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Corpo e Alteridade: A experiência estética na Videoarte

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Academic year: 2021

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Juliana de Oliveira Rocha Franco

Corpo e Alteridade:

A experiência estética na Videoarte

Dissertação apresentada ao Curso de pós- graduação em Comunicação Social da

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Comunicação Social.

Linha de Pesquisa: “Comunicação e linguagem”

Orientador: Prof. Dr. Júlio César Machado Pinto

Belo Horizonte

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG

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Este trabalho é dedicado à família Zupekan (Sr. José, D. Marly, André, Mauro e Tati), decisiva num momento de crise.

À Ana Lúcia, por me abrir novas linhas de fuga, algumas das quais resultaram nesse trabalho e a Lena, pelo apoio durante a escrita.

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AGRADECIMENTOS:

A todos que, direta ou indiretamente, contribuíram significativamente para a publicação desta dissertação. Ao meu pai pela compreensão e apoio incondicional, e a minha mãe pela lição de força, expressa em sua própria vida. A CAPES, pela bolsa que me possibilitou estudar com tranqüilidades. À Solange Farkas e ao Videobrasil que sempre me receberam muito bem, tanto no evento, quanto nas consultas feitas ao acervo. E a professora Rousiley Maia pelas aulas instigantes que fizeram diferença neste trabalho.

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RESUMO:

Este trabalho busca compreender como se opera a produção de sentido desencadeada por obras de Videoarte que reivindicam a participação do espectador, em uma relação entre corpo, pensamento e alteridade. Ao longo do trabalho é enfatizada a relação entre a Videoarte e a construção da alteridade, numa reflexão sobre o lugar do outro na arte e na experiência estética e como a dimensão de alteridade proporcionada pela Videoarte nos leva a uma nova percepção do corpo, de ordem cognitiva, ou o movimento inverso, como novas percepções do corpo nos levam à dimensão de alteridade .

ABSTRACT:

This work searchs to comprehend how the as operates the production of meaning is unchained by Videoarte works that demand the participation of the spectator, in a relation between body, thought andalterity. Along the work, the relation between the Videoarte and the construction of thealterity is emphasized. In a reflection on the place of the other in the art and in the aesthetic experience and as the dimension of proportionated alterity for the Videoarte takes us to a new perception of the body, cognitive order, or the inverse movement, as new perceptions of the body take us to the dimension of alterity.

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SUMÁRIO:

RESUMO:...04

INTRODUÇÃO...07

CAPÍTULO 1- Operadores Conceituais 1.1- A Semiótica impura...11

1.2 - Videoarte e Alteridade:...22

1.3 - Corpo e Videoarte:...26

1.4 -A Experiência Estética como jogo “ideal”: o movimento dos conceitos...33

CAPÍTULO 2 - Um olhar sobre a arte no século XX: criando uma teia de “co- referências” 2.1 - Dadá e Futurismo: um sobrevôo em busca das relações entre o espectador, a obra de arte e a tecnologia na primeira metade do século XX...39

2.2- O “avô Dadá” da Videoarte. Ou porque Duchamp é tão importante...47

2.3- Metamorfoses da arte: em busca de novas percepções corporais...54

CAPÍTULO 3-Do Fluxus a Videoarte 3.1 -O Fluxus, Paik e Vostel...78

3.2 - Videoarte: pensando as tentativas de classificação...86

3.3- Notas sobre a Videoarte e o dispositivo eletrônico...91

CAPÍTULO 4 - Corpo, alteridade e videoarte: as obras. 4.1- “TV Bra for living Sculpture” e “Concerto for TV Cello and Videotapes”. Nam June Paik e o freak tecnológico...96

4.2- “Inasmuch As It Is Always Already Taking Place”. Uma reconstituição do corpo a partir do fragmento: novos modos de existência...102

4.3- “Tall Ships”: eu é um outro...109

4.4- “Reflecting Pool” ou o salto sem rumor de água...114

CONSIDERAÇÕES FINAIS:...122

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...124

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Ninguém determinou até hoje o que o corpo pode fazer.

Spinoza

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Introdução:

O interesse pelas questões que me levaram a pensar e refletir sobre a Videoarte surgiu da partir de algumas mostras assistidas, principalmente, no “Itaú Cultural” de Belo Horizonte, e em particular pelo contato com os trabalhos de Ana Lúcia Guimarães, artista mineira radicada em São Paulo1. A idéia inicial deste trabalho era buscar compreender como se opera a produção de sentido desencadeada por obras de Videoarte que tensionam nossos padrões de sentido, percepção e interação.

É importante afirmar que “Videoarte”, neste trabalho, é compreendida como um construto audiovisual caracterizado pela interpenetração de signos provenientes de vários regimes semióticos (imagem, áudio, texto, animação etc.). Deste modo, o termo Videoarte abrange trabalhos realizados em vídeo, mas que cada vez mais podem estar associados a uma ampla diversidade de matérias de expressão. Essa forma de compreender a Videoarte se desloca de uma concepção tradicional que a pensa como expressão restrita ao videotape, para uma concepção que ao alargar seu campo semântico, destradicionaliza o termo. Assim, reconhecemos sua realização em associação com vários suportes como, por exemplo, esculturas eletrônicas, instalações multimídias, ambientes etc.

Logo de inicio a questão se mostrou mais complexa, e uma afirmação de Patrícia Silverinha (2000) materializou o que ainda não parecia ser possível de verbalizar:

“Encontramos assim (na Videoarte) duas estratégias aparentemente opostas: uma conceptualização e abstracção progressivas, a par de uma sensorialidade crescente. No entanto, essas duas estratégias cruzam-se e a sensorialidade é alcançada, paradoxalmente, por objectos cada vez mais conceptuais e abstractos”.

A experiência de sentido buscada era uma experiência atingida “sensorialmente” por obras cada vez mais abstratas: a indagação proporcionada pela Videoarte colocava em

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questão as relações entre o pensamento e o corpo, que englobam uma série de categorias que são operadoras, para a maioria das pessoas, da forma de interação com a vida social, a subjetividade humana e o meio ambiente.

A presença das relações entre o corpo e o pensamento tomou espaço nas reflexões em andamento, e mostrou que a discussão sobre o processo de constituição identitária é muito importante para a compreensão do corpo, na medida em que a construção de um corpo passa necessariamente pela construção de uma alteridade que faria limite e daria sentido a este.

