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Sobre o negativo psíquico na obra de André Green*

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Academic year: 2021

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Sobre o negativo psíquico na obra de

André Green*

Sara Botella**, Paris

A autora propõe uma abordagem metapsicológica sobre o desenvolvimento do conceito de negativo psíquico no pensamento de Andre Green ao longo de sua obra, baseado em Freud e Hegel. Afirma que o negativo greeniano é tanto aquilo que permite chegar mais perto das noções do id e de pulsão de morte quanto aquilo que opera no trabalho de representância e por meio da qual as moções do id se transformam em investimento do eu, garantindo a permanência das representações. Destaca que o principal interesse metapsicológico reside no seu valor transformacional.

Descritores: Andre Green, negativo psíquico, negativo da segunda tópica, trabalho de representância, pulsão de morte.

* Este artigo é a adaptação da apresentação oral feita por ocasião do Colóquio em Homenagem a André Green.

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I – O negativo psíquico

Uma das mais belas aventuras do pensamento de André Green diz respeito ao negativo psíquico. Este está continuamente presente desde o início de sua obra até suas últimas reflexões.

Para a clareza de minha exposição, convém explicar desde já que a perspectiva metapsicológica do que pode ser considerado como negativo psíquico no pensamento de André Green admite duas abordagens simultâneas: a do negativo próprio do campo dinâmico das representações e da psiconeurose, que poderíamos designar por negativo da primeira tópica freudiana, e a deste outro negativo, descoberto e desenvolvido por André Green, cuja emergência não pode ser deduzida das causalidades próprias da neurose e da história pessoal e que chamaremos de negativo da segunda tópica.

Na concepção desse negativo não dedutível de atos positivos como o recalque, André Green aproxima-se de certos filósofos, principalmente de Hegel, embora seja indiscutível que o seu modelo fundador foi buscado no texto freudiano. Trata-se de uma nota de rodapé, em Suplemento metapsicológico à teoria dos

sonhos (1915), em que Freud indica uma via para um negativo que não é mais o

da psiconeurose. Esta via não será desenvolvida por Freud, talvez porque ele estivesse muito absorvido pelo desejo de conceituar uma teoria científica positivista que assegurasse o reconhecimento do meio médico; uma teoria que correspondesse a uma prática analítica com os neuróticos na qual a finalidade de cura devia primar sobre a pesquisa.

Essa nota de rodapé demonstra a dificuldade de Freud para definir o que ele chama de prova de realidade. Freud tenta compreendê-la através do estudo do fracasso da prova: uma alucinação surge no lugar de uma percepção. E é então que Freud acrescenta a nota que interessa a Green: “Para completar, direi que a explicação deveria partir não da alucinação positiva, mas da alucinação negativa”1.

Esta observação nos parece, hoje, essencial para explicar que, na concepção freudiana, a realidade advém pela força de uma potência interna que provoca a

negativação dos processos perceptivos.

No pensamento de André Green, essa noção freudiana de alucinação

negativa adquire um enfoque novo e original. Todavia, sua formulação condensada,

nos anos 70, como “a representação da ausência de representação” é ainda difícil

1 N.A.: O que está entre aspas não indica citações dos trabalhos de Green, já que muitas vezes

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de ser entendida por muitos analistas, pelo fato de ser tão desconcertante à primeira vista. Aparentemente contraditória, unindo representação e ausência de representação, ela se torna, no entanto, mais acessível se for apreendida menos em seu conteúdo literal do que como uma tentativa de expressar por meios racionais algo que não o é. Do mesmo modo como outras formulações também tentam expressar algo além de nossos sistemas de representação, tentam expressar o que foge, por sua própria natureza, ao nosso pré-consciente e ao nosso pensamento secundário.

Formulado por André Green como “a representação da ausência de representação”, é um negativo psíquico que encontra seu lugar na metapsicologia freudiana enquanto negativo diferente daquele da psiconeurose, como dissemos. Com efeito, o campo do negativo greeniano não pode ser reduzido ao negativo próprio da dinâmica do conflito, das representações recalcadas pertencentes ao inconsciente da primeira tópica. A este negativo qualquer psicanalista tem acesso através do método clássico.

A situação é diferente em relação à noção de um negativo que só se torna acessível se concebido dentro do vasto horizonte espaço-temporal da segunda tópica. O negativo greeniano é tanto aquilo que permite chegar mais perto das noções de id e de pulsão de morte quanto aquilo que opera no trabalho de

representância e por meio do qual as moções do id se transformam em investimento

do eu, garantindo a permanência das representações. Na verdade, seu principal interesse metapsicológico reside no seu valor transformacional. Sem esse negativo, haveria apenas o quantitativo, apenas uma permanente e violenta descarga motora ou alucinatória.

