FACULDADE
DE
CIÊNCIAS
SOCIAIS
E
HUMANAS
Departamento
de Estudos
Portugueses
Dissertação
de
Mestrado
em Literatura eCultura
dos PaísesAfricanos
de
Expressão
Portuguesa
O
universo
oral
naobra
de
ilha
Gouto
Maria Teresa
Damásio
Bento
dos Sanfos
FACULDADE
DF.
CIÊNCIAS
SOCIAIS
E
HUMANAS
DEPARTAMENTO
DE
ESTUDOS
PORTUGUESES
O
UMVLRSO
ORAL NA OBRA
DE
MIA
COITO
Maria Teresa Damásio Bento dos Santos
■( -X,■:■•-•*"*■'
Dissertação
de Mestrado em Literaturae Cultura dos Países Africanos de
Expressão
Portuguesa.
apresentada
na FaculdadedeCiências
Sociaise Humanasda Universidade Nova de
Lisboa,
sob aorientação
do Professor DoutorLourenço
do Rosário1996
Introdução
4
I
Enquadramento
Sócio-cultural
da
Sociedade
Moçambicana
8
1.Valores Culturais
nasociedade
moçambicana
8
1.1.
Adiversidade
81.1.1.
Os substratos
91.2.
Aoralidade
eaesctita
12
1.2.1. A
cristianização
-13
1.2.2.
As
línguas
africanas
e oportuguês
161
.3.
Emergência
ebreve Panorama do Fenómeno
Literário
Moçambicano
17II
Atradição
oral
naLiteratura escrita
28
I.A
tradição
oral
nanarrativa escrita
282.
As formas
literárias da
tradição
oral
402.1.
O
contooral
nanarrativa
escrita
42III A
tradição
oral
nasobras de Mia Couto
53
1.
Analise temática das obras
53
1.1.
Ciclo iniciático
541.1.1
Onascimento
de
gémeos
541.1.2. O
crescimento
561.1.3. A morte 57
1.1.3.1.
\morte-transfonnaçào
601.1.3.2. A
velhice
611.1.3.3. Os
antepassados-dcuscs,
senhores
da
chuva
631.1.3.4.
Animais
mágicos
671.1.4.
O
togo
751.1.4.1. A
árvore-suicida
781.2.
Ciclo
mítico
821.2.1.
Osimbólico
821.2.2.
Aslendas
851.3. Ciclo
Etnográfico
871.3.1. Olobolo 91
1.4.
Práticas
tnágico-religiosas
921.4.1. As
Cerimonias
921.4.1. ,-\s
mulheres
e ofeitiço
96INTRODUÇÃO
Surgidas
num contextode
fragmentação
cultural,
cainda condicionadas por
sistemas
éticos eestéticos
alienígenos1,
asliteraturas africanas de
expressão
portuguesa
começarampor
investir
em elementosque
sustentassem a suadiferença,
ouseja.
sepor
umlado
seafirmaram
comonacionais,
desempenhando
um
papel
messiânico
eprofético
naconstrução
da
realidade nacional,
por
outrolado. interessava-
lhes
realçar
aidentidade africana.
É
noâmbito
dessaprocura
de identidade
cultural,
emque
aliteratura
desempenha
um
papel
fulcral,que
surgem conceitos
comoafricanidade
eafins,
no caso que nosinteressa
o demoçambicanidade.
Na
jovem
literatura
moçambicana,
frutode
umarealidade
sócio-cultural
esocio
linguística complexa
eque procura
oscaminhos
da
suadefinição,
existe,
nas obras dealguns
escritores,
aprocura
de «umefeito
demoçambicanidade».
Nesse processo
de
«construção
de
umaimagem
demoçambicanidade»(
Gilberto
Matusse).
vários são osmodelos literários
presentes.
Contudo, existe
.sobretudo.
a
opção
de
contornar atradição
europeia
eassumir
ideias evalores
datradição
oral
africana.Neste contexto, o
presente
estudo tem comofinalidade
apesquisa
deelementos
datradição
oralafricana
naobra de Mia
Couto. A escolhadeste
autorprende-se
aofacto
de se tratarde
umexemplo representativo
dessa atitude
presente
nafiecção
de
uma novageração
pós-independência,
queprocura
a síntesecriativa
entre osmodelos
africano e europeu(entre
outros), refundindo formastradicionais
numaescrita
adaptada
às novascondições
decomunicação.
1
Embora saibamos
daexistência
de outrosmodelos literários que
subjazem
às
estratégias
textuais
adoptadas
por
este autor,por
razõesmetodológicas
apenas
nosdeteremos
naquelas
que seenquadram
nocontributo da
tradição
oral africana.
Restringiremos
ainda
oobjecto
destetrabalho
aoâmbito
temático-estilístico
eideológico,
nabusca
dos elementos que assim
concorrempara
adefinição
de
umnacionalismo literário.
Tentaremos
demonstrar,
através
daanálise
doconteúdo temático
das obras
asedução
que oimaginário
do conto oral exercesobre
o autor textual e o seudiscurso latente,
e como numdiscurso de
superfície
ele assume umaperspectiva
de
distanciação,
numcompromisso
demodernidade.
Assim é que
opresente
trabalho está estruturado
emtrês
capítulos
principais.
A
primeira
parte
dedicamo-la a um breveenquadramento
sócio-cultural
dasociedade
moçambicana;
tentaremosabordar
adiversidade
dos seuselementos
componentes, demonstrando
avariedade
deorigens
culturais,
e como atradição
oral
tem umpeso
decisivo constituindo-se
comomatriz cultural
dessa
mesmasociedade.
Debateremos ainda
a essepropósito, algumas
questões
relacionadas
com aoralidade
e aescrita,
e de como esta seconstitui
um veículocapaz
deincorporar
atradição
oral,
tornando-se uminstrumento de
marcadaidentidade nacional.
Ao
longo
dessa
parte,
faremos a análise dealguns
conceitos
que irãoservir-nos
como
instrumentos
terminológicos
no resto do nossotrabalho,
tais como o deafricanidade
emoçambicanidade
.literárias do
oral,
trabalhando dois
géneros,
o conto e oprovérbio.
Faremos
também
acontextualização
dc tal
problemática
naliteratura
moçambicana.
No
terceiro
capítulo,
dedicado
aoestudo
das
obras,
ocupar-nos-emos
essencialmente
daanálise
deconteúdo
das obras,efectuando
umlevantamento
deelementos textuais
dasobras
cmanálise, que coincidam
com temasda
tradição
oral. Interessa r-nos-á saber
omodo
comoforam
transfigurados,
ou não.pelo
trabalho
criativo
estético
doescritor
equais
asestratégias
dedistanciação/harmonização
que o autor textual assume no seudiscurso
desuperfície
paraobter
umcompromisso
de
modernidade.
Para
serpossível
acomparação
entre osvalores
datradição
oral e oselementos
textuais
que neles seinspiraram,
foi
nossaintenção
estudar
algumas
dascaracterísticas
datradição
oral
depovos de
norte asul de
Moçambique.
