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NOVAS CONFIGURAÇÕES SUBJETIVAS: UM ESTUDO SOBRE O PÂNICO E A DEPRESSÃO

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Academic year: 2021

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New subjective configurations: a study on panic and depression Maria Regina Maciel1 e Luciana Oliveira dos Santos2

RESUMO

O propósito deste artigo é discutir acerca do pânico e da depressão na medida em que, ligadas á cultura do narcisismo, são associadas ao mal estar contemporâneo. No contexto sócio-cultural em que vivemos, essas duas novas configurações subjetivas se transformaram em expressões de referência dos sofrimentos psíquicos de hoje e são aqui relacionadas á questão da criatividade.

PALAVRAS-CHAVES

Pânico, depressão, subjetividade, sociedade contemporânea, sofrimento psíquico, criatividade

ABSTRACT

The purpose of this article is to discuss panic and depression and how, being linked to the culture of narcissism, they are associated to contemporary discomfort. Within the socio-cultural context we live in, these two new subjective configurations become expressions of reference of today’s psychic sufferings and are related herein to the issue of creativity.

KEYWORDS

Panic, depression, subjectivity, contemporary society, psychic suffering, creativity

1. INTRODUÇÃO

Compartilhamos as idéias de diferentes autores que, em suas análises do cenário contemporâneo, referem-se à presença de um “mal-estar” na atualidade, que apresenta diferenças significativas em relação a épocas anteriores. Veremos, nesta introdução, de maneira sucinta, dois autores que estudam as bases sob as quais está fundada nossa sociedade. Iremos nos centrar em seus argumentos acerca do mal-estar contemporâneo e da cultura narcísica, respectivamente. Estes nos

1 Psicanalista, doutora pelo Instituto de Medicina Social da UERJ, Professora Adjunta da UERJ. R. Alm. S a d o c k d e S á 1 2 0 / 3 0 4 – I p a n e m a – R J C e p . 2 2 4 1 1 - 0 4 0 T e l . 2 1 - 2 5 2 1 5 4 4 6 – e - m a i l : mrmaciel@ig.com.br

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servirão de base para o estudo das novas configurações do medo e da depressão. Estas, sim, objeto central de pesquisa deste trabalho.

Como afirma Mezan (1985), Freud foi um pensador que, nas primeiras décadas do século XX, referiu-se aos mal-estares de seu tempo, articulando os sofrimentos psíquicos a uma determinada coletividade. Para ele, as principais causas do sofrimento psíquico em sua época seriam devidos à insatisfação pulsional, impostas pela sociedade, dita “patriarcal”, na qual a religião possuía relevante peso, com uma moral sexual que exigia pesadas renúncias aos indivíduos. Assim, havia por um lado, a repressão social e, por outro, a renúncia dos indivíduos a seus desejos e fantasias. Nesta renúncia, poderia se encontrar as razões da infelicidade, do mal-estar, da insatisfação. Por que infelicidade? Porque o indivíduo precisava renunciar aos seus impulsos, desejos e fantasias, para ter a segurança de pertencer a uma sociedade.

Explicitando o que Freud queria dizer com a expressão “mal-estar na cultura” ele afirma que o mal-estar derivava da repressão da sexualidade:

“o sacrifício imposto ao homem, (...) é para Freud mais poderoso do que as possibilidades de satisfação pulsional oferecidas pela cultura, e isto não apenas devido às limitações crescentes impostas à sexualidade (...) mas também e sobretudo por causa da coerção, muito mais violenta, das tendências agressivas. É por meio do superego e do sentimento de culpabilidade que se dá esta coerção” (Mezan, 1985, p. 507).

