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Adorno e a pintura : mapeamento crítico

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Academic year: 2021

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INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

ALBERTO JOSÉ COLOSSO SARTORELLI

Adorno e a pintura:

mapeamento crítico

CAMPINAS 2019

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Adorno e a pintura: mapeamento crítico

Dissertação apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas como conclusão dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestre em Filosofia.

Orientadora: TAISA HELENA PASCALE PALHARES

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELO ALUNO ALBERTO JOSÉ COLOSSO SARTORELLI, E ORIENTADO PELA PROFA DRA TAISA HELENA PASCALE PALHARES.

CAMPINAS 2019

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Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Cecília Maria Jorge Nicolau - CRB 8/3387

Sartorelli, Alberto,

Sa77a SarAdorno e a pintura : mapeamento crítico / Alberto José Colosso Sartorelli. – Campinas, SP : [s.n.], 2019.

SarOrientador: Taisa Helena Pascale Palhares.

SarDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

Sar1. Adorno, Theodor W., 1903-1969. 2. Pintura. 3. Estética. 4. Teoria crítica. 5. Arte - História. I. Palhares, Taisa Helena Pascale, 1974-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Adorno and painting : critical mapping Palavras-chave em inglês:

Painting Aesthetic Critical theory Art - History

Área de concentração: Filosofia Titulação: Mestre em Filosofia Banca examinadora:

Taisa Helena Pascale Palhares [Orientador] Pedro Hussak van Velthen Ramos

Rafael Rodrigues Garcia Data de defesa: 25-11-2019

Programa de Pós-Graduação: Filosofia Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a)

- ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0002-3028-0571 - Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/6652660190202043

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INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Dissertação de Mestrado, composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 25/11/2019, considerou o candidato Alberto José Colosso Sartorelli aprovado.

Profa. Dra. Taisa Helena Pascale Palhares Prof. Dr. Pedro Hussak van Velthen Ramos Prof. Dr. Rafael Rodrigues Garcia

A Ata de Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertações/Teses e na Secretaria do Programa de Pós-Graduação em Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

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me ver formado na faculdade; e para a minha mãe, que por muitas vezes trabalhou mais de doze horas por dia para que eu pudesse me dedicar integralmente aos estudos. Não há retribuição possível, nem valor que se meça: amor.

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Em primeiro lugar, quero agradecer profundamente à minha orientadora Taisa Palhares, que com vasto conhecimento, conjugado de atenção e compreensão - qualidades muito raras dentro do atual maquinismo acadêmico - foi de importância inestimável para a confecção desse trabalho. Devo todos os méritos dessa dissertação à Taisa; os deméritos são de minha responsabilidade.

Gostaria de agradecer também aos colegas do GEETA (Grupo de Estudos em Estética e Teoria da Arte), pela interlocução, escuta e convivência frutífera. A vocês, meu mais sincero muito obrigado.

Esse trabalho se deve muito à existência de instituições de ensino, pesquisa e extensão, e de bibliotecas públicas. Quero agradecer especialmente aos funcionários do IFCH-Unicamp: da limpeza, informática, biblioteca, Secretaria de Pós-Graduação em Filosofia, e todos os outros que trabalham diariamente para proporcionar aos alunos e pesquisadores um ambiente saudável; e também aos funcionários das bibliotecas da FFLCH-USP, MAC-USP, EESC-MAC-USP, IEL-Unicamp e IA-Unicamp, que tiveram os acervos consultados para essa pesquisa.

Agradeço de maneira destacada à FAEPEX, cujo financiamento foi vital para a conclusão desse trabalho. Com essa dissertação, espero dar testemunho da importância do financiamento público em pesquisa, tão ameaçado hoje em dia.

Para além do âmbito acadêmico, sou infinitamente grato aos amigos que, em diversas circunstâncias, me ajudaram a suportar a existência e a levar a vida de maneira mais leve. Transformada em simulacro pelos burocratas, contrapomos o espírito primevo da filosofia: especulação infindável e a busca de uma arte de viver.

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que a arte seja voluptuosa e a vida ascética; o contrário seria melhor. TEORIA ESTÉTICA

Não há mais beleza nem consolo exceto no olhar que vai até o cinzento, o enfrenta e mantém a possibilidade do melhor na consciência não abrandada da negatividade. MINIMA MORALIA

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Este trabalho pretende mapear, na obra do filósofo alemão Theodor Adorno (1903-1969), as linhas que versam especificamente sobre pintura; quero mostrar como as poucas linhas que Adorno dedicou à pintura são coerentes diante da teoria filosófica do autor, e continuam sendo um campo vivo de investigação e fortuna crítica, de grande valor para a decifração da arte contemporânea.

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This work intends to map, in the work of the German philosopher Theodor Adorno (1903-1969), the lines that deal with painting; I want to show how the few lines devoted to painting are consistent with the Adorno’s philosophical theory, and remain a living field of investigation and critical fortune, of great value for the decipherment of contemporary art.

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Figura 1. David, Marat assassinado, 1793 20

Figura 2. Courbet, Os quebradores de pedra, 1849 21

Figura 3. Pissarro, A colheita do feno, 1887 21

Figura 4. Klee, Pássaros descendo e setas, 1919 35

Figura 5. Klee, Angelus Novus, 1920 43

Figura 6. Klee, Máquina de gorjeios, 1922 44

Figura 7. Picasso, Les demoiselles D’Avignon, 1907 49

Figura 8. Ingres, A banhista de Valpinçon, 1808 50

Figura 9. Manet, Olympia, 1863 51

Figura 10. Picasso, Retrato de Daniel-Henry Kahnweiler, 1910 53

Figura 11. Gris, Café da manhã, 1914 54

Figura 12. Picasso, Guernica, 1937 55

Figura 13. Picasso, Massacre na Coréia, 1951 57

Figura 14. Manet, O suicida, 1881 61

Figura 15. Van Gogh, A igreja de Auvers, 1890 63

Figura 16. Masson, Pasiphaë, 1945 64

Figura 17. Masson, Empregadas da cozinha, 1962 65

Figura 18. Kandinsky, Curva dominante, 1936 68

Figura 19. Klimt, Morte e Vida, 1915 70

Figura 20. El Greco, Laocoonte, 1614 71

Figura 21. Turner, Tempestade de neve, 1842 72

Figura 22. Courbet, A truta, 1873 73

Figura 23. Wols, Sim, sim, sim, 1947 75

Figura 24. Schultze, Rifrost, 1958 76

Figura 25. Pollock, Guerra, 1947 80

Figura 26. Siqueiros, Suicídio Coletivo, 1936 81

Figura 27. Pollock, Ritmo de outono, 1950 83

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Figura 30. Kiefer, Paisagem de Inverno, 1970 89

Figura 31. Kiefer, Lillith, 1987-89 90

Figura 32. Iberê Camargo, Tudo te é falso e inútil IV, 1992 91 Figura 33. Iberê Camargo, Panfletário talvez, omisso não, 1983 92

Figura 34. Alfred Kubin, Medo, 1903 93

Figura 35. Goeldi, Briga de rua, 1926 94

Figura 36. Renina Katz, O tempo e o vento, 1994 95

Figura 37. De Kooning, Excavation, 1950 103

Figura 38. Pollock, Lavender mist number I, 1950 104 Figura 39. Newman, Vir heroicus sublimis, 1951 104 Figura 40. Rodrigo Andrade, Pequena ponte de pedra com arbusto à noite, 2011 109

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PLANO GERAL DA DISSERTAÇÃO 13

APRESENTAÇÃO 14

INTRODUÇÃO – Considerações gerais sobre pintura 19

Parte I – A PINTURA CIRCUNSCRITA

Capítulo I – Klee, pintura em movimento 32

Capítulo II – Subversões de Picasso 48

Capítulo III – Outros modernos 58

Parte II – COM ADORNO, E ALÉM

Capítulo IV – Desafios da abstração: Pollock 74

Capítulo V – A atualidade dos conceitos de raiz adorniana para a 86

crítica das artes visuais

Excurso I – Estado da arte: sobre Jay Bernstein 97

Excurso II – Nota sobre crítica, modernismo e indústria da arte hoje 107

CONCLUSÃO 111

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PLANO GERAL DA DISSERTAÇÃO

A APRESENTAÇÃO visa a exposição inicial ao leitor do tema da dissertação, a saber, os elementos referentes à pintura na obra de Theodor W. Adorno.

