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Direito penal: a (ir)responsabilidade penal no pós-humano / Criminal Law: The criminal (i)responsability in the post-human

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 7, p.46281-46298 jul. 2020. ISSN 2525-8761

Direito penal: a (ir)responsabilidade penal no pós-humano

Criminal Law: The criminal (i)responsability in the post-human

DOI:10.34117/bjdv6n7-308

Recebimento dos originais: 03/06/2020 Aceitação para publicação: 14/07/2020

Gilmar Madalozzo da Rosa

Mestre em Direito e Doutor pelo Programa de Pós-graduação em Direito Constitucional da Universidade de Fortaleza/Ciesa, com área de concentração em “Direito Constitucional Público e

Teoria Política”, vinculada à linha de pesquisa “Estado Democrático de Direito no Brasil”. Professor universitário e advogado. Manaus – AM, Brasil.

E-mail: gdr4@hotmail.com

Wilker Luiz Cerqueira da Rosa Madalozzo

Graduado em Direito pela Universidade Federal do Amazonas e pós-graduado lato sensu em Direito Processual Civil. Advogado. Manaus – AM, Brasil.

E-mail: wilkermadalozzo@gmail.com

Michelle Cerqueira da Rosa

Graduada em Direito pela Universidade Federal do Amazonas e pós-graduanda lato sensu em Direito e Processo do Trabalho e Direito Processual Civil. Advogada. Manaus – AM, Brasil.

E-mail: michellerosa65@hotmail.com

RESUMO

O presente artigo trata da possibilidade de se responsabilizar condutas penais não humanas. O Código Penal brasileiro foi promulgado em 1940, quando predominavam as relações pessoais. Assim, sua estrutura foi desenvolvida para punir condutas humanas, sendo fato atípico condutas não humanas. Acontece que com o desenvolvimento tecnológico, pós-promulgação do Código Penal, foram e estão sendo criados seres híbridos que unem o elemento humano e o tecnológico e seres que são somente tecnológicos, capazes de praticar condutas que podem configurar crime. Porém, tais condutas, na vigência da legislação penal atual, são condutas atípicas, visto que praticadas por não humanos. Esse novo estágio pelo qual está passando a humanidade, a criação de seres não humanos, a ciência denomina de pós-humano. Atualmente, no pós-humano, temos condutas que configuram crime, mas que não podem ser alcançadas pelo Direito Penal. Essas condutas podem ser praticadas por clones, ciborgues, programas de computador e principalmente por robôs, com o uso da inteligência artificial. Se observa que o Código Penal brasileiro está desatualizado, visto que só permite tipificar como crime condutas humanas. Não há possibilidade, pela presente legislação penal, de imputar como crime condutas praticadas por ser tecnológico, não sendo responsabilizado o seu criador, proprietário ou o próprio ser. Daí ser necessário alterar a legislação penal para tipificar como crime tais condutas. Não se trata de uma simples alteração da legislação penal, como se faz hodiernamente, alterando ou revogando um artigo do Código Penal. É necessária uma alteração profunda, na estrutura da teoria do crime, o que é algo complexo e demanda tempo.

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 7, p.46281-46298 jul. 2020. ISSN 2525-8761

ABSTRACT

This article deals with the possibility of making non-human criminal conduct responsible. The Brazilian Penal Code was enacted in 1940, when personal relationships predominated. Thus, its structure was developed to punish human conduct, being atypical, non-human conduct.

Turns out that with the technological development, after the enactment of the Penal Code, were and are being created hybrid beings that unite the human and technological elements and beings that are only technological, capable of practicing behaviors that can constitute crime. However, such conducts, under the current penal legislation, are atypical conducts, since practiced by non-humans. This new stage that humanity is going through, the creation of non-human beings, science calls post-human. Currently, in the post-human, we have behaviors that constitute crime, but that cannot be achieved by Criminal Law. Such behaviors can be practiced by clones, cyborgs, computer programs and mainly by robots, with the use of artificial intelligence.

It is noted that the Brazilian Penal Code is out of date, since it only allows to characterize human conduct as a crime. There is no possibility, under the present criminal legislation, to attribute as a crime the conducts that are practiced by technological beings, its creator, owner or the being itself, none of them are responsible. Hence, it is necessary to typify the criminal law to classify such conduct as a crime.

This is not a simple amendment to criminal law, as is done today, changing or revoking an article of the Penal Code. A profound change is needed in the structure of the theory of crime, which is complex and time-consuming.

Keywords: Responsibility, Criminal, Post-human.

1 INTRODUÇÃO

O Código Penal brasileiro foi criado em um momento da história em que as tecnologias eram pouco desenvolvidas, comparando com o desenvolvimento tecnológico contemporâneo. Prevaleciam as relações humanas, daí a legislação penal tipificar como crime somente condutas humanas.