Mezan enfoca a vertente cultural destes elementos psíquicos. O destino das pulsões em uma cultura pode canalizar-se em se tratando de Eros ou de Thânatos de diferentes maneiras. Detendo-se na pulsão de morte, cujos determinantes são mais reduzidos, ele afirma:

“caso ela se exteriorize como agressividade, uma parcela se aliará à libido, outra pode ser

deixada em estado livre como meio de defesa ou de ataque, mas a principal fração dela será reintrojetada (...) ao interior do psiquismo: o superego assumirá essa função, e exercerá contra o ego a agressividade que este teria preferido exercer contra outros. A tensão entre o ego e o superego será vivida, como já sabemos, sob a forma do sentimento de culpabilidade”

(Mezan, 1985:508).

Uma culpabilidade, argumenta o autor, proveniente de um critério de bom e mau que provém dos fantasmas da castração. Segundo ele: “o mau é intrinsecamente o desejo incestuoso, a ‘autoridade coatadora’ é figurada pelo pai, a ‘hostilidade contra a autoridade’ é representada

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pelo desejo assassino de eliminá-lo, e o ‘medo à perda do amor’ equivale ao temor da castração, que se vincula ao pai” (Mezan, 1985:510). Em contraste com a época de Freud, final do século XIX, na atualidade surgem outras fontes de inquietação. Para Mezan, se a sociedade antiga era em muitos aspectos mais rígida, a atual é por vezes desnorteante na sua fragmentação e na aceleração do ritmo das mudan-ças; se aquela opunha ao avanço do indivíduo obstáculos sedimentados na tradição, a de hoje já não oferece valores nem rumos claramente identificáveis. Existe uma maior tolerância quanto aos aspectos sexuais em sentido estrito — o corpo é cuidado no esporte e exibido sem tantos pruridos, a homossexualidade já não é perseguida como delito, as oportunidades para relacionamentos sexuais antes ou fora do casamen-to se multiplicaram; mas a violência urbana, o consumo de drogas e outras pragas sociais se alastraram num grau que Freud jamais poderia ter previsto.

O afrouxamento da autoridade patriarcal e de seus derivados nas diversas esferas da vida não deu lugar à fraterna união dos iguais, porém a um universo de desorientação e de insegurança cujos sinais estão por toda parte.

Para o autor, o mal-estar atinge como um todo populações urbanas principalmente, indiferentemente de classe e de posição social, expres-sando-se através de fenômenos como stress, depressão, episódios psicossomáticos, adição a drogas e mesmo delinqüência. “Talvez se possa dizer que a angústia seja o ponto para o qual convergem essas diversas condições, angústia sem dúvida co-natural ao ser humano, mas certamente fomentada e potencializada pelas condições sócio-econômi-cas da atualidade.”3

Passemos para o que nos diz Costa. Em seu artigo “Narcisismo em tempos sombrios” (Costa, 1988, p. 163), este autor apresenta uma articulação entre a idéia de narcisismo e os Ideais. Para o autor, o nascisismo é fundamental à sobrevivência do sujeito. Sem o funciona-mento egóico, “o sujeito não poderia ser representado como unidade. Sentifunciona-mentos, pensamentos, sensação e experiências de todas as ordens perder-se-iam num caos de impressões sem história e sem sentido”.

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Um outro aspecto fundamental no que se refere ao narcisismo consiste no estado inicial da experiência humana, denominada por Freud de impotência/desamparo. Para Costa, “esta impotência jaz no coração da angústia, das ilusões religiosas e de outros processos culturais. A síntese ego-narcísica é o primeiro anteparo imaginário que, na luta contra a angústia derivada da impotência, assume a forma de um Eu em face de um outro. O Ego é o primeiro ‘não’ dado à onipotência do outro. É a primeira reação imaginária capaz de diferenciar fonte e objeto da angústia” (Costa, 1988:163).

As defesas que o ego aciona como reação a estas circunstâncias que assinalam sua impotência e o seu desamparo podem ser descritos como distúrbios narcísiscos. No que tange à denominada “cultura do narcisismo”, este mesmo autor a define:

“como aquela em que o conjunto de itens materiais e simbólicos maximizam real ou

imagina-riamente os efeitos da Ananké, forçando o Ego a ativar paroxisticamente os automatismos de preservação, face ao recrudescimento da angústia de impotência. Ou, visto de outro ângulo, é a cultura onde a experiência de impotência/desamparo é levada a um ponto tal que torna conflitante e extremamente difícil a prática da solidariedade social” (Costa, 1988:165).