Na INTRODUÇÃO apresentarei os conceitos gerais da estética de Adorno, acerca da arte em geral e de sua relação com a pintura em particular, situando-a em sua teoria da arte moderna.

A PARTE I da dissertação tratará especificamente dos pintores aos quais Adorno faz alguma referência, que estão quase que em sua totalidade situados temporalmente na chamada modernidade artística. Os dois primeiros capítulos serão dedicados a Paul Klee e Pablo Picasso, pois são os pintores mais citados por Adorno e em cujas obras o autor se concentrou mais detidamente. Já o Capítulo III tratará de outros pintores citados na obra adorniana, como Van Gogh, Dalí e principalmente Manet e Kandinsky.

Na PARTE II avançaremos do “modernismo heroico” para fenômenos mais próximos de nossa época no registro pictórico. O Capítulo IV tratará principalmente do expressionismo abstrato estadunidense na figura de Jackson Pollock. O Capítulo V tratará da possibilidade de se partir da estética adorniana para a crítica de pintura. Trataremos de artistas como Rauschenberg, Kiefer, Iberê Camargo e Renina Katz.

No EXCURSO I tratarei do estado da arte, quer dizer, dos autores que se utilizaram de conceitos adornianos para realizar críticas no campo das artes visuais. O mais destacado deles é Jay Bernstein, em cuja obra me concentrarei.

O EXCURSO II é uma nota sobre a crítica de arte de raiz adorniana, sobre a discussão acerca do modernismo, e sobre o alcance da indústria da arte nos dias de hoje.

A CONCLUSÃO, como se sabe, não passa de uma retomada da trajetória da dissertação.

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APRESENTAÇÃO

“Pois bem, aqui chegamos ao ponto em que tenho que reconhecer, com efeito, minha incompetência técnica em questões de pintura1.“ [tradução nossa] Essa declaração foi

proferida pelo filósofo alemão Theodor W. Adorno em sala de aula, no curso de Estética que ofereceu em Frankfurt no inverno entre 1958 e 1959. Declaração sintomática, pois nas obras do filósofo sobre Estética encontramos poucas menções a pintores, e menos ainda a quadros específicos. Em seus textos de estética musical, teoria e crítica de música quase que se conjugam, já que o autor possuía profundo conhecimento da forma musical. Suas menções acerca da pintura são na maior parte das vezes estritamente genéricas, em sua maioria destacadas em regime de comparação com a música ou a literatura. Todavia, nos atentemos: são poucas as menções, o que é diferente de nenhuma. Na verdade, Adorno preocupava-se também com o futuro da pintura de seu tempo. O percurso da investigação me convenceu de que o filósofo possuía alguma instrução em teoria e história da pintura, mas não muito mais do que uma pessoa de boa formação em sua época2. Quer dizer,

estava distante de ser um especialista, como era em música e literatura. Nesta pequena seara que se apresenta, a saber, as poucas linhas que Adorno dedicou à pintura, são maioria e encontramos maior riqueza de ideias nos escritos que se debruçam sobre a obra dos pintores do chamado modernismo artístico. Suas interpretações de Klee e Picasso são diretamente influenciadas por sua relação de interlocução com o galerista e crítico de arte franco-germânico Daniel-Henry Kahnweiler3, a quem dedica os textos Aqueles anos vinte

[1962] e Algumas relações entre música e pintura [1965]. Se Adorno não era um especialista em pintura, isso não significa que sua obra não contenha nenhuma contribuição ao debate das artes pictóricas.

*

1 “Ahora bien, aquí se alcanzó el punto en el que tengo que reconocer, en efecto, mi incompetencia técnica en cuestiones de pintura.” ADORNO, Estética 1958/9, p. 406.

2 É sabido que, de volta a Frankfurt nos anos 1950, Adorno possuía em sua casa um original de Wotruba e impressões de obras de Klee, Picasso, Schultze e Hartung. Ver: MÜLLER-DOOHM, Adorno: a biography [2003], p. 347.

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A obra adorniana, em sua totalidade, é um grande diagnóstico de época. Confunde-se com o próprio ímpeto da Teoria Crítica, que buscava constituir uma teoria nova, interdisciplinar e de abordagem materialista, adequada para o século XX. Adorno reivindicava Kant, pois não pode abrir mão da autonomia da razão e do pensamento; Hegel, pois a forma dialética de pensar é a que melhor dá conta da complexidade do mundo que se apresenta; Marx, pelo diagnóstico preciso em registro materialista da estrutura do capital e aquilo que dela resulta, adentrando aos mais variados âmbitos da vida; Nietzsche, que foi um voraz crítico da razão; Weber, pelo conceito de desencantamento do mundo; Lukács, por notar no romance moderno a perda da experiência e a ausência de sentido da vida; e Freud, por começar a desvendar os mistérios da psiquê. Essa miscelânea de referências interdisciplinares, assimiladas em seus momentos de verdade, faz com que os textos de Adorno sejam um campo vivo de possibilidades de entendimento do mundo, ainda hoje.

A teoria adorniana apresenta duas novidades4: os conceitos de razão instrumental e

indústria cultural, que serão muito importantes neste trabalho. O Iluminismo, expressado especialmente através da Independência dos Estados Unidos e da Revolução Francesa, entendia o uso da razão como naturalmente emancipatório, aquilo que traria luz às trevas e conduziria a todos em direção ao conhecimento e ao bem geral. Todavia, há um sem número de episódios da história da humanidade a evidenciar que, mesmo reivindicando um ideal de racionalidade, foram cometidos atos execráveis, abjetos, profundamente desumanos. Que palavras descrevem um genocídio? Adorno e Horkheimer notaram que existe uma dialética intrínseca ao próprio conceito de razão: a razão pode, sim, ser utilizada para a emancipação, mas pode também ser utilizada para a dominação. Nesse segundo registro, a razão serve somente para realizar operações lógicas, sem preocupar-se com as qualidades e com as mais valorosas das finalidades: a realização da liberdade e da felicidade humana. Essa razão, instrumental, é tão abstrata quanto a lógica formal que lhe serve de antecâmara; quando utilizada para a gestão de seres humanos, desumaniza-os, transformando-os em estatística; só desse modo, metamorfoseada em coisa utilitária a

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esquecer-se dos fins que lhe deveriam ser inerentes, a razão pode ser violenta. E foi essa face da razão, a instrumental, que se tornou historicamente hegemônica, ao menos naquilo que conhecemos pelo nome genérico de civilização ocidental. Para Adorno, o nazismo não pode ser explicado somente pelas patologias desenvolvidas no mais íntimo do povo alemão e em seus líderes, mas também pelo uso instrumental da razão – no Direito, na propaganda, na arte oficial e na própria organização da máquina de guerra nazista - para perpetrar um genocídio. Uma razão utilizada unicamente para eliminar o diverso.

O capitalismo avançado, do qual o nazismo não é uma anomalia mas sim uma consequência de suas contradições, é profundo devedor da instrumentalização da razão, que possibilitou à forma-mercadoria5 que se apropriasse cada vez mais e alcançasse o

âmago de todas as produções do mundo globalizado, inclusive da cultura: paulatinamente a cultura foi se tornando mercadoria. Os produtos culturais em escala industrial passam pela divisão social do trabalho, ou seja, não são mais fruto de profunda autonomia artística; são feitos a partir do paradigma da vendabilidade, quer dizer, são produtos feitos para vender, e não necessariamente construções autônomas sem finalidade utilitária. A mesma máquina industrial que produz a mercadoria cultural (ou assimila aquelas que lhe interessam), também publiciza, veicula, agrega valor através da crítica e, por fim, vende a mercadoria cultural supervalorizada aos consumidores através dos mais diferentes meios e das mais diversas abordagens. Mesmo produções que contrariam os clichês que garantem a vendabilidade em massa são assimiladas enquanto mercadorias e vendidas para uma clientela distinta, cult. Afinal, até os críticos do sistema são consumidores. Assim, a indústria cultural aparece no século XX, com o alcance global dos meios de

5 Resumidamente, uma mercadoria é um produto do trabalho humano em que está impregnado não apenas o seu valor de uso (que provém de suas qualidades inerentes), mas também o seu valor de troca, que provém de seu valor quantificado em dinheiro (quer dizer, abstrato). A divisão social do trabalho faz com que os trabalhadores, que vendem sua força de trabalho, não tenham consciência da totalidade do processo de produção: estão alienados dele. Assim, o produto da divisão social do trabalho, a mercadoria, exerce certo “feitiço” perante os consumidores, simplesmente por lhes ser estranha a sua gênese de produção. É a esse encanto que Marx chama fetichismo da mercadoria. “O misterioso da forma mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens as características sociais do seu próprio trabalho como características objetivas dos próprios produtos de trabalho, como propriedades naturais sociais dessas coisas e, por isso, também reflete a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social existente fora deles, entre objetos.” MARX, O Capital, A mercadoria [1867].

