memória, identidade e alteridade do sujeito autobiográfico...31

2.3 (Não)lugares do eu na autobiografia em quadrinhos...37

3. Dimensões do eu: o zoomórfico e a dessubjetivação em Maus e Memória de elefante 3.1 Maus: o testemunho mudo do rato e sua sombra...41

3.1.1 Capa, prólogo e partes I e II: uma (re)leitura...42

3.1.2 Uma autobiografia colaborativa...47

3.1.3 (Sobre)viver para narrar: testemunho do testemunho da testemunha..49

3.1.4 A presença (in)comunicável do rato e sua sombra, o gato...52

3.2 Memória de elefante,vida vira-lata: jornada de um (anti)herói contemporâneo 3.2.1 Capa, prólogo e estrutura capitular: uma (re)leitura...54

3.2.2 Ironia, autocrítica e crítica...55

3.2.3 O elefante e o cachorro: metáforas da jornada de um (anti)herói...57

3.3 Encaixes: as narrativas dentro das narrativas...59

3.4 Eus que se desdobram: da subjetivação à dessubjetivação...62

3.4.1 Maus e os “papeis que se reinventam nos desvios”...64

3.4.2 O desapossamento do ser pela marginalização em Memória...69 Conclusão

Separata de exemplos do corpus1

1 Optamos por apresentar as figuras separadamente em prol de uma leitura melhor integrada dos

enunciados desta dissertação com seus respectivos exemplos no corpus. A diagramação sequencial de

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Eu lançaria palavras na escuridão e esperaria por um eco, e se eu o escutasse, independentemente de quão tênue fosse, eu enviaria outras palavras para contar, marchar, lutar, criar um sentido de fome que manteria vivo em nossos corações um sentido do inexprimivelmente humano.

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DIMENSÕES DO EU CONTEMPORÂNEO NOS QUADRINHOS AUTOBIOGRÁFICOS

Introdução

As abrangentes visões que o gênero narrativo dos quadrinhos é capaz de propiciar sobre nosso tempo nos possibilitam, além de refletir sobre a produção artística contemporânea, observar como se auto expressam a identidade e os conflitos do homem em nosso tempo. Assim, o ponto central desta pesquisa é o estudo das dimensões assumidas pelo eu nos quadrinhos autobiográficos, seus processos de subjetivação e dessubjetivação no âmbito da produção narrativa contemporânea.

Ler quadrinhos, como ler qualquer obra artística, é vivenciar uma experiência estética particular e universalizante ao mesmo tempo. Elementos peculiares aos quadrinhos, como as marcas de oralidade, a plasticidade da interação da imagem com a palavra e os microcosmos que compõem macro questões, os ratificam como forma contemporânea de umas das expressões artísticas mais antigas e inerentes ao ser humano: a narrativa, o ato de viver para contar e de contar para viver.

O estudo das histórias em quadrinhos está em sintonia com o momento atual, em que os meios de comunicação, e mesmo a produção artística, refletem a superexposição do eu num mundo cada vez mais imagético e midiático. Nesse contexto, os quadrinhos podem ser considerados uma arte marcadamente contemporânea, em que a imagem alcança significações amplas e multifacetadas em sua relação com o texto. Ao estudá-los, podemos entender melhor uma produção artística de extrema atualidade, suas conexões com um modo de representação de origem arcaica – a narrativa – e, em última instância, o ser humano.

O objetivo geral desta pesquisa é estudar o sujeito da autobiografia em quadrinhos. Em específico, buscaremos analisar como esse eu se dimensiona e se dessubjetiva ao narrar a si mesmo e ao mundo; apreender, no corpus, recursos de construção em comum entre a literatura e os quadrinhos; e refletir sobre como essa produção autobiográfica traduz aspectos da produção artística contemporânea.

Para tanto, o corpus constitui-se das seguintes obras:

 CAETO. Memória de elefante. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

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2 Esse corpus apresenta uma ampla variação cultural e espaço-temporal. São narrativas de eus que falam de perspectivas histórico-sociais muito diversas entre si: o testemunho do Holocausto na Europa da primeira metade do século XX em Maus e a Memória de elefante que vincula a desintegração familiar e as desigualdades sociais do Brasil no início do século XXI. Guardadas as diferenças e proporções, são histórias de catástrofes, que podem ser escalonadas do genocídio ao êxodo ao minar das liberdades e direitos fundamentais do indivíduo.

Desse modo, as narrativas em quadrinhos que compõem o corpus tratam, em específico, das seguintes questões:

Maus: A história de um sobrevivente (2009) é o testemunho em quadrinhos de Art Spiegelman sobre a estada – e sobrevivência - de seu pai, o polonês Vladek Spiegelman, em guetos judeus e campos de concentração nazistas. Por meio de um traço denso, escuro e carregado como a própria história narrada, o autor reconstrói a trajetória de Vladek, compreendida dos meados da década de 1930 até o inverno de 1944, desde a juventude e o casamento na Polônia de antes da guerra até o confinamento em Auschwitz. É constante a alternância de narradores nesta história: um narrador que não esteve presente cria as imagens e as palavras para o testemunho de sobrevivência narrado por seu pai - e para seu próprio testemunho de herdeiro da catástrofe.

Memória de elefante (2010), autobiografia em quadrinhos do jovem brasileiro Caeto, está ancorada na morte simbólica dos pais, que se separam na adolescência do protagonista. A mãe se muda para o interior do Estado de São Paulo, enquanto o pai, livreiro falido e doente, se torna cada vez menos capaz de cuidar do filho aspirante a artista visual. Uma sucessão de moradias provisórias e insalubres, relacionamentos efêmeros, porres, empregos precários, conflitos familiares, pobreza e solidão são os desafios enfrentados por este (anti) herói contemporâneo em sua jornada de degradação pessoal, familiar e social até a reconciliação com o pai, o estabelecimento de uma relação amorosa e a obtenção do sucesso profissional, que culmina com a publicação desta obra.

Assim, partimos do seguinte problema: Como as histórias em quadrinhos selecionadas respondem, na singularidade da sintaxe de seu narrar, sobre a complexidade do contemporâneo na construção autobiográfica?

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3 pelo qual as marcas do eu - e seus processos subjetivação e dessubjetivação - estão inscritos na estrutura híbrida entre o literário e o imagético dos quadrinhos autobiográficos. Tendo em vista a presença marcadamente autoral nas narrativas autobiográficas, nossa hipótese de análise é a de que, na constituição lacunar que caracteriza as histórias em quadrinhos, é possível ler as assimetrias e os (não)lugares do eu contemporâneo. Por vezes, é por meio da exposição contínua de um nome, um rosto, ou um eu mudo presentificado nos quadrinhos autobiográficos, que podemos perceber com maior intensidade as marcas de subjetivação e dessubjetivação.

Buscamos subsídios para a leitura da correlação entre a imagem e a palavra seja na obra Leitura de imagens (2012), de Lúcia Santaella, seja em autores consagrados de quadrinhos que se propuseram a refletir sobre sua arte, como Eisner e McCloud. O primeiro é autor de Quadrinhos e arte sequencial (2001), obra de referência baseada em seu curso ministrado na School of Visual Arts de Nova York, e de Narrativas gráficas (2005), que discute os princípios da narrativa por meio da combinação sofisticada de texto e imagem, bem como apresenta exemplos de grandes criadores. McCloud, em Desvendando os quadrinhos (2004), tem o intuito de examinar esta forma artística em sua funcionalidade, apresentando elementos básicos como o modo pelo qual a mente processa esta linguagem, o aspecto histórico e a interação entre palavras, figuras e narração; em Reinventando os quadrinhos (2006), postula esta arte como forma de literatura, além de apresentar o modo como os quadrinhos são criados, lidos e percebidos na modernidade. Ambas as obras teóricas de McCloud estão estruturadas, elas mesmas, como histórias em quadrinhos.

