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Estado da arte: sobre Jay Bernstein

No documento Adorno e a pintura : mapeamento crítico (páginas 97-107)

No percurso desta pesquisa, encontrei pouquíssimos textos nos quais os autores articulam a crítica de artes visuais com conceitos de raiz adorniana, excetuando aqueles que evocam Adorno rapidamente, de passagem. Um desses textos é o de Claudio R. Duarte, que acompanhou a reflexão sobre Pollock no capítulo anterior, e cujos méritos já foram destacados. No entanto, o único autor que parece tomar para si os conceitos adornianos para versar especificamente sobre pintura, faz deles os fios condutores de suas reflexões, e cuja produção é repetidamente permeada por esse ímpeto, é o crítico estadunidense Jay Martin Bernstein. Discutiremos aqui dois de seus textos, nos quais reivindica a teoria estética de Adorno para ir além do próprio texto: em suma, realizar propriamente crítica de pintura. São eles: “A demanda pela fealdade”: corpos de Picasso [2010] e A morte das particularidades sensíveis: Adorno e o expressionismo abstrato [1996].

O primeiro momento importante do texto de Bernstein sobre Picasso é o de situar o quadro Les Demoiselles D’Avignon como uma virada axial (axial rotation) na arte moderna. Para Bernstein, o quadro de Picasso, pela primeira vez, deu hegemonia aos objetos, e consequentemente aos corpos; desse modo, os objetos e corpos emergem nas obras – também – em toda a sua fealdade. Essa é a virada axial que torna possível as Demoiselles. Bernstein ainda defende que, em Adorno, a fealdade em sua completude apresenta quatro características: dissonância, forma avançada, retorno do arcaico reprimido e expressão da dor; todas essas características reagem contra o sistema de beleza estabelecido – projeção histórica da repressão sexual, cujo repertório conceitual provém da lógica formal.

Les Demoiselles d'Avignon mobiliza as quatro teses sobre a fealdade -

protestando contra a harmonia repressiva através da dissonância; promovendo o avanço artístico; o retorno do arcaico reprimido; a expressão do sofrimento - em sua ambição de expressar a ambiguidade primitiva e irresolúvel da sexualidade humana, onde a sexualidade humana é levada, através do sistema de beleza, a ser internamente relacionada com a própria ideia, a lógica formal

da pintura moderna. (BERNSTEIN, “A demanda pela fealdade”, p. 225137, tradução

nossa)

Para Bernstein, a fealdade faz aparecer tudo aquilo que o sistema formal quer esconder. Desse modo, a mímese da fealdade, em algumas obras de Picasso, é conjugada de uma racionalidade não-instrumental, a ponto de dar voz ao inconsciente reprimido através de rupturas formais. Esse é o ímpeto do modernismo, plenamente realizado nas

Demoiselles.

O Modernismo é a operação da dialética negativa na arte; é que a prática artística critica a racionalidade abstrata, permanecendo um repositório para uma racionalidade - mimética - alternativa. O Modernismo torna-se assim a voz da particularidade sensível contra a abstrata racionalidade. (BERNSTEIN,

“A demanda pela fealdade”, p. 213138, tradução nossa)

Segundo Bernstein, essa ruptura formal, contra o engessamento da lógica formal na arte e na sociedade, se dá por meio da parataxe139. Esse mecanismo consiste em colocar ao

lado, e sem conectivos, duas ou mais coisas diversas. Na pintura, isso se dá na justaposição de figuras sem mediação entre elas, criando “choques”.

Minha hipótese aqui é que Picasso emprega o que é melhor pensado como o equivalente pictórico da parataxe, a fim de realizar esse desordenamento sistemático, um desordenamento em uma nova concepção de ordem pictórica. Literalmente, parataxe é uma forma de sintaxe em que unidades semânticas - palavras, cláusulas, frases, parágrafos - são ordenadas por pura justaposição, ao invés de subordinação lógica/conceptual, que é sinalizada pelos conectivos familiares da sintaxe hipotática: se x, então y; x porque y; x necessita y; x; e assim por diante. Com parataxe há apenas os itens definidos ao lado um do outro -xy - com o caráter de sua relação a ser eliciado através da consideração reflexiva de seus respectivos conteúdos semânticos/materiais. Adorno defende que a parataxe é um dos mecanismos centrais do modernismo artístico, porque

137 “Les Demoiselles d’Avignon mobilizes all four theses on ugliness— protesting repressive harmony through dissonance, promoting artistic advance, the return of the archaic repressed, the expression of suffering—in its ambition of expressing the primitive and irresolvable ambiguity of human sexuality, where human sexuality is taken, via the beauty system, to be internally related to the very idea, the formal logic of modern painting.” BERNSTEIN, “The demand for Ugliness”, p. 225.