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comunicação, como uma força “totalitária e totalizante”, deixando pouco espaço para as manifestações exteriores a esse processo que ela mesma dirige.

As obras de Adorno, em especial as de maior fôlego, como a Dialética do

Esclarecimento [1947, em parceria com Horkheimer], a Dialética Negativa [1966] e a Teoria Estética [1969], esboçam uma visão de mundo que, ainda que fragmentada, é

extremamente coerente. Pelas veredas da negatividade, renovamos o olhar perante a falsa positividade, máscara de uma realidade catastrófica. Num mundo assim, a arte autêntica é receptáculo da ideia de que as coisas não precisam ser necessariamente como são, e podem ser de outro modo. “Toda obra de arte é, num certo sentido, “o mundo do novo”, quer dizer, o mundo purificado dos fins imediatos6.” [tradução nossa] Na sociedade falida e na

natureza destruída, as artes são um refúgio, o último posto avançado de uma liberdade que míngua a cada dia.

Entre as artes, nos interessa aqui a pintura. Se Adorno nos apresenta uma visão de mundo estabelecida enquanto teoria coerente, só isso já poderia reverberar na pintura de sua época e depois dele, afinal, acabou se tornando um filósofo conhecido; porém, além disso, dedicou certa energia para escrever algumas linhas sobre pintura. Nada mais coerente para um filósofo preocupado em realizar um diagnóstico preciso da sociedade, e nesse diagnóstico a arte serve de sismógrafo das transformações sociais; a pintura moderna, que impactou a cultura dos séculos XIX e XX, foi tão sensível a essas transformações quanto a literatura e a música.

*

Há um artigo de Alvaro Valls intitulado A presença/ausência dos artistas plásticos na

“teoria estética” de Adorno [2002]. O texto esboça a hipótese de que os escritos de Adorno

teriam algo a contribuir para a análise da pintura, principalmente da pintura dita moderna, quer dizer, a das vanguardas heroicas. Persegui essa hipótese e busquei desenvolvê-la, transformando-a numa dissertação de mestrado. Inicialmente, pretendia trabalhar apenas com o texto da Teoria Estética, a obra final e inacabada de Adorno;

6 “Toda obra de arte es, en un cierto sentido, “el mundo de nuevo”, es decir, el mundo purificado de los fines inmediatos.” ADORNO, Estética 1958/9, p. 153.

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todavia, o percurso da pesquisa trouxe à tona outros textos em que Adorno dedica algumas linhas para discutir sobre as artes pictóricas. Destaco alguns desses textos, frequentemente referenciados aqui. O primeiro é o curso de Estética ministrado por Adorno em Frankfurt no inverno entre 1958 e 1959, com prefácio e tradução para a língua espanhola por Silvia Schwarzböck (UBA), sob o título de Estética 1958/9. O segundo é o ensaio A arte e as artes [1967] – e recentemente traduzido para a nossa língua por Rodrigo Duarte; nessa edição também consta a importante tradução da Primeira Introdução à Teoria

Estética. Também foram de importância vital para a pesquisa os textos Sobre uma música

informal7 [1961], Algumas relações entre música e pintura [1965] e Rabiscado no Jeu de Paume

[1958].

A tradução portuguesa da Teoria Estética por Artur Morão é a única integral entre os leitores de língua portuguesa; foi utilizada preponderantemente a edição de 1993, que não contém os Paralipómenos; quando constar citação dos Paralipómenos, que se saiba que a paginação refere-se à edição de 2008 da Teoria Estética, na qual consta a tradução desse suplemento.

A maioria dos textos utilizados aqui possuem tradução para a língua portuguesa; quando não possuem, realizo a tradução de trechos específicos no corpo do texto, seguidos de tradução nossa; em nota consta sempre o trecho original. As datas entre colchetes após os títulos de textos ou quadros indicam o ano da publicação ou exposição original.

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INTRODUÇÃO

Considerações gerais sobre pintura

Meu intento neste trabalho será o de encontrar alguns padrões do discurso adorniano sobre pintura. Não podemos pensá-los como critérios cristalizados, afinal, a estética adorniana se caracteriza pela análise do particular em sua legislação interna e própria, e é por esse motivo tão rica e tão atual.

[…] [a coerência estética] nada tem a ver, naturalmente, com a lógica habitual e circundante do conceito, e não podemos interpretá-la, por exemplo, como uma lógica mecânico-causal, mas sim como uma lógica de modalidade própria, a lógica de uma conexão de sentido motivada em si mesma; quando se fala de uma lógica estética em geral, é preciso aceitar essa essência específica da lógica estética. (ADORNO, Estética 1958/9, p. 61, tradução nossa8)

Todavia, ao nos debruçarmos sobre as análises de Adorno que envolvam pintura, encontramos alguns apontamentos que se assemelham. Acredito que esses apontamentos não são considerações isoladas, e sim decorrências da teoria filosófica de Adorno, adequadas à forma específica da pintura.

Primeiramente, o filósofo entende que a história da arte, e consequentemente a da pintura também, caminha não cronologicamente, mas por negação determinada: as obras negam-se umas às outras, e assim superam-se.

O conteúdo de verdade das obras de arte funde-se com o seu conteúdo crítico. Eis porque exercem a crítica entre si. É isso, e não a continuidade histórica das suas dependências, que liga as obras de arte umas às outras; «uma obra de arte é a inimiga mortal da outra». A unidade da história da arte é a figura dialéctica de uma negação determinada. (ADORNO, Teoria Estética, p. 49)

A negação determinada é uma operação da lógica dialética, que consiste em negar não o todo indiscriminado, abstrato, mas um particular concreto. Ao negar o particular,

8 “[…] la coherencia (Stimmigkeit), no tiene nada que ver, naturalmente, con la lógica habitual, con la lógica circundante habitual del concepto, y no hay que interpretarla tampoco, por ejemplo, como una lógica mecánico causal, sino que es una lógica de una modalidad propia, la lógica de una conexión de sentido (Sinnzusammenhang) motivada en sí misma y si se habla de una lógica estética en general, se tiene que aceptar esta esencia específica de la lógica estética.” ADORNO, Estética 1958/9, p. 61.

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supera-se esse particular a partir de sua negação, mas essa superação contém em si sua gênese, quer dizer, algo do particular negado.

A única coisa para alcançar a progressão científica - e em vista de cuja intelecção inteiramente simples é necessário se empenhar de modo essencial - é o conhecimento do enunciado lógico de que o negativo é igualmente positivo ou que o que se contradiz não se dissolve no que é nulo, no nada abstrato, mas essencialmente apenas na negação de seu conteúdo particular ou que uma tal negação não é toda negação, e sim a negação da questão determinada que se dissolve, com o que é negação determinada; que, portanto, no resultado está contido essencialmente aquilo do qual resulta - o que é propriamente uma tautologia, pois de outro modo seria um imediato, não um resultado. Na medida em que o que resulta, a negação, é negação determinada, ela possui um conteúdo. Ela é um novo conceito, mas conceito mais elevado, mais rico do que o precedente; pois ela se tornou mais rica devido a essa negação ou oposição; ela, portanto, o contém, mas também mais do que ele, e é a unidade dele e do seu oposto. (HEGEL, Ciência da lógica [1812], p. 34)

Figura 1. David, Marat assassinado, 1793

Fonte: disponível em:

<https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Morte_de_Marat#/media/Ficheiro:Death_of_Marat_by_David.jpg> Acesso em 13 dez. 2019

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Figura 2. Courbet, Os quebradores de pedra, 1849

Fonte: disponível em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Gustave_Courbet_-_The_Stonebreakers_-_WGA05457.jpg> Acesso em 13 dez. 2019

Figura 3. Pissarro, A colheita do feno, 1887

Fonte: disponível em: <https://www.vangoghmuseum.nl/en/collection/s0520S2010?v=1> Acesso em 13 dez. 2019

Tentarei ilustrar aqui essa concepção dialética da história da arte com exemplos. Em

Marat assassinado9 [1793], o pintor francês JacquesLouis David ele que era um jacobino

-nega a tradição da pintura histórica de somente representar os grandes feitos do passado greco-romano e mostra, à maneira de Caravaggio pintar os santos, a figura do mártir

Jean-9 Jacques-Louis David, Marat assassiné, 17Jean-93, óleo sobre tela, 128 x 165 cm. Museu Real de Belas Artes da Bélgica, Bruxelas.