A fundamentação teórica para a questão autobiográfica são os seguintes estudos: O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet (2008), de Philippe Lejeune; L’autobiographie: écriture de soi et sincérité (1996), de Jean-Philippe Miraux; e Literatura e representações do eu: impressões autobiográficas (2010), organizado por Nigro, Busato e Amorim. Além disso, para o estudo das complexas relações entre o eu que se conta e se mostra tomamos por base o clássico Retórica da ficção (1980), de Waine Booth.

Em especial, para a investigação das marcas desse eu que se dessubjetiva na atualidade, e com frequência se rarefaz, deixando um rastro de (não)lugares, buscamos principalmente subsídios teóricos na obra de Giorgio Agamben.

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4 autobiográficas e suas peculiaridades formais; e o comparativo, com a finalidade de detectar como se autopresentificam a identidade, os conflitos e os (não) lugares do eu no corpus e no contexto da produção contemporânea.

A dissertação se desenvolve em três capítulos. O primeiro, “Literatura e quadrinhos: configurações contemporâneas da arte primeva de narrar o humano”, retoma reflexões sobre a função e a importância da arte literária para o humano. Ao fazê-lo, aborda a narrativa desde suas manifestações orais mais arcaicas, passando pela palavra escrita, pela escritura ilustrada até chegar à narrativa em quadrinhos, em que texto e imagem se hibridizam para conformar o ato narrativo. A importância da fabulação para o humano, as marcas da contemporaneidade na produção literária e as estruturas narrativas compostas pela palavra e a imagem são os principais temas abordados neste contexto repleto de limiares.

“O autobiográfico e os (não)lugares do eu” é o capítulo em que são retomados elementos essenciais das narrativas do eu: a presença marcadamente autoral que se instala na assimetria entre o eu biográfico e o eu escritural; a relação de identificação entre autor-narrador-protagonista; os pactos autobiográfico, referencial e com o leitor (LEJEUNE, 2008). No âmbito das narrativas autobiográficas, são destacados a função retrospectiva, a gênese do indivíduo e o caráter catártico, bem como questões fundamentais vinculadas a motivação, memória, identidade e alteridade do sujeito que se autoinscreve. Neste capítulo refletimos sobre as novas configurações do gênero autobiográfico nos contextos social e estético contemporâneos, e o discutimos no âmbito dos quadrinhos, cuja estrutura lacunar e dinâmica se mostra extremamente profícua para a investigação dos (não) lugares do eu.

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5 digressões, crítica e autocrítica - e se articulam em torno da desagregação da família e das desigualdades sociais do Brasil. Discutimos como a remissão às figuras do elefante e do cachorro vira-lata faz com que elas se constituam em metáforas do sujeito autobiográfico de Memória de elefante, um (anti)herói contemporâneo que cumpre sua jornada em uma época na qual a autoexposição pública parece ser uma forma de resistir à rarefação da identidade. O terceiro subtema do capítulo aborda os encaixes, as formas pelas quais narrativas se inscrevem dentro de narrativas na sintaxe dos quadrinhos analisados. O quarto item deste capítulo trata dos eus que se desdobram, seja ao mesclar e contaminar a narração da história de outro eu com a sua própria, seja ao se desdobrar em (não)lugares no gesto de (re)escrever-se nas obras do corpus, indo da subjetivação à dessubjetivação.

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6 1. LITERATURA E QUADRINHOS: CONFIGURAÇÕES

CONTEMPORÂNEAS DA ARTE PRIMEVA DE NARRAR O HUMANO

Toda forma é a resolução de uma dissonância fundamental da existência. Georg Lukács

As narrativas ficcionais – literárias e audiovisuais – são uma „edição‟ da narrativa em estado bruto que é a trajetória humana. Dessa maneira, os sentidos se entrelaçam traçando outros tantos.

Lúcia. C. M. Moreira

1.1 Palavras, imagens e a arte narrativa

Todorov nos traz uma série de reflexões que situam a literatura no ponto em que a arte está em conexão direta com a vida. Ele apresenta a literatura como um discurso sobre o mundo, a encarnação de um pensamento e de uma sensibilidade, e afirma: "o leitor encontra na literatura um sentido que lhe permite compreender melhor o homem e o mundo, para neles descobrir uma beleza que enriqueça sua existência; ao fazê-lo, ele compreende melhor a si mesmo" (2010, p. 33).

Assim, a literatura nos possibilita experimentar o prazer de (re)conhecer o mundo e a existência por meio de representações que nos levem a refletir e a transcender. Ao experimentar as criações literárias, e em contato com a arte em geral, desenvolvemos uma acuidade sobre o real, nos habilitamos a desdobrá-lo e percebê-lo com um olhar renovado. Em seu caráter artístico intrínseco, a produção literária constitui-se em uma criação do humano para o humano sobre o humano e tudo que o rodeia. A esse respeito, Todorov (2010, p. 23) afirma, ainda, que a literatura não nos faz excluir as experiências vividas e sim descobrir mundos que se colocam em continuidade com elas e, assim, nos possibilitam melhor compreendê-las.

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7 O ato de narrar, de contar para viver e de viver para contar, acompanha o ser humano desde a mais arcaica oralidade até manifestações mais contemporâneas, como as histórias em quadrinhos. "Como lembra Thomas Mann, no Dr. Faustus, às vezes o muito novo e o extremamente antigo, o arcaico mesmo, se reencontram em termos de vanguarda" (CAMPOS, 1973, p. 65). Assim, a narrativa é uma expressão artística privilegiada, por meio da qual é possível percorrer liames entre o contemporâneo e o tradicional na representação do humano.

Candido traz uma definição de literatura em contexto mais amplo, identificando-a com todidentificando-as identificando-as criidentificando-ações de toque poético, ficcionidentificando-al ou dridentificando-amático em todos os níveis de uma sociedade e tipos de cultura, e citando como exemplo, neste âmbito abrangente, desde lendas, chistes, anedotas, histórias em quadrinhos, sambas e canções populares até as formas mais complexas da produção escrita das grandes civilizações. Ele conclui que “não há povo nem homem que possa viver sem entrar em contato com alguma espécie de fabulação” (1995, p. 242).

É da seguinte forma que Todorov (2010, p. 22) reitera o atrelamento da abrangência da literatura com sua profunda conexão com o viver: “A literatura não nasce no vazio, mas no centro de um conjunto de discursos vivos, compartilhando com eles numerosas características; não é por acaso que, ao longo da história, suas fronteiras foram inconstantes”.

Desse modo, como negar aos quadrinhos e à literatura uma condição paralela fundada na narratividade? A forma de contar por meio de texto e imagens filia-se à arte palimpséstica de narrar, que se reinventa através dos tempos, se modifica e se sobrepõe. Os quadrinhos são uma expressão contemporânea desta arte que parte dos narradores benjaminianos, calcados na própria vivência e observação do mundo, que passa pela tradição oral, visita mitos e fábulas, reinventa-se na escrita que os registra, incorpora incessantemente novos elementos textuais e imagéticos, e se desdobra em novos modos de criar ficções e contar histórias, transformando, atualizando, hibridizando e subvertendo gêneros. Em algum momento, as ilustrações a serviço do texto passaram a comentá-lo, a interagir com ele e, em determinado ponto, a produção em quadrinhos potencializou essa relação.