Esseselementos,
citados aolongo
dotrabalho
referem-sesobretudo
aospovos
Maconde,
Tonga,
Ronga
e Sena.Partindo
assim da
teorização
dediversos
aspectos
dacultura tradicional
moçambicana,
faremos sempre quepossível
aanálise
comparativa
entre essesvalores
e aabordagem
ficcional
quedeles faz Mia Couto.
Casos há
emque apenas
apresentamos
os excertosretirados das obras por
verificarmos que existe uma total coincidência entre o que nos surge como
documento
etno-histórico
e atransposição
que
oescritor faz para
o seudiscurso
ficcional.
Não
ignoraremos,
contudo,
que o textoliterário
não estáconstrangido
àfiguração
realista,
antes,retira
o seusignificado
darelação
com oreferente literário
e aspalavras
remetem,sobretudo,
para o contexto cultural.A
metodologia
queadoptámos
para oestudo
destas obrasprocura
serpragmática
edo que
umaanálise
de texto.Faremos,
assim,
umaleitura
predominantemente
detipo
sócio-cultural. Recorreremos,
no entanto, aosprocessos,
já
clássicos,
daanálise
estrutural
e dasemiótica,
sem osquais
osmétodos temáticos
como asóciocrítica
ou apsicanálise
não
teriam
fundamento
epistemológico.
Julgamos
fundamental para
o nossotrabalho
anoção
detranstextualidade(Genette)
na
procura de
marcasda
oralidade,
emque
se cruzamdialogismos
vários,
quer arelação
textoescrito
etradição
oral,
quer
em outrotipo
deintertextualidade
aflorada,
arelação
texto-real idade.
Os textos que iremos
analisar,
são osdois
primeiros
livros
de contos e oromance
publicados pelo
autor,respectivamente,
Vozes Anoitecidas
(VA)
que é
composto
por
dozeestórias;
Cada Homem é
uma raça(CHR)
que contém
onzeestórias.
No caso do romance. Terra
Sonâmbula
(TS),
estrutura-se em vintecapítulos.
nove dos
quais
possuem
essadesignação,
sendo intercalados por onze aque
o autor chama de cadernos(Cadernos
deKindzuL Possuindo
uma certaautonomia.
I
ENQUADRAMENTO
SÓCIO-C
l LTURAL DA SOCIEDADEMOÇAMBICANA
1. ValoresCulturais na Sociedade
Moçambicana
1.1 A diversidade
A realidade sócio-cultural
moçambicana
é bastantecomplexa.
Os seus elementoscomponentes apresentam
origens
distintas, emboradifíceisde localizar, dado o processo deeimalgamento
que scfoi
produzindo
aolongo
do tempo, que lhe incutem a marca da diversidade. Naorigem
desta diversidade, estáocomplexo
de contactosgerado
nopercursohistórico,
desdeaépoca pré-colonial
. até ãindependência.
Assim,
interessa-nos analisaralguns
dados históricosesócio-culturais,
para sabermos da razãoda diversidade acimaapontada:
quais
ascomponentes
quea constituem e. ainda,qual
a
importância
dacolonização
no processoevolutivo, deste modo delineado.Na verdade, embora mais adiante nos situemos no
plano
literário, torna-seimportante
analisar,
nas suascomponentes,
essadiversidade
que constitui aorigem
matricial
da sociedademoçambicana.
Existe em
Moçambique
uma dicotomia cultural querepresenta
dois mundos diferentes. sendo um deles o universo cultural dos vários grupos étnicos, e outro querepresenta
o estilo de vida nacidade,onde a presençaportuguesa sc fez sentir."Segundo
atipologia
deHeimer/
trata-se da sociedade central, que inclui os sectores modernos da sociedade e do mundotradicional,
representado
pelos
grupos étnicos a quepoderiamos
chamar o sector das sociedades tributárias. Estaproposta
que.segundo
J. Venâncio,desprezaria
aespecificidade
dotipo
decolonização
portuguesa, não scaplicando
ao casodeAngola
. talvez seaplicasse
ao casodcMoçambique.
Ora. como diz Ana Mafalda I cite : «Anteriormente e durante a
época
decolonização
houve contactos demorados epermanência
de várias culturas, para alem daeuropeia
(de
"'
Venâncio, J.C.. «Tradição, criou lismo e lnoratura nacional. Repensando a modernidade em Angola» in Literaturaversussociedade.Ed. Vega, Lisboa. 1992.p.83
1
manifestação
predominantemente
portuguesa,
mas tambémbritânica):
outros mundos culturais como o islâmico, e o oriental introduziramrupturas
naprimitiva
estrutura tradicional e clânica deMoçambique.
Houve,
pois.
desde muito cedo uma manifestadiversidade
e cruzamento, quase nunca resolvidos de maneiraharmónica,
de fenómenos culturais deorigem
vária»'.
Factos a ter em conta para umacompreensão
deiheterogeneidade
quedefine a literaturamoçambicana.
1.1.1. Os substratos
Conforme nos diz A. Rita- ferreira . na
origem
doschamados
«grupos étnicos » há a considerar queparte
deles «estiveram claramente relacionados com unidadespoliticas
de maior ou menor dimensão, directa ou indirectamente afectadaspelo
secular comércio ultramarino com osnavegadores
asiáticos e europeus (...) »'
Este comércio com os Asiáticos vai intcnsificar-se. cerca do ano 1000 d.C'.. assim como vai aumentar a mobilidade
demográfica,
outro dos lactoresapontado
por Rita-Ferre ira. naestruturação
cultural elinguística
dos vários grupos étnicos. Até ao século XVI, destaca-se a presença dosnavegadores
e comerciantesárabes,
persas e indianos que vão exercer a sua influência quer a nívelpolítico,
quera nível económicoe social.Até ao século XIX. marcado
pelas
invasõesAngunes.
vários são os reinos que sedesenvolvem,
gerando-se
guerras, fenómenosmigratórios
etransformações
várias,
a nível económico e social. Produto de diferentesexperiências
históricasdistinguem-se
assim vários povos com característicasculturais distintas.4
Leite. Ana Mafalda.
«Aproximação
áMoçambicanidade» in.Tempo,
26-5-1985.p.45
*Rita-Ferreira. A..
«Grupos
e História Pré-ColonialdeMoçambique»
in:MuçambOjuc.
-/./vetos Jacultura material. Instituio deAntropologia.
Universidade de Coimbra. 1986. pp. 15-16.Segundo
este auior. « o advento dos primeirosclãs falando linguasproto-bantas»,
noactualterritório moçambicano, dá-seno inicio daeracristã. Segundoasescavações,noâmbito da modernaarqueologia,pode
saber-se queaspopulações
da IdadeAntiga do Ferro. c.de 770d.C,«nomeadamenteasquesedispersavam entreoZambeze eo Savc (...) dominando as rotas até -\antiga Sotala,já mantinham contactos com navegadoresprovenientes
da Pérsia, ArábiaeIndia»''
Rita-Ferreira. op. cit. p 16 Foi duranteesse
periodo
que surgiram trêsgrandes
Estados, dominantes noplanoeconómicoecultural que teriam ramificações periféricas: o listado do
grande
Zimbabué queatingiu
o auge entre 1300e 1450. situadonoplanaltoenlre oAlioLimpopo
e oZambeze: o Estado de Butua-[.irua,a ocidentee o Estado dos Mutapas. Todoselespodem
considerar-se sucessoresdo Grande Zimbabué que emA.