A descoberta de uma relação do objeto primário com a alucinação negativa – a negativação da mãe-objeto primário – levou André Green a uma fórmula determinante que, em nossa opinião, revoluciona a metapsicologia freudiana: “A alucinação negativa é o reverso do qual a realização alucinatória do desejo é o anverso”. Tratar-se-ia de uma “entidade alucinatória das origens”, tendo como dois elementos heterogêneos a alucinação do desejo e a alucinação da ausência, que se alimentam mutuamente numa relação dialógica. O objeto materno desapareceria aí como objeto primário de fusão, deixando lugar para uma estrutura

enquadrante do eu, capaz de abrigar as representações. A criança pode então, até

certo ponto, prescindir da presença da mãe na percepção, do mesmo modo que ela pode, até certo ponto também, realizar alucinatoriamente o desejo de sua presença sem comprometer sua prova de realidade.

Muito rapidamente, já nos anos de 1980, o que poderia ter sido considerado apenas um ponto de vista teórico sobre o nascimento psíquico das representações

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passa a ser concebido por Green como uma atividade permanente da vida psíquica. Ele explica que, seguindo o modelo freudiano de trabalho – como o trabalho do

sonho – para pensar a dinâmica do negativo, devemos abordá-lo em termos de trabalho do negativo. Uma noção que se torna a ponta metapsicológica de sua

pesquisa clínica, incluindo a ideia dos efeitos permanentes da pulsão de morte através de suas atividades de desligamento, desorganização, desobjetalização, de subversão do narcisismo em narcisismo de morte, que podem chegar à destruição da psique.

Este breve percurso já nos permite constatar que o pensamento teórico de André Green torna-se cada vez mais solidário com uma clínica do negativo. Todos aqueles que conviveram com ele durante esses anos sabem que, por detrás de sua aparência de teórico imbatível, André Green era movido principalmente pelo seu amor pela prática analítica, à qual dedicava a maior parte de seu tempo, nunca tendo desejado exercer atividades acadêmicas. “Não se pode ser psicanalista em tempo parcial”, dizia Green. E ele nos mostrou como é pelo intermédio do pensamento clínico que certas elucidações do negativo psíquico se tornam possíveis.

II – Em busca do negativo do negativo

Tratarei agora da última ideia de André Green sobre o negativo psíquico. Talvez seja a mais especulativa e certamente a mais hipotética para nós, pelo fato de ele não ter tido tempo de desenvolvê-la.

Antes de apresentá-la, eu gostaria de lembrar a reação dos analistas contemporâneos de Freud à introdução da noção de pulsão de morte, em 1920, logo seguida pela apresentação da noção de id, em 1923. Como Freud não deixou que eles se acomodassem em sua primeira concepção metapsicológica de 1915 – naquilo que eu me inclino a qualificar como um período de conforto intelectual, de certezas baseadas nas causalidades da neurose – seus contemporâneos ficaram desorientados. Mantida a devida distância, pergunto-me se o negativo greeniano também não desorienta os psicanalistas de hoje. Tanto mais que, como Freud, Green elaborou sua concepção do negativo mantendo-a em constante evolução.

Em setembro de 2011, depois das reflexões feitas durante o verão, André Green queria realizar um seminário para apresentar a noção do negativo do

negativo. Porém, o agravamento da sua doença não lhe deu tempo para nos

transmitir suas novas ideias. Tentarei, portanto, abordá-las unicamente pelo caminho tortuoso das minhas próprias associações.

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Sei por Litza Green que, nessas últimas férias, Nietzsche se destacava entre as leituras de André Green. De meus elos associativos à busca do que, do negativo nietzschiano, poderia atraí-lo, eu gostaria de assinalar que o sentido da negatividade, no pensamento de Nietzsche, se insere na linha de sua crítica à dialética hegeliana. Para Nietzsche, esta reflete uma falsa imagem da diferença; para ele, qualquer afirmação nada mais é que negação de uma destruição.

Ah! Se pudéssemos saber o que André Green vislumbrou em sua leitura de Nietzsche! Será que teve novas ideias sobre a dialética especulativa de Freud na última teoria da pulsão? Pensava ele, em concordância com Nietzsche, que tal oposição, na realidade, seria apenas uma falsa imagem da diferença entre vida e morte?... Que a leveza da vida, A insustentável leveza do ser (1984) de que fala Kundera, seria, em última instância, apenas o negativo do negativo da morte?