Costa refere-se a esta cultura como refletindo um clima de desori-entação e de ansiedade, em que há um declínio da crença na transcendência da justiça e da autoridade; em que é comum a perda do engajamento e da noção de responsabilidade individual. Um traço desta cultura se manifesta na esfera dos comportamentos sociais.

“A prática e o elogio irresponsáveis da violência desmoralizam a idéia da lei e de Ideais

sociais. No lugar do Ideal surgem então as miragens Ego-Ideais, contra-partida previsível da insegurança e ansiedade Ego-narcísicas. Os indivíduos acuados pela lei do cão servem-se das armas que têm ou das que lhes são oferecidas, para servem-se defenderem. (...) A cultura da violência rapidamente degenera em cultura da delinqüência. O desaparecimento da figura do Ideal coletivo dá lugar ao surgimento da figura do fora-da-lei, como imagem Ego-Ideal. O delinqüente é a forma que o homem supérfluo encontra de sobreviver socialmente na cultura da violência. (Costa, 1988:170)”.

É importante acentuar o descompromisso social em que ambos estão assentados; sentindo-se acossados pela “iminência da morte moral e social”. Segundo ele, os indivíduos de hoje:

“Procuram dominar magicamente o medo da morte, ora fingindo que já estão mortos —

o burocrata servil — ora fingindo que podem controlar a morte porque são capazes de matar os outros — o delinqüente arrogante.

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(...) a cultura da violência mostra como a falência dos Ideais, acenando com o ‘pânico narcísico’, desequilibra a economia egóica e compromete seriamente o bem estar do sujeito e de sua sociedade”. (Costa, 1988:172)

Esta análise da contemporaneidade, que ressaltou fundamentalmente as questões da mudança de mal-estar e da cultura do narcisismo, nos guiará em uma leitura acerca das configurações do medo e da depressão atualmente. Tais configurações se constituem no objeto de estudo deste trabalho.

2. O PÂNICO NA CONTEMPORANEIDADE

Neste item do trabalho, pretendemos fazer uma breve análise conceitual do pânico, enfatizando a sua descrição como um dos sentidos atuais do medo. Para isto, salientamos sua historicidade e contextualidade, a partir de autores como Rolnik (1997), Costa (1988), Chauí (1987) e Bauman (1998).

Atualmente muito se tem falado acerca da síndrome do pânico. Podemos dividir as diversas concepções a seu respeito em duas grandes tendências: 1) de inspiração mais objetivista que vê na síndrome do pânico uma entidade com substância própria, independente dos contextos sociais e culturais contemporâneos, e 2) de orientação mais historicista e anti-essencialista, que vê na síndrome do pânico a expressão de uma cultura, de um universo social que lhe dá os elementos de sustentação. É esta segunda orientação que nós sustentamos no presente trabalho.

Dentro desta orientação, duas linhas de argumentação se fazem notar: uma insiste em que o surgimento de novos diagnósticos - como a síndrome do pânico - está atrelada apenas aos interesses econômicos da indústria farmacêutica (dentro de uma lógica que associa: invenção nosográfica, medicação específica, consumidores novos); e outra considera esse raciocínio exageradamente economicista, e vincula o fenômeno às transformações da cultura de uma maneira geral.

Tomando como referência a segunda linha de argumentação, vejamos o que diz Rolnik (1997). Esta autora, por exemplo, associa a síndrome do pânico às formas de subjetivação contemporâneas, que contemplam a desestabilização exacerbada de um lado e a persistência da referência identitária de outro. Seria na análise de novas formas de vida, nos novos

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tipos de sensibilidade, nas novas formas de subjetivação, que poderíamos encontrar explicações mais plausíveis para o aparecimento de modalidades de experiência afetiva ou emocional que a síndrome do pânico tipifica.