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Paul Marat, o herói do povo, morto por seus opositores girondinos covardemente numa banheira; independente das intenções políticas de David, que não era lá bem exatamente um aliado de Marat, efetivamente aconteceu uma ruptura: finalmente havia um contemporâneo [europeu] com a dignidade de ser retratado numa pintura de história, pois a Europa vivia um acontecimento do qual acreditava-se que possuía a dignidade de virar História: A Revolução Francesa. Depois, o pai do realismo Gustave Courbet, em Os

quebradores de pedra10 [1849], dá a dignidade de personagem do quadro a trabalhadores

anônimos, heróis do cotidiano, aqueles que sustentam a sociedade e por isso são mais importantes do que seus líderes. Assim a pintura histórica tornou-se realismo: por negação determinada, assimilando, negando e superando as obras do passado, mas trazendo consigo a gênese completa e necessária desse processo. O mesmo aconteceu na negação do realismo pelo impressionismo: no deparar-se com o próprio material sem imperativos exteriores – dado o fim do monopólio das Academias - muitos artistas protestaram contra a ilusão da verossimilhança oferecida pela perspectiva linear, e o fizeram a partir de meios estritamente pictóricos. Tomemos como exemplo Camille Pissarro: em A colheita do feno11

[1887], ele afirma Courbet ao representar camponeses trabalhando, mas nega-o na forma, com o predomínio da cor perante a linha e ausência de perspectiva linear, já tendendo a uma figuração não-realista.

Ainda que esta ilustração do processo seja cronológica, é importante lembrar que este tipo novo de história da arte não opera por cronologia temporal; pelo contrário, está inscrita nas obras mesmas, muito além de sua recepção na época ou período de ocaso. Portanto, é uma história da arte aberta, e nesse elemento está a possibilidade de uma obra antiga exercer influência e potência sobre produções contemporâneas.

Além da arte ter uma relação dialética com suas próprias produções, ela também possui uma relação dialética com o mundo. A negação, para ser determinada, deve referir-se a um outro específico. Para Adorno, a arte é o outro da empiria, que envolve a realidade social. Todavia, vale lembrar, não é apenas reflexo desse outro, e sim sua negação

10 Gustave Courbet, Les Casseurs de pierres, 1849, óleo sobre tela, 165 x 257 cm. Destruído na Segunda Guerra. 11 Camille Pissarro, La récolte des foins, 1887, óleo sobre tela, 50 x 66 cm. Museu Van Gogh, Amsterdam.

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determinada; e, por ser negação determinada, ao referir-se a esse outro, retira dele seus materiais. “A arte comporta-se em relação ao seu outro [o mundo] como um íman num campo de limalha de ferro12.” É essa referência ao outro que faz com que a arte não seja

somente expressão da subjetividade solipsista, e sim do sujeito enquanto constituinte de um todo social, ou como se queira, do “espírito13”. Só assim, como portadora do espírito,

pode haver na arte algum conteúdo de verdade que possa ser socialmente compartilhado. Adorno diz que forma e conteúdo são distintos, porém em relação de reciprocidade necessária; a forma é conteúdo historicamente sedimentado; todavia, o conteúdo interage com a forma, e a forma, com o conteúdo. São distintos, porém, inseparáveis.

[…] quando tivermos que falar sobre o problema da estética formal e da estética conteudista, nos ocuparemos meticulosamente de que ambas as categorias estão reciprocamente mediadas, de que as assim chamadas formas são conteúdos historicamente sedimentados, e de que o conteúdo estético, por sua parte, é algo afetado até o mais íntimo pela forma, e não é, de nenhum modo, algo que se recebe assim como material do mundo empírico e se introduz propriamente na obra de arte. (ADORNO, Estética 1958/9, p. 52, tradução nossa14)

Se analisarmos em separado forma e conteúdo, corremos dois riscos: o do formalismo puro, que não se refere a nada e por isso é insosso; e o da arte como panfleto político, comumente utilizando-se de formas estabelecidas para “comunicar às massas”. Em qualquer um desses casos, a obra perde seu estatuto de arte, pois torna-se isenta de tensão. “Toda obra de arte, ainda que se apresente como perfeita harmonia, é em si mesma um contexto de problema15”. Esse problema, proveniente de alguma tensão interna da

obra, é reverberação de algum problema objetivo: a tensão entre sujeito e objeto, geral e particular, construção e espontaneidade, etc. Uma obra que não apresente tensão, é falsa enquanto tentativa de mímese da realidade.

12 ADORNO, Teoria Estética, p. 18.

13 Ver: HEGEL, Fenomenologia do Espírito [1807].

14 “[…] cuando tengamos que hablar sobre el problema de la estética formal y la estética contenidista, nos ocuparemos en detalle de que ambas categorias están reciprocamente mediadas, de que las así llamadas formas son contenidos sedimentados, y de que el contenido estético, por su parte, es algo afectado hasta en lo más intimo por la forma, y no es, de ningún modo, algo que se recibe así como material del mundo empírico y se introduce propiamente en la obra de arte.” ADORNO, Estética 1958/9, p. 52.

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Pela recusa intransigente da aparência de reconciliação, a arte mantém a utopia no seio do irreconciliado, consciência autêntica de uma época, em que a possibilidade real da utopia - o facto de a terra, segundo o estado das forças produtivas, poder ser aqui e agora o paraíso - se conjuga num ponto extremo com a possibilidade da catástrofe total. (ADORNO, Teoria Estética, p. 46)

A função e o caráter da mímese na obra de Adorno também são um contexto de problema. Em sintonia com a interpretação de Safatle, entendo a mímese em Adorno como imitação da dor e da barbárie em seus aspectos mais repugnantes; isso quer dizer que o substrato material ao qual a arte se refere na atividade mimética não é qualquer substrato material do mundo, mas especificamente aquilo contra o qual a arte se volta. Portanto, para Adorno, não basta a capacidade de imitação, e sim sua operação enquanto mímese

negativa.

Na verdade, a exigência adorniana passa pela necessidade de a arte pôr sua afinidade mimética com o que há de mais morto e arruinado na realidade social. Devemos levar às últimas conseqüências afirmações como: “A arte só consegue opor-se através da identificação (Identifikation) com aquilo contra o qual ela se insurge.” Adorno é extremamente claro neste ponto. Basta lembrar ainda que: “as obras de arte modernas abandonam-se mimeticamente à reificação, a seu princípio de morte”. Uma afirmação aparentemente estranha, já que a tendência hegemônica tende a definir a arte moderna, ao contrário, através da recusa a toda afinidade mimética com a sociedade reificada, isto através, por exemplo, da crítica à representação e à figuração. (SAFATLE, Espelhos sem imagens [2005], p. 39)

A expressão verdadeira numa obra de arte sempre será, até que as coisas mudem radicalmente, a da dor. A expressão da dor social é uma das características da arte que reconhece a sociedade cindida e bárbara e que, dialeticamente, visa libertar essa sociedade de seus elementos repressivos. De acordo com Hussak:

A expressão da dor contradiz nossa própria existência, sendo, portanto o elemento dialético por excelência, já que o conflito, o sofrimento e a luta representam formas básicas da contradição muito antes de penetrar na sua forma abstrata e conceitual. […] A expressão é precisamente a externação estética do sofrimento humano, ou seja, a ex-pressão daquilo que antes estava sob pressão e vem à tona. Pela expressão, a arte protesta contra as regressões à barbárie. Se é o medo que leva à dominação da natureza, e a barbárie é o retorno do impulso mimético reprimido, então o medo não deve ser reprimido. A expressão do sofrimento visa libertar o homem da neurose de dominação da natureza, é apenas neste enfrentamento que o homem pode superar a angústia mítica. Na arte, o impulso reprimido que retorna enquanto regressão pode