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8 contrafluxos da fabulação humana, que aproximamos criticamente as narrativas literárias e as quadrinísticas; e é no espaço liminar da contemporaneidade que pode se dar criticamente o encontro entre o romance textual e o romance gráfico (graphic novel).

No que se refere à plasticidade de forma e sentido, os quadrinhos podem ser, mais uma vez, aproximados da literatura, corroborando com a afirmação de Chklovski (1976, pp. 41, 54) de que o objeto literário pode igualmente ser criado como prosaico e percebido como poético, ou criado como poético e percebido como prosaico, pois seu caráter estético está relacionado à maneira de perceber, sendo criado conscientemente para libertar a percepção do automatismo.

A literatura é, por excelência, plurissignificante - e esta é outra característica fundamental que destacamos nos quadrinhos ao analisar seus processos de representação e estruturas narrativas. Quando só há palavras, é certo que a parte imagética fica atrelada ao infinito da imaginação do leitor, que cola, desloca e recoloca as proposições abertas pelo texto escrito. Quando há a ampla inserção de imagens, como ocorre nas histórias em quadrinhos, temos que considerar uma alteração no processo de leitura, pois a quando a imagem é materializada junto com o texto, ambos passam a gerar significados conjuntos. Nos quadrinhos, a imagem não apenas ilustra o texto e o ratifica, mas também insubordina-se no melhor sentido: contradiz, amplia e/ou questiona, exigindo potência de leitura para a multiplicidade de sentidos oriunda de sua imbricação com as palavras.

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1.2 Literatura, quadrinhos e a contemporaneidade

Segundo Macedo (2000, pp. 223-4), para Lukács, o romance não assimila a realidade numa estrutura rígida, pelo contrário, em sua amplitude e maleabilidade, ele é capaz de transcrever na própria forma narrativa a desarmonia e o conteúdo esquivo do mundo. Este é um conceito-chave para entender a evolução do romance até suas conformações mais contemporâneas.

Entre o romance e o graphic novel podemos identificar, em comum, uma série de questões que marcam a produção estética contemporânea, como a multiplicidade de tempos e espaços, o plurilinguismo1, a paródia, a hibridização, a metanarratividade, a ex-centridade da narrativa e do narrador, a interação com o leitor, os lugares vazios e indeterminados, a diluição do eu.

Essa permeabilidade crítica entre os dois gêneros, a apropriação criteriosa de conceitos advindos da literatura, pode nos proporcionar, a partir da investigação de como as questões da estética contemporânea se configuram na estrutura híbrida e dinâmica entre o verbal e o imagético dos quadrinhos, uma reflexão sobre as questões identitárias e os conflitos humanos expressos nas autobiografias do corpus.

Em Uma introdução à poética da diversidade (2005), Glissant concebe o encontro de culturas na contemporaneidade como um definidor da identidade - e o lugar de onde se fala como determinante de uma singularidade histórica. Embora veja a globalização como fenômeno de acirramento, e não de aglutinação das diferenças, ele a considera uma oportunidade para que se definam e sobressaiam as identidades.

Assim, o filósofo propõe uma reflexão em torno do movimento centrípeto das culturas, em que é essencial o conceito de “rizoma” como fator de conexão igualitária da heterogeneidade e multiplicidade entre os povos. Ele nos fala das redes de “relação”, em que as culturas e os homens não “são”, e sim “estão” em constante movimento e mutação (ALBERGARIA, 2013, p. 192). Sobre o pensamento de Glissant, Albergaria afirma:

O olhar crítico de Glissant se exerce sobre o sistema metafísico ocidental como um todo. A prevalência da racionalidade, o pensamento abstrato, a questão do „ser‟ e da „essência‟ que o singulariza na constituição histórica do indivíduo portador de uma „identidade abstrata‟, a generalização do particular ocidental

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como universal, o conceito de totalidade abstrata, a transparência do „real‟e seus corolários – a transparência e objetividade do conhecimento -, a imposição da História em detrimento das histórias dos povos colonizados, dentre outros, são analisados do ponto de vista desses últimos (2013, pp. 184-5).

Glissant destaca, ainda, o papel fundamental da literatura e da arte na construção identitária dos povos que irrompem na contemporaneidade, sendo elas fatores cruciais no fortalecimento do imaginário utópico das coletividades constituídas na crioulização resultante do choque entre culturas “atávicas” e “compósitas”. Tomamos essa perspectiva, que considera a diversidade cultural e uma (des)acomodação dinâmica entre os povos e seus imaginários, como ponto inicial para a reflexão sobre as características da produção literária contemporânea.

Adorno nos fornece um diagnóstico seminal do contexto que engendra essa produção:

A reificação de todas as relações entre os indivíduos, que transforma suas qualidades humanas em lubrificante para o andamento macio da maquinaria, a alienação e a auto alienação universais, exigem ser chamadas pelo nome, e para isso o romance está qualificado como poucas outras formas de arte (2000, p.56).

Rosenfeld (1996, pp. 85-6, 97) define a atualidade como uma época de desmascaramento da ordem fictícia imposta à realidade até então. Um momento de transição de valores, que exige adaptações estéticas capazes de assimilar e redefinir, na própria estrutura da obra e não apenas na temática, o estado de insegurança e precariedade da posição do indivíduo no mundo. As lacunas e os cortes precisos fazem dos quadrinhos uma expressão artística muito propícia à representação dessas novas configurações.

O romance contemporâneo está totalmente imbuído do plurilinguismo. No romance gráfico, a essa polifonia soma-se a voz da imagem: as histórias em quadrinhos são obras altamente dialógicas, estruturadas em diferentes vozes capazes de compor uma lógica constituída a partir da fragmentação. Neste gênero, como vimos, as imagens se combinam às palavras e, mais do que isso, de modo dinâmico ambas se ressignificam ou mesmo se questionam, podendo trazer à obra a complexidade de uns "olhos de ressaca".

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11 Os quadrinhos já são, por sua estrutura, uma construção lacunar e de criteriosa composição, visto que seu autor deve trabalhar aspectos como a concisão da linguagem, a articulação equilibrada entre texto e imagem, e a seleção da imagem e do ângulo mais adequados para que uma única cena possa ser representativa de uma sequência de movimentos. Basta lembrar que eles também são denominados arte sequencial, termo que leva em conta o recorte de movimentos em sequência que os compõem (EISNER, 2001, p. 5). Assim, a fragmentação está fortemente presente nos tempos e espaços

assimétricos construídos nos quadros das narrativas em quadrinhos.

Essa constituição lacunar é um espaço profícuo de (não)lugares de passagem, nos quais o sentido, como um gesto, por vezes se insinua apenas, sem se mostrar às claras. Por isso, quando bem executada, a narrativa em quadrinhos exige do leitor uma desautomatização do olhar, uma postura muito ativa de interação com essa pluripotência de sentidos. Só assim é possível a ler a continuidade da vida que se narra por entre a descontinuidade desses quadros e ações.