Rita-Ferreira
ao lazeradescrição
dacultura tradicional das váriasetnias,
destacaa zona do vale do Zambeze, habitada por Senas e Podzos,já
que estaregião,
desde sempre, foifrequentada
por povos exóticos como os Indonésios . os Persas, os Árabes e osPortugueses.
Nestaregião
se estabeleceu oregime
dos Prazos da Coroa que também teveresponsabilideide
nosurgimento
dealguns
grupos.Desde cedo que scestabeleceram rotascomerciais entre o
Golfo
Pérsico, ei Africa Oriental,a
índia
. a Indonésia, e aChina.1*
Navegadores
ecomerciantes
árabes, persas, indianos echineses mantiveram uma
importante
actividade
comercial, em contacto com aspopulações
do litoral e também do interior. Rita-Perreira faz adistinção
entre dois movimentospolitico-culturais.
vindos do Médio Oriente, sendo que «com o decorrer dotempo, o de
origem
persa \eio a ser assimiladopelo
dcorigem
árabe». Emborasejam
muitos osvestígios
deixados por esses povos, foram, contudo, os Persas e os Árabes que deixaram marcas maisprofundas,
nomeadamente, aislamização
dos povos do litoral Norte.Os
primeiros
navegantes
portugueses
achegar
aMoçambique
encontraram a costa leste africanaocupada
por uma cadeia de estabelecimentosswahili-árabes.
já
africanizados, mas bemorgulhosos
dasuaorigem
islâmica .Os
esforços
dos portugueses paramonopolizar
ocomércio local,expulsando
os mercadoressvvahili,
revelaram-se sempre ditkcis deconseguir,
devido à secularimplantação daqueles
na costa africana. Além da sua melhorintegração,
eram emgrande
número, o que contrastava com os poucos efectivosportugueses.
Tornavam-se. desdelogo. perigosos
concorrentescomerciais, mantendo um intercâmbio secular com a Arábia, Golfo Pérsico eÍndia.
7
Rita-Ferreira, A.. Povos dcMoçambique História_•('ultttra, \2d. Afrontamento. Porto. 1985. Considera-as
em grandesgrupos: aosul do Save.Tsonga. Chope e I.i-longa: a norte do Zambeze,o grupo Marave. o
grupo Makua-Lomwe,ogrupoAjauae«grupo Maconde. Idem. p. 25
Idem, p. .ro 10
Cf. Boxer.C, Relações Raciais na Império Colonial l>t>rtit£tu's, Ed. Afrontamento. Porto, 1988. pp.
45-46. De acordo com este autor, as instruções do rei D Manuel para o vice-rei da índia, era que fossem
aprisionados
todos os comerciantes maometanos de Sofala. Coniinuava-se assim a cruzada portuguesaNo que
respeita
àsrelações
sociais entre as duas comunidades, a cristã e amuçulmana,
variaram deregião
pararegião,
sendo mais ou menosamigáveis
consoanteas necessidades. De referir queo clero católico sempre tentouimpedir
que os dois grupos seaproximassem
equando
detectava indícios dessa realidade, intervinhaenergicamente.
Por outro lado. a
concorrência
muçulmana
intrometeu-se noespírito
de missão inicial dosportugueses.
Basta lembrar que a morte do missionário único daprimeira
expedição
missionária se deu devido àsinsinuações
dosmuçulmanos
de que ele seria um feiticeiro comintenções
malévolas.No século XVII
(1670).
osÁrabes
chegaram
aatacarMoçambique
c anlesdo fim do séculoexpulsaram
osPortugueses
deMombaça.
Desde cedooutra
importante
comunidade foi a indiana. Já noséculo XVII. os comerciantes indianos se revelavam maispreocupantes
do que os comerciantes swahilis. Embora fossem criticados poralguns
, outros afirmavam, entre os seus defensores encontravam-se osjesuítas,
serem eles osuporte
económico da colónia e uma comunidade trabalhadora e inofensiva.A
importância
das comunidades referidas manteve-se aolongo
dotempo,
e no início do século XX(
1915-1918)
os Asiáticos(incluindo
oschineses)
deviam somar 5000 a 6000 indivíduos,quando
o número de brancos poressaalturaerade 10 500. 'Assim,
pode
afirmar-se que o espaço culturalmoçambicano
é marcado por uma lorte componente árabe e oriental,já
que embora a actividade comercial fosse a dominante, a presença, sobretudo no litoral aolongo
de séculos, «nunca deixariade influir nosaspectos
linguísticos,
religiosos
c civilizacionaisemgeral»11
11
Dados retirados de Silva. A.. Mentalidade Mtssitilóf-ifti das Jesuitas em
Moçambique,
_.'-'.ol.. J.I Lisboa. 1967. p. 293'"'
Cf. Pélissier. R.. História dc-Moçambique, vol I. Ed Estampa. Lisboa. 1987. p. 195
1.2 A oralidade e a escrita
Partindo da ideia de que é na oralidade que está a identidade matricial da cultura
moçambicana,
importa
verificar de que modo aintrodução
da escrita, com o colonialismo.vem alterarounão a autenticidade africana,ou
seja.
se. no confronto entre estes doismeios deveiculação
e/ouperpetuação
datradição,
a escrita se substitui ao modo oral.incorporando
em si os valores que anteriormente circulavam . de uma formaintemporal.
Trata-se. no fundo, de saber se a
língua
deimportação,
no caso oportuguês,
poderá
constituir-se como veículo dos valores culturaisacoplados
àslinguas
tradicionais,já
que.consequentemente,
aos sistemaslinguísticos
diferenciadoscorrespondem,
afinal, «doissistemasculturais e civilizacionais diferentes, duas
cosmogonias
distintas».Coloca-se o
problema
daintrodução
daescrita,
como «umgolpe
deforça»
numa sociedade detradição
oral. em que o momento dessaintrodução
não é oproduto
de umaevolução
históricae a sua necessidade é
exógena,
havendoassim uma«.aceleração
daHistória»Para além do factode a escrita ser introduzida através de uma outra
língua
que nãoa local. oaparecimento
da escrita temimplicações
sociais bastanteprofundas,
reorganizando
asociedade.