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aparecer livremente. (HUSSAK, Mimese e verdade no mundo administrado [2008], p. 32)

É por meio da expressão da dor que a arte preserva a utopia de um mundo melhor, e de maneira nenhuma pela representação ideológica, e por isso falsa, de uma sociedade ideal - como no realismo socialista. “É melhor não haver arte alguma do que o realismo socialista16”, diz Adorno. Se a felicidade, que é a reconciliação, ainda não existe, e a arte é

mimética, utilizando materiais de seu outro – a realidade social -, a arte não pode de modo algum ser alegre. “A expressão da arte comporta-se mimeticamente, da mesma maneira que a expressão dos vivos é a da dor17.” Assim como na literatura, uma pintura que coloca

em cheque seu próprio sentido e função está protestando contra a racionalidade instrumental e a falsidade do mundo positivado pela face cruel da razão. Ainda de acordo com Hussak:

Ao contrário do que possa inicialmente parecer, esta idéia não vem corroborar com aqueles que defendem a irracionalidade da arte, mas, ao contrário, em Adorno ela aparece como um veículo crítico que pode realizar um projeto emancipatório. A arte é racionalidade porque, apesar de filha da magia, nega a magia porque participa do desencantamento do mundo, assim ela é filha do Esclarecimento. A arte, ao colocar o homem diante de sua finitude e impotência quanto às pretensões de uma dominação total do mundo, subverte a lógica da dominação porque, apesar de também ser uma forma de manipulação da natureza, não visa de forma alguma subjugá-la, mas sim apontar para outras finalidades que concernem às questões humanas. (HUSSAK, Mimese e verdade no mundo administrado, p. 32-3)

A expressão verdadeira, numa obra de arte, consiste na consciência progressista, quer dizer, aquela que conjuga a técnica e a experiência mais avançadas de uma determinada época. É importante notar aqui que, em termos adornianos, o artista de consciência “progressista” não é aquele necessariamente alinhado à esquerda no espectro político, principalmente levando em conta o contexto da época. Apesar de todas as diferenças, o nazifascismo e o stalinismo foram regimes que centralizaram o poder, cercearam liberdades individuais e eliminaram a diferença – como também acontece, com outro grau de “sofisticação”, na democracia burguesa. Para Adorno, progressista é o

16 ADORNO, Teoria Estética, p. 68. 17 ADORNO, Teoria Estética, p. 130.

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artista que realiza uma construção rigorosa, a partir de reflexões formais, e cuja construção expressa a dor social, sem prender-se a modelos de antemão e nem ao imperativo de educar as massas com arte ligeira. Isso transpassa qualquer discussão sobre a adesão pessoal dos artistas a quaisquer ideologias.

No decurso da I Guerra e antes de Estaline, as opiniões política e esteticamente avançadas conjugavam-se; a quem, na altura, começava a despertar, a arte parecia-lhe a priori ser o que de nenhum modo era historicamente: a priori politicamente à esquerda. Desde então, os Jdanov e os Ulbricht, com a prescrição do realismo socialista, não só acorrentaram, mas destruíram a força produtiva artística. […] Em contrapartida, pela divisão nos dois blocos, os dirigentes do Ocidente, nos decênios após a II Guerra, assinaram uma paz revogável com a arte radical; a pintura abstracta18 é fomentada pela grande

indústria alemã e, na França, o ministro da cultura do General De Gaulle chama-se André Malraux. […] O isolamento elitário da arte avançada deve ser-lhe menos imputado do que à sociedade; os padrões inconscientes das massas são os mesmos de que precisam as relações para a sua conservação em que as massas estão integradas, e a pressão da vida heterónoma força-as à dispersão e impede a concentração de um eu forte, que exige o não-rotineiro. Isso provoca o ressentimento; nas massas, contra o que lhes é igualmente recusado pelo privilégio da cultura (Bildung); na atitude de artistas esteticamente tão progressistas desde Strindberg e Schönberg, contra as massas. (ADORNO, Teoria Estética, p. 284)

Portanto, toda arte considerada “avançada” será uma arte que expresse, em sua forma e conteúdo, a verdade histórica, à revelia de eventuais resistências em relação à recepção, circulação ou mesmo da adesão pessoal do artista a regimes autoritários. A verdade, para Adorno, não é absoluta, e sim a verdade de uma época. Uma obra cuja expressão é verdadeira expressa as contradições de sua época. Se for ausente de tensão, a obra é mero documento da cultura, e não uma obra de arte.

De uma obra de arte se pode dizer já com fundamento se é ou não de bom gosto, e se pode dizê-lo, por certo, no sentido de se ela armazenou – ou não – o padrão dos meios alcançado historicamente em cada época (quer dizer, na linguagem mais progressiva possível que se possa falar dentro do respectivo

18 Também nos Estados Unidos fez-se algum esforço para fundamentar teoricamente as produções artísticas do expressionismo abstrato, na busca da justificação daquela que seria a mais avançada vanguarda internacional, de origem nova-iorquina. Ver: GONÇALVES, Clement Greenberg, o Expressionismo Abstrato e a crítica de arte durante a Guerra Fria [2013].

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meio artístico). Nesse sentido, Picasso é um pintor de bom gosto e Hans Thoma19 um de mal gosto. (ADORNO, Estética 1958/9, p. 455, tradução nossa20)

Para Adorno, o pensamento mais progressista da modernidade artística, certamente, recusa de maneira veemente a forma cristalizada. A novidade da pintura moderna está no fato de não mais poder ser mais avaliada exteriormente, através de critérios fixos pelas Academias, e sim pela coesão interna das obras; há uma lógica interna das obras de arte. “Os verdadeiros critérios daquilo sobre o que falamos aqui não se encontram na experiência subjetiva das obras de arte, mas na forma da obra de arte mesma21.” [tradução nossa] A obra de arte moderna justifica a si mesma em sua própria

forma. E essa novidade faz-se ver também na crítica de arte, que torna-se antiquada quando cristaliza seus critérios.

Não é minha intenção, por um lado, ditar ou estabelecer de maneira dogmática, digamos, algo como valores estéticos absolutos, ou o conceito de uma filosofia dos valores que procede de valores rígidos que estão frente ao sujeito e resultam imutáveis, um conceito que me parece incompatível, justamente, com a experiência histórica e também daquilo que se passa, obrigatoriamente, na arte mesma. (ADORNO, Estética 1958/9, p. 56, tradução nossa22)

A crítica de arte não pode envolver a recepção sensível - apesar do artista em seu exercício por vezes preocupar-se com isso – pois a compulsão à identidade e repulsa do diverso estão historicamente impregnadas na recepção sensível geral, educada pela

19 Hans Thoma foi um pintor alemão, conhecido por retratos e pintura decorativa, seguindo os moldes do antiquado realismo acadêmico.

20 “De una obra de arte se puede decir ya con fundamento si es o no de buen gusto y se puede decirlo, por cierto, en el sentido de si ella ha almacenado - o no - el estándar de los medios alcanzado históricamente en cada época (es decir, el lenguaje más progresivo posible que pueda hablarse dentro del medio artístico respectivo). En este sentido, Picasso es un pintor de buen gusto y Hans Thoma, uno de mal gusto.”

ADORNO, Estética 1958/9, p. 455.

21 “[…] los verdaderos criterios de aquello sobre lo que hablamos aquí no se encuentran en la experiencia subjetiva de las obras de arte, sino en la forma de la obra de arte misma.” ADORNO, Estética 1958/9, p. 400. 22 “No es mi intención, por una parte, dictar o establecer de manera dogmática, digamos, algo así como valores estéticos absolutos, sino el concepto de una tal filosofia de los valores que procede de valores rígidos que están frente al sujeto y que le resultan inmodificables, un concepto que me parece incompatible, justamente, con la experiencia histórica y también con la experiencia de aquello que sucede, obligatoriamente, en el arte mismo.” ADORNO, Estética 1958/9, p. 56.

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indústria cultural. É como se nossos sentidos estivessem atrofiados, incapazes de sentir prazer com sensações diferentes das que somos bombardeados diariamente pelas mídias.