Ainda seguindo este tipo de argumentação, vamos aqui discutir, mesmo que brevemente, por que o medo se organiza desta forma e em que sentido esse medo atual é afinado com as modalidades de construção subjetivas de hoje. Esta discussão é inserida em uma discussão mais ampla acerca dos “mal-estares” contemporâneos, em que há uma precariedade não só do corpo, mas também uma precariedade das relações com o outro, um enfraquecimento de laços com o outro, que não servem como garantia de reciprocidade. Nesta linha, Costa, por exemplo, afirma que “certos padrões de compor-tamento social hoje são suficientemente estáveis e recorrentes para que possamos afirmar a existência de uma forma particular de medo e reação ao pânico, que é a cultura narcísica da violência”.

Essa cultura nutre-se e é nutrida pela decadência social e pelo descrédito da justiça e da lei. (...) Na cultura da violência, o futuro é negado ou representado como ameaça de aniquila-mento ou destruição. De tal forma que a saída apresentada é a fruição imediata do presente; a submissão ao ‘status quo’ e a oposição sistemática e metódica a qualquer projeto de mudança que implique em cooperação social e negociação não violenta de interesses particulares.

(Costa, 1998:167)

Entendemos que a cultura da violência pode ter como conseqüência a propulsão do medo, gerador de insegurança, que se exacerba na medida em que nossa cultura não valoriza o outro, em que a precariedade nas relações sociais é intensa e em que há um esvaziamento de figuras ideais que poderiam funcionar como ideal identificatório dos indivíduos. Na atualidade, portanto, o medo pode ser descrito a partir de algumas configurações características e uma delas consiste no medo patologizado, como na chamada síndrome do pânico.

Há diferenças nas formas de pensar e experimentar o medo, o que sinaliza para a existência de sentidos diversos que a palavra pode ter. Neste artigo nos propomos a pensar o medo a partir de dois pares de oposição, em que se opõem: medo x coragem – predominante no contexto da Antigüidade – e medo x segurança – que reflete mais o mal estar Contemporâneo.

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Estes dois pares de oposição identificam o medo por contraste com um sentimento ou emoção de qualidade contrária. No primeiro, o medo se apresenta como oposto à covardia, argumento exposto por Chauí. Ela nos mostra que dos gregos à Renascença, o medo é supremo vício, castigo e abominação. Neste contexto em que prevalecia a moral da valentia, a virtude oposta ao medo era a coragem e a bravura diante dos perigos de guerra. Valorizava-se, neste momento, “o guerreiro moço, belo e bom a quem se ensina a desejar Kalós thánatos, a bela morte, euklèes thanatós, a morte gloriosa nos campos de batalha no esplendor da juventude”. Como nos mostra a autora, “para os pagãos, o medo é divindade que se abate sobre os fortes, para sua vergonha, e sobre os fracos, para confirmá-los na desonra. Poderes divinos, Temor e Medo são cultuados para que, à maneira de Exus, não baixem sobre os corpos e espíritos na hora decisiva dos combates onde honra, fama e glória se decidem para sempre” (Chauí, 1987:40).

Essa descrição não parece caber em qualquer análise das formas de medo mais típicas da atualidade. Para autores como Bauman (1998;1999) e Costa (1988) o medo se opõe, não tanto à coragem, mas ao sentimento e à expectativa de segurança. O argumento de Bauman, especificamente, é o de que as sociedades atuais se assentam em um modelo fundado no que ele denomina “insegurança existencial”, que assume uma forma de insegurança pessoal. O medo não é mais da ordem do trágico, que estaria em oposição à virtude, dentro de uma esfera ética. Passa a se localizar no plano das estratégias de sobrevivência psíquica mais básicas, num mundo em que certezas e referências “se desmancham no ar” (Bauman, 1998:10).

Podemos afirmar, então, que como efeito dos tempos sombrios em que vivemos – tempo de violência, globalização, e constante mudanças –, o medo pode se tornar a conseqüência mais banal, no cotidiano, dos sentimentos exacerbados de insegurança e desamparo dos indivíduos.