Apesar
de não irmos dar demasiada incidência ao elementolinguístico,
interessa nestecaso. tentar avaliar da realidade da
implantação
daslínguas
de que falamos . para assimconfirmar, ou não. a
pertinência
da nossaquestão
inicial. O advento da escrita naslínguas
nacionais, deorigem
bantu. é bastante recente, datando de há mais ou menos um século.logo
sãolínguas
maioritariamente orais,cujo
desenvolvimento foi travadopelo período
colonial.O colonialismo
português
praticou
umapolitica
culturalmenteassimilacionista, masapesar desseprojecto
denação
multi-racial, e dasconsequências
que eie trouxe a nível do'''
Calvet. Louis-Jean.La iradition Orale. PUF. Paris. 1984. p. 105
|lA
escrita nào é um fenómeno anormal e extraordinário numa sociedadecujos principais
meios de comunicaçãopodem
ser oraiseque secaracteriza pelo desenvolvimento do oral mais do que da escrita..No caso de Moçambique verificamos que os Árabes já possuíam escrita). Cf. Ruth I•'innegan.C---./
Poeuy: its nature,stgnifianceand socialc.»«.t*.v_,University Press,Cambridge. 1979, p. 161 etambém Calvet. J.ob.cit..universo tradicional, é evidente que as
populações
foram sempreguardiãs
da suaprópria
história e cultura.Encarando a
questão
globalmente,
sabemos que o meio tradicional decomunicação
emÁfrica
foi sobretudo a oralidade, quer consideremos aquestão
sob oponto
de vistafuncional
ou estético, lodo o saber veiculado, era-o através dapalavra.
lambem nassociedades ocidentais,
que possuem umalonga
tradição
deescrita,
houve aprecedência
deuma
longa tradição
oral. No caso africano coloca-se outraquestão,
a de que se a cultura oral cproduzida
essencialmente com base emlínguas
africanas, com o processo decolonização,
foiimposta
umasegunda
língua,
oportuguês,
impedindo
o natural desenvolvimento daslínguas
nacionais. Ora. oproblema
é que se a cultura oral é essencialmenteproduzida
emlínguas
nacionais estas não possuemtradição
de escrita e verificamos então que alíngua
que sesobrepõe
comolíngua
detradição
escrita e dedominação
éoportuguês.
1.2.1 A
cristianização
Os missionários vão
deparar
com formas sociais diferentes e, desdelogo.
vão demonstrar uma certaestranheza eincompreensão,
perante
certos usos e costumes, por isso os relatos daépoca
são bastantepessimistas,
face aoobjectivo
principal
de conversãoreligiosa.
Para eles. o estilo oral é sinal de barbarismo e
liga-se
com isso a falta de culto e 1"*reconhecimento de Deus.
Além disso, é de referir que tiveram de enfrentar a hostilidade dos
muçulmanos, já
integrados.
Os árabespossuíam
um grau de culturasuperior
aos restantes habitantes,pois
já
conheciam aescritaepossuíam
mestresque ensinavam a ler e a escrever. Assim, muito do trabalho missionário inicial constava em evitar que houvesse contacto, entre eles e aspovoações
autóctones, por motivosreligiosos.
São duas comunidadesreligiosas
que se defrontam, e no final do século XVI. os portugueses tinhamjá
diminuído opoder
muçulmano.
"'
Joflo dos Santos.Etiuopia Oriental,ap. Silva. A., op. cit.. l"vol.. p. 386 l?
Embora tivesse havido
leigos
e outrascongregações
que desenvolveram a suaacção,
ésobre os dominicanose os
jesuítas
que se possuem mais elementos. Paraestes últimos,queforam
expulsos
deMoçambique
em 1759. como para osprimeiros,
apreocupação
principal
era a
evangelização,
masdesde sempre a base dasua actividadeé a escola.A
estratégia
principal
era a depraticar
conversões de influência,começando
pelos
chefeseparentes, para
alcançar
o resto da comunidade, mas também lhes interessava o início dcformação.
Os
objectivos
imediatos dosjesuitas
« centram-se nacristianização
das estruturas sociaisexistentes,
partindo
dos chefes naturais.» Prestavam tambématenção
àformação
cristã dajuventude,
«não só comdoutrinação
religiosa,
mas cominiciação
técnica e cultural, cmcolégios
ondea par de elementos europeus se formassem elementos de todas as raças, mascom
preferenciei pelos
filhos dosrégulos.»
Outros missionários, como os dominicanos . nàotinham aseu encargo
colégios
ou escolas .dedicavam-se sobretudo à
educação
dospríncipes,
enviandoalguns
dos seuspupilos
aoconventode Goa.«onde vários se fizeram
religiosos
daordem »"Sobre a
formação
do clero, embora fosse demonstrada a necessidade de fundar umseminário na
região
. essa decisão foi adiada por muito tempo. Pode pensar-se. no entanto.que os
colégios
eescolasexistentes nosprincipais povoados,
tivessem também afunção
deprepararo clero,como era aliás uso desse
tempo."
Nos
primeiros
contactos acomunicação
nào seria nada fácil, estabelecendo-sc por vezes graves confiitos, dc que são provaasacusações
contra missionários tidos porfeiticeiros.19
Idem,pp 224-225 Idem. p 239 ■''
Idem, p. 242
"
Idem. p.240. t) escritor sul-africano MaCall Theal escreve que para o fim do séc.XM -os
jesuítas
estabeleceram* ..) um seminário em Sena para a educação dos filhos dos ponuguesesw moradorese filhos dos chefes nativos». Subsidiada pelo Estado ecomerciantese donos de prazos . só mais tarde Im admitido naordemconsiderável númerode «africanoseasiáticos sob a ideia deque exerceriam maior influêncianospaíses-Pxiste a
preocupação,
porparte
destesprimeiros
missionários,deaprender
aslínguas
locaise utilizá-las como
linguas
de ensino. Assim, traduziam a doutrina nessaslínguas,
e sópartia
gente
que as soubesse.Nestecontexto, seguem a
prática
daoralidade.""'1
Para fazer aceitarareligião
cristã,
aceitamalgumas expressões
tradicionais africanas, como costumes comuns a todos naigreja.
Ométodo de cantar a doutrina, estabelece-se como coisa natural e comum, o que faz os
■ ■ 24
missionários afirmarem ter «muitoproveito em pouco tempo».
Regista-se
deste modo que a entrada dosjesuítas
no século XVI«aproveitou
a linha de contacto entre a influência portuguesa e as sociedades tradicionais africanas». A atitudemissionária é de
simpatia
e de estudo por um lado e de francooptimismo
quanto aspossibilidades
deevangelização
poroutro."'
Aapresentação
do cristianismo, numasegunda
fase,
após
asimpatia
inicial era colocada ao nível das crenças tradicionais da terra e cmconflitocom elas.
Do século XVIII. embora
haja
menos elementos, sabe-se que «cm todas as localidadesportuguesas de
Ásia
eÁfrica
se prega emportuguês,
devido à dificuldade emaprender
asmuitas
línguas
locais. As cartas ânuas são omissas sobreMoçambique
durante todo oséculo XVIII.
Houve, no século XVI. duas tentativas falhadas de missão, que não passaram de trabalhos
de
informação.
No séculoseguinte
osjesuítas
voltam e desta vez a suaacção
transforma-sede rural em urbana,
apoiam-se
em bases situadasem territórioportuguês,
ao contrário doque se passara com o trabalho dos anteriores
pioneiros
. no sertãoprincipalmente.
Destescentros, tentam a
expansão,
dai saindo em «excursõesapostólicas
»pelos
distritoslimítrofes onde
erguerão
igrejas
sucursais.;i
Idem, pp. 272-284. Houve variadas tentativas manuscritas de
gramáticas
que se não chegaram aimprimir.