Tal estrutura, que prima pela fuga da centralização, é fundamental para os romances gráficos contemporâneos. Segundo Hutcheon (1991, p. 96), “ser ex-cêntrico, ficar na fronteira ou na margem, ficar dentro e, apesar disso, fora é ter uma perspectiva diferente […], uma perspectiva que está sempre alterando o seu foco porque não possui força centralizadora”.

A paródia2 é um recurso estilístico muito utilizado nos quadrinhos. Em específico, nas narrativas que compõem o corpus, ela funciona como um instrumento que permite ao autor distanciar-se do narrador-protagonista em alguns momentos e, por meio do humor e/ou da ironia, modular o aspecto trágico de sua história.

A passagem da página 18 de Memória de elefante, reproduzida na < Figura 1 >, é um exemplo de uso da paródia, em que a ruptura irônica com o passado é o elemento chave para o autobiógrafo redimensioná-lo, pois ela conjuga a reafirmação e o questionamento no mesmo âmbito. Nesta sequência, o narrador se apresenta em meio aos frequentadores habituais (“figurinhas carimbadas”) dos vernissages paulistanos. Ali ele contrapõe a atitude de seu amigo Ulisses, observadora e crítica da exposição, à sua, oportunista e mais interessada nos coquetéis oferecidos nessas ocasiões. Entretanto, não

2

Segundo Hutcheon, a paródia é uma forma de ruptura irônica com o passado, é “repetição que inclui

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12 deixa de registrar uma autocrítica à própria postura (“Eu seguia em minha jornada de autodestruição alcoólica”). É precisamente em passagens como essa que o retrospecto pode aliar a crítica à autocrítica, oferecendo uma visão renovada do passado. Um recurso original empregado para esse fim é o balão de pensamento alheio, incoerência em uma narrativa convencional em primeira pessoa, que não teria como saber os pensamentos de terceiros, mas uma possibilidade recorrente no universo criado pela contaminação entre texto e imagem nas histórias em quadrinhos.

Assim, no âmbito fértil das possiblidades das histórias em quadrinhos, não raro o leitor depara-se com passagens de cunho humorístico/paródico, com a metanarratividade compondo um sistema maior de ressignificações e com obras que já incorporam em sua forma a ex-centridade da narrativa e do narrador em um ir e vir temático, temporal e espacial, de modo que a dissolução do eu é uma consequência cambiante e um sintoma inevitável, como demonstraremos na análise do corpus.

1.3 Narrativas em quadrinhos: uma breve leitura histórico-crítica

Eisner (1999, p.13) resume o histórico dos quadrinhos do seguinte modo: Essa mistura especial de duas formas distintas [palavras e imagens] não é nova. Fizeram-se experimentos com a sua justaposição desde os tempos mais antigos. A inclusão de inscrições, empregadas como enunciados das pessoas retratadas em pinturas medievais, foi abandonada, de modo geral, após o século XVI. Desde então, os esforços dos artistas para expressar enunciados que fossem além da decoração ou da produção de retratos limitaram-se a expressões faciais, posturas e cenários simbólicos. O uso de inscrições reapareceu em panfletos e publicações populares no século XVIII. Então, os artistas que lidavam com a arte de contar histórias, destinada ao público de massa, procuraram criar uma Gestalt, uma linguagem coesa que servisse como veículo para a expressão de uma complexidade de pensamentos, sons, ações e ideias numa disposição em sequência, separada por quadros.

Consideramos que também é relevante citar que os hieróglifos do Egito Antigo já eram uma linguagem gráfica que aglutinava significado e significante.

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13 aclamada série de quadrinhos publicada em jornais há mais de 30 anos, criou uma obra de 178 páginas chamada A contract with God and other tenement stories3, inaugurando uma revolução no modo como os quadrinhos eram vistos. Embora tecnicamente fosse uma coletânea de quatro histórias curtas, equivalentes a contos literários, Eisner chamou sua criação de graphic novel, e assim surgia a primeira obra em quadrinhos que tinha a forma de um livro. Outros quadrinistas começaram a ver nos formatos mais extensos um meio extremamente adequado para obras muito mais complexas e desafiadoras do que aquelas produzidas até então. O progresso das tiras para os gibis ou periódicos e destes para os romances gráficos ou livros trouxe implícita uma afirmação de valor e permanência (2006, pp. 26, 28).

Os graphic novels, ou romances gráficos, como designaremos essa produção quadrinística daqui em diante, seriam um equivalente gráfico dos romances e novelas. Seu surgimento representou um importante marco para a valorização das histórias em quadrinhos e revelou grandes autores e obras. O fato de se estenderem por mais de cinquenta, cem e até duzentas páginas, e as incomensuráveis possibilidades de combinação entre imagem e texto para se contar uma história resultaram em grandes inovações e experimentações formais no gênero.

McCloud (2006, p. 7) enumera alguns dos gêneros quadrinísticos atualmente mais conhecidos ou em evidência: fantasias de superpoderes, autobiografia, ficção científica e animais cômicos. A eles acrescentaríamos os inovadores documentários em quadrinhos e as adaptações de clássicos da literatura; além das tirinhas, charges e cartuns, frequentemente publicados em jornais e revistas, que se caracterizam pela periodicidade diária ou semanal, pela curta extensão (em geral, de um a três quadros) e por se constituírem, na maioria das vezes, em torno do universo de uma personagem. São histórias que podem ser lidas isoladamente ou em conjunto, revelando uma pluralidade de modos de recepção.

Nesse sentido, McCloud (2006, p. 10) postula que os quadrinhos constituem um corpo de obra digno de estudo, representando significativamente a vida, o tempo e a visão de mundo do autor, e destaca que o prestigioso Prêmio Pulitzer norte-americano de literatura foi concedido a Art Spiegelman em 1992, pelo romance gráfico Maus, que comporá nosso corpus de análise.

Eisner denomina os quadrinhos de arte sequencial, “uma forma artística e

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14 literária que lida com a disposição de figuras ou imagens e palavras para narrar uma história ou dramatizar uma ideia”, na qual “as regências da arte (por exemplo, perspectiva, simetria, pincelada) e as regências da literatura (por exemplo, gramática, enredo, sintaxe) se superpõem mutuamente” (2001, pp. 5, 8). É considerável seu pioneirismo de, ainda na primeira metade do século XX, atribuir igual valoração à imagem e à palavra na composição da sintaxe sequenciada dos quadrinhos. Há que se reconhecer a singularidade de sua contribuição crítica e a iniciativa do artista de refletir sobre o meio em que se dá sua criação, embora seja preciso ponderar que sua reflexão por vezes se prende por demais à técnica, deixando à margem aspectos importantes.

McCloud define os quadrinhos como “imagens pictóricas e outras [palavras] justapostas em sequência deliberada, destinadas a transmitir informações e/ou a produzir uma resposta no espectador” (2005, p. 9). Apesar de sua linha de reflexão também algo imprecisa, destacamos que ele introduz um importante elemento a sua definição: a participação do leitor, por McCloud denominado espectador, na construção do sentido.

Umberto Eco, de modo mais sucinto, define os quadrinhos como “união palavras-ação por meio de artifícios gráficos” (2004, p. 62).