3. A DEPRESSÃOE AFADIGADE SERSIMESMO

Enfocando o tema específico da depressão enquanto um outro traço de muitas subjetividades hoje, vamos privilegiar a análise feita por Ehrenberg (1988) que analisa a questão da depressão relacionando-a ao momento de liberdade em que nos encontramos. Isto, contudo, sem antes mencionar o fato de que muitos outros autores das ciências sociais

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já deram destaque ao fenômeno da depressão contemporânea. É o caso de Lipovetsky (1993), com sua noção de apatia e vazio, e Bauman, com sua menção aos “consumidores falhos – pessoas incapazes de responder aos atrativos do mercado consumidor porque lhes faltam os recursos requeridos, pessoas incapazes de ser ‘indivíduos livres’ conforme o senso de ‘liberdade’ definido em função do poder de escolha do consumidor” (Bauman, 1998:24).

Ehrenberg analisa as mudanças nas descrições dos quadros depressivos na segunda metade do século XX. Mostra que, desde os anos 70, a depressão – que ele chama de “patologia da liberdade”, ligada a uma expressão da falta de tensão e forças internas para responder às diversas demandas com que os indivíduos se vêem confrontados – se torna o problema mental mais disseminado no mundo. Ele levanta, então, a seguinte questão: por quê e como a depressão se impôs como nossa principal infelicidade íntima? O autor se propõe, desta forma, a entendê-la associada às mutações da individualidade na virada do século XX para o XXI .

O autor combina uma história cultural e uma história técnica da psiquiatria, mostrando como a alteração no entendimento da psiquiatria sobre as depressões está ligada a uma mudança na experiência coletiva das pessoas. Estas, primeiramente, se exprimiam tanto pelo assujeitamento disciplinar quanto pelo conflito, e agora se vêem às voltas com a questão da responsabilidade e da ação. Desta maneira, uma das hipóteses levantadas no livro é que a depressão nos instrui sobre nossa experiência atual porque é a patologia de uma sociedade na qual a norma não é mais fundada sobre a culpabilidade e a disciplina, mas sobre a responsabilidade e a iniciativa. Afirma que o sujeito do conflito, próprio da neurose, é substituído pela dificuldade de se definir um sujeito. Este, no máximo, pode ser definido como sujeito insuficiente da depressão.

Enquanto o modelo freudiano da melancolia é calcado na culpa e o tornar-se adulto equivalia à angústia de se tornar si mesmo, o modelo da insuficiência, privilegia a “fadiga de ser si mesmo”. No lugar da angústia, derivada do confronto com o interdito, o que temos é o vazio depressivo. A angústia de ser quem se é, própria do homem emancipado do século XIX que se via às voltas com a transposição do interdito,

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foi transformada no cansaço, na depressão, de ser quem se é: um ser que vive na questão do que é possível fazer e não na questão do que é permitido fazer. Segundo ele: “É por esta razão que a insuficiência está para a pessoa contemporânea como o conflito estava para aquela da primeira metade do século XX” (Ehrenberg, 1998:235).

Podemos dizer, portanto, que o sujeito contemporâneo é considerado o único responsável por suas escolhas. Só que este homem não se sente, por isso, um ser forte. Ao contrário, esse ser está cansado de sua soberania, a qual inclui um ideal extremamente exigente de autonomia da ação individual. No contexto em que nos encontramos, se os indiví-duos não alcançam aquilo que um dia se achavam capazes de alcançar, uma reação possível é, como já mencionado, a fadiga depressiva. Esta esgota, esvazia e torna o indivíduo incapaz de agir, sendo uma patologia da responsabilidade, uma doença da insuficiência.

Ehrenberg em seu livro levanta também a questão de até que ponto seria possível estabelecer relações entre o modelo de compreensão da melancolia em Freud e as características da depressão atual. Sua hipó-tese – ao privilegiar o sentimento de insuficiência em detrimento do sentimento de culpa e ao criticar o modelo de conflito psíquico enquanto inerente aos sujeitos – é a de que o modelo freudiano da melancolia não dá mais conta de entender a mudança na experiência coletiva das pessoas. É necessário a esta altura, portanto, mencionarmos, mesmo que de forma breve, esse modelo de patologia.