A sociedade evoluiu e novos seres tecnológicos foram e estão sendo criados pelo avanço tecnológico. Não se sabe como será o comportamento desses seres no meio da sociedade, mas é possível que tais seres possam praticar condutas que tipifiquem crimes, o que pela atual legislação penal será um fato atípico.

Tamanho avanço tecnológico é denominado de pós-humano, onde a presença desses seres tecnológicos será uma constante. Tanto a conjugação do humano com o tecnológico ou seres apenas tecnológicos tendem a se proliferar do meio da sociedade como forma de tornar mais descomplicada a vida humana.

A conduta de tais seres não é alcançada pela legislação penal brasileira, que nesse aspecto se encontra desatualizada, devendo a teoria do crime sofrer grandes e complexas mudanças para responsabilizar tais ações. Assim este artigo está dividido em três capítulos.

No primeiro capítulo será estudada a teoria do crime, de acordo com a previsão do Código Penal. Será demonstrado que o Código Penal foi elaborado para que apenas condutas humanas

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 7, p.46281-46298 jul. 2020. ISSN 2525-8761 possam ser responsabilizadas pela prática de crimes, não alcançando condutas de quem não for humano.

No segundo capítulo será demonstrado que, com o avanço da tecnologia, novos seres tecnológicos estão sendo criados. Esse novo estágio que passa a raça humana é denominado de pós-humano, onde será visto que é possível conjugar o humano com o tecnológico ou ter seres totalmente tecnológicos ou inorgânicos.

No terceiro capítulo, se evidenciará que a legislação penal brasileira deverá ser modificada para alcançar condutas praticadas por quem não é humano. Desta forma a legislação penal, principalmente o Código Penal brasileiro, deverá sofrer modificações para responsabilizar a conduta ilícita de quem não é humano.

O objetivo geral desse estudo é demonstrar que o Código Penal brasileiro está desatualizado. Já os objetivos específicos são: a) demonstrar que o Código Penal só imputa crime a conduta humana; b) novos seres tecnológicos estão sendo criados pelo avanço da tecnologia; c) a conduta desses seres tecnológicos devem ser responsabilizadas na esfera penal e; d) o Código Penal precisa ser modificado para responsabilizar a conduta dos seres tecnológicos.

Por último, será feita uma conclusão do estudo realizado e apresentada as referências utilizadas nesse trabalho. A metodologia utilizada no presente estudo foi a do método de abordagem dedutivo e, quanto aos meios, foi a da pesquisa bibliográfica com o uso da doutrina e legislação. Espera-se que o estudo possa contribuir para demonstrar que a estrutura do crime, como posta hoje, tem que ser revista, para se amoldar às novas tecnologias.

2 RESPONSABILIDADE PENAL

A responsabilidade penal deve ser aferida com precisão, pois sendo o direito penal ramo que lida com bem jurídico tão caro ao cidadão, como a liberdade, a imprecisão da linguagem e os limites próprios à expressão legislativa trazem a necessidade de uma construção dogmática forte, capaz de aumentar o grau de segurança da operação, ratificando a ideia e permitindo a segurança máxima nas decisões, suficientes para pacificar o meio social.

Para que se possa responsabilizar alguém por uma conduta criminosa, faz-se necessário compreender a definição de crime e que, uma vez praticado, induz a responsabilidade penal. Para Jesus (1999, p. 151) sob o aspecto formal, crime “é um fato típico e antijurídico. Como se percebe, esse autor adota uma concepção bipartida de crime, deixando a culpabilidade como pressuposto de aplicação da pena.

Já Nucci (2017, p. 278), utilizando uma concepção analítica, define crime como "uma conduta típica, ilícita e culpável”. O autor adota a corrente tripartida para definir crime, entendendo

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 7, p.46281-46298 jul. 2020. ISSN 2525-8761 que é amplamente mais aceita no Brasil, tanto na doutrina, quanto na jurisprudência. Ainda, segundo Nucci, essa abordagem de crime é artificial, ou seja, independe de fatores naturais, constatados por um juízo de percepção sensorial, uma vez que se torna impossível apontar uma conduta que constitua crime pela própria natureza (Nucci, 2017, p. 273).

De existência artificial, Michel Foucault afirma como sendo verdade que a sociedade define, em função de seus interesses próprios, o que deve ser considerado como crime, assim indissociável o caráter que não é natural (Foucault, 2002, p. 87). Importante ressaltar que tal definição, ainda quando abordado o conceito de crime, não encontra definição na legislação, cabendo à doutrina definir importante instituto jurídico.

Segundo Junqueira (2012, p. 60), que igualmente compreende um conceito analítico, crime “é ação típica, antijurídica e culpável”. Esse autor também adota a concepção tripartida para conceituar crime. Para este trabalho, adotaremos conceito de crime segundo Nucci.

Ao adentrar na definição específica, o fato típico é o fato material que se amolda perfeitamente aos elementos constantes do modelo previsto na lei penal. São seus elementos: conduta dolosa ou culposa, resultado, nexo causal e tipicidade.