Em comum, os três teóricos citados destacam a inegável e crescente posição de destaque das histórias em quadrinhos na cultura popular do século XX em diante. Eco não deixa, entretanto, de enfatizar que os quadrinhos são um produto da cultura de massas, instância social que, “na maioria das vezes, representa e propõe situações humanas sem conexão alguma com as situações dos consumidores, e que, todavia, se transformam para eles em situações-modelo” (2004, p. 25). Ele vai além em sua reflexão e pondera:

Deveremos então dizer que a estória (sic) em quadrinhos, encerrada nas regras

férreas do circuito industrial-comercial da produção e do consumo, só se destina a oferecer os produtos padronizados de um paternalismo às vezes incônscio e às vezes programado? Tendo elaborado, como elaborou, módulos estilísticos, talhes narrativos, propostas de gosto indiscutivelmente originais e estimulantes para a massa que as assimilava, sempre usará, no entanto, dessas audácias artísticas para uma constante função de evasão e de mascaramento da realidade? [...] no interior desses vários circuitos de produção e consumo, viram-se agir artistas que, usando das oportunidades concedidas a todos os demais, conseguiram mudar profundamente o modo de sentir dos seus consumidores, desenvolvendo, dentro do sistema, uma função crítica e liberatória (ECO, 2004, p. 283).

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15 potencialidades de elaborada produção baseada na escolha de palavras concisas e imagens eloquentes - e na conjunção precisa das duas. Os quadrinhos podem ser considerados como uma forma de arte contemporânea em diálogo com um mundo cada vez mais imagético, mas não como um produto exclusivamente negativo dessa realidade. Seu caráter de criação elaborada e complexa, capaz de se conectar com grandes temas, narrar a condição humana e gerar reflexões e questionamentos sobre ela, lhe franqueiam o status de obra artística.

Considerando as concepções acima, buscamos abordar as histórias em quadrinhos como um gênero ultracontemporâneo, capaz de vislumbrar e incorporar múltiplas possibilidades de expressão características da modernidade líquida, em constante mutação, descrita por Damazio (2014, p. 15), com base nos estudos de Bauman (2000), como “um estado de coisas instável e volátil, em que os parâmetros de racionalidade e moral se diluem no pragmatismo funcional de um sistema político e econômico de consumo, impessoalidade e banalização”.

Assim, as obras mais vanguardistas de quadrinhos são simultaneamente atuais e atemporais, ou seja, podemos afirmar que elas mantêm uma relação singular com o tempo, aderindo a ele por meio de uma associação e um anacronismo, conforme definição de Agamben (2010, p. 59). Como outras produções da arte contemporânea, os quadrinhos nos permitem uma perspectiva renovada de criação e fruição artística, fragmentária e inconclusiva, pois permanece sempre aberta a suscitar novas questões e sentidos ao leitor.

1.4 Ler imagens lendo palavras, ler palavras lendo imagens

O conceito de montagem está presente em toda a cultura humana. O pensamento humano é a montagem e a cultura humana é o resultado de um processo de montagem, em que o passado não

desaparece e sim se reincorpora, reinterpretado no presente. Sergei Eisenstein

Tendo em vista a indissociabilidade da palavra e da imagem nas narrativas em quadrinhos, buscamos subsídios teóricos em alguns autores que refletem sobre isso, como McCloud, Eisner e Santaella.

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16 A história em quadrinhos lida com dois importantes dispositivos da

comunicação, palavras e imagens. Decerto trata-se de uma separação arbitrária. [...] Na verdade, eles derivam de uma mesma origem e, no emprego habilidoso de palavras e imagens encontra-se o potencial expressivo do veículo (1999, p.13)

Ao teorizar, McCloud aponta a escassez da produção crítica sobre os quadrinhos. Ele mesmo quadrinista, busca suprir esta lacuna servindo-se, de forma inédita, do próprio recurso dos quadrinhos para teorizar sobre a história, as peculiaridades estéticas e o papel destes no contexto artístico-cultural. Embora por vezes sua reflexão ocorra de forma pouco aprofundada, até equivocada ao se estender a outros campos do saber, e devido a isso apresente imprecisões, sua contribuição é relevante para um pensamento sobre os quadrinhos como arte híbrida e conectada a outras formas narrativas - como a literatura, o cinema e a animação - e que inclui o leitor como participante ativo na construção de sentidos.

Segundo Santaella (2012, p. 11), desde os livros ilustrados e as enciclopédias, o código escrito foi historicamente se mesclando a desenhos, esquemas, diagramas e fotografias, e o ato de ler foi igualmente se expandindo para outros tipos de linguagem. Com o advento dos jornais e revistas, a leitura deixou de se limitar à decifração de letras e passou a incorporar, cada vez mais, as relações entre a palavra e a imagem. A teórica nos fala de três domínios da imagem: o das imagens mentais, imaginadas e oníricas, que brotam da mente e não precisam ter vínculos com imagens já percebidas; o das imagens diretamente perceptíveis, que apreendemos do mundo visível; e o das imagens como representações visuais (desenhos, pinturas, gravuras, fotografias, telecinéticas, holografias e infografias), nas quais nos deteremos ao estudar os quadrinhos (SANTAELLA, 2012, pp. 16-7).

Embora na passagem a seguir Chklovski (1976, p. 50) não se refira de forma específica às imagens representacionais, cremos que o mesmo raciocínio também possa ser aplicado a elas: "... a imagem não é um predicado constante para sujeitos variáveis. O objetivo da imagem não é tornar mais próxima de nossa compreensão a significação que ela traz, mas criar uma percepção particular do objeto, criar uma visão e não seu reconhecimento". Para Santaella (2012, p. 22), interpretar imagens é um processo que vai além do mero reconhecimento. Tais concepções reforçam a fluidez e a interdependência entre texto e imagem nas histórias em quadrinhos.

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17 linear, palavra após palavra, e recebido de forma sucessiva. Assim, o princípio da representação por imagens é a semelhança entre a aparência da imagem e aquilo que ela designa; enquanto as palavras mantém uma relação conceitual com aquilo que elas se destinam a significar. Nos quadrinhos, essa combinação da palavra com a imagem multiplica sentidos a partir das combinações entre o contar e o mostrar que vão sendo criadas nas relações dinâmicas estabelecidas na peculiaridade de sua sintaxe.

No prólogo de Maus < Figura 2 >, é possível observar os aspectos acima mencionados. Todo um amplo contexto é dado, de forma muito concisa, pela articulação entre texto e imagem, potencializando sentidos. Em apenas uma página, o leitor toma conhecimento de inúmeras informações preliminares (Art Spiegelman aos 10 ou 11 anos, em 1958, em Nova Iorque, a patinar com os colegas, seu pai sempre ocupado em trabalhos do tipo “faça você mesmo”) à história principal que vai ser narrada. Os elementos dos três primeiros quadros apresentam uma composição orientada transversalmente, indicando movimento para a direita e adiante, o que passa uma noção de progressividade. No segundo quadro, que trabalha com dois ângulos ao mesmo tempo, o detalhe da quebra do patim de Art, e sua reação ao não ser ajudado pelos colegas, prenuncia uma sensação de descompasso que pontuará subliminarmente toda a autobiografia. Corrobora essa disposição, o uso de onomatopeias (“rá,rá; snk,snf”), recurso típico dos quadrinhos, para marcar as posturas opostas de riso (dos colegas) e choro (de Art). Nesta página, também destacamos outros dois recursos composicionais: a) a diversidade de ângulos como elemento ativo na dinâmica narrativa: o ponto de vista muda do frontal, no segundo e terceiro quadros, para o posterior, no quarto e quinto quadros, gerando uma aproximação entre o leitor e o garoto deixado para trás pelos colegas; b) a apreensão de sentidos na estrutura lacunar: entre o quarto e o quinto quadros, a composição precisa não deixa dúvidas de que Art se levantou e foi procurar o pai, embora essa sequência não esteja representada.