Nos textos de Freud, a melancolia é bastante trabalhada, em especial se comparada à noção de depressão, e aponta para uma patologia específica, a qual se encontra associada ao sentimento de culpa, e para um modelo de conflito intrapsíquico. Em Freud, a descrição dos sintomas do melancólico pouco muda. Entretanto, a compreensão das questões que poderiam estar por trás desses sinto-mas varia bastante. Por exemplo, nos Extratos dos documentos dirigidos a Fliess, a melancolia é aproximada das neuroses e seu entendimento dá ênfase ao que se convencionou chamar de aspectos econômicos – mais especificamente a sexualidade (Freud, 1892 – 1899). Já em Luto e melancolia ela é relacionada à questão da identificação narcísica e à dificuldade de elaboração da perda do objeto de investimento (Freud, 1917). Finalmente em um texto como Neuroses e psicoses, ela

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é posta no grupo das neuroses narcísicas, as quais se caracterizam pelo conflito entre ego e superego, em oposição às neuroses de transferência, que correspondem a um conflito entre o ego e o id e em oposição também ao conflito entre ego e mundo externo das psicoses (Freud, 1924).

Nós, neste trabalho, com o termo “depressivo”, que preferimos utilizar para ressaltar algo de específico nesses pacientes contemporâneos, nos aproximamos de Ehrenberg, que, sem demonstrar qualquer pretensão de encerrar a polêmica sobre a depressão e seu psicodiagnóstico, chamou atenção para suas particularidades. Sua posição norteou este item deste trabalho. Em suas palavras: “Seja considerando-a como uma nova face da histeria ou como um estado-limite, a depressão é reveladora da experiência atual da pessoa, porque encarna a tensão entre a aspiração de ser apenas si mesmo e a dificuldade de sê-lo” (Ehrenberg, 1998:147).

4. A POSSIBILIDADE DA ESTETIZAÇÃODA EXISTÊNCIA

Neste estudo queremos entrelaçar pânico e depressão com a questão da criatividade, colocando ênfase no individualismo enquanto matriz destas novas e cada vez mais freqüentes configurações subjetivas.

O pânico e a depressão são aqui associados à dificuldade de criação de sentidos para a vida, sendo suas experiências relacionadas, portanto, à incapacidade do sujeito em ser criativo e dar sentido ao vivido. Ou seja, eles são relacionados com a paralisação de sentidos e não com a criatividade (enquanto criação do novo) e com a ação no mundo.

Quando nos referimos à dificuldade de atribuir sentidos ao vivido, estamos estreitamente ligados à concepção winnicotiana segundo a qual não ter a experiência da continuidade da “sensação de ser real” ou do “sentimento de existência” é o que poderia estar dificultando a atribui-ção de sentidos à vida. Para Winnicott, o sentimento de existência é contrário ao sentimento de “vazio” e “futilidade” próprio da pessoa falso self. Podemos também afirmar que no centro deste “sentir-se real” encontra-se a adaptação suficientemente boa do ambiente às necessida-des do sujeito. Isto, aliás, é o que permite uma verdadeira comunicação do sujeito com o mundo. Comunicação esta na qual o verdadeiro self está envolvido.

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Aqui gostaríamos de transcrever um trecho do seu texto “Comuni-cação e falta de comuni“Comuni-cação levando ao estudo de certos opostos” que se refere a esta questão:

“Desse modo estou introduzindo a idéia de uma comunicação com o objeto subjetivo e ao

mesmo tempo uma não-comunicação ativa com o que é percebido objetivamente pelo lactente; parece não haver dúvida de que, por toda a futilidade do ponto de vista do observador, a comunicação sem saída (comunicação com objetos subjetivos) tem toda a sensação de ser real. Em contrapartida, tal comunicação com o mundo como ocorre com o falso self não parece ser real; não é uma comunicação verdadeira porque não envolve o núcleo do self, aquele que poderia ser chamado de self verdadeiro” (Winnicott, 1983:167).