Em 1623. umpadre,
por ordemsuperior,
«trata dereduzir alinguaa forma degramática,
coisa muidificultosaassim porestagentenão ter letrasnem escrituraalguma,como porsermui vária, e acadacanto achar-se diversidades de línguas». As autoridades eclesiásticas locais procuram que o trabalho feito pelos
paderes
mais antigossenãoperca, equeos «vocábulosecartilhadedoutrina»escritas«nalingua
natural dos cafres»sejam impressas.
:j
Idem,p. 257 "
Contudo, desde o último
quartel
do século XVII. o contacto e fusão de culturas toicomprometido
por dificuldadesespeciais
vindas do Norte(pressão
dos árabes ) e do centro do continente. Na fase final daacção
dosjesuítas,
há um desânimocrescente quepode
seratribuído a várias causas,
seja
ao elementoleigo
daregião
e aosgovernantes,
como aospróprios
missionáriose seus métodos deacção.
1.2.2 As
linguas
africanas c oportuguês
Após
estabreve resenha histórica, sobreosprimórdios
do contactodas duas culturas. Uca a ideia tle que oportuguês
se constitui comolíngua
de ensino, e autilização
daslínguas
nacionais apenas serve de elemento de
comunicação.
No interior, a cultura éproduzida
essencialmente emlínguas
africanas, havendo uma retiradaprogressiva
doportuguês
parao litoral epara asescolas dos
principais
centros.No tempo da
colonização,
asituação
não irá modificar-segrandemente,
pelo
contrário,
havendo a
imposição
doportuguês.
A esse
respeito.
FátimaMendonça
afirma que « não é de subestimar aestratégia
docolonialismo
português,
através de umapolítica
deliberada dcassimilação,
ler travado oprocesso natural de desenvolvimento das
línguas
africanas deMoçambique
que - veículode umadiversificada cultura de oralidade - se
poderiam
ter transformado, num processo dedesenvolvimento
comparado
ao dasnações
europeias,
no suporte inevitável de diversasliteraturas escritas. Tal não aconteceu e a
língua
portuguesa tornou-se o elementoprivilegiado
dc acesso à escrita, ao saber, à culturaeuropeia,
de uma camada socialproduzida
pelo
Fstado colonial (...). Ie. dessa camada socialmente híbrida que emerge umaprodução
literária que se demarca, em muitoseispectos.
doconjunto
de outraprodução
quecomela
coexiste»""
Nestalonga
citação,
estão contidas asprincipais
linhas daproblemática
que nos ocupa: a
situação
deprivilégio
dalíngua
portuguesa
face àslínguas
africanas.De facto, a
potência
colonial portuguesavotou essaslínguas
ao ostracismo, o que faz comque ainda actualmente,
quanto
àsituaçào
dc uso no domíniopúblico,
elas tenham umaaplicação
limitada, se excluirmos os falantes que eis possuem comolíngua
materna oulíngua
segunda,
continuando assima serem essencialmentedetradição
oral.''
A
política
assimilacionistaseguida pelas
autoridadeportuguesas
apenas se modifica nosfinais da
época
decolonização,
havendo de facto umesforço
dcinvestigação linguistica.
no entanto,com o
objectivo
de facilitar oensino doportuguês.
Porém, essestrabalhos estãolonge
de serem rigorosos ou dcrepresentarem
qualquer
esforço
depadronização
das referidaslínguas.
Irem suma. diríamos que houve «uma recusa de
África,
recusa que passapelo
apagamento
da
tradição
oral. porumanegação
doscontributos culturais africanos»" .Se os
portugueses
chegam
aMoçambique
no século XVI(Porto
de Sotala.150:.).
essetacto nào
significa,
no entanto, que desdelogo
se tenha dado a difusão dalíngua
e daescrita.
Apenas
apartir
dasegunda
metade do século XIX. scpode
falar de uma influênciaeuropeia relevante.
No entanto,
podemos
pensar, como afirma SalvatoTrigo"''
que alíngua
. ainda que poucoexpandida
nesse tempo, se acaba por amoldar «àsituação
delíngua
veicularmestiçada
epermitindo
mesmo, no séc. XIX acriação poética
e literáriabilingue»,
no casoangolano.Vejamos
o caso deMoçambique,
ouseja.
o casodaquela
«literatura aculturada».aque
já
nos referimos.1.3
F.mergência
e breve panorama do fenómeno literáriomoçambicano
(existem vários factores que contribuem «para que o idêntico se instale no seio de uma
comunidade» fazendo com que os povos concebam uma
imagem
de sipróprios."
Jacintodo Prado Coelho
aponta
doistipos
de factores actuantes nessaindividualização:
os físicos(solo. clima,
situação
geográfica,
substratoétnico)
e os históricos(estáticos
e derenovação),
sendo estes os deprincipal
interesse para o estudoda literatura."' E também a;';
«On y constate un refusd'Alrique, refusqui passepar le gommage de la tradilion orale,par une
négation
|
des apports culturels africams.» in: Bidault. M.-F., «La recherche de 1'identilé individuelle et de 1'identité
nacional dans les manuels scolaires.
[.'exemple
deMozambique»in:
Les Littiratures Afrieaines dc Langue(
portugai.se: Alarecherchede lldentitè individuelleetnanonale(Actesdu Colloque International Nov -Dec.1984)Fondation Calouste Gulbenkian. Paris. 1989. p. 35 1
*
A este
propósilo
Cf. Junod. i\.-.\..Canins e Contos dos Hongas.InstituioInvestigação
Cientifica deMoçambique. 1975. p. 9
■"'
Trigo.
Salvato. Ensaiasde Literatural'amparada
-Ifro-Luso-Brasileira.
Ed Vega. Lisboa.sd. p. 14' "Venâncio. J. C.« Aquestãoda identidade cultural angoiana: umaaproximação
antropológica*
in: op.cit..pp.'' 95-102
estesúltimos que José
Carlos
Venâncioatribui maiorimportância .já
que incluem o factorcultural e é «no âmbito da cultura que se faz a leitura do
passado
e se apuram asgrandes
linhas orientadoras dopresente
e do futuro» " ■Existe uma
relação
necessária entre a cultura c a identidade de um povo. A esterespeito.
JoséCama considera, noentanto, que «a cultura humana não existeem abstracto, é sempre
observada e analisada em actos culturais concretos», ao mesmo
tempo
que. dealgum
modo, é exteriorizada a
capacidade
desimbolização
específica
do ser humano. Para esteautor, « o homem dá-se a conhecer e conhece-sc a si mesmo na medida da sua
própria
expressão
cultural,pois
oconhecimento
queadquire
de si mesmo só se efectiva através de umaexpressão
cultural,seja
qual
for o modo dcexpressefo
utilizada, oral. escrita,plástica.
ritual...»''