A partir daí, alguns objetivos já estavam traçados: a idéia era compreender a relação entre a Videoarte e a construção da alteridade, em uma reflexão sobre o lugar do outro, entendido como exterioridade que nos constitui, na arte e na experiência estética proporcionada por obras que reivindicam a participação do espectador, em uma relação entre corpo, pensamento, imagem e linguagem.

A indagação, que permeia esta dissertação, gira em torno de como a dimensão de alteridade proporcionada pela Videoarte nos leva a uma nova percepção do corpo, de ordem cognitiva, ou o movimento inverso, como novas percepções do corpo nos levam à dimensão de alteridade. Para tal, é necessário investigar as relações que a Videoarte possibilita com o espectador, relações que criam uma nova percepção do corpo.

Com um mapa do caminho já traçado, e já em percurso, as análises demandaram uma questão extremamente pertinente e cuja resposta de certa forma já estava implícita em no caminho tomado. A questão era como pensar meu objeto de estudos inserido no campo de estudos da Comunicação.

A Videoarte poderia ser incluída no campo de estudos da comunicação de várias formas. Uma análise possível, por exemplo, seria a da imagem ou da mídia eletrônica e

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suas relações com a tecnologia. Entretanto, essas abordagens podem ser realizadas em outras áreas do conhecimento, não sendo uma especificidade da Comunicação.

Desse modo, minhas análises primaram pela busca da dimensão comunicativa da experiência proporcionada pela Videoarte: a intenção neste trabalho foi criar uma pragmática2 do vídeo, entendido em sua dimensão relacional ou interlocutiva. Isso se torna possível quando pensamos a constituição da obra a partir do espectador, onde o sentido se completa por ser a obra endereçada ao outro. A partir daí, foi possível afirmar que a dimensão comunicativa é constitutiva da experiência estética. É importante ressaltar que o que se busca não é a presença do espectador como mero decodificador de um possível sentido original ou intencional da obra. O espectador não é apenas destinatário ou receptor de um sentido já constituído, enviado pelo autor por meio da obra. O sentido se faz durante.

A compreensão do aspecto comunicacional da Videoarte foi fundamental para pensar o corpo e a alteridade nas obras, porque nos ofereceu um deslocamento do olhar analítico, antes centrado somente no que Guimarães (1994) denomina “interpretose” do objeto, para uma apreensão das relações intersubjetivas que acontecem na sua fruição.

Ou seja, consideraremos a experiência e o sentido em sua dimensão dialógica. Essa abordagem expande a compreensão da própria experiência sensível, de modo a considerá-la, segundo uma condição dinâmica e não mais como a mera recepção passiva dos dados provenientes do mundo exterior. Portanto, os estudos privilegiaram a passagem de uma problemática da produção para uma problemática da recepção e do confronto com a obra.

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Diante da profusão de obras de Videoarte em que nossas reflexões poderiam ser atualizadas, foi necessário limitar o material tratado com o intuito de viabilizar a análise. O recorte escolhido dentro do objeto de estudo foram as seguintes obras:

- TV Bra for Living Sculpture (1969): Nam June Paik & Charlotte Moorman

- Concerto for TV, Cello and Videotapes (1971): Nam June Paik & Charlotte Moorman - Reflecting Pool (1977): Bill Viola.

- Inasmuch As It Is Always Already Taking Place (1990): Gary Hill - Tall Ships (1992): Gary Hill

Esses autores têm em comum o fato de serem sintonizados com os procedimentos da imagem técnica (no caso, a mídia eletrônica), de enfatizarem a “desmesura”, multiplicidade de signos que é irredutível à conformação de uma mesma lei ou de uma realidade dominante (PEIXOTO,1993:237) e à heterogeneidade das sensações e percepções.

Com os objetivos delimitados, que foram - compreender um certo aspecto da Videoarte, em alguns autores particulares, sua relação com o corpo e a dimensão de alteridade - resta agora, demarcar para o leitor o caminho seguido:

No primeiro capítulo explicitaremos alguns operadores conceituais que fornecerão suporte para as análises. Será mostrado como a questão da experiência estética, da alteridade e do corpo se apresentarão ao longo da dissertação, e principalmente nas análises.

No segundo capítulo o que se procede é uma tentativa de compreender como Videoarte está inserida, em uma trajetória de reflexões e ações, iniciada por artistas do começo do século XX, e retomadas após a Segunda Guerra Mundial. São reflexões e práticas de artistas à procura de um modo de (re)conciliar fatores tecnológicos, estéticos e artísticos. No decorrer desse processo, percebe-se que os artistas foram

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progressivamente dedicando uma ênfase maior, tanto conceitual quanto prática, em questões que de um lado envolvem o artista, o trabalho artístico e a tecnologia e por outro, o ambiente e a percepção do espectador.

Os eixos norteadores foram as mudanças na percepção do que é arte no século XX; as relações desta com a tecnologia e os novos tipos de percepção e formas de perceber o corpo daí surgidos. O objetivo foi introduzir os elementos históricos e conceitos fundamentais já interligados e inseridos no tema, como é o caso da reivindicação da participação do espectador, as percepções corporais e a alteridade.

Para conhecer as obras específicas dos autores selecionados e o tema que é o recorte da dissertação foi preciso uma caracterização mais ampla da Videoarte. O terceiro capítulo trata especialmente da Videoarte, seu surgimento diretamente ligado ao grupo Fluxus e a Beuys e John Cage, as tentativas de classificação da Videoarte e características técnicas do “meio” vídeo.

No quarto capítulo, as relações entre corpo e alteridade na Videoarte serão aprofundadas em seus constituintes: relata-se e discute-se obras que atualizam experiências características de tais relações.

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CAPÍTULO 1- Operadores Conceituais

“O novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta”

Michel Foucault

1.1 - A Semiótica impura

Uma linguagem, sob o prisma da semiótica, é considerada um instrumento que nos auxilia na nossa comunicação, nos processos cognitivos, na criação de nossos conhecimentos e regras para o futuro, sentimentos e afetos.

A semiótica, segundo Lauro da Silveira (1991), é uma ciência que procura estabelecer como devem ser os signos ou como se configura o pensamento da mente capaz de aprender com a experiência, permitindo uma minuciosa análise do pensamento. Assim, a lógica como semiótica, na proposta de Peirce, implica uma estrutura triádica onde a bipolaridade constituída por um sujeito objeto é superada, em direção da tríade proposta por Peirce composta por signo, objeto e o interpretante, apreende as relações que a mente estabelece ao pensar. Segundo Lúcia Santaella (1990:187), é nas definições de signo de Peirce que o movimento lógico da semiose, da ação do signo encontra expressão.