Entendemos que os sentidos da vida a que nos referimos acima se referem às formas criativas de estar no mundo. Nas palavras de Winnicott: “É através da apercepção criativa, mais do que qualquer outra coisa, que o indivíduo sente que a vida é digna de ser vivida” (Winnicott, 1975:95). Estas formas criativas de estar no mundo estão estreitamente ligadas ao sentimento de self, à sensação de ser real. Quando podemos ter o sentimento de que permanecemos sendo alguém apesar das transformações por que passamos, não nos sentimos vazios. Em outras palavras, ao experimentar a continuidade do sentimento de existir podemos sentir que a vida vale a pena ser vivida.

Ter a continuidade do sentimento de existência é ter a experiência de que algo permanece de nosso, que nos reconhecemos ao longo do tempo e das descontinuidades a que estamos expostos, mas que nos transformamos. Isso, no entanto, não nos faz sermos idênticos a nós mesmos – como se fossemos uma substância a se desdobrar, mantendo uma identidade consigo própria. É supor a “ilusão” de permanência. É, finalmente, ter uma história.

Para essa continuidade acontecer, parece-nos que diversas condições são necessárias: a) experiências passadas que deixam marcas, sem, con-tudo, bloquear o potencial criativo ou determinar nossos movimentos presentes; b) uma interação, o que supõe a presença de um outro que faça contenção, mas sem invasão; c) existência de ideais que apontem para um futuro. Ideais, neste caso, diferentes de idealizações paralisantes (que remetem a fixações de objeto que não são facilmente substituíveis) empobrecedoras do ego, ao se alienar no objeto, mas que apontem para “projetos móveis e variáveis, sempre em mutação” (Da Poian, 1998:133).

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No que tange especificamente às características da depressão contemporânea, em lugar de nos apoiarmos numa concepção segundo a qual o sentimento de culpa é o que nela prevalece, a referência aqui é ao sentimento de ser real que permite ser criativo em relação ao mundo. Este sentimento, ao contrário, não predomina na depressão, nem tão pouco nas denominadas síndromes do pânico.

Podemos afirmar, recorrendo outra vez a Winnicott, que para que tal sentimento possa existir é necessária a experiência com o objeto transicional. A importância desta experiência, e do brincar posterior, para a construção do sentimento de ser real, deve-se ao fato dela permitir ao bebê ter uma relação prazerosa com os objetos do mundo. O bebê poderá ter aí a sensação de que ele cria os objetos. Em suas palavras: “Do objeto transicional, pode-se dizer que se trata de uma questão de concordância, entre nós e o bebê, de que nunca formulemos a p e r g u n t a : ‘ V o c ê c o n c e b e u i s s o o u l h e f o i a p r e s e n t a d o a p a r t i r d o exterior?’”(Winnicott, 1975:28).

Ainda com relação ao conceito de objeto transicional, podemos dizer que este oferece resistência aos impulsos do bebê, oferece uma dimensão objetiva do “objeto”, posto ser o primeiro vislumbre de alteridade – pois há nele uma parte que escapa à ação da ilusão subjetiva do objeto. Porém, este mesmo objeto transicional, não deixa, contudo, de oferecer uma transição contínua entre os momen-tos do bebê. O paradoxo do objeto transicional está justamente aí. Ele é apresentado e criado, bem como é objetivo e subjetivo, ao mesmo tempo.

O pensamento de Winnicott nos serve, enfim, para enfocar uma ação no mundo imbricada com um estar no mundo. O agir humano só se realiza em condições, segundo ele, de continuados cuidados. Estes, por seu turno, se referem àquilo que possibilita a utilização dos objetos culturais, ou seja, se referem àquilo que nos permite ser originais em nosso intercâmbio com esses objetos. Segundo ele, para se passar ao uso do objeto (e experimentarmos nosso potencial criativo que é aqui contraposto ao pânico e à depressão), no qual o objeto faz parte da realidade compartilhada, o objeto deve sobreviver à destruição dos impulsos do sujeito, o que mostra que esse objeto está fora da área de controle onipotente do sujeito.