138 “Modernism is the operation of negative dialectic in art; it is that art practice that criticizes abstract rationality by remaining a repository for an alternative—mimetic—rationality. Modernism thereby becomes the voice of sensuous particularity against abstract rationality.” BERNSTEIN, “The demand for Ugliness”, p. 213.

139 Me parece que a escrita filosófica de Adorno, cujo testemunho exemplar é a Dialética do Esclarecimento, também se move por parataxe: frases densas de conteúdo que chocam-se entre si, e cuja mediação não é conectiva, e sim no próprio fluxo do livro e da consciência de quem o acompanha na leitura.

abre a possibilidade de uma relação diferente entre conceito e objeto, unidade e multiplicidade. (BERNSTEIN, “A demanda pela fealdade”, p. 226-7140, tradução

nossa)

A parataxe liberta os objetos de seus lugares e significados tradicionais; portanto, rompe com o sistema pictórico baseado em mediações: radicalmente, a parataxe é um mecanismo capaz de dar voz aos objetos, livres de relações anteriormente a eles imputadas. Bernstein dá um exemplo de parataxe no próprio quadro das Demoiselles:

Uma pequena mas óbvia instância do procedimento paratático de Picasso: a mão esquerda da figura da extrema esquerda, que parece flutuar desconectada acima de sua cabeça, sem a mediação - organizadora, sintática - do comprimento e distância do braço. (BERNSTEIN, “A demanda pela fealdade”, p. 229141, tradução nossa)

Ora, o segundo momento importante do texto de Bernstein é a distinção entre a fase materialista de Picasso, que se inicia nas Demoiselles e é retomada após o cubismo; e o próprio cubismo, que seria um interlúdio idealista na trajetória artística do pintor. Bernstein defende que, nas Demoiselles e após o cubismo, Picasso deixa o objetos emergirem sem imputar-lhes formas de antemão, dando vazão à potência da fealdade e à expressão subjetivamente elaborada do sofrimento. Enquanto isso, a fase cubista, segundo Bernstein, preocupa-se em realizar uma arte objetiva, à revelia da subjetividade, na qual os objetos supostamente teriam voz própria independentemente do sujeito.

O pretendido divórcio do cubismo das sombras de uma subjetividade sempre privada é o que chamou a atenção para o fato de que ele deveria ser a

140 “My hypothesis here is that Picasso deploys what is best thought of as the painterly equivalent of parataxis in order to accomplish this systematic disordering, a disordering into a new conception of pictorial order. Literally, parataxis is a form of syntax in which semantic units—words, clauses, sentences, paragraphs —are ordered by sheer juxtaposition rather than through logical/conceptual subordination that is signposted by the familiar connectives of hypotactic syntax: if x, then y; x because y; x necessitates y; and so on. With parataxis there are just the items set next to one another—xy—with the character of their relation to be elicited through reflective consideration of their respective semantic/material contents. Adorno argues for parataxis being one of the central mechanisms of modernist art since it opens up the possibility of a different relation between concept and object, unity and multiplicity.” BERNSTEIN, “The demand for Ugliness”, p. 226- 7

141 “Let me begin by considering a small but obvious instance of Picasso’s paratactic procedure: the far left figure’s left hand, which appears to float disconnected above her head, without the—organizing, syntactical —mediation of arm length and distance.” BERNSTEIN, “The demand for Ugliness”, p. 229.

verdadeira linguagem da pintura, a própria linguagem autônoma da pintura. (BERNSTEIN, “A demanda pela fealdade”, p. 215142, tradução nossa)

Para Bernstein, após o cubismo, Picasso preocupa-se em salvar sua pintura do geometrismo puro, e por isso retorna à expressão do horror, cujo resultado mais conhecido é Guernica. Todavia, como já foi tratado no capítulo sobre Picasso, Adorno notava importância substancial no cubismo sintético, principalmente por incorporar objetos reais às obras, dando-as uma concretude inédita. Ao que me parece, Adorno concordaria com a análise da fealdade nas Demoiselles, mas não poderia concordar com a opinião da neutralização do cubismo como expressão autêntica, principalmente da parte de seus precursores.