Uma inteligência que pode aprender com a experiência é uma inteligência que pensa imersa no tempo, e o significado que a inteligência estabelece, um programa de conduta para o futuro. Entretanto, a simples acumulação de fatos passados, seria incapaz de produzir idéias genuinamente gerais sobre os fenômenos e dar garantias reais de que a conduta futura alcançará, mesmo probabilisticamente, os fins procurados (SILVEIRA:

1991).

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O que pode ser previsto são classes de fenômenos, regidos por leis gerais e que, devido à particularidade dos eventos que os atualizam, são sempre de caráter probabilístico. Em outras palavras, não podemos prever o futuro.

Sendo assim, é possível afirmar que a inteligência (é importante lembrar que os processos triádicos não acontecem somente no homem) necessita produzir representações hipotéticas dessas leis para determinar a conduta futura e que estabelecerá, ao longo da experiência, a razão de freqüência com que os fatos obedecerão a essas leis. Neste contexto, o modelo imagético conceitual construído pela semiótica deverá, necessariamente, apresentar uma estrutura triádica correlacionando na unidade do signo, o passado, o presente e o futuro. O signo em sua estrutura triádica, inter-relaciona três elementos: o representamen, o objeto e o interpretante.

O representamen, considerado o primeiro da tríade, é algo, uma palavra, uma qualidade sensível ou um certo fenômeno que fica no lugar de outro. Ou porque a ela se assemelha, ou porque se liga a ela existencialmente ou porque a designa como alguma convenção social, permitindo e determinando que uma mente o perceba. Aquilo do qual o representamen ocupa o lugar, exerce na relação triádica do signo a função de objeto do representamen. Ela é o outro a que o representamen se refere, e que é um segundo.

A idéia produzida na mente que interpreta a relação do representamen com seu objeto, é um terceiro mediador na relação. Essa idéia Peirce denomina interpretante do signo. Décio Pignatari (1987:43) afirma que o interpretante é o signo de um signo, cujo objeto não é o mesmo do signo primeiro, pois ele engloba não somente o objeto e signo como a ele próprio “num contínuo jogo de espelhos”. Tal série, denominada semiose, constituirá, processualmente, o sentido do signo e, poderá assumir o caráter de lei ou hábito de conduta.

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O objeto3, aquilo que o signo representa, ocupa o lugar do real para uma mente que pode aprender pela experiência, é dele que o signo fala e é para interagir com ele de forma relacional que a conduta é determinada (SILVEIRA: 1991).

A cada elemento do signo são atribuídas funções distintas e complementares:

poder representar, é característica do representamen; atuar e resistir são características do objeto, e mediatizar, caracteriza o interpretante.

Sendo assim, a estrutura do signo na teoria peirceana, corresponde à maneira pela qual se “produz pensamento”, produz sentido. Cada idéia interpretante constitui-se num novo representamen do objeto, esclarecendo cada vez mais as idéias que determina. O signo é uma mediação entre objeto e interpretante, assim como o interpretante é uma mediação entre o signo e um outro signo futuro (SANTAELLA:

1990,188).

É possível afirmar que signo é tudo aquilo de que lançamos mão (consciente ou inconscientemente), para produzir sentido acerca daquilo que nos rodeia. Se pensarmos que até o pensamento é um signo, sem a mediação sígnica não seria possível o conhecimento. Assim, para compreender a experiência de sentido proporcionada pela Videoarte, a semiótica, ou pelo menos um pensar semiótico é imprescindível.

Para André Brasil (1998:84), “uma mídia e o discurso que ela produz podem desencadear verdadeiras revoluções na forma como experienciamos o mundo”. Dessa maneira, é muito importante ao pensarmos a mediação sígnica, não deixarmos de fora os processos tecnológicos enquanto signos.

O processo de apropriação dos signos e a fixação de seus sentidos se dão em um movimento que caminha em direção da naturalização. A naturalização leva o signo a

3 É importante lembrar que o objeto nunca deve ser considerado independentemente face ao representamen e face à idéia de interpretante, porque o objeto sempre se apresenta como o outro relativamente aos seus dois correlatos na relação triádica.

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funcionar de maneira tão orgânica, que não muitas vezes não o percebemos como mediador de nossa experiência.

Nesse caso, cabe, por exemplo, ao artista abrir as diversas linguagens, já naturalizadas a experiências nas quais os signos seriam (re) significados, de forma que a naturalização fique evidente. Esses signos posteriormente poderão ser naturalizados, num processo continuo alargamento de nosso repertório/horizonte de expectativa.

Brasil (1998) afirma que uma apropriação estética das mídias, por exemplo, é uma forma de denunciar o processo de naturalização do dispositivo tecnológico:

A Videoarte é um exemplo de apropriação estética da tecnologia. A experiência estética seria caracterizada por seu poder de criar novos universos existenciais, diferentes daqueles que banalizam a experiência (BRASIL, 1998:84).

Na história do Ocidente, só tardiamente a arte se destacou como atividade específica, da ordem de uma referência axiológica particularizada4. As teorias da comunicação baseadas em um modelo representacionista têm contribuído para esse recorte axiológico da esfera do estético, relegando o artístico ao status de objeto empírico ou desconsiderando-o totalmente. Nesses modelos, a comunicação é tratada a partir de suas constantes. A variação nesses casos é vista negativamente em contraponto a uma estrutura homogênea e abstrata, e até mesmo como ruído. É preciso pensar as variáveis não como exteriores aos fatos de sentido, mas como constituintes mesmas do signo.

No entanto, apesar de muitos objetos apresentarem uma constituição híbrida, dada a complexidade do real, a maioria das abordagens e análises, estão ainda imersas no que Latour (1994:20) denomina “processo de purificação”, que isola os componentes do objeto em disciplinas estanques. Essa purificação é marcada por três características:

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1) Separação entre o pólo da natureza (as coisas em si) e o pólo da sociedade e do sujeito (os homens).

2) Autonomização da linguagem e do sentido, transformados em mediadores absolutos, independentes, tanto das coisas em si, como dos homens.

3) Concepção da técnica como pura dominação instrumental; da ciência como puro ato; da economia como puro cálculo; do capitalismo como pura reprodução; do sujeito como pura consciência (LATOUR, apud GUIMARÃES, 1997).