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5. A TÍTULO DE CONCLUSÃO

É possível dissociar os processos de criação existencial que possibi-litam sentidos para a ação individual da existência de um outro, capaz não de submeter, mas de reconhecer e dar um lugar social ao sujeito? Afinal, é a existência deste outro (que reconheça as demandas, que dê continente, que dê lugar social) que permite a criatividade primária tornar-se um fato de experiência.

Vimos, a partir dos cientistas sociais contemporâneos que, em termos culturais, estamos num momento em que a sociedade não nos dá mais um papel predeterminado de como devemos ser e, mais ainda, não valoriza, a priori, qualquer papel que escolhemos, posto que o indivíduo tem que ser “si mesmo”. Em termos de construção subjetiva, podemos dizer que é como se o outro nos deixasse sem modelo de conduta previamente estabelecido. Isto pode, por um lado, ter nos livrado de referenciais identificatórios rígidos ou mesmo do sentimento de culpa; porém essa mesma sociedade pode ter nos lançado, por outro lado, rumo a um ideal de eu inalcançável – ser si mesmo –, o que gerou sentimentos de insegurança ou de insuficiência.

Podemos dizer que estamos num momento no qual os sentidos não são mais tão rígidos, havendo uma pluralidade de opções. É um momento de grande confusão de valores, no qual, também, o simbólico tem adquirido um caráter mais plural e fragmentado. É neste contexto que entendemos essas novas configurações subjetivas.

Encontramo-nos num momento em que um ideal de autonomia é proclamado através das idéias de responsabilidade, ação e capacidades individuais de tomar iniciativa. Na sociedade contemporânea há uma demanda enorme de criatividade, na medida em que os parâmetros são fluidos e, ao menos aparentemente, não há oposição à liberdade abso-luta do sujeito, o que, de maneira geral, acaba por tornar mais difícil dar conta dessas demandas.

Vimos a partir da análise desses dois emblemas do sofrimento psíquico contemporâneos, sujeitos que não conseguem lidar com as demandas tão custosas de hoje – implicando responsabilidade e iniciativa que sejam exclusivamente suas. Como somos mais livres e menos delimitados por lugares simbólicos de referência, podemos aca-bar apresentando sinais de pânico ou nos deprimindo como formas de expressão da falta de forças internas para responder a tais demandas.

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Assim vêm à tona as questões: como poder dar sentidos para a vida hoje? Em termos mais psicanalíticos, como fazer com que o sujeito continue a ter uma experiência criativa com o mundo, quando - diante de uma cultura extremamente individualista como a nossa – carecemos de relações intersubjetivas capazes de reconhecimento das demandas dos seus sujeitos?

Entendemos que, como estamos numa sociedade que estimula a chamada “cultura do narcisismo”, fica difícil ser criativo, e quem sabe por aí o pânico e a depressão tenham se tornado um fenômeno de massa? Ou seja, essas duas formas de sofrimento psíquico podem ser entendidas como defesas frente ao não reconhecimento mútuo, típico de nossos dias. Aqui podemos recorrer a Honneth (1996) que nos lembra que os sujeitos necessitam de reconhecimento mútuo que se refere à legitimação das demandas dos sujeitos. No entanto, justamente essa contenção/reconhecimento do outro parece se constituir num problema na sociedade contemporânea que estimula a já denominada “cultura do narcisismo”.

Acreditamos que a psicanálise pode ser um veículo capaz de resgatar nosso potencial criativo e assim poder transformar essas duas novas configurações subjetivas. No entanto isto tem limites, na medida em que nos encontramos na sociedade tal qual descrita anteriormente. Sem um lugar social e um reconhecimento simbólico, o pânico e a depressão podem se instalar no sujeito.

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Referências

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