Assim, abandonando a via tradicional da
elaboração
de uma filosofia nacional, estaemergiria
dainvestigação
doconjunto
deprodução
culturalprópria
de umanação,
contendo as características que
integram
apersonalidade
dessanação
e determinam a sua identidade.Segundo
esta visão «a identidade nacional ouregional
defme-seprioritariamente pela
cultura,pois
é a cultura que veicula ideias e transmite modos decomportamento
com os seus valorese ideais e ao mesmotempo
é a cultura que assimila econserva novas ideias c novos comportamentos-). Resta assim a ideia de haver uma
correspondência
quase absoluta entre a identidade cultural, reflectindo osprincipais
elementos de umapersonalidade
colecti.a. e uma filosofia da cultura nacional, ouseja,
a identidade nacional.A literatura, enquanto
produto
cultural de um povo.apresenta-se
comoobjecto preferencial
na
investigação
das características que contribuem para adefinição
da identidade cultural.Embora não possamosesquecer, como lembra Prado
Coelho,
que aindividualidade
culturalde uma
nação
éalgo
dinâmico, mutável e.resultante dela. a individualidade nacional é umconstante fei/er-see não uma coisa inalterável.
'■
Venâncio, op. cit .p. 96
!'
Gama. Jose. «Culturaeidentidade nacional»in: Brotcna. n° 5 6, vol.138. Maio Junho. 1994. pp. 539-545 14
A este nivel. colocam-se sempre
questões complexas
a que é difícilresponder,
como a dcsaber até que
ponto
a literatura reflecte a realidade nacional ou será apenas seuproduto.
Põe-se ainda a
questão
daoriginalidade
e dos critérios aseguir
para a definir, e se existemjá
possibilidades
de umametodologia
nâo-impressionista,
fica oproblema
dosobjectos
aseleccionar.
De
qualquer
modo. nocampodaliteratura desde semprese tem colocadoaproblemática
daidentidade
individual
e colectiva, o chamado «nacionalismoliterário»,
fenómeno a quechamaríamos tambémde
«volição
deconstrução
de umaficção
dapátria».
Estaexpressão
é utilizada por Cclina da Silva que considera haver neste facto «umacrença no
poder
dapalavra
e umaactuação
efectivaatravés dela»Decorrente do que temos vindo a afirmar, falar em identidade cultural de
Moçambique
é.em
grande
medida, falar da identidade nacional deMoçambique.
Nessaperspectiva
hei asalientar o
esforço
desenvolvidopelo poder
político
constituído, no sentido dealcançar
uma maior
unificação
ouharmonização
cultural dopaís.
'
No caso da literatura,
pode desempenhar
umpapel importante
naconstrução
danacionalidade No caso
específico
das literaturas africanas dclíngua
portuguesa,
é tambémverdade que
anteciparam
asnações,
tornando-se «verdadeiramenteproféticas
emessiânicas»'7
Assim, emprimeiro lugar,
coloca-segeralmente
oproblema
daindependência
literária queprecede
aindependência
política:
tal fenómeno passa-se emMoçambique,
segundo
PiresLaranjeira.
A este
propósito.
Ana Mafalda Leite, referindo-se ao contexto de rasura cultural nasociedade colonial, em que um dos lactores seria a inacessibilidade editorial indica, no
entanto, que existe uma «contínua demandei de alteridade (...) no tecido cultural
dominante». Essa seria uma das fases de busca de identidade, em que José Craveirinha é
um dos
exemplos
de quem reclama «sermoçambicano,
e além disso ser escritormoçambicano»
*3Q
tornando-se a sua escrita ,,um aclo <jelegitimação
e deconquista
do15
Silva. Celina. «O literárioenquanto catalizadordaconstruçãodapátria» in: Revista dal-tisu/nrua. n"35-40.
Pontcvedra-Braga. p 41
'"
Venâncio. JoseC,op. cit..p. 96
11
Laranjeira. Pires. De letraemriste.Eô. Afrontamento. Porto. 1902. p. 24
Idem. p. 39
''*
poder
simbólico,estélico-linguístico.
na medida em queentraemdesacordocom os valores literáriosdominantes econsagrados
dasociedade colonial emquese insere».Mário de Andrade considera que no panorama da moderna
poesia
africana delíngua
portuguesa se
podem
considerar várias fases nomeadamente a fasenegritudiana.
e umaoutra fase em que «a
criação
literária vai ritmando odesenvolvimento
da consciêncianacional,
quando
seesboça
a estrutura dos movimentospolíticos.
'"' Napoesia
de Noémiade Sousa é
perceptível
também «o processo deidentificação,
ou defiltragem
porsimilaridade. dos temas literários relacionados com a
Negritude
e com o RenascimentoNegro
americano » ■Temos então que acomponente
profética
da escrita,empenhada
naconstrução
da realidadenacional se
aplica
aospoetas
moçambicanos.
Ao conceito dc africanidade. afim do de
moçambicanidade.
foi Janheinz Jahn. quemprimeiro
se referiu dc formaimplícita.
Procurava então individualizarconjuntos
de características, ostopoi,
quepermitissem
identificaraquilo
que era africano. As literaturasalirmaram-se, por um ladocomo nacionais
(o
caso do MshaoemMoçambique)
c poroutrolado. na busca de uma mais fácil
afirmação
da identidade africana que interessavarealçar
perante
anegação
levadaaefeitopelo
colonizador. "A
moçambicanidade.
conceito afim deangolanidade
c cabo-verdianidade.exprime
umarealidade que tem muito a ver com a
especificidade
do colonialismoportuguês. Segundo
José Carlos Venâncio,qualquer
destesconceitosnão deve serconfundido com a identidadenacional desses
paises,
embora se revele um conceitoabrangente
a todas asmanifestações
culturais da realidade
moçamhicana.
Quanto
a este autor, emMoçambique,
aexemplo
do caso deAngola,
não existe umasociedade crioula que tenha servido de «fced-back» as
primeiras
manifestações
demoçambicanidade.
àsprimeiras interpretações
que visavam acentuar adiferença
entre a*"Máriode
Andrade ap. Ana MLeite, op. cit..p. 35.
Idem. p 37 J"
Venâncio. J. C, op cit. p. 22
'
angolanidade
praticamente
Moçambique,
disso prova literaturamoçambicana,
nomeadamente aobra de Mia Couto.A esse
propósito
o escritorrejeita
o conceito, «que dá comoconsequência
que a literaturaafricana
fique
sempreseparada
naprateleira
do lado. bicho raro paracuriosos»,
parece-lhe
sobretudo
importante
avaliar daqualidade
literária das obras, caminhando para umauniversalidade.
É
assim que se afirma um pouco«estrangeiro»
cm muitos dosaspectos
culturais
moçambicanos:
«se estivesse por dentro de todos oscódigos,
de todos os mitos.se calhar não
conseguiria
tratá-los literariamente.»"
Segundo
ele o conceito demoçambicanidade
forjou-se
na«mestiçagem»
" de que autilização
dalíngua
docolonizador nãoé factorde somenos
importância.
Qualquer
um dos conceitos de que temos vindo a falar,surgiram
porque havia ;i necessidade deacentuaraespecificidade,
da realidade e culturadospaíses
africanos, tendopor isso umcarácter
operativo
que têmperdido
com o passardotempo.