A objectivação da arte que, do exterior, da sociedade, constitui o seu feiticismo é, por seu turno, social enquanto produto da divisão do trabalho. Por isso, a relação da arte à sociedade não deve buscar-se predominantemente na esfera da recepção. Essa relação é anterior a esta e situa-se na produção. O interesse na decifração social da arte deve virar-se para esta produção em vez de se contentar com inquéritos e classificações dos efeitos, que, muitas vezes, por razões sociais, divergem totalmente das obras de arte e do seu conteúdo social objectivo. As reacções humanas às obras de arte são, desde tempos imemoriais, mediatizadas ao extremo e não se referem imediatamente à coisa (Sache); hoje, esta mediação produz-se em toda a sociedade. A pesquisa do efeito não só não aborda o carácter social da arte, mas não tem o direito de ditar normas à arte, direito que ela usurpa sob o espírito positivista. (ADORNO, Teoria Estética, p. 256)

Adorno adota a premissa de Kant, na qual o prazer sensível não é critério distintivo da experiência estética com as obras de arte, e sim a reflexão. Só com a experiência estética enquanto reflexão, e não pelo apaziguamento dos sentidos gerado pelas formas simples e estabelecidas, se é capaz de sentir alguma espécie de prazer – intelectivo - com a figuração da dor humana.

A comunicabilidade universal de um prazer traz já consigo, em seu conceito, que este não deve ser um prazer da fruição, por mera sensação, mas sim da reflexão: e assim arte estética, como bela-arte, é uma arte tal que tem por justa-medida o Juízo reflexionante e não a sensação-de-sentidos. (KANT, Crítica do Juízo [1790], § 44)

A denúncia da arte moderna contra o estado de coisas existente, para dar vazão à expressão adequada do sofrimento, deve tomar para si a categoria do feio23, indigno das

artes acadêmicas antes da modernidade artística. O feio é o aspecto repulsivo da realidade e a arte, por tomar da empiria seus materiais, deve apropriar-se do feio enquanto fruto da sociedade e, desta maneira, expressar o feio para expressar verdadeiramente a realidade social. Todavia, como bem nota Adorno, a apoderação da arte em relação ao feio não se

23 Aparentemente, um certo poeta parisiense foi pioneiro na assimilação do elemento repulsivo pela arte. “Como um químico perfeito e como uma alma de santo / Pois de cada coisa extraí a quintessência / Tu [Paris] me deste tua lama e eu a transformei em ouro.” BAUDELAIRE, Esboço de um epílogo para a segunda edição das “Flores do Mal” [1861].

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estabelece enquanto concordância, nem como paródia24, mas enquanto denúncia. Os

entusiastas da beleza e da harmonia predizem uma arte harmônica e conciliada contra um mundo real repulsivo. Para Adorno, o aspecto negativo – e por isso de denúncia - da arte é testemunho daquilo que a dominação esconde e, por isso, é mais avançada e mais verdadeira do que uma arte forçosamente reconciliada.

A arte deve transformar em seu próprio afazer o que é ostracizado enquanto feio, não já para o integrar, atenuar ou reconciliar com a sua existência pelo humor, que é mais repelente que todo o repulsivo, mas para, no feio, denunciar o mundo que o cria e reproduz à sua imagem, embora mesmo aí subsista ainda a possibilidade do afirmativo enquanto assentimento à degradação em que facilmente se transforma a simpatia pelos reprovados. No pendor da arte nova pelo repulsivo e fisicamente repugnante, ao qual os apologetas do estado de coisas existente nada de mais forte sabem contrapor a não ser que esse estado de coisas é já suficientemente feio e que, portanto, a arte deve votar-se à simples beleza, transparece o motivo crítico e materialista, na medida em que a arte, mediante as suas formas autônomas, denuncia a dominação, mesmo a que está sublimada em princípio espiritual, e dá testemunho do que tal dominação reprime e nega. (ADORNO, Teoria Estética, p. 63)

Além de integrar o feio como negação do imediatamente dado e denúncia da dominação, a pintura moderna, em sua recusa intransigente do realismo, não mais reproduz a aparência da realidade objetiva com verossimilhança, pelo contrário: utiliza-se de elementos estranhos – porém signos do que existe - para, separada, ser possibilitada à arte o papel de portadora da utopia.

O construtivismo, contraparte oficial do realismo, tem, através da linguagem do desencantamento, um parentesco mais profundo com as transformações históricas da realidade do que um realismo coberto desde há muito com um verniz romântico, porque o seu princípio, a reconciliação ilusória com o objecto, se tornou entretanto romantismo. (ADORNO, Paralipómenos à Teoria Estética, p. 442)

Enquanto separada, a pintura moderna renova a possibilidade das coisas serem de outro modo. É na negação da conciliação imediata que sobrevive a esperança de uma

24 Adorno distingue a assimilação do feio na própria forma de expressão, aquela que salta aos olhos, e a figuração tradicional do feio dentro das formas convencionais. Um exemplo da segunda é a Malle Babbe (Frans Hals, 1635, óleo sobre tela, 75 x 64 cm. Galeria Nacional de Berlim) que assimila o feio enquanto paródia e não realiza uma ruptura na estrutura formal da pintura de retrato. Ver: ADORNO, Estética 1958/9, p. 305-6.

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reconciliação real. Essa arte antitética, que guarda em sua recusa à reconciliação o horizonte da utopia, traz consigo momentos de verdade. “Pois, o verdadeiro é apenas o que não se harmoniza com este mundo25.” A recusa da reconciliação aparece na recusa da

harmonia. Isso, em termos pictóricos formais, quer dizer uma pintura de signos cifrados, figuras deformadas, como se fosse algo de outro mundo. E também na escolha das cores. A cor negra e o aspecto sombrio não só são assimilados, como tendem a preponderar; cores vivas e infantilmente dispostas transpassam a felicidade da reconciliação não realizada, que dissimula a gravidade da barbárie real; ou seja, falsidade.

Para subsistir no meio dos aspectos mais extremos e sombrios da realidade, as obras de arte, que não querem vender-se como consolação, deviam tornar-se semelhantes a eles. Hoje em dia, a arte radical significa arte sombria, negra como sua cor fundamental. Grande parte da produção contemporânea desqualifica-se por não atender nada a este facto, comprazendo-se infantilmente nas cores. (ADORNO, Teoria Estética, p. 53)

Na arte comprometida com a verdade e com a dor, quer dizer, com a utopia, a expressão é dissonante, assim como a realidade social é cindida. “A dissonância é a verdade da harmonia26.” Muitos artistas engajados politicamente se esforçaram por educar

o povo com uma linguagem simples. Adorno combate esse tipo de engajamento cuja forma é tradicional em prol de sua fácil comunicabilidade. Uma arte que não é suficientemente radical em sua forma não pode ser suficientemente radical na sua reverberação política, pois é facilmente assimilada e tem seu conteúdo crítico neutralizado pela indústria cultural; sua linguagem é a linguagem da indústria, da propaganda, da mercadoria; torna-se uma mercadoria não muito diferente de um sapato, cuja utilidade ao menos é mais evidente.

As obras herméticas exercem muito mais a crítica do estado de coisas existente do que aquelas que, por mor de uma crítica social mais compreensível, se esforçam por uma conciliação formal e reconhecem implicitamente o tráfico em toda a parte florescente da comunicação. (ADORNO, Teoria Estética, p. 167)

25 ADORNO, Teoria Estética, p. 74. 26 ADORNO, Teoria Estética, p. 130.

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Ora, para Adorno, os critérios de avaliação da pintura moderna são imanentes às obras: buscados e justificados em sua própria forma27. No entanto, existem alguns padrões

nas análises adornianas dos pintores exemplares do modernismo. As obras devem resultar da conjunção entre a técnica e a experiência mais avançadas de uma época, sem fazer concessões à comunicabilidade rasa e imediata. Elas operam como críticas da tradição, porém a assimilam e superam, ou seja, são portadoras de sua própria história. Por fim, as obras de arte trazem para si o feio e o doloroso, através da representação de coisas que não existem, mas enquanto signos daquilo que existe, pois só assim, separadas e não reconciliadas, podem denunciar o estado de coisas vigente e carregar a utopia de um mundo inteiramente outro. Não por acaso, Adorno toma Paul Klee e Pablo Picasso como pintores modernos exemplares.

27 “La única vía hacia la objetividad es la composición interna de la cosa, la estructura categorial – si puedo decirlo así – que cada obra de arte presenta en sí misma.” [O único caminho em direção à objetividade é a composição interna da coisa, a estrutura categorial – se posso dizer assim – que cada obra de arte apresenta em si mesma.] ADORNO, Estética 1958/9, p. 60, tradução nossa.