Essa separação gera dois conjuntos de práticas: o primeiro cria, por "tradução", misturas entre gêneros de seres completamente novos, híbridos de natureza e cultura (que citamos acima). O segundo, cria por purificação, duas zonas ontológicas inteiramente distintas - à dos humanos de um lado e à dos não humanos de outro. Esse processo é característico do Pensamento Moderno, extremamente marcado pela racionalidade científica instrumental. É possível afirmar que esse é um modelo totalitário, na medida em que nega a todas as formas de conhecimento que se não pautem pelos seus princípios (epistemológicos e pelas suas regras metodológicas) de racionalidade científica.

Na Comunicação Social, o Pensamento Moderno está representado pela forma de pensar conhecida por “Paradigma Informacional”, que norteou a maioria dos estudos sobre os processos comunicativos ao longo do século XX. Esse paradigma é absolutamente calcado na instrumentalidade científica. Suas proposições têm em comum a tentativa de sintetizar a complexidade do processo comunicacional em um modelo emissor/receptor que atribui à comunicação estruturas rígidas, unilaterais e preestabelecidas. O paradigma informacional é marcado pela idéia de representação, onde impera a dualidade cartesiana e a separação radical entre o homem e seu objeto.

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Os primeiros estudos sobre a comunicação endossam esse modo de pensar. Para Louis Quére (1991:03) essa abordagem comunicacional está ligada à tradição epistemológica herdada do século XVII. Ao compreender a Comunicação dessa maneira, esse modelo ignora as possibilidades de (re) significações, o sentido construído no contexto da relação e a intersubjetividade.

Atualmente vários teóricos contrapõem perspectivas diferenciadas do Paradigma Informacional. Uma preocupação em comum caracteriza esses teóricos: a busca em apreender a heterogeneidade da experiência, e a complexidade do processo comunicativo e da dimensão do sentido, “purificadas” no modelo informacional.

César Guimarães (1997) afirma que para abandonar essas concepções que esvaziam linguagem tanto da subjetividade, quanto de seu caráter simbólico, seria preciso, constituir uma semiótica impura, cujo teor crítico não se orientasse para a prática da purificação.

A Lingüística e a Semiologia, operando a purificação que segundo Latour (1994) é típica da constituição moderna, criaram uma concepção de linguagem como algo puramente informativo e comunicativo, independente de qualquer fator extrínseco, caracterizado por constantes e universais. Segundo Guimarães (1997), a semiótica impura aborda os regimes de signos de outra forma: articulando o estudo dos diversos regimes de signos aos acontecimentos da vida social.

"Uma semiótica voltada para um domínio de sentido resultante do imbricamento entre as redes socio-técnicas, o mundo dos signos e dos discursos (particularmente na sua dimensão interlocutiva) e a experiência (...) A semiótica impura pode proporcionar duas coisas:

perceber como os signos reenviam às possibilidades de existência e não apenas “aquilo que se efetivou, o que já existe ou àquilo que era possível e que se tornou atual” e, a partir da descrição dos regimes de signos, investigar outros modos de existência que eles entreabrem (GUIMARÃES:1997).

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Nesse caso a idéia de obra de arte, especificamente no caso da Videoarte, poderia ser substituída pela de “acontecimento” estético (BRASIL, 1998:84). Essa noção é relevante porque explicita o caráter heterogêneo e híbrido do nosso objeto.

Assim, para não efetuarmos o processo de purificação descrito por Latour (1994), e compreendermos nosso objeto em sua complexidade, como um evento - um acontecimento, conforme afirma Brasil (1998:84), que comporta não só uma face semiótica, mas também dimensões pragmáticas, sociais e tecnológicas – nosso olhar para a Videoarte será atravessado pela idéia de contaminação5, que em nosso trabalho se dará pela contaminação da semiótica com outros operadores conceituais.

Um operador conceitual fundamental para a compreensão da alteridade são as discussões sobre os processos identitários.No debate em torno da questão da identidade, a oposição essencialismo/construtivismo continua hoje a marcar presença como controvérsia importante. O esssencialismo está ligado a uma determinação e o construcionismo social a uma certa escolha por parte do indivíduo.

Para a abordagem essencialista a identidade é mapeada a partir de questões dadas, como se fossem o reflexo da realidade interna “natural” dos indivíduos (CALHOUN, 1994:24), numa noção substancial de identidade: o Eu como essência e unidade, fixo, essencialmente inato e inalterável, sem ligação com referências externas6.

Acreditamos que essa abordagem tende a ser reducionista e homogeneizante, por não pensar a identidade no contexto social.

5 Em português, segundo Aurélio Buarque de Holanda, temos: contaminação [do latim contaminatione.

1. Ato ou efeito de contaminar (-se) 2. Lit. combinação, na comédia latina, de dois enredos, tomados a comédias gregas. 3. Contaminação sintática – quiasma./ Contaminar: [do latim contaminare], contagiar, provocar infecção em, corromper, viciar. No dicionário Etimológico de Língua Portuguesa, de Antenor Nascantes (1932), temos: Contaminar, do latim contaminare, misturar, sujar pelo contato.

6 Os essencialistas consideram categorias como pressupostos universais; elas existem porque os humanos percebem uma ordem real no universo e o nomeiam. A ordem está presente mesmo sem observação humana, a contribuição humana é a de apenas nomear e descrever.

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Segundo Maia (1999:15), as teorias contemporâneas têm demonstrado que as identidades não são reflexo objetivo de posições culturais, de valores ou circunstâncias, nem são o reflexo de leis que seguem um curso que pode ser conhecido antecipadamente, ou leis derivadas de uma “verdadeira natureza interior”, de uma classe universal ou de uma raça privilegiada. É dentro desse contexto que surge o costrucionismo social7.

Essa maneira de abordar a identidade a desloca para uma dimensão relacional: a identidade não é mais definida como um modo de ser cuja natureza profunda é preciso revelar, mas como um jogo simbólico no qual a eficácia depende do manejo de elementos culturais.

O construcionismo social tem suas raízes associadas às teorias lingüísticas de origem hermenêutica, nas quais é enfatizado que o significado de um texto depende de quem o interpreta. (PEARCE, 1996:176).