No entanto, esse movimento de comparar a fonte textual e seus usos serve somente para demarcar qual é o pensamento estritamente do autor original, e onde começa a obra autônoma daquele que se deixou influenciar. Bernstein é um crítico emancipado, e seu trabalho é muito mais inspirado em Adorno do que propriamente adorniano. É interessante e original, por exemplo, sua hipótese de que as Demoiselles operam no registro hegeliano da dialética do senhor e do escravo143, dando vazão à expressão potente do que era

reprimido (o escravo), que faz tremer a estrutura dominante que não permitia a si mesma a permeabilidade do reprimido (o senhor, que depende do escravo para sua sobrevivência, e este é sua mediação em relação ao trabalho).

Picasso consegue fazer das Demoiselles um momento de autoconsciência radical por parte do espectador, porque a pintura opera um desmantelamento sistemático da imagem do espectador. […] Les Demoiselles D'Avignon é realmente primitivo, mas primitivo da mesma forma que o estado de natureza de Hobbes é primitivo, ou mesmo a luta do Hegel pelo reconhecimento é primitiva, terminando na dialética do senhor e do escravo. Nesta pintura é revelada a dialética do senhor e do escravo; fonte do poder do escravo sobre o seu mestre; e aqui, pela primeira vez talvez na pintura moderna, o mestre balança, treme, desmorona. Então chegamos à autoconsciência na experiência de uma alteridade absoluta. A pintura pode assim recomeçar. (BERNSTEIN,

“A demanda pela fealdade”, p. 239144, tradução nossa)

142 “Cubism’s intended divorce from the shadows of a forever private subjectivity is what called up the claim that it was to be the true language of painting, painting’s own autonomous language.” BERNSTEIN,

“The demand for Ugliness”, p. 215.

Esse ímpeto de partir de um autor para alcançar um objeto outro, ou propor mais questões do que as originalmente colocadas sobre um mesmo objeto, é um dos méritos do trabalho de Bernstein, capaz de realizar reflexões oportunas.

*

O texto de Bernstein que relaciona Adorno e o expressionismo abstrato é, talvez, o trabalho que até agora levou mais longe os conceitos e a abordagem adornianas para a análise de objetos que não foram particularmente tratados pelo filósofo, a saber, as obras do expressionismo abstrato. Mais uma vez, Bernstein realiza uma crítica de inspiração adorniana, já que não leva em conta as preocupações e críticas que Adorno teceu sobre essas tendências. No entanto, acredito que ele tenha obtido alguns êxitos, ao defender hipóteses interessantes falando diretamente sobre as obras.

Num primeiro momento, Bernstein procura fundamentar a importância de seus objetos, quer dizer, as obras do expressionismo abstrato. Para ele, assim como para Adorno, a arte moderna faz parte do processo de desencantamento do mundo, e por operar num registro diverso do da mera empiria, coloca os problemas dessa realidade e, por isso, serve à autoconsciência do indivíduo, inclusive a autoconsciência de sua clausura e impotência no sistema fechado. Para Bernstein, todo esse processo de contestação dos limites formais e pela autonomia da obra particular resulta, em pintura, no expressionismo abstrato como sua consequência mais avançada. Como Adorno não tratou com profundidade propriamente do expressionismo abstrato, Bernstein acusa-o de “europeísmo”. Ora, apesar de não ter formação e prática em advocacia, não posso concordar com essa acusação. Como tratado no capítulo sobre Pollock, Adorno via sim algumas possibilidades de avanço na pintura dita “abstrata”; todavia, também lançava-lhe algumas questões e apontava os perigos de se seguir pelo caminho da apartação absoluta 144 “Picasso manages to make the Demoiselles a moment of radical self-consciousness on the part of the viewer because the painting operates a systematic dismantling of the viewer’s self-possession [...]. Les

Demoiselles D’Avignon is indeed primitive, but primitive the same way that Hobbes’s state of nature is

primitive, or even the way Hegel’s struggle for recognition is primitive, terminating in the dialectic of master and slave. In this painting is revealed the source of the slave’s power over her master; and here, for the first time perhaps in modern painting, the master shudders, quakes, even collapses. So we come to self- consciousness in the experience of an absolute otherness. Painting can thus begin again.” BERNSTEIN, “The

da realidade. Enquanto as pinturas expressarem as estruturas da realidade, no seu viés mais terrível e verdadeiro, não correrão o risco da abstração completa; por certo, continuarão concretas. Tentei demonstrar anteriormente neste mesmo trabalho que é assim, por exemplo, em Pollock. Ao que parece, Bernstein esperava alguma declaração heroica sobre expressionismo abstrato por parte de Adorno; é a mesma coisa que esperar que o filósofo tire Schönberg de seu panteão e coloque John Cage – para falar de um estadunidense - no lugar; isso não significa que Adorno não estivesse acompanhando criticamente e com atenção as produções de John Cage145.