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Parte I - A PINTURA CIRCUNSCRITA Capítulo I – Paul Klee: a pintura em movimento

Antes da obsolescência programada dos bens culturais, aquilo que era novo gerava surpresa. E não raro reações de caráter violento. A arte nova tirava o solo firme de toda a tradição, não só estética, mas também moral e metafísica. O indivíduo isolado de qualquer comunidade, que participa do universal somente como força de trabalho, o sobrevivente diário da barbárie do capitalismo industrial, agora podia expressar sua visão de si e do mundo; dignidade esta conquistada a muito custo perante o modelo das Academias, permeado do romantismo nacionalista que nem de longe dava conta das novas relações nas quais o sujeito passou a se encontrar. A visão do novo mundo através das novas obras, fragmentado e impreciso, perturbou muitos espectadores acostumados aos Salons28 e nada

resignados com a nova ordem das coisas – não a real, mas a artística. Quem via, via com espanto. E como costuma acontecer na história, os mantenedores do delírio da ordem fixa e imutável não demoraram a entrar em ação.

A respeito das formas de reação negativa em direção à arte moderna, permitam-me deter-me um momento em como uso aqui o conceito: sem dúvida no sentido agudo que se fala de arte moderna quando se fala de quadros de Miró, de quadros tachistas e também, por minha parte, de Klee ou de uma fase de Picasso, da música de Schönberg, da música dos sucessores de Schönberg e da escola serial, do Finnegans Wake de Joyce, e esse tipo de coisas. (ADORNO, Estética 1958/9, p. 49629, tradução nossa)

Não é fato que os artistas modernos estivessem afirmando ingenuamente sua própria época, muito menos nostálgicos do que já passou: nem o passado irredimido, nem

28 O mais famoso dos Salons foi o Salão de Paris, onde os artistas mais proeminentes da Academia Real expunham suas obras. Os Salons eram tão visitados que eram capazes de ditar a moda. Do quadro de Jacques-Louis David Brutus (Les Licteurs rapportant à Brutus les corps de ses fils, óleo sobre tela, 323 x 422 cm. Museu do Louvre, Paris) exposto no Salão de 1789, diz o historiador da arte Friedlaender que “o belo penteado inspirado em uma bacante romana, usado pelas filhas de Bruto, se tornou moda entre as parisienses”. FRIEDLAENDER, De David a Delacroix [1952], p. 38.

29 “[Respecto de] estas formas de reacción negativas hacia el arte moderno, permítanme ahora detenerme un momento en cómo uso aquí este concepto: sin duda en el sentido agudo en que se habla de arte moderno cuando se habla de cuadros de Miró, de cuadros tachistas y también, por mi parte, de Klee o de una cierta fase de Picasso, de la música de Schönberg, de la música de los sucessores de Schönberg y de la escuela serial, del Finnegans Wake de Joyce, y este tipo de cosas.” ADORNO, Estética 1958/9, p. 496.

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o presente sufocante, nem o futuro sombrio que se apressa; a arte nova é a arte de um mundo que não existe. É como portadora da utopia do não-realizado que a arte moderna se tornou lastro histórico de sua época. Na arte em geral, encontramos a representação de uma época, nem que seja a representação do olhar dessa época para o passado. O artista exemplar é aquele cuja produção expressa os aspectos mais avançados de uma época, na experiência e na técnica. Na relação com sua própria época, a arte é transformada pelas novas relações emergentes muito mais do que tem capacidade de transformar essas relações. A última metade do século XIX e a primeira metade do século XX transformaram radicalmente a relação do indivíduo com o tempo: o avanço industrial e tecnológico, a velocidade inimaginável dos novos meios de transporte, a vida moderna fragmentada pela perda de sentido30. Essa mudança da relação do indivíduo com o tempo terá reverberação,

consequentemente, nas reflexões do artista diante de sua própria forma pictórica.

Paul Klee é testemunha de seu tempo. Seus quadros são de pequeno tamanho. Neles, tempo e espaço modernos se conjugam - “O espaço também é um conceito temporal”, escreve Klee31. Respondem ao imperativo industrial da produção breve e

incessante, de fragmentos de uma época, em detrimento da antiga continuidade e aspiração à totalidade, representadas principalmente pela pintura de história pós-Revolução Francesa e seus quadros enormes, cujo intento era o de ser a representação do ideal romântico de nação32. Se há algo de contínuo em Klee, é certamente o contínuo

movimento, e nada mais. Adorno compara o pequeno tamanho dos quadros de Klee com o processo de encurtamento das composições musicais, fenômeno formal que também é reflexo de seu tempo, e que o pintor, enquanto alguém versado em música, observava de perto.

Em última análise, a contingência é uma função da crescente estruturação completa. Coisas tão aparentemente periféricas como a contracção temporária 30 Estamos falando aqui do fim das metanarrativas, totalidades doadoras de sentido. Ver: NIETZSCHE, A Gaia Ciência [1882], § 343. Também: LUKÁCS, Teoria do romance [1920].

31 KLEE, Confissão criadora [1920], p. 46.

32 Tomemos um exemplo clássico da arte europeia: Jacques-Louis David, A Coroação de Napoleão (Le Sacre de Napoléon, 1807, óleo sobre tela, 621 x 979 cm, Museu do Louvre, Paris). A cena é de Napoleão coroando sua esposa Maria Josefina, enquanto o Papa só observa. David, nos mais de 6 por quase 10 metros de seu quadro, afirma em cada centímetro a soberania nacional perante a Igreja e o resto da Europa.

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de âmbito das composições musicais e os formatos reduzidos dos melhores quadros de Klee podem assim explicar-se. (ADORNO, Teoria Estética, p. 249)

Esse fenômeno é parte de um processo geral de mudança das relações dos indivíduos com o tempo, com as coisas e consigo mesmos. A relação com sua época, na arte moderna, é aquilo que a vincula à realidade; dados os acontecimentos da segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX, essa arte [moderna] expressa aquilo que é mas não deve continuar sendo, e através da denúncia das repugnâncias do mundo, vislumbra aquilo que não é mas poderia ser – o inteiramente outro. Segundo Watson, “Adorno enfatiza que o caos revelado na abstração é o caos da história econômica, e esse é o caos específico revelado nas obras de arte modernas33.” [tradução nossa] Aí está,

para Adorno, a força “revolucionária” da arte moderna: a conjunção entre a técnica e a experiência mais avançadas; no caso da pintura, forte tendência à figuração não-realista em caráter de denúncia.

Sem dúvida, a noção de Moderno remonta cronologicamente muito atrás do Moderno enquanto categoria filosófico-histórica; mas esta não é cronológica. É antes o postulado rimbaudiano34 da consciência mais progressista, na qual os

procedimentos técnicos mais avançados e mais diferenciados se interpenetram com as experiências mais avançadas e mais diferenciadas. Mas estas, enquanto sociais, são críticas. Esta arte moderna deve mostrar-se adulta à grande indústria, não a manipulando apenas. O seu próprio comportamento e a sua linguagem formal devem reagir espontaneamente à situação objectiva; a reacção espontânea, enquanto norma, circunscreve um paradoxo eterno da arte. Porque nada pode esquivar-se à experiência da situação, também nada conta que actue como se a ela se subtraísse. Em numerosas obras autênticas da arte moderna, o estrato material industrial é rigorosamente evitado como tema, por desconfiança perante a arte mecânica como pseudomorfose; mas, negada pela redução do tolerado e por uma construção reforçada, afirma-se com maior força: assim em Klee. (ADORNO, Teoria Estética, p. 47)

Pois não é possível escapar a seu tempo. Nem negar o avanço técnico. O grande artista moderno era sobretudo alguém que tirava seus temas e materiais da própria vida moderna e suas constantes transformações, diversa do modo de vida estável que se levava

33 “Adorno stresses that the chaos revealed in abstraction is the chaos of economic history, and this is specific chaos revealed in modern works of art.” WATSON, Crescent moon over the Rational: philosophical interpretations of Paul Klee [2009], p. 167.

34 Referência ao verso do poema Adieu [Adeus], de Arthur Rimbaud. “Il faut être absolument moderne.” [É preciso ser absolutamente moderno]. RIMBAUD, Une saison en enfer [Uma temporada no inferno, 1873].