Assim, é possível afirmar que o construcionismo social não considera o fenômeno que precede o texto e que não é parte do discurso; Essa forma de pensar a relação identidade/alteridade nos possibilita em nosso processo de contaminação, uma aproximação com outro operador conceitual: a Estética da Recepção.

A Estética da recepção, apresentada por Hans Robert Jauss nos anos 60, será bastante profícua em nosso trabalho por que ela nos oferece um caminho para a compreensão das dimensões estéticas das obras artísticas que permitem ir além do processo de Comunicação reduzido ao linear e unidirecional.

7 Uma crítica possível ao construcionismo social seria a de que a identidade seria compreendida como trabalho de criação de uma individualidade própria e particular, um eu singular e único, com possibilidades de realização aparentemente ilimitadas. No entanto não se trata disso: o indivíduo não pode

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A atividade artística no contexto da Estética da recepção é compreendida como uma atividade que é produtora, receptiva e comunicativa. A importância dessa forma de pensar é o deslocamento do olhar que privilegiava o legado platônico (ontologia e metafísica do belo, à busca da verdade na e pela arte) para o enfoque sobre a práxis estética, ou seja, processo de produção de sentido desencadeado pelas obras.

Os operadores conceituais Deleuzianos (“jogo ideal” e “paixão do pensamento”), também nos contaminarão, e possibilitarão pensar arte como jogo “ideal”, no qual a obra de arte é compreendida como um jogo entre obra e fruidor. Esse jogo revela as potencialidades da obra e a percebe como acontecimento, além de conceber a cognição como algo inseparável do corpo.

Se o que buscamos compreender é uma experiência de sentido que articula uma abstração, cognição a uma sensorialidade corporal, seremos contaminados também pela ciência cognitiva (representada por George Lakoff e Mark Johnson) e por Merleau- Ponty que possibilitam a compreensão do corpo para além das dicotomias cartesianas.

Para compreender essas questões específicas e como elas se manifestam em nosso objeto empírico (obras de três autores, cada um com estilística própria), foi preciso recorrer a elementos antecedentes que farão com que a Videoarte seja melhor compreendida através da inter-relação de vários elementos que criam uma teia de co- referências.

Inicialmente, a idéia foi situar a Videoarte no contexto mais amplo das transformações que atingiram a arte no decorrer do século XX. No entanto, não é possível, devido à abrangência do tema, abordar e analisar todas as transformações que a arte sofreu neste século.

Sendo assim, nossa proposta é a apropriação, por contaminação, da idéia do

“diagrama em rede” de Serres, que possibilita ressaltar aquelas transformações, tanto

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históricas como semióticas, que são preponderantes para uma melhor compreensão da Videoarte e que serão importantes no desenvolvimento da análise proposta pelo dissertação.

A idéia do diagrama em rede é um importante operador conceitual para que em nosso percurso não sejam estabelecidas relações guiadas nem por causalidades diretas ou determinações unívocas, nem por uma temporalidade linear e contínua (GUIMARÃES, 1994: 111):

“Imaginemos um diagrama em rede. Ele é formado num dado instante (pois veremos que ele representa qualquer estado de uma situação móvel) por uma pluralidade de ramificações (caminhos). Cada ponto representa, ou uma tese ou um elemento efetivamente definível de um conjunto empírico determinado. Cada via é representativa de uma ligação ou de uma relação entre duas ou mais teses, ou de um fluxo de determinação entre dois ou mais elementos dessa situação empírica. Por definição, nenhum ponto é privilegiado em relação a um outro, nem univocamente subordinado a qualquer um; cada um possui seu próprio poder (eventualmente variável com o decorrer do tempo), a sua zona de incidência, ou ainda sua força determinante original. (...) O mesmo se passa com os caminhos, que transportam os fluxos de determinações diferentes e variáveis com o tempo”. (SERRES: 1998,07)

Conforme afirma Guimarães (1994:111), trata-se de recorrer não apenas a um modelo filosófico abstrato, mas também a um método de compreensão histórico voltado para a apreensão da complexidade. Este modelo possibilita o aumento do numero de mediações possíveis e as torna mais flexíveis. Desse modo, as relações da Videoarte com a arte do século XX serão moduladas a partir de mediações mais numerosas e flexíveis, sejam elas de ordem semiótica – no que diz respeito ao regime de signos que as conformam – ou histórica.

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1.2 Videoarte e Alteridade:

A linguagem é o suporte, não apenas do ser, mas também da alteridade. Este paradoxo equivale àquele contido no conceito de identidade ao qual se refere, seja a comunhão com o outro, seja a afirmação de si em contraste com o outro. “É alterando- se, sendo o outro e no outro que é a linguagem” (SOARES: 1994,152).

É importante lembrar que aqui a identidade das pessoas não é tratada de forma monolítica. Em vez de conceituar os indivíduos em si, com atributos substantivos essenciais, eles devem ser definidos uns em relação aos outros. As identidades e as diferenças não se encontram já dadas, mas são formadas em condições práticas e articuladas através de discursos concretos em formas particulares de vida. As identidades são parcialmente formadas no processo mesmo da comunicação8.

Ao invés de uma concepção de sujeito autônomo, que manipula um instrumental a fim de conduzir e moldar seus hipertextos9. Compreendemos o sujeito como parte do hipertexto, esboçando-o e esboçado por ele, que interfere e muda a si no âmbito da intersubjetividade. Através da comunicação compartilhamos hipertextos, construindo e remodelando universos de sentido.

Interagimos e o outro nos atravessa. Por isso, o outro compartilha conosco (co- pertence) ao mesmo tempo, compreendendo-nos e sendo compreendido por nós, submetendo-se conosco à compreensibilidade do mesmo. O outro se constitui como um lugar estrutural indispensável para que os humanos se identifiquem e dialoguem, posicionando-se relativamente de acordo quanto ao real (ao menos provisoriamente):

“O outro representa dupla possibilidade: a sociabilidade redimensionada da philia e a morte. Eis o antídoto (...) para

8 Segundo Rousiley Maia, o modo como os referentes culturais mediados se articulam nos processos de construção de identidade, engendrando novas atitudes, modos de percepção e identidades, depende das praticas interativas concretas dos próprios sujeitos (MAIA 2000).

9 Segundo Levy, o hipertexto é uma metáfora válida para todas as esferas da realidade em que significações estejam em jogo. (1993:25)

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qualquer exaltação unilateral da comunicabilidade humana e de suas virtudes. Morte é a expressão paroxística de todo limite e é indissociável das condições elementares e radicais do convívio humano, da sociedade”.(SOARES, 1994:164)

É importante ressaltar, que a identificação, no contexto da crítica à representação, aponta para o processo que visa o outro, em um processo que não marca polaridades idênticas a si, conforme afirmou Rimbaud, “eu é um outro”.