Uma das características marcantes da filosofia de Adorno, se não a mais marcante, é a de que, em vez de um discurso apriorístico sobre seus objetos, contestou o eterno argumento da auto-suficiência da razão, a pretensão de que a filosofia poderia ordenar o mundo do pedestal da razão, da universalidade e do método, e o fez ao tornar sua filosofia explicitamente vinculada ao seu outro — a arte. Não se trata de que Adorno simplesmente pensasse que os conceitos filosóficos sejam concretizados, consumados ou evidenciados nas práticas artísticas, mas sim que tais práticas altamente modernistas fornecem, ainda que temporariamente, a condição de possibilidade de qualquer filosofia. Dizer que tais práticas são a condição de possibilidade de filosofia deve ser tomado como equivalente a dizer que propiciam as condições de possibilidade de sermos ou de nos tornarmos autoconscientes de quem somos, de como é o mundo onde vivemos e de como tais coisas se combinam. Se Adorno tivesse voltado sua atenção para a arte, a pintura e a escultura, teria recorrido — só poderia ter recorrido — às fontes do expressionismo abstrato para atingir seus objetivos. A quintessência de seu "europeísmo" não lhe permitiu reconhecer nesta arte tão tipicamente norte-americana o mesmo tipo de pretensão que encontrou nos compositores e escritores europeus. (BERNSTEIN, Adorno e o expressionismo

abstrato, p. 82)

Bernstein diz que “o expressionismo abstrato combate a abstração societal com a abstração artística; o expressionismo abstrato combate o desencantamento societal com o desencantamento ainda maior da arte146.” Ora, não é exatamente isso que torna essa arte

concreta e não descolada da realidade? Ainda assim, a crítica de pintura realizada por Bernstein, em outros aspectos, me parece muito convincente. Destaco aqui três quadros sobre os quais o autor versa, junto das respectivas citações.

145 Ver: ADORNO, Vers une musique informelle. E também SOCHA, Música informal: perspectivas atuais do

conceito adorniano [2018] e DURÃO, Duas formas de se ouvir o silêncio: revisitando 4’33” [2005].

Ater-se a Excavation, de De Kooning, é descobrir fontes de significação exauridas pelo que aparece diante dos olhos. A pintura ela mesma é o fim; busca identidade apenas em si mesma e em seu próprio "sujeito". Estes motivos particularistas são estabelecidos pela sua estrutura como um todo, pela sua falta de centro, de ponto de vista ou de perspectiva, e pela espontaneidade da pintura, que parece escapar à vontade de De Kooning, encontrando apenas uma integração fragmentada através da tela como um todo. Uma liberdade e uma ordem superiores convivem em harmonia compacta. (BERNSTEIN, Adorno e o expressionismo abstrato, p. 88)

Figura 37. De Kooning, Excavation147, 1950

Fonte: disponível em: <https://www.artic.edu/artworks/76244/excavation> Acesso em 13 dez. 2019. © 2018 The Willem de Kooning Foundation / Artists Rights Society (ARS), New York

Lavender mist number I, de Pollock, contém fragmentos retorcidos de linhas

gotejadas de pintura em preto que se entrelaçam com, que retalham e recortam a superfície translúcida e no entanto opaca de azul, rosa e branco. A ilusão de que a superfície do quadro não coincide com a superfície da tela é rompida em toda parte pela maneira como tal superfície ilusória é consistentemente cortada e gravada como um escalpelo a recortar a esmo carne inocente. Os gotejamentos vetoriais dão ao campo, de outro modo apenas óptico, um caráter táctil que tem o efeito de incorporar o olho do observador, de tornar a experiência de olhar a pintura uma experiência de ser incorporado, como condição do olhar, sem que a pintura, em qualquer ponto ou momento, renegue sua condição de ser uma superfície. O fato de uma superfície sensível, fragmentada, que rouba ao observador a perspectiva e a orientação com respeito a ela, como a de De Kooning, poder, apesar disto, segurar o olho (incorporado) devolve à imediatidade sensível a potencialidade de afirmação enquanto tal. Na minha opinião, isso — e nada mais — é o que nos fascina 147 Willem de Kooning, Excavation, 1950, óleo sobre tela, 205,7 x 245,6 cm. Art Institute of Chicago.