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18 Já McCloud, a partir de sua percepção como artista, propõe uma tipologia para a combinação entre palavras e imagens na linguagem dos quadrinhos, que consideramos relevante reproduzir aqui: combinação específica de palavras, em que as figuras ilustram, mas não acrescentam quase nada a um texto; combinação específica de imagens, em que as palavras só acrescentam uma “trilha sonora” a uma sequência narrada visualmente; equivalência entre palavra e imagem na transmissão da mensagem; combinação aditiva, em que palavras ampliam ou elaboram uma informação sobre uma imagem; combinação paralela, em que palavras e imagens seguem trilhas diferentes e sem intersecção; montagem, em que palavras se tornam parte da figura; combinação interdependente, em que palavras e imagens se unem para transmitir uma ideia que nenhuma das duas poderia exprimir sozinha. Para ele, em geral, quanto mais se narra com as palavras, mais as imagens podem ser livremente exploradas e vice-versa (MCCLOUD, 2005, pp. 154-7). Tal tipologia reitera a riqueza e variedade de relações que a imagem e a palavra podem assumir nos quadrinhos para gerar novos sentidos advindos dessa combinação.

No âmbito do romance, Booth (1980, pp. 33, 82) aponta a diferença entre sumário, no qual predomina o contar, isto é, o descrever de determinado episódio ou cenário; e a cena, na qual prevalece o mostrar, caracterizado pela dramatização e narração direta das ações. Ele enfatiza que, em geral, as obras são compostas por uma combinação desses recursos, modulada conforme o efeito desejado pelo autor implícito, e que a arte não está na “aderência a um modo supremo de narração, mas sim na habilidade de ordenar várias formas de contar ao serviço de várias formas de mostrar”; e em escolher “o que dramatizar em profundidade e o que reduzir, o que sumarizar e o que salientar”. Nos quadrinhos, na maioria das vezes, a cena e o sumário, o mostrar (pela imagem) e o contar (pela palavra) ocorrem de forma concomitante, visto que a narrativa se desenvolve na combinação indissociável destas duas formas de expressão artística. Entretanto, a narração de algumas sequências pode ocorrer exclusivamente por meio das imagens, predominando, nesses casos, a narração pela cena.

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19 generalizações capazes de oferecer modelos e mesmo veicular conceitos ou ideologias de forma implícita. Por exemplo, representar judeus e descendentes como ratos, e nazistas e alemães como gatos, é uma escolha formal que traz implícita uma opção ideológica. Essa representação zoomórfica, que basicamente diferencia personagens pela indumentária – e às vezes pela constituição física mais óbvia (gordo/magro, criança/adulto, alto/baixo) - dessingulariza traços individuais, marcando que esse é um relato individual, mas que também se aplica a uma coletividade. Para além, como veremos mais detalhadamente no terceiro capítulo, a escolha autoral de representar-se – e a seu povo – como ratos, em oposição aos gatos, pode embutir uma autopercepção que, em certo grau, corrobora a visão do carrasco.

Passando a detalhar a “gramática” dos quadrinhos, citamos a definição de McCloud (2005, pp. 98-100) para os chamados quadros, ou requadros, que funcionam como indicadores gerais da divisão de tempo e espaço, embora a duração do tempo e as dimensões do espaço sejam definidas mais pelo conteúdo do quadro do que pelo quadro em si. Ele afirma que, ao ler quadrinhos, percebemos o tempo espacialmente, pois neles tempo e espaço estão conjugados: os poucos centímetros que nos transportam de segundo para segundo numa sequência podem nos levar por milhões de anos em outra. Eisner apresenta outro aspecto da função e relevância do requadro para esta arte narrativa ao dizer que:

Além de sua função principal de moldura dentro da qual se colocam objetos e ações, o requadro do quadrinho em si pode ser usado como parte da linguagem „não verbal‟ da arte sequencial. [...] O formato (ou ausência) do requadro pode se tornar parte da história em si. Ele pode expressar algo sobre a dimensão do som e do clima emocional em que ocorre a ação, assim como contribuir para a atmosfera da página como um todo (1999, pp. 44-6).

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20 Nesse contexto, se insere o que o jargão quadrinista denomina “sarjeta”, o elemento responsável por “grande parte da magia e mistério que existem na essência dos quadrinhos”. É nesse espaço, entre um quadro e outro, que a imaginação humana capta duas imagens distintas e as transforma em uma ideia unificada (MCCLOUD, 2005, pp. 66-7). A nosso ver, essa caraterística fundamental dos quadrinhos poderia ser mais bem definida como condensação seletiva, que implica a habilidade de o autor criar uma cena representativa de toda uma sequência de ações, sem ser redundante ou excessivamente sucinto, como no exemplo abaixo.

Na passagem do último quadro da página 63 para o primeiro quadro da página 64 < Figura 3 > de Memória de elefante, há um exemplo habilidoso do uso sarjeta - esse espaço lacunar condutor de sentidos - em favor de uma proposição crítica e irônica, enfatizada pelos fundos negros, sem objetos cênicos, nos quadros em destaque nesta análise. A crítica se configura no quadro da página 63, que ocorre após uma sequência na qual Caeto explica seu desinteresse e desilusão com o universo escolar. Em uma virada de página, da sarjeta da página 63 para a 64, ocorre a passagem de mais de uma década, trazendo um tempo presente no qual Caeto confronta ironicamente o futuro de seu passado escolar: o desemprego.

O traço é um recurso formal que também condensa sentidos de modo especial, podendo agregar uma carga emocional, ecoar ou acentuar o gesto narrativo. Assim, em Maus, o traço é predominantemente denso e carregado de escuros, uma consonância ao teor trágico dessa narrativa; ao passo que, em Memória de elefante, apesar de forte, o traço é um pouco mais leve e há mais espaço para o branco, um reflexo da ironia juvenil com que a narrativa é conduzida.

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21 narrativa, Caeto desenvolveu seu próprio alfabeto, uma tipologia batizada com o nome do autor e consonante aos traços das imagens. As onomatopeias constituem um vocabulário singular e profícuo na linguagem das histórias em quadrinhos, que, além de se apropriar das onomatopeias de uso corrente, cria constantemente outras novas.

Outro importante elemento constitutivo de sentido é, como aponta Eisner, a perspectiva:

A função primordial da perspectiva deve ser a de manipular a orientação do leitor para um propósito que esteja de acordo com o plano narrativo do autor. [...] a reação da pessoa que vê determinada cena é influenciada pela sua posição de espectador. Ao olhar uma cena de cima, o espectador tem uma sensação de pequenez, que estimula uma sensação de medo. O formato do quadrinho em combinação com a perspectiva provoca essas reações porque somos receptivos ao ambiente. Um quadrinho estreito evoca uma sensação de encurralamento, de confinamento, ao passo que um quadrinho largo sugere abundância de espaço para movimento – ou fuga (1999, p. 89).

Um exemplo do recurso da flexão da perspectiva em favor da composição narrativa está no excerto da página 250 < Figura 4 > de Maus, em que Art e sua esposa, dentro do carro no estacionamento de um supermercado, trocam impressões sobre Vladek enquanto este vai trocar um produto. Na primeira metade da página, o posicionamento da perspectiva leva o leitor ao interior do carro, como se do banco de trás, ele efetivamente participasse da cena. Na segunda parte da página, quando Vladek retorna, a perspectiva passa o exterior do carro, incluindo o âmbito do estacionamento e Vladek na ação. A manipulação da luz sobre as personagens, que representa o casal quase como apenas silhuetas, também concorre para os efeitos de diferenciação entre o dentro e o fora, e entre o nós (Art, esposa e leitor) e o ele (Vladek).