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antes35. Klee, ao produzir quadros de tamanho reduzido e que não evitavam temas

tecnológicos, é mais radical em sua crítica do estado de coisas do que se pintasse uma natureza não degenerada – que na Europa já não existia nem nos sonhos dos primeiros impressionistas.

Figura 4. Klee, Pássaros descendo e setas, 1919

Fonte: disponível em: <https://www.metmuseum.org/art/collection/search/483130> Acesso em 12 dez. 2019

Em Pássaros descendo e setas36 [1919], Klee realiza uma estranha construção: pássaros

geometrizados, nos quais quadrados lembram asas e estão dispostos em diagonais abertas, que se encontram num ponto que aponta para baixo; dividem o espaço com setas, cujas pontas também apontam para baixo e reforçam uma sensação de movimento. Um céu de

35 A literatura oferece os exemplos mais precisos da transformação do indivíduo em sua percepção [moderna] do tempo, do espaço, dos outros e de si. Por exemplo: HOFFMANN, Na janela da esquina do meu primo [1822]; POE, O homem na multidão [1840]; BAUDELAIRE, As Flores do Mal [1857].

36 Paul Klee, Birds Swooping Down and Arrows , 1919, aquarela, 24,4 x 32,1 cm. Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque.

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pássaros geometrizados e setas gera algum incômodo àqueles acostumados a contemplar a natureza. Parece remeter a um céu de tempos de guerra, no qual os pássaros dividem espaço com caças e mísseis. De fato Klee viu uma guerra na Europa e teve de participar dela; a guerra tirou muitas vidas promissoras, como a de dois jovens pintores que foram seus amigos, August Macke e Franz Marc37.

No capitalismo avançado, avança também o processo de reificação. Numa interpretação de contrassenso ao marxismo tradicional, Adorno defende que a reificação não é necessariamente um processo que resulta na alienação do sujeito. Para ele, a reificação é, radicalmente, a busca da linguagem que mais dê conta da coisa em seus mais diversos aspectos, contra a imposição vertical de uma linguagem universal para a coisa. “Entregar-se ao objeto equivale a fazer justiça a seus momentos qualitativos38”. É como se

sujeito e coisa se envolvessem reciprocamente, e nessa conexão profunda adviessem os conceitos mais adequados para dar conta das qualidades da coisa. Isso é inverter a reificação capitalista, que a tudo transforma em mercadoria, inclusive o ser humano, e elimina toda a especificidade em prol da universalidade enquanto mercadoria. Adorno enxerga o conceito postivo de reificação na obra de Paul Klee.

O que se chama reificação tacteia obscuramente, onde ela é radicalizada, a linguagem das coisas. Aproxima-se virtualmente da idéia daquela natureza que extirpa o primado do humanamente significativo. A arte moderna enfática exime-se ao domínio da representação da alma e transita para uma expressão do que nenhuma linguagem pode significar. A obra de Paul Klee é, por isso, do passado mais recente o testemunho mais significativo e ele era membro do Bauhaus, de intenção tecnológica. (ADORNO, Teoria Estética, p. 76)

“Na arte, mais importante do que ver é tornar visível39”, dizia Klee. Tornar visível

os escombros encobertos de uma sociedade cindida e perpassada pela dor, porém cínica na avaliação de sua própria doença. Todavia, para tal, é preciso que o artista se expresse através dos meios adequados. O risco do uso de meios inadequados resulta na total

37 Após a morte de seus amigos, o próprio Klee foi convocado, mas acabou escapando do combate nas trincheiras. Ver: KLEE, Diários [1898-1918].

38 ADORNO, Dialética Negativa [1966], p. 44. 39 KLEE, Diários, nota 1134 [1918], p. 452.

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nulidade da potência expressiva, e até mesmo numa afirmação pela forma daquilo que se tentou negar pelo conteúdo.

Ora, uma obra de arte, para Adorno, deve ser coerente em sua própria forma; todavia, sua coerência depende do fato de conter questões para além dela mesma. É preciso o momento da espontaneidade expressiva, porém, necessariamente conjugado da construção racional. Klee diz que “quando a intuição é ligada à pesquisa exata, acelera o progresso da pesquisa, saltando etapas40.” Separadas, a pura espontaneidade tende ao

infantilismo, e a pura construção racional, à esterilidade. Ou numa frase de Klee que mais parece Adorno, "o espírito mais profundo, a alma mais nobre, são inúteis se não tivermos em mãos as formas adequadas41." [tradução nossa]

A expressão verdadeira é sempre a da dor e do sofrimento, mímese verdadeira e não intercambiável da realidade barbarizada; ir contra essa ideia é correr o risco de afirmar a positividade e reproduzir ideologia. Para expressar a dor, é preciso assimilá-la de modo imanente, dentro da obra de arte; Klee o faz com êxito, pois sabe que sua obra nada tem a perder com a representação daquilo que não apraz, pois a própria construção da obra, que contém em si o elemento do feio, pode ser considerada bela. “Mas a beleza, que talvez não possa ser dissociada da arte, não se refere ao objeto, e sim à representação plástica. Assim, e só assim, é que a arte supera o feio, sem tirá-lo de seu caminho42.” Desse modo, o artista

está de acordo com Adorno, que insiste na assimilação do feio como mímese verdadeira da dor social.

A construção, ato racional de dar forma à expressão da dor, não reproduzindo clichês da indústria cultural, é um modo de resistência à própria alienação. A razão utilizada desse modo, enquanto resistência aos imperativos da forma-mercadoria e buscando a realização na arte daquilo que nos é impedido na vida – a liberdade e a felicidade - para Adorno, é uma razão não mais violenta. Na dialética do esclarecimento, é

40 KLEE, Tentativas de exatidão no campo da arte [1928], p. 85.

41 "L'esprit le plus profond, l'âme la plus noble, cela ne sert à rien si nous n'avons pas à portée de main les formes adéquates." KLEE, Cours du Bauhaus [1921-1922], p. 34-5.

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esse o polo emancipatório da razão, contra a razão instrumental. E é nesse polo, de racionalidade ilimitada e libertadora, que Adorno situa a obra de Klee.

Em artistas exemplares desta época, como Schönberg, Klee e Picasso, o momento expressivo mimético e o momento de construção encontram-se com igual intensidade, não certamente no meio medíocre da transição, mas na tendência para os extremos: mas ambos são ao mesmo tempo e quanto ao conteúdo, a expressão, a negatividade do sofrimento e, a construção, a tentativa de resistir ao sofrimento da alienação, enquanto que esta é ultrapassada no horizonte de uma racionalidade ilimitada e, portanto, não mais violenta. Como no pensamento, para o qual a forma e o conteúdo tanto são diferentes como reciprocamente mediatizados, assim o são também na arte. (ADORNO, Teoria Estética, p. 287)

Forma e conteúdo são dois elementos distintos, todavia necessariamente constitutivos da obra de arte, em relação de contínua reciprocidade na coesão interna da obra, por meio de sua tensão; um elemento se dissolve no outro, e a negligência de um deles é a impossibilidade da obra de arte. Adorno atenta para quem acusa os artistas modernos43 de formalismo: esses artistas possuem realmente inúmeras reflexões sobre a

forma; porém, essas formas expressam determinados conteúdos, vinculados à realidade social, que muitos dos críticos da época não foram capazes de captar, e só posteriormente foram se desvelando. É a este registro perene do sofrimento, inscrição impregnada nas obras como uma marca, que Adorno chama écriture. Nesse caso, a acusação de formalismo é em verdade mera incompreensão do conteúdo.

Precisamente, onde a forma parece emancipada de todo o conteúdo pré-estabelecido, as formas tiram de si a expressão e o conteúdo próprios. Em algumas de suas obras, o surrealismo, em especial Paul Klee, actuou desta maneira: os conteúdos que se depositaram nas formas aparecem com o tempo. (ADORNO, Paralipómenos à Teoria Estética, p. 442)

A obra de arte, além da tensão entre forma e conteúdo, reproduz a tensão entre particular e universal. O objetivo é, partindo-se do particular, apontar para o universal; caso se restrinja ao particular, a obra esgota-se em sua especificidade, e perde potência; desse modo, não passaria de um documento da cultura, carecendo do status de obra de

43 O panteão pessoal do filósofo é constituído por Schönberg, Berg e Webern na música, Klee e Picasso na pintura, Celan na poesia, Joyce na literatura e Beckett no teatro.

Referências

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