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A CLÍNICA DO SUJEITO NA INSTITUIÇÃO DE SAÚDE MENTAL

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Academic year: 2021

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A CLÍNICA DO SUJEITO NA INSTITUIÇÃO DE SAÚDE MENTAL

O caso Clara

Tia, Lucifer vive andando atrás de mim, bate na porta de minha casa, entra e dorme comigo; depois vai embora, é muito ruím essa sensação de ser invadida, de ter ele atrás de mim. Quando fica muito difícil de aguentar, chamo a purpuraca, que nem sempre atende pois também anda ocupada com seus filhos. Mas quando ela vem, me protege, ela é minha alma (Trancrição da fala de Clara).

Clara é uma mulher de 35 anos, solteira, negra e mãe de 3 filhos. Ela conta que até seus 15 anos sua vida era relativamente organizada; trabalhava em casa de família e estudava, rotina que começou a se desmontar por ocasião da primeira gravidez e do nascimento da primeira filha, o que fez com que ficasse mais distraída e alheia ao mundo externo, voltando-se para seu interior. Após vivenciar a experiência da maternidade, teve sua primeira crise, saindo de casa em um movimento errante pela rua, não conseguindo parar de andar e nem reconhecer as referências que tinha até então. Em seguida, vieram mais dois filhos e, diante da impossibilidade de responder como mãe, entregou cada um para um parente, de modo que os três cresceram separados dela.

Chegou ao CAPS1 por ocasião de uma de suas internações, acompanhada da mãe. Neste momento, Clara residia com a mãe idosa, no terreno da famíla que se situa nas redondezas do CAPS, em uma casa em condições bastante precárias, numa região sem tratamento de esgoto nem saneamento básico. Seu pai e sua irmã moravam nas proximidades, mas com eles não mantinha contato. Quando chegou, após uma temporada internada na enfermaria de crise do IMAS (Instituto Municipal de

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Assistência à saúde Nise da Silveira)2, parecia menos confusa, mas ainda muito desconfiada e introvertida. É uma mulher quieta, inicialmente de pouca conversa. O contrato que fizemos com ela foi de que viesse ao CAPS todos os dias para iniciar alguma forma de contato. Aos poucos ela foi se interessando por uma oficina de geração de renda, a oficina de culinária. Com o tempo este espaço passou a ser considerado por ela como seu local de trabalho, onde precisava chegar cedo, cumprir horários, cumprir algumas tarefas específicas e depois, ao final de cada semana, receber seu salário. Isso foi fundamental para que ela se vinculasse ao CAPS, iniciando seu tratamento.

Foi na cozinha do CAPS que começou a falar de sua história, do momento de ruptura que viveu, do nascimento dos filhos e de sua impossibilidade de criá-los, de assumir a posição de mãe. Neste momento, observamos a necessidade de Clara falar sobre sua vida, sobre suas experiências como mãe, como mulher, e com base nisto, avaliamos que o lugar preservado de um grupo terapêutico poderia ajudá-la. O espaço da cozinha continuou sendo importante para ela falar, entretanto, como os profissionais revezavam-se com freqüência na oficina de culinária, pensamos que um grupo coordenado pelas mesmas pessoas, estas assumindo o lugar de ouvintes semanais, pudesse facilitar a repetição do endereçamento, viabilizando a instauração da transferência. Este grupo era coordenado por mim (psicanalista) e por uma musicoterapeuta.

A fala que inaugura este trabalho é um exemplo de endereçamento que se deu no grupo terapêutico, e que só foi possível porque havia alguém disponível para escutar essa fala. É importante deixar claro aqui que a disponibilidade para escutar a diferença que porta o discurso psicótico possui intensa relação com a aposta no sujeito nesta estrutura, sendo isto que viabiliza a instauração da transferência. Ao ser escutado, o discurso delirante de Clara não se perdeu, pois a constituição de um espaço de fala dirigida a um interlocutor criou a possibilidade de construção de um um traço que tem a função de amarrrar seu discurso. A Purpuraca existe para ela na medida em que pôde ser compartilhada e, a psicanalista, como sua ouvinte, foi testemunha de sua criação.

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Algumas considerações teórico-clínicas

Podemos pensar a condição do sujeito na psicose a partir de uma relação com a forma como se dá a inscrição do que Lacan (1961-1962) nomeia traço unário. Este é o primeiro traço, a primeira inscrição, que se inscreve na medida em que sofre seu apagamento – o que constitui o sujeito barrado. Como dito, é o apagamento que permite a inscrição do traço de modo a promover a circulação significante onde S1 pede S2 e o sujeito é efeito desta relação. E na psicose, como se dá a inscrição do traço unário? Quais os efeitos para o sujeito? Onde se situa o sujeito como efeito? Lacan deixa claro que: “O sujeito se constitui ou não como portador do traço unário.” (Lacan, op.cit., p.64) O que isso quer dizer?