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22 2. O AUTOBIOGRÁFICO E OS (NÃO)LUGARES DO EU

Não tinha sido afinal uma experiência nova. Tinha sido, pelo contrário, a mesma experiência de sempre, como nova. E nisso estava toda a diferença. Jorge de Sena

2.1 Sobre a autobiografia: conceitos essenciais

Miraux4 faz um resgate da definição de autobiografia para Starobinski (1970, p. 257), que afirmava ser esta a biografia de uma pessoa feita por ela mesma, preenchendo três condições incontornáveis (grifo nosso): “identificação entre o narrador e o herói, majoritariamente ser narração e não descrição, conter noção de percurso ou traçado de uma vida” (apud MIRAUX, 1996, p. 15). Como veremos a seguir, as fronteiras dessa definição foram se esgarçando.

Em O pacto autobiográfico (1974), Lejeune nos fornece uma das definições mais difundidas de autobiografia: “Narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua personalidade”. Entretanto, em O pacto autobiográfico: de Rosseau à internet (2008), ele repensa essa concepção, observando que a autobiografia deve contemplar, embora não rigorosamente (grifo nosso), as seguintes categorias: ser uma narrativa em prosa que tenha por tema a vida individual, a história de uma personalidade; apresentar correspondência entre autor (cuja identidade remete a uma pessoa real), narrador e personagem principal; ter uma perspectiva retrospectiva. Nessa revisão, ele também relativiza algumas fronteiras entre o romance autobiográfico e a autobiografia; além de incluir neste gênero a categoria mais recente da autobiografia dos que não escrevem e a possibilidade da narração em primeira ou terceira pessoa, desde que se mantenha uma relação de identidade entre autor, narrador e personagem (LEJEUNE, 2008, pp. 14-5).

Retomar conceitos e definições contribui na distinção entre biografia e autobiografia, e entre esta e outras narrativas do eu, como as memórias, o diário, o autorretrato, o ensaio, o romance e o poema autobiográficos. Uma segunda distinção, entre ficção e não-ficção, segundo Miraux (1996, p. 7), aplicada à narrativa de uma vida

4

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23 permite a compreensão do efeito de transposição que opera o autobiografado quando narra sua experiência. Ainda, relacionar conceitos clássicos aos estudos mais recentes, como a autobiografia dos que não escrevem, caso de Maus, uma voz autobiográfica que fala pelo outro (pai), mas também por si (filho), nos auxilia a pensar sobre os (não)lugares do eu na contemporaneidade.

Assim, o foco no eu – próprio ou de um terceiro - não impede que a história social ou política também ocupem certo espaço na autobiografia, como ocorre diretamente em Maus: a história de um sobrevivente, indissociável do genocídio judeu perpetrado pelo nazismo na II Guerra Mundial; e indiretamente em Memória de elefante, em que o autor-narrador-personagem, ao narrar as desventuras de sua decadência familiar e pessoal, tem como fundo as intensas desigualdades sociais brasileiras.

Também nos cabe aqui citar os três pactos – o autobiográfico, o referencial e o que se faz com o leitor -, que permitem, de acordo com Lejeune (2008), distinguir com nitidez a escrita autobiográfica da biografia e das outras narrativas do eu. Assim, segundo o teórico (2008, pp. 26, 36), o pacto autobiográfico é a afirmação da identidade entre autor, narrador e protagonista no texto, remetendo, em última instância, ao nome do autor, registrado na capa do livro. As formas do pacto autobiográfico são diversas, mas todas manifestam a intenção de honrar a assinatura do autor, de modo que o leitor pode levantar questões quanto à semelhança, mas nunca quanto à identidade. Já o pacto referencial (LEJEUNE, 2008, pp. 36-7) é, em geral, coextensivo ao autobiográfico, sendo difícil dissociá-los. Em oposição às formas narrativas ficcionais, a biografia e a autobiografia são textos referenciais porque se propõem a informar sobre uma realidade externa ao texto e passível de verificação. Nesses textos referenciais, como na biografia, o objetivo não é a verossimilhança, ou efeito de real, mas a semelhança com o verdadeiro, com a imagem do real.

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24 A sinceridade substitui a verdade, pelo menos a sinceridade interior é

infinitamente mais confiável que a verdade racional, fria e objetiva; vimos que os fatos não significam nada; eles não significam que vivemos através da percepção do narrador-personagem que, sincero, os relata. A escritura sincera é um fluxo ininterrupto de palavras e frases que se exprimem dentro da verdade íntima do ser (1996, p. 51).

Por fim, a problemática definidora da autobiografia não reside exclusivamente na relação entre a referência extratextual e o texto, nem em seus elementos estruturais internos, mas também no pacto explícito ou implícito proposto pelo autor ao leitor, que determina o modo de leitura e engendra os efeitos que definirão o texto como autobiografia: “É nesse nível global que se define a autobiografia: é tanto um modo de leitura quanto um tipo de escrita, é um efeito contratual historicamente variável” (LEJEUNE, 2008, pp. 45-6).

A página 25 de Maus < Figura 5 > é uma estrutura em que o leitor está implicado como parceiro do autor e, por conseguinte, um exemplo do pacto com o leitor. Nela, Vladek solicita que o filho não mencione seu namoro com Lúcia no romance gráfico, para não expor um lado que julga menos memorável. Ao mesmo tempo autor, personagem e narrador de uma história na qual se encaixa a de seu pai, Art, ao prometer a Vladek que não vai narrar algo que já está sendo revelado ao leitor, está reiterando o pacto com este último. O fato de pai e filho estarem representados em preto apenas na passagem contida no último quadro da página, mais que uma elaboração formal dos efeitos da incidência da luz, presta-se a marcar visualmente a quebra da promessa de Art para com Vladek - e a cumplicidade do primeiro com o leitor.

Assim, o texto é um tecido de espaços em branco, de interstícios a preencher, e quem o escreve prevê que eles serão preenchidos; primeiramente porque o texto é um mecanismo econômico, que vive da mais-valia de sentido introduzida pelo destinatário; depois porque, à medida que passa da função didática à estética, o autor busca deixar ao leitor a iniciativa interpretativa, mesmo que deseje ser interpretado com uma margem razoável de univocidade (ECO, 1985, p. 64 apud MIRAUX, 1996, p. 89).

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2.2 Motivações, memória, identidade e

alteridade do sujeito autobiográfico

Uma identidade vai sempre infringir em outras que também existem nos mesmos e contínuos espaços.

A.R. Mufti

Tendo apresentado definições fundamentais da escrita autobiográfica, suas principais condições constitutivas (caráter retrospectivo, gênese de uma trajetória individual e identidade entre autor-narrador-protagonista) e os pactos implícitos nesse gênero de narrativa do eu (autobiográfico, referencial e com o leitor), julgamos oportuno abordar as motivações que o incitam.