Há quem consideremesmo que se em
relação
aopassado,
cumpriram
o seupapel
actualmente servem apenaspara a
formação
danação
econsolidação
da sociedade civil. Nessaperspectiva
PiresLaranjeira
vai maislonge
achando que. no campo literário onde se verifica a maioroperacionalidade
desses conceitos,já
não é necessário afirmarqualquer moçambicanidade
(no caso que nosinteressa)
pois
«os escritores africanos estão em vias de assumir anacionalidade literária por
inteiro»'1'
• sendo dissoexemplo
o caso de Mia Couto e as suasobras em que «o fascínio nacional tende a substituir-se ao brasileiro,
português
oupan-africano.
Ninguém
tem dúvidas dasuaindependência
literária" . havendojá
ultrapassado
afase dasimilitude e assumidode formasegura aalteridade.
"
A este
propósito
Manuel Ferreira sublinhava que esta expressão nunca existiu como existiu aangolanidade.Cf. Literaturas AfricanasdeExpressar.-
Portuguesa
II. Biblioteca Breve. Í.C.P.. Lisboa. 1986, p. 78'•Entrevista
aoDi. 10-5-119904,1
EntrevistaaoPúblico. «Leituras». 17 de Julho de 1990
4?Idem.
p 21"
Laranjeira.
Pires. op. cit.. p.48'''
Desse
ponto
de vista parece-nos útil analisar, ainda que de uma forma sumária o percursoda literatura
moçambicana
e o seupapel
nessaconstrução
da identidadecultural.Rctêrimo-nosà literatura
escrita,
sendo óbvio que aafirmação
de aiferidade
cindividualização
de talliteraturaterá que passar
pela
assunção
de ideiase valores que são veiculadospela
tradição
oral.
Aquestão
que ficasubjacente
é a de saber de que modo os escritores resolveram essa dualidade cultural, mas a esserespeito
referir-nos-emos noutra parte do nosso trabalho. nomeadamente,ao analisaroscontosde Mia Couto.Breve Panorama ela Fenómeno Literária
Muçeunbicano
Não tentaremos ser exaustivos, mas tão só relembrar que a
emergência
da literatura escrita emportuguês
trazjá
em si o germe da resistência para de uma forma evolutiva reivindicar o selo da autenticidaderegional.
A literatura teve umpapel preponderante,
nareclamação
dc um estatuto cultural e
político
diferente, comojá
referimos noutraparte
do nossotrabalho. Globalmente diríamos que a literatura
regista,
através das obras, o assumir deuma
diferença,
que se transforma emresistência, até à revolta que culminacom as lutas delibertação.
É
evidente que nesse processo evolutivo, a literaturaadquire
funções
diferenciadas, assim como o leitorvisadose
adequará
aoperiodo
histórico.Período
pré
-independência
- Opapel
da literatura na identidade cultural epolítica,
econsequentemente
da identidade nacional, é umaquestão
que não sepode
desligar
das«origens
da literaturamoçambicana».
lim
Moçambique
não havia«nações»
embora existissem grupos étnicos, raciais ou outros,com uma
língua
c cultura reconhecíveis, anles do estabelecimento das colónias que setransformaram nos actuais
cstados-nação.
Verifica-se assim que existemaspectos
históricos fundamentais para a
génese
da literaturamoçambicana,
nomeadamenteaquelas
apontadas
por Chabal.específicos
à ex-colóniaportuguesa:
I )integração
colonial fraca; 2)o
impacto
social e cultural do I.stado-Novo:3)
a dinâmica do nacionalismo; 4) aproximidade
com ;iÁfrica
delíngua inglesa
(Africa
do Sul) .No contexto colonial, verificamos que as
manifestações
literárias reflectem o debate queestá na
origem
eevolução
dos movimentosindependentistas
modernos. Assim, são derealçar
osanos 50e60.
constituindo « a fase emque a literaturamoçambicana
viveu a suamaior
animação»
e em que «sealarga
o universo ledor»constituindo
também uma tase de... • ~ 51
«reatncanizaçao».
Em 1950. o
poeta
José Craveirinha fala «nasfronteiras
deágua
do Rovuma ao Incomali»tomando o espaço territorial como metáfora da
nação
asurgir,
embrião,segundo
Diogo
Aurélio, do
primeiro
esboço
concreto dc unidade nacional,quando
se iniciam as guerrasdelibertação.
Na verdade, desde essesmomentos que a literatura
cumpriu
umpapel
bastanteimportante.
Ii. esta realidade
prende-se
directamente com asegunda
estratégia
nacionalista queapontámos
acima : a maiorparte
dos intelectuais esteveligada
aos movimentos daIndependência,
assumindo mais tarde umpapel político importante.
Nas
palavras
de G. Hamilton, até à década de 60. emMoçambique,
não existia um mesmograu de solidariedade
ideológica
entre «os segmentos dainteligentsia
multi-racial» quepredominava
na altura, o que nãoimpediu
que asforças
do nacionalismoconseguissem
despertar
nos inícios dessa década. Refere-se ao Núcleo de I studos Secundários sob aresponsabilidade
do Dr. Eduardo Mondlanc quedesempenhou
umimportante
papel
dereivindicação
cultural. "Quanto
a Hamilton, faltava «um movimento mais ou menos coordenado na colóniaoriental» o que tem como
consequência
que « a cena na Ueira eLourenço
Marques
apresentava
umasfeições
peculiares
comrespeito
àquestão
duma literatura em e deMoçambique
(...).
Devido a factores vários, ascondições
existentes «acabaram porrestringir
odesenvolvimento livre de modos deexpressão
cultural autóctones ».""É
assimquea cena literária
moçambicana
dos anos 50e 60 é caracterizadocomo «um meioculturalamorfo», onde
pontuavam
alguns
escritorescuro-moçambicanos
» queajudaram
aestabelecera base deuma literatura aculturada" ■
M
llonvvana. LuisBernardo.«Papel, lugare função do Escritor» in. Tempo. 22-11-1981
%1
Hamilton, G.. LiteraturaAfricana, literaturaXecessária.ildições 70. Lisboa. I'>84. p. 12 "'
Nestecontexto. Noémia de Sousa
apresenta-se
como uma vozpoética
em que «atemática ea
estilística
convencionais dareivindicação
cultural caracterizam quase a totalidade dos(seus )
poemas. RuiNogar.
poeta
declamador.apresenta-se
comoaquele
quereintegrava
a oralidadeafricana,
naexpressão
culturalreivindicatória
eprotestatória.
bem como JoséCraveirinha
que no dizer dc Hamilton«sobrecarrega
os seus poemas de«moçambicanismos».
No que à
narrativa
dizrespeito,
oprof.
Manuel Ferreira considera Joào Dias como ei queescreveu a
primeira
página
da história daficção moçambicana,
comGodiílo
e outroscomos. Mas.
quanto
a ele. apenas em 1964 « se retoma a estrada real da narrativamoçambicana
dentro daproposta
de João Dias ».' ' Trata-se de AV..v matámos o cãoTinhoso, de Luís Bernardo Honwana que « faz do universo
moçambicano
o centro deanálise dassuas narrativas».'