A Videoarte exerce uma prática do vídeo que dialoga criticamente com a TV e com a tradição artística do século XX. Arlindo Machado (2000,158) afirma que,

A Videoarte pode ser comparada à poesia experimental, que é aquela que lança mão dos recursos da sonoridade, da visualidade, do cinetismo e da sincronização áudio-visual para produzir uma expressão

concentrada do complexo

sentimento/pensamento/imaginação, numa acepção criadora.

O artista que faz vídeos, conforme Machado (2001), pode ser considerado um poeta da era das mídias. Poeta porque, como todos os poetas, ele concentra suas indagações em torno do papel e do significado da linguagem no interior da cultura e dos demais contextos humanos (as diferenças entre ser e parecer; ser e não ser; dizer e fazer- se compreender; as dificuldades da compreensão) das mídias porque seu material de trabalho são as imagens e sons videográficos. Na Videoarte, essas indagações não surgem no monitor como realidades intrínsecas apenas referidas e tematizadas intelectualmente. São, ao contrário, a própria matéria do vídeo: é a linguagem (re) trabalhada poeticamente que “aparece, esclarece, obscurece e subtrai, presentifica e exclui” (SOARES, 1994:165), e que nos leva aos limites do diálogo, numa indagação sobre a própria linguagem.

Nesse contexto, o artista se transforma em um propositor, no sentido de Lígia Clark:

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“Somos propositores: somos o molde, a vocês cabe o sopro, no interior desse molde: o sentido de nossa existência. (...) Somos propositores: nossa proposição é o diálogo. Sós, não existimos (...)”. (CLARK apud MILLIET,1992: 123)

Arlindo Machado afirma que a Videoarte, enquanto processo de inversão da TV, seu avesso, traz à tona uma outra dimensão de realidade, que jamais imaginaríamos convivendo lado a lado com o mundo que nos é familiar, uma dimensão que é o outro.

Para Mikhail Bakhtin, a inversão tem um valor heurístico em toda cultura: ela permite lançar um olhar divergente sobre o mundo, um olhar ainda não enquadrado pelo olhar dominante da civilização, de modo a tornar sensível a relatividade dos valores e a circunstancialidade dos poderes e saberes. (BAKHTIN apud MACHADO 2000).

A questão do corpo em Bakhtin também é interessante na medida em que o autor caracteriza um “sistema de imagens da cultura cômica popular” que denomina

“realismo grotesco”. Acrescenta ele quanto à figuração do mundo nesse sistema característico da cultura popular medieval: “O cósmico, o social e o corporal estão ligados indissoluvelmente numa totalidade viva e indivisível” (BAKHTIN, 1996: 17).

No caso da Videoarte, a expressão da diferença se dá através da linguagem alterada, gerada pela desconstrução sintática (enfatizada pela escala, resolução, silêncio, tecnologia, ruídos, reestruturações narrativas, apresentação dos planos, ambientação etc.) e pela mudança semântica, que muitas vezes, pode ser desencadeada pela sintática.

A experiência estética proporcionada pela expressão da diferença gera

“acontecimentos”, pontua campos polissêmicos, ambíguos e híbridos, às vezes avessos ao sentido comum, que não se oferece como uma unidade fechada ao receptor externo, e onde o sentido oscila entre (re)contextualizações variáveis, elas próprias lacunares e parciais.

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Conforme já afirmamos, na Videoarte, encontramos nas obras que cada vez mais visam desafiar os padrões de sentido da interação e linguagem humanas, duas estratégias aparentemente opostas: uma conceitualização e abstração concomitante a uma sensorialidade crescente. Essas duas estratégias se cruzam e é possível afirmar que a sensorialidade é alcançada, paradoxalmente, por objetos cada vez mais conceituais e abstratos (SILVERINHA: 2000).

Na verdade, essa conceitualização e sensorialidade progressivas estão presentes em obras que tencionam suas estruturas semióticas até o seu grau mais elevado de força de sentido, originando o que pode ser chamado de uma “videopoética”. Segundo Machado (1982), videopoética pode ser considerada como um complexo construto semiótico, que aponta para o que Eisenstein denominou “sincronização dos sentidos”, ou seja, um esforço sistemático na construção de uma arte sinestésica, capaz de invocar cognitivamente os sentidos.

Trata-se, conforme afirma Machado (1998), de ultrapassar os limites pragmáticos (entendidos como um certo uso do senso comum, cotidiano) da linguagem, para encará-la como um fenômeno fundamentalmente turbulento, responsável pelas crises humanas de desordem e instabilidade. Nesse caso, a Videoarte apareceria como uma alteridade radical ao criar situações limite que nos levam a diferentes percepções corporais.

O que nos interessa especificamente na Videoarte, então, é justamente essa capacidade de articular sensorialidade e abstração/pensamento. A partir da idéia de uma pragmática do vídeo, não nos interessa uma abordagem conceitual que trate de pura reflexão, ou que separe a sensação do pensamento.

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Assim, para compreender a Videoarte, é importante uma abordagem que não separe a prática mental da prática física e que amplie a compreensão da cognição, a partir da vivência corpórea.

Para que tal compreensão aconteça, é necessária uma breve explanação teórica, em busca da compreensão de como o corpo e o pensamento serão entendidos e trabalhados ao longo da dissertação. Esse será nosso próximo tópico.

1.3 Corpo e Videoarte:

O gesto inaugural da filosofia ocidental foi uma reafirmação do desprezo ao corpo. No capítulo X da “Republica”, Platão escolheu a poesia como categoria a ser excluída da pólis para, a partir daí, delimitar o campo da filosofia. Este gesto pode ser entendido como emblemático de uma separação do corpo e da mente e da vitória desta.

Com o início da modernidade, Descartes retoma essa dicotomia, preservada até então pelo Cristianismo10, na busca de estabelecer um fundamento irrefutável para o conhecimento.