Para Miraux, a escrita autobiográfica não se constrói aleatoriamente, mas sim à luz de uma experiência anterior. Ela chama o escritor à responsabilidade de seus atos, pensamentos e crenças, e o leva a responder à questão: „Quem sou eu?‟ por meio da sanção peremptória: „Você é o que foi‟ ou „Você é a razão do que foi‟. O teórico francês parte da perspectiva de que o aspecto pessoal pode reencontrar na atividade escritural a possibilidade de uma nova existência, em que o auto inscreve na vida a decisão de escrever. A autobiografia seria renascimento, iniciativa que fornece condições para uma reconstituição e uma eventual reconquista de si. Para ele, “a escritura traça a explicação e a explicação motiva a escritura, transformando acasos em causas, incertezas em raízes, gestos imotivados em fundamentos profundos” (MIRAUX, 1996, pp. 11, 34, 35).

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26 Obviamente, o eu autobiográfico pode estar imbuído de mais de uma motivação, e esta condição essencial coloca em evidência o papel catártico e, ao mesmo tempo, crítico da escrita de si mesmo: “Colocar cada um dos atos importantes de sua vida diante do tribunal de sua consciência lhe permite melhor se compreender. [...] Ao retraçar o percurso dos episódios da vida, o escritor consegue compreender porque ele se tornou o homem presente, este que se escreve” (MIRAUX, 1996, pp. 34-5).

Tomamos o corpus de nossa pesquisa para exemplificar alguns desses principais fatores que motivam a escrita autobiográfica. Assim, ao narrar uma série de moradas insalubres e provisórias, vicissitudes e uma grande solidão em meio a relações pessoais e familiares desestruturadoras, Caeto, o autor-narrador-protagonista de Memória de elefante (2010), aborda o bem-estar perdido de sua infância, os riscos de viver e a mortalidade. Ao traçar um sincero e irônico autorretrato, busca principalmente elucidar e reorganizar sua existência, superar suas diferenças com os pais e, acima de tudo, reconciliar-se com sua própria vida.

Algumas das principais motivações da autobiografia colaborativa dos Spiegelman, pesquisadas dentre as referências fornecidas por Miraux (1996, pp. 40, 60), são: elucidar momentos formadores de sua(s) personalidade(s) e realizar um balanço de vida; assumir uma vertente confessional; buscar a compreensão do complexo percurso da existência; fornecer um exemplo útil ao leitor; e principalmente testemunhar as próprias vicissitudes e as de outrem, além de realizar a elegia de um passado remoto ou recente, culminando na catarse e na crítica de si mesmo por meio da escrita.

A memória é um dos principais fatores de tensão entre o vivido e o narrado na autobiografia. Sua falibilidade, sua seletividade quase involuntária indicam a impossibilidade do indivíduo se autonarrar integral e fielmente. Nesse sentido, “o universo real se torna um universo lacunar, um mundo de vacuidade, como se a existência tangível não fosse mais que uma presença de ausências, um mundo do esquecimento” (MIRAUX, 1996, p. 57).

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27 Nesse contexto, “a autobiografia é o relembrar das relembranças”, isto é, ainda que a vida seja composta pela multiplicidade, a disseminação e a dispersão, a narração retrospectiva busca um espaço de controle para organizar os eventos vividos. Somente a escritura como manifestação artística pode permitir à autobiografia edificar este eu remodelado (MIRAUX, 1996, pp. 74-7). Sobre essa relação entre o tempo e a memória, Miraux cita Gusdorf:

O tempo empírico se enche de sobrecargas que lhe conferem uma veracidade ontológica. O tempo do mundo é uma ordem de dispersão e de neutralização mútua; o tempo próprio da autobiografia é um lugar de concentração onde se produzem reencontros do indivíduo consigo mesmo. (GUSDORF, 1991, p. 270

apud MIRAUX, 1996, p. 28)

Na página 275 de Maus < Figura 6 >, fotos e lembranças extrapolam os limites do requadro, mostrando a importância da memória e dos restos documentais para esta narrativa autobiográfico-testemunhal. Nessa passagem, Vladek mostra ao filho fotografias de parentes exterminados no Holocausto: no primeiro quadro, ambos estão em um sofá, com as fotografias no colo. À medida que Vladek rememora sua história e seus mortos – e Art trava conhecimento com as imagens deles -, as fotografias vão crescendo, adquirindo movimento e tomando a página, do mesmo modo que a memória faz ao conectar e preencher lacunas na autobiografia.

“O discurso da memória é um labirinto. [...] Com suas obsessões, suas resistências e suas lacunas, será então considerado uma formação ideológica digna de análise” (LEJEUNE, 2008, pp. 160-1). Tal afirmação nos permite refletir sobre um aspecto comum às duas narrativas autobiográficas do corpus: elas partem da memória individual e acabam por encampar uma dimensão social e inevitavelmente ideológica. A esse respeito, Nigro (2010, p. 21) afirma que “o passado amolda-se às crenças e imagens do autobiógrafo como tentativa de compreender seu modo anterior de pensar e viver, e que sua identidade difunde-se na busca do autoconhecimento, mas não deixa de espelhar o coletivo como expansão do sistema social e dos elementos culturais”.

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28 (2010) é narrar sua trajetória pessoal, também acaba por trazer à tona uma dimensão de crítica à dissolução familiar e às desigualdades sociais de seu entorno. Isso está em consonância com a afirmação de Nigro:

A busca por uma identidade individual dificilmente tem fim. [...] a estrutura fundamental da trama é retirada da realidade, mas os eventos e as personagens reais adquirem uma camada fictícia capaz de ressaltar as características identitárias que o escritor nelas imprimiu. A autobiografia, portanto, pode reassegurar [...] a trajetória existencial, social e política (2010, p.24).

Carvalhal aponta um importante aspecto nesse sentido: a noção do literário como globalidade, em que estão presentes as ideias de „comunidade‟ e „continuidade‟, sendo esta um processo que alterna memória e esquecimento (2003, p. 71). Assim, sob vários ângulos Maus (2009) pode ser lido como obra situada em uma zona de passagem entre universal e particular, história e arte, realidade e ficção, visto que é a história de Vladek mas também a de seu filho, seus amigos, parentes, seu povo e, ao mesmo tempo, uma história de todos nós.

Miraux (1996, pp. 54-5) contrapõe as perspectivas interna, em que o eu busca retraçar o percurso da eclosão de uma personalidade e o encaminhamento de uma vida; e externa, em que a autobiografia busca se reapropriar de um mundo perdido para melhor compreender o atual, suas mudanças e revoluções. Ele conclui que a autobiografia pode, então, em determinados momentos, inscrever a história dentro da narrativa da vida, particularmente quando ela, em sua dimensão trágica, remonta à intimidade profunda do escritor: “Porque ele sabe ver melhor que os outros, porque ele possui o dom maravilhoso da expressão, porque ele é também o alvo privilegiado do totalitarismo, da ditadura, da opressão, do terrorismo ou da catástrofe” (MIRAUX, 1996, p. 40).

Assim, é a partir dos meandros da rememoração que o indivíduo reconstrói a gênese de sua personalidade e repensa sua identidade e sua presença no mundo. Devido a essa condição, conforme vimos, não há como se falar em fidelidade do narrado em relação ao vivido, mas sim de coerência com a proposta de narrar a própria existência. É importante ressaltar que a crítica deve olhar para o produto da recomposição da própria existência e não para a existência em si, pois na autoanálise retrospectiva:

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Figura 9 Contracapa
Figura 27 Capa
Figura 28 Contracapa, primeira e segunda páginas de rosto.
Figura 29 Prólogo (Caeto, 2010, pp. 7-9)

Referências

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