No entanto, compartilhar com Nietzsche essa posição parece pouco provável da parte de André Green, justamente ele que, em sua concepção do negativo, recorria a Hegel. Aliás, a formulação o negativo do negativo consta em Ciência

da lógica (1970). Para Hegel toda positividade autêntica é sempre negação

dobrada... o negativo do negativo. A observação que caberia, portanto, à crítica de Nietzsche seria o fato de ele ter menosprezado a importância do negativo na dialética de Hegel, na medida em que esta deve ser concebida na perspectiva da potência do negativo, fonte de todo movimento e, em última análise, de toda realidade, motor do que Green nomeia o trabalho do negativo. É por esta razão que pensar o trabalho do negativo em psicanálise relativiza o alcance da noção freudiana de conflito.

Podemos também pensar no duplo sentido das palavras, que interessou Freud, ou seja, na capacidade do inconsciente de negativar dois positivos contraditórios.

No mesmo sentido, a ação motora e o ato psíquico, no pensamento de Freud, também devem ser concebidos como sendo um o negativo do outro. A anulação da sensório-motricidade na regressão do sono abre certamente as comportas do perceptivo endoalucinatório do sonho, mas não se justificaria ver aí apenas dois positivos contraditórios. Na verdade, ambos, ato onírico e ação

motora, viriam, como o duplo sentido das palavras, da força transformadora do

trabalho do negativo.

Perguntei-me se o que é figurado na concretude da formulação do pesadelo considerada por Green, segundo a qual “uma boca primitiva invertida que, vomitando-se psiquicamente, expulsa a si mesma e gostaria de engolir o sujeito de fora”, não seria a metáfora de uma ruptura dessa duplicação necessária da negação, a metáfora de uma ruptura do negativo do negativo. Ela tentaria figurar

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o que acontece nos casos borderline: uma espécie de buraco psíquico que aspira tanto o interior quanto o exterior da vida psíquica, exigindo a concepção de um pano de fundo teórico para a clínica contemporânea.

Concluo dando-me conta de que, durante esses longos anos de pesquisa sobre o negativo, André Green não aspirava a construir uma teoria pessoal,

greeniana, do negativo. Ele tinha uma ambição mais bela. Ele desejava construir

uma sólida e vasta morada para abrigar e garantir a continuidade de um pensamento

sobre o negativo que tivesse a capacidade criadora de prolongar e ampliar o pensamento freudiano.

Abstract

On the psychic negative in the work of André Green

The author proposes a metapsychological approach to the concept of psychic negative in Andre Green’s work, based on Freud and Hegel. She states that Greenian negative is what allows us to get closer to the notions of id and of death instinct as much as it is what operates in the representation work and by which the id actions are transformed into investment of the me, guaranteeing the sustainability of representations. She emphasizes that the main metapsychological interest lays in its transformational value.

Keywords: Andre Green, psychic negative, negative of the second topic, representation work, death instinct.

Resumen

Sobre lo negativo psíquico en la obra de André Green

La autora propone un abordaje metapsicológico sobre el desarrollo del concepto de negativo psíquico en el pensamiento de André Green a lo largo de su obra, basado en Freud y Hegel. Afirma que lo negativo greeniano es tanto aquello que permite acercarse más a las nociones del ello y de la pulsión de muerte como aquello que opera en el trabajo de representancia y por medio de la cual las mociones del ello se transforman en investimiento del yo, asegurando la permanencia de las representaciones. Subraya que el principal interés metapsicológico radica en su valor transformacional.

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Palabras llave: André Green, negativo psíquico, negativo de la segunda tópica, trabajo de representancia, pulsión de muerte.

Referências

Freud, S. (1915). Complément métapsychologique à la doctrine du rêve. In Métapsychologie. Paris : Gallimard, 1952, pp. 162-188.

. (1920). Au-delà du principe de plaisir. In Essais de psychanalyse, (pp. 7-82). Paris: Payot, Petite bibliothèque, 1968.

. (1923). Le moi et le ça. In Essais de psychanalyse, (pp. 177-234). Paris : Payot, Petite bibliothèque, 1968.

Hegel, G. W. F. (1812-1816). La Science de la logique. In Encyclopédie des sciences philosophiques, t.1, Paris : Vrin, 1970.

Kundera, M. (1984). L’insoutenable légèreté de l’être. Paris : Gallimard.

Recebido em 15/03/2013 Aceito em 22/03/2013

Tradução de Vanise Dresch

Revisão técnica de Tula Bisol Brum e Luciane Falcão

Sara Botella

11 rue Jean de Beauvais, 75005 Paris – France

e-mail: cbotella@club-internet.fr

© Sara Botella

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