Descartes organiza seu modelo dualista psicofísico do seguinte modo: de um lado, res extensa, material, publicamente observável e divisível; de outro, res cogitans, a "coisa pensante", imaterial, privada e indivisível11. Assim, num longo trajeto, a partir do "eu penso logo existo", sua frase emblemática, o filósofo sugere que o homem é definido pela capacidade de pensar e pelo fato de saber que pensa. Ao mesmo tempo, no entanto, concebe a mente como uma entidade não material, habitante da cabeça dos homens, mas, em essência, diferente do cérebro.

10 Para mais informações ver: BROWN, Peter. Corpo e Sociedade - o homem, a mulher e a renúncia sexual no Início do Cristianismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990.

11 Para mais informações ver: COTTINGHAM, A filosofia de Descartes. Lisboa: Edições 70, 1989. (col.

O Saber da Filosofia),

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A tradição cartesiana à qual ainda estamos bastante arraigados, marcou a concepção ocidental do homem: um ser que primeiro pensa, conhece e que somente então pode ser, estar. O método cartesiano influenciou todo o desenvolvimento científico posterior e estabeleceu as cisões tão bem conhecidas entre mente e corpo e entre teoria e prática.

A mente cartesiana toma distância da experiência e analisa a realidade, esquematizando-a. Isso possibilita a “construção” de um mundo dominado pelo poderio do verbal, pelo pensamento linear, ao qual interessa uma história contada com princípio, meio e fim. Entretanto é importante ressaltar aqui, conforme afirma Peirce, “Que a análise da proposição em sujeito e predicado represente toleravelmente a maneira pela qual nós pensamos, eu concedo; nego, porém, que seja o único modo de pensar. Não é sequer mais claro ou mais eficiente (PEIRCE, 1972:86)”. No campo do poético, o logocentrismo ocidental foi sempre, de um modo ou de outro, em maior ou menor grau, contestado.

A forma cartesiana de pensar influenciou consideravelmente as abordagens científicas nas quais abstrai-se o corpo de seu contexto pragmático. O pensamento cartesiano não apresenta um sujeito constituído, a partir de suas relações, em sim, definido a priori, pressuposto.

Entretanto, se o movimento que identificamos na Videoarte é uma conceitualização e sensorialização crescentes, que proporcionam uma sensação/cognição12 simultâneas, a idéia cartesiana de separação da mente e do corpo cria um arcabouço teórico insuficiente para pensar quais são os efeitos da Videoarte e qual o tipo de experiência estética proporcionada por suas obras. Por sua natureza de cognição perpassada

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necessariamente pela sensação, ela teria que ser desmembrada em pensamento e sensação que se opõe à idéia do corpo como cognição.

Sendo assim, o que nós faremos será tentar analisar o corpo e o pensamento para além das dicotomias cartesianas. Com o auxilio da semiótica de Peirce, e suas contaminações procuraremos realizar uma crítica às análises tradicionais acerca do corpo, e apontar um caminho para a compreensão do corpo e da experiência estética em nosso trabalho.

Através da leitura de Peirce podemos perceber que a semiótica se apresenta como uma teoria que se contrapõe ao discurso linear (que considera o corpo como um conjunto de partes distintas entre si). A semiótica propõe uma compreensão da produção de sentido, não à maneira do cogito cartesiano, mas dimensionada pelo corpo, via universo da percepção/sensação, caracterizada pela primeiridade (ou que se refere a qualidades).

Haroldo de Campos (2000:70) aponta, baseando-se em Peirce, a importância dos ícones no raciocínio matemático, em especial o dos diagramas (um ícone puro, só pode ser uma possibilidade em virtude de sua qualidade e o seu objeto só pode ser um primeiro). Existem ícones degenerados: representames icônicos, os hipoícones, que se dividem em imagem, diagrama e metáfora. Para Peirce o diagrama é um ícone “ainda que não exista qualquer semelhança sensível entre ele e seu objeto, mas apenas uma analogia entre as relações das partes de cada qual; o diagrama é um ícone de relações.

Toda relação algébrica é um ícone, na medida que indica, por meio de signos algébricos (que em si mesmo não são ícones), as relações das qualidades em causa”. Este exemplo reitera nossa afirmação de uma experiência estética que é da ordem do corpo e do pensamento para além das dicotomias cartesianas.

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O cenário do pensamento inventivo para Peirce é o qualissigno, o ícone em estado genuíno, pura aptidão de similaridade enquanto mera possibilidade ainda não atualizada em um objeto, em nível de primeiridade, portanto. O ícone sendo um primeiro e um qualissigno refere-se a qualidades e labora no campo do possível e do indeterminado. Podemos utilizar a semiótica para compreender como que na experiência estética, se daria uma produção de sentido que fosse uma qualidade que não se opusesse ao pensamento (terceiridade):

Peirce procurou cunhar um termo ou expressão que suficientemente geral que eliminasse a idéia de belo:

“Para colocar a questão da estética em sua pureza, dela deveríamos eliminar não apenas quaisquer considerações de esforço, mas também consideração de ação e reação, incluindo reações de prazer _ tudo em suma, que pertença à oposição ego e não ego. Não possuímos em nossa língua uma palavra com a necessária generalidade. O grego kalós e o francês beau apenas dela se aproximam. “belo é mau, porque um dos modos de ser kalós, em sua essência, depende da qualidade de não ser belo. Mas talvez a expressão beleza do não-belo ( the beauty of the unbeauty) não seja chocante. Beleza, porem, é demasiado epidérmico. Se empregarmos kalós, a questão se coloca assim: qual a qualidade cuja presença imediata permite que se diga kalós? (CP 2.199)

Na verdade, segundo Campos (2000), o que Peirce buscava era um termo para um primeiro que fosse também um terceiro, “uma qualidade que seja inteligível”:

“É a fruição estética que nos interessa; ignorante que sou em arte, possuo uma parcela de capacidade para a fruição estética. Parece-me que enquanto na fruição estética nos entregamos ou nos dedicamos à totalidade do Sentimento especialmente resultante da qualidade de sentimento total apresentada na obra de arte que estamos contemplando trata-se, no entanto, de uma espécie de

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que seja razoável (raciocinável). Não logro dizer exatamente o que é, mas é uma consciência que pertence à categoria da Representação, embora representando algo na categoria da Qualidade do Sentimento.”

A “afinidade intelectual” referida por Peirce é responsável tanto pela aspiração do ícone em ser um terceiro, como pela pelo teor de convencionalização ou convencionalidade observado em muitas manifestações icônicas13.

É importante ressaltar, que a indeterminação é realmente o caráter do primeiro.