A condição do sujeito Clara indica-nos que na psicose o sujeito efetivamente não se constitui como portador do traço unário. Isso significa que há a inscrição do traço, mas essa não é simbolizada, o que faz com que o sujeito não surja como efeito da relação significante, ou seja, como intervalar, barrado e sim numa outra condição. É justamente esta outra condição que nos interessa destacar, pois ela remete a uma singularidade que fala de um sujeito, o sujeito Clara, que me chamou atenção, impulsionando-me a escrever sobre ele. Que condição é esta? Condição vulnerável, de alheamento do mundo exterior. É importante enfatizar que não ser portador do traço unário não significa estar fora da linguagem, dos efeitos do significante. É justamente o fato de não haver simbolização que faz com que Clara seja habitada pela linguagem, chicoteada pelo significante, sem ter condições de habitar a linguagem; condições estas que um trabalho clínico pode propiciar.

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É no endereçamento ao psicanalista que podemos encontrar um pedido de leitura do traço, na relação transferencial. Essa relação pode viabilizar a construção de uma cadeia significante que sustente as manifestações do sujeito – a cada encontro uma possibilidade de amarração e construção. É um trabalho de acompanhar o sujeito nesta via, daí a posição do psicanalista ser a de secretário.

O sujeito Clara, invadido pelo gozo do Outro, passa quase o tempo todo alheio e errante. Mas a questão permanece: onde está o sujeito? Como ele se manifesta aí? No próprio alheamento ou nos poucos laços que ela conseguiu construir? Por ora, não há respostas, o que não impede que essa questão seja permanentemente colocada, justamente por não podermos simplesmente estigmatizar Clara como uma boneca (grifo nosso) que permite que façam com ela o que querem. Por um lado não deixa de ser assim, mas devemos apostar que isso envolve o sujeito que ela é, mesmo que ele esteja alheio (grifo nosso) e impedido de fazer escolhas. Esta frase faz pensar nos limites clínicos que o trabalho com a psicose diversamente nos impõe, trazendo a sensação de impotência e enfrentá-los não é nada simples. Em relação a Clara, tais limites impuseram-se com bastante freqüência. Por maior que fosse o empenho em prestar-lhe socorro, a sensação presente era a de que sua condição de alheamento permaneceria, pois tal condição aponta para o sujeito que ela é. Este caso ensina que tratar não é tirá-la forçosamente do alheamento através de práticas que visam simplesmente a reinserção social, mas ajudá-la a construir um traço que possa ser lido pelo Outro. Em todos os anos de exercício da clínica da psicose, a cada vez que nos deparamos com os limites da clínica, entendemos, mais um pouco, que enfrentar tais limites é fundamental para a realização da prória clínica. Qual a saída então, no caso Clara? Como enfrentar a impotência? Aceitando-a. Foi preciso que ela mostrasse que a única forma de ajudá-la era aceitar o limite intrínseco a sua própria estrutura de sujeito.

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relação a leitura de seu nome pelo Outro. Como podemos analisar este fato clínico? O nome próprio, como um exemplo de traço unário, marca um a um, em sua singularidade, definindo uma identidade. Se houve a inscrição do traço, mas o sujeito não se apropriou dele, ou seja, não se constituiu como portador dele, então esse traço, no caso, o nome, não pode ser lido pelo Outro – é na relação com o Outro que se dá ou não a constituição do sujeito como portador do nome próprio.

Clara já tinha uma carteira de identidade, mas esta se perdeu, provavelmente na mesma ocasião de sua primeira crise. Depois deste acontecimento, houve uma mudança em sua vida: o que até então parecia estável, tornou-se instável e desarticulado. A maternidade convocou-a a responder de um lugar que ela não podia – daí o rompimento, a desamarração, a ruptura e a crise. Ser mãe, trouxe à tona uma mudança de posição subjetiva que evidenciou a desproteção do sujeito em sua relação ao Outro, à linguagem. Era isso que Clara tentava nos dizer com suas crises a cada vez que marcávamos a ida pra tirar uma nova via de sua carteira de identidade. Era realmente um impedimento e foi na relação transferencial que ela pôde colocar esse limite e isso direcionou o trabalho de escuta, de acompanhamento do caso.

Nesta via, na transferência, apostamos ser possível a construção de espaços de representação para o sujeito na psicose, que se expressa densamente na própria construção delirante. O que o trabalho clínico com Clara pode nos ensinar? O neologismo Purpuraca, o nome que Clara deu para sua alma, pode ser pensado como um nome para o sujeito, um nome próprio que foi possível aparecer a partir do endereçamento na transferência, já que não é um nome qualquer, mas sim um nome que barra a invasão do Outro, podendo representá-la frente ao Outro.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Freud, S. Obras Psicológicas Completas, Edição Standard Brasileira, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1996.

---, Sobre o Narcisismo: uma introdução (1914), V. XIV. ---, Psicologia de grupo e a análise do ego (1921), V. XVIII.

Rinaldi Meyer, G. “A clínica da psicose: Transferência e desejo do analista” – Tese de doutorado não publicada, Programa de Pós-Graduação em Psicologia clínica Universidade de São Paulo, 2006.

Lacan, J. O Seminário livro 2 (1954-1955), O eu na teoria de Freud e na técnica da

psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

Lacan, J. O Seminário livro 3 (1955-1956), As Psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

Lacan, J. Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano (1960). Em Escritos (pp. 807-842). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

Lacan, J. O Seminário livro 9, A identificação (1961-1962). Trad. Ivan Corrêa e Marcos Bagno – Recife, Centro de Estudos Freudianos do Recife, 2003.

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