nesta tela: o deleite enigmático de não ser puramente decorativa — embora em breve virá a sê-lo, sem dúvida. (BERNSTEIN, Adorno e o expressionismo abstrato, p. 89-90)

Figura 38. Pollock, Lavender mist number I148, 1950

Fonte: disponível em: <https://www.jackson-pollock.org/lavender-mist.jsp> Acesso em 13 dez. 2019. Figura 39. Newman, Vir heroicus sublimis149, 1951

Fonte: disponível em:

<https://en.wikipedia.org/wiki/Vir_Heroicus_Sublimis#/media/File:Vir_Heroicus_Sublimis.jpg> Acesso em 13 dez. 2019. © 2019 Barnett Newman Foundation / Artists Rights Society (ARS), New York

148 Jackson Pollock, Lavender mist number I, 1950, óleo, esmalte e alumínio sobre tela, 221 x 299,7 cm. Galeria Nacional de Arte, Washington.

Consideremos uma típica pintura "zip" de Newman — digamos Vir heroicus

sublimis. O que temos é um campo de cor vermelho e os cinco "zips", e no

entanto tudo de que precisamos no caminho de uma semântica (as próprias cores) e uma sintaxe (o trabalho dos "zips") está aqui: os "zips", os mínimos de negatividade em um campo, "tornam-se" sintáticos pela sua divisão e assim "fazem" do campo uma proto-semântica. Evidentemente Newman nos oferece uma sintaxe geométrica assaz clássica no quadrado central, mas só para contestá-la com "zips" dissonantes e desequilibrados que quebram os dois campos laterais. Os "zips" aparentemente dissonantes amplificam a sintaxe clássica, conferindo-lhe um poder de articulação que é desautorizado por sua preocupação com a harmonia e o equilíbrio. (BERNSTEIN, Adorno e o

expressionismo abstrato, p. 90)

As críticas de Bernstein mantém-se fiéis ao ímpeto da crítica adorniana, da arte como reveladora e inimiga, pela sua forma, das estruturas repressivas da sociedade. O expressionismo abstrato, em sua liberdade de ainda ser arte e não vida, apresenta a dificuldade do sentido, do polo orientador; a sociedade da qual ele emerge também. Contestando T. J. Clark, segundo o qual o expressionismo abstrato tornou-se um entrave ao desenvolvimento da pintura e precisa ser superado para que a arte prossiga, Bernstein defende que esse tipo de arte protesta em todas as instâncias possíveis a favor do desencantamento do mundo, levando-o ao limite; desencanta inclusive o próprio fazer artístico, tornando-o “vulgar”. Por isso, para Bernstein, o expressionismo abstrato não é um entrave, mas sim o ponto mais avançado de desenvolvimento das tensões e promessas da pintura moderna. Desse modo, revela a estrutura da sociedade: do capital abstrato e da desindividuação.

O que está em questão nestes "gestos de negação" [do expressionismo abstrato] é o próprio significado da abstração, e portanto do custo envolvido na superação do desencantamento da arte e do mundo pela sua continuação — ou seja, por um trabalho ainda maior de negações do desencantamento. A arte não pode evitar o desencantamento progressivo do mundo, ocorrido fora da arte; se tentasse alcançar autenticidade e autoridade por si própria, invocando deuses e significados mortos para dentro de seus domínios, seria corretamente acusada de ingenuidade ou anacronismo. (BERNSTEIN, Adorno e o

expressionismo abstrato, p. 94)

A grande tese de Bernstein é a de que, no expressionismo abstrato, o particular emancipa-se do universal – por meio da ruptura das formas tradicionais, da perda de

centralidade e sentido, a obra basta a si mesma enquanto emanação de um particular sensível: o rasgo, a espiral, a cor, etc. Com isso concordaria Adorno já nos anos após a Segunda Guerra:

Emancipando-se, o detalhe tornara-se rebelde e, do romantismo ao

No documento Adorno e a pintura : mapeamento crítico (páginas 97-107)