Mas não a indeterminação de homogeneidade. O primeiro é cheio de vida e variedade, mas a variedade é apenas potencial, não está potencialmente lá, ela “aparece” devido a um princípio de espontaneidade, que constitui exatamente aquela variedade virtual que é o primeiro. A “variedade” é a descoberta, a originalidade, e sem o elemento dessa originalidade espontânea, ou algo atuando como tal, o desenvolvimento do pensamento estacionaria.(CAMPOS: 2000)

Se compreendermos a Videoarte como uma “qualidade que seja inteligível”, é possível afirmar que a cognição emerge da corporeidade. Conforme afirma Maurice Merleau-Ponty (1994:269): "Quer se trate do corpo do outro ou de meu próprio corpo, não tenho outro meio de conhecer o corpo humano senão vivê-lo". Corpo e consciência não são causalidades distintas, mas uma unidade expressa pela dinâmica da experiência do corpo em movimento. "O corpo assim compreendido revelará o sujeito que percebe assim como o mundo percebido" (MERLEAU-PONTY, 1994:110). É um processo que emerge da relação entre o eu e o mundo, corpo e mente:

"... o corpo, tal como é representado no cérebro, pode constituir o quadro de referência indispensável para os processos neurais que experienciamos como sendo a mente. O nosso próprio organismo, e não uma realidade externa absoluta, é utilizado como referência de base para as interpretações que fazemos do mundo que nos rodeia e

13 Como mostrou Humberto Eco, na “Estrutura ausente”.

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para a construção do permanente sentido de subjetividade

que é parte essencial de nossas

experiências".(DAMÁSIO, 1996: 17).

O corpo pode e deve ser pensado enquanto fonte de sentido. Produzir sentido não é uma atividade puramente intelectual ou cerebral. O corpo é um dos lugares da própria emergência do sentido - como configuração inteligível e como presença sensível. Sensação e cognição são dimensões experienciais são o mesmo no sistema nervoso, ou seja, são operacionalmente indiferenciáveis (MATURANA E VARELA:1995,202). Por isso as dicotomias espírito versus matéria, ou idéias versus corpo são insuficientes para abarcar a complexidade do corpo.

George Lakoff e Mark Johnson (2000) enfatizam o papel do corpo no pensamento, linguagem e conhecimento. Segundo esses autores, o sujeito cartesiano - com uma mente completamente separada do corpo - não existe empiricamente. A cognição depende da experiência que acontece na ação corporal.

O pensamento é “encarnado14" no corpo. As estruturas utilizadas na formação do conjunto de nossos sistemas conceituais brotam da experiência corporal e fazem sentido nesta mesma experiência. O cerne de nossos sistemas conceituais está diretamente enraizado15 na percepção, no movimento corporal e numa experiência de caráter físico e social (LAKOFF; JOHNSON, 2000: 16).

" não há menos pensamento no corpo do que choque e violência no cérebro. Não há menos sentimento num e noutro (...) não que o corpo “pense”, porém, obstinado, teimoso, ele força a pensar, e força a pensar o que escapa ao pensamento”. (DELEUZE, 1985:227- 246).

Segundo Lakoff (2000:38), o pensamento é imaginativo naqueles conceitos que a metáfora, a metonímia e a formação de imagens mentais - todas estas indo além de um

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mero espelhamento literal ou representação da realidade externa. Podemos aqui, fazer uma relação com a semiótica e o conceito de primeiridade como pura qualidade, sem sentido denotativo. É esta capacidade imaginativa que possibilita o pensamento

‘abstrato’ e conduz a mente para além do que podemos ver e sentir. A capacidade imaginativa também está indiretamente vinculada ao corpo uma vez que as metáforas, as metonímias e as imagens estão baseadas na experiência, e freqüentemente na experiência corporal.

A experiência estética amplia a operação expressiva do corpo e a percepção, afinando os sentidos, aguçando a sensibilidade, elaborando a linguagem, a expressão e a comunicação. Ou seja, pensamos a cognição como algo que depende da experiência que acontece na ação corporal.

Percebido e inserido no contexto da produção de sentido, o corpo não é mais visto como um organismo dissecado e fixado dentro de saberes específicos, mas como algo em constante construção, que se move sensivelmente dentro do espaço das capturas experienciais.

“O cérebro humano e o resto do corpo constituem um organismo indissociável, formando um conjunto integrado por meio de circuitos reguladores bioquímicos e neurológicos mutuamente interativos (incluindo componentes endócrinos, imunológicos e neurais autônomos) ”. (Damásio:1996,17)

Nossa análise seguirá, então, baseando-se na compreensão das relações corpo- mente como unidade e não como integração de partes distintas. Enfatizamos a experiência estética como situação original e significativa da existência, com o intuito de promover o encontro da subjetividade com os processos corporais que estão “atados”

ao mundo, ao mundo vivido.

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Assim, a Videoarte pode ser compreendida enquanto um dispositivo, uma

“tecnologia de processamento cognitivo” que instaura devires outros, funciona como um outro, que a partir do encontro com o espectador/fruidor coloca em movimento novas experienciações e percepções corporais. O pensamento é alcançado de outra forma: o corpo como produtor de uma “experiência de pensamento”, uma nova experiência estética proporcionada pelas obras de vídeo, que envolve experiência sensível e pensamento. A partir da alteridade, o vídeo solicita o pensamento através do corpo, o espectador/fruidor é convidado a participar por meio do corpo de um processo cognitivo que supera a dicotomia mente/corpo.

1.4 - A arte como jogo “ideal”: o movimento dos conceitos.

Entendemos a Videoarte (embora saibamos que isso não é uma exclusividade dela) como uma manifestação artística cujo sentido é tanto produto de quem cria quanto de quem frui. Um sentido que já não é dado, uma obra que já não existe independente do sujeito que com ela se confronta.

Nosso objeto não é uma realidade cujo sentido, existe de forma autônoma. Daí nossa tendência de deslocar o olhar do objeto em si para a interação entre os modos de subjetivação e a obra de arte.

Conforme já afirmamos a obra de arte, neste trabalho, é compreendida como um acontecimento, que recria o traço de um sentido não fixado previamente.

Na verdade, o ponto central, o encontro do espectador com a obra é um meio do caminho, que ao provocar um jogo entre obra e fruidor nos revela o potencial e a virtualidade da obra que, para além de um objeto, passa a ser um acontecimento.

Pensamos então, a Videoarte como algo que acontece.

Referências

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