Na
época
em que o livro foidivulgado,
cm 1964. era uma obrasubversiva
que.após
aindependência,
ganhou
o « status» de uma obra nacional e. porconseguinte,
uma obrapadrão
daliteraturamoçambicana.
Parece não haver .logo
nessestempos
iniciais, nenhum outro livro que se lhecompare, ou que se constitua como sucessor. Para isso. parei retomara tal «estrada real da narrativa
moçambicana
» há que esperarpelos
primeiros
anos dadécadade 80.
Período
pess-indcpenclència
- « As elitespolíticas
e culturais africanas confrontadas com a inautenticidade cultural que herdaram do colonialismo, procuram eliminai adiferença
cultural existente entre o mundo citadino, o mundo moderno, onde elas
próprias
gravitam.
e o mundo das sociedades tradicionais
periféricas
». Citamos J. C. Venâncio que afirmaainda que é no eimbito da cultura que se « apuram as
grandes
linhas orientadoras dopresente
e do futuro » e isto é tanto mais verdade parapaíses
construídos apartir
de um mosaico de pequenas «nações
culturais ». Essaopção
remonta,comojá
vimos etos temposIdem. p. 37.
''
Ferreira. Manuel Ferreira, op.cit..p. 102 11
Idem, ibidem. Manuel Ferreira refere ainda Orlando Mendes como um dos três autores «que deram a
antes da
independência,
com o nascimento dos movimentospolíticos
e das zonaslibertadas/*
Devido a
factores,
sobretudo de carizpolítico,
as autoridadesmoçambicanas
optaram
porsituar o
«surgimento»
damoçambicanidade,
nas zonaslibertadas,
durante o movimento delibertação.
Asbases
donacionalismo
situam-se assim numaépoca
imediatamente anterior.sem recuar ao mundo
pré-colonial.
muito maisdifícil
deorganizar.
Dadas ascircunstâncias,
«o recurso a umpassado
longínquo
e a umacomunidade
detradições
e costumes, instrumentoprivilegiado
daconstrução
nacional,
torna-sealém
disso, uma armaum tanto ou
quanto
ambígua
».LIma dasprioridades
do
novo Estado era nâo ver«questionadas
as fronteiras e a coesãodesejada»'
do que sedepreende
que aslínguas
e.consequentemente,
as culturasregionais
se tornem secundárias.Diogo
Pires Aurélioaponta,
entrealgumas
das «linhasestratégicas»
que seevidenciam nopassado
mais recente , dcAngola
eMoçambique,
para aafirmação
ác uma identidade nacional - Adivulgação
dalingua
portuguesa
e o relevo dado à literatura como campoprivilegiado
daelaboração
daideologia
nacional.Relativamente ao
primeiro
aspecto,
tem sobretudo a ver comquestões
pragmáticas
e que sebaseiam em decisões tomadas no âmbito do Movimento de
Libertação. Quanto
ao outroaspecto,
que se relaciona obviamente com oprimeiro,
a ideiasubjacente
é a de que aliteratura
pode
assumirumafunção
de coesão nacional, narelação
concreta que se instauraentre oescritor e seus leitores.
'8
«Nas zonas libertadas moçambicanos de várias
regiões
construíram em conjunto um novo tipo de vida, criaram novospadrões
de valores morais, normas de conduta e relacionamento, atitudes que os definiam pouco a pouco como seres característicos, identificáveis numa novaqualidade
nascida com a guerra, amoçambicanidade.
Eeram homens que falavam línguasdiferentes, que tinham hábitos alimentaresdíspares, que tinham variadas manifestaçõesculturais, mas que se irmanavame sentiam realizadoscomocidadãosda mesmapátria.*...)
Da nova vidasurgiu
uma cullura nacional sentida e aceite como sua por todos os militantes. Nas centenas de canções, esculturas, repassava o mesmo fervor patriótico, exaltavam-se as mesmasqualidades,
as mesmas virtudes, reigiam-secomo heróicosos feitosda luta comum.» Comunicação de Fernando Ganhãoao IV Congressoda Frelimo. Abrilde 1983. sobreasorigensda unidadenacional.''
Exactamente pelas mesmas ra/ões que haviam ditado as decisões da Acta de Berlim
prevendo
a constituiçãodos estados modernosemAfrica.""
Aurélio,DiogoPires.«Aquestão nacionalem
Angola
eMoçambique».
IEEI, Univ. Novade Lisboa. 1989. p. 85."'
Outrasestratégias apontadassãoa«sohredeterminaçãoda cullurapela políticae areavaliaçãoda História)). obviamente relacionadoscom osaspectosapontados.
Após
aindependência,
os escritorespublicam,
sobretudoaquilo
que tinhamescrito
aindano
período
anterior,
ou versando esseperíodo.
E achamada
fase depanflctar
ização,
que sealarga
durantealguns
anos.Contudo,
durante um certoperíodo
pós-idependência
a literaturamoçambicana
«comohibernou»
porquedevido
acondicionalismos vários
não se editou. O nascimento da Charrua(ll>84)
constitui
um momento literárioimportante
que veioquebrar
um pouco ;iletargia.
Houvedepois
uma intensa actividade editorial no ano de 1986 - 87 emque
surgiram
efornias
inéditas deabordagem
temática""
e novos autores de quem scpode
afirmarquecontribuem paraadefinição
de um nacionalismo literário.Esses novos escritores
(Luís
CarlosPatraquim.
Ungulani
Ba Ka khosa. MiaCouto)
tentam levar o leitor a uma leitura«ginasticeida»
dos textos, devido à suaelaboração
literária,
o que na alturaorigina
umdebate,
nomeadamente naspáginas
daTempe),
e emque secolocao
problema
dacomunicabilidade ', dadooanterior panorama literário.
Essa nova vagade literatura
moçambicana
começaaganhar
forma nos finais dadécada dc 70eprincípios
da de 80. Até ai apenas apoesia
é rainha, com poucasexcepções.
Eugénio
Lisboa lala «dagente
nova para quem o acto decriação
é efectivamenteimportante,
(...)quetem umavisão do mundo
que(...)
não lhes foi mandatada porninguém»
".São autores, dos
quais
destacamos Mia Couto, que incluem nas suas obras «enredospreponderantemente
com cenasdavidaemundi vidênciadas sociedades tradicionais». José C. Venâncio considera-os como «ospioneiros
daconstrução
de uma sociedade crioula» .realidade inexistenteem
Moçambique
comojá
tivemosoportunidade
de afirmar.Para muitos desses escritores, o tacto de escreverem em
língua
portuguesa nào constitui umatraição
àtradição
culturalafricana,
já
que paraeles «está-se a falaromoçambicano»
e osqueencaram outraalternativa são poucos, dadaasituaçào
sócio-cultural que herdaram.'"
Marcelo Panguana,in: Tempode 16-4-1989 M Cf.
Tempo. (,-12-1987: 13- 12-19X7 e 24-10-1982.
respectivamente
sobre «!■rai;mentos de um diário» de Khosaesobreoconto « Isaura»M
in: Tempo. 13-8-1989
""
Venâncio.. J
Cop.
cit.. . pp. 22-23"