A conduta é a ação ou omissão humana, consciente e voluntária, dirigida a uma finalidade, sendo seus elementos: a vontade, finalidade, exteriorização e consciência. Percebe-se que sem vontade, finalidade, exteriorização e consciência não é possível praticar um crime. A doutrina também destaca que são formas de conduta a ação ou omissão (Junqueira, 2012, p. 62). A ação consiste em um comportamento positivo, um fazer. Já a omissão se caracteriza por um comportamento negativo, um não fazer o que deveria ter feito.

O Código Penal igualmente destaca que a conduta pode ser dolosa ou culposa. O Código Penal expressamente conceitua a conduta dolosa:

Art. 18 - Diz-se o crime:

I - doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo. (gn) Segundo Cunha (2015, p. 190), “o dolo pode ser conceituado como a vontade consciente dirigida a realizar (ou aceitar realizar) a conduta prevista no tipo penal incriminador”. Assim, para que o agente pratique a conduta dolosa é preciso ter vontade ou assumir o risco de praticar o crime. Nesse sentido, é possível identificar o dolo direto e o dolo indireto ou eventual. Segundo Junqueira (2012, p. 72), “o dolo direto ocorre “quando o sujeito faz a previsão do resultado e atua no sentido de alcançá-lo”, enquanto o dolo eventual ocorre “quando o sujeito faz previsão do resultado e tolera o risco de sua produção”.

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 7, p.46281-46298 jul. 2020. ISSN 2525-8761 Majoritariamente, o dolo deve ser entendido como um componente subjetivo implícito da conduta, pertencente ao fato típico, formado por dois elementos: volitivo, isto é, a vontade de praticar a conduta descrita na norma, representado pelos verbos querer e aceitar; e o intelectivo, traduzido na consciência da conduta e do resultado.

Já o crime culposo, também está previsto no Código Penal, nos seguintes termos: Art. 18 – Diz-se o crime:

(...) omissis

II - culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou

imperícia. (gn)

A conduta culposa consiste numa ação voluntária que realiza um evento ilícito não querido ou aceito pelo agente, mas que lhe era previsível ou excepcionalmente previsto e que podia ser evitado se empregasse a cautela esperada. Os elementos da conduta culposa são a imprudência, negligência e imperícia.

A imperícia consiste na prática de um fato sem o devido cuidado, é o agir com precipitação, insensatez ou inconsideração. Já a negligência consiste em deixar de tomar o devido cuidado, é deixar de agir quando devia, implicando em uma abstenção de um comportamento que era devido. A imperícia, por sua vez, versa na inaptidão técnica em uma profissão ou atividade, é a falta de conhecimento ou habilitação para o exercício de determinado trabalho, desde que se tenha formação profissional para tanto.

Todos os três elementos da culpa recorrem ao necessário dever de cuidado objetivo, que constituem elementos do fato típico dos crimes culposos (Estefam, 2015, p. 253). Ainda, de acordo com o autor, tamanho dever corresponde, na prática, das cautelas necessárias com o objetivo da atuação não causar danos alheios.

Em relação a conduta, é importante destacar que apesar de polêmico, a doutrina majoritária defende que a conduta que poderá resultar em crime é a conduta humana. Junqueira 2012, p. 60), ao discorre sobre o sujeito ativo do crime, assim afirma:

Sujeito ativo: designa aquele que pratica a conduta descrita pelo tipo penal. A princípio, apenas o homem pode ser sujeito ativo de crime. A Constituição Brasileira prevê a responsabilidade penal pessoa jurídica para os crimes ambientais, o que os tornaria potenciais sujeitos ativos.

Verifica-se que, em regra, somente as pessoas naturais (humanos) podem ser sujeitos ativos de crime. Porém, excepcionalmente, o crime pode ser atribuído às pessoas jurídicas, mas nesse caso, por expressa previsão constitucional.

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 7, p.46281-46298 jul. 2020. ISSN 2525-8761 Outro elemento que se apresenta como necessário para que se tenha presente a conduta e, consequentemente, o fato típico é o resultado. O resultado é a modificação do mundo exterior provocado pela conduta, é a consequência da conduta. Segundo Nucci (2017, p. 369):

O resultado pode ser analisado por dois critérios: naturalístico, que é a modificação

sensível do mundo exterior; jurídico ou normativo que é a modificação gerada no mundo jurídico, seja na forma de dano efetivo ou na de dano potencial, ferindo interesse protegido pela norma penal. (gn)

De acordo com o autor, seja qual for o critério adotado, é necessário que ocorra alguma alteração no mundo das coisas para que o resultado possa acontecer. Pelo menos o resultado jurídico deve estar presente para que a conduta seja típica. Quanto ao resultado naturalístico, Junqueira (2012. p. 65), classifica três tipos penais: “materiais, formais e de mera conduta”. Material, o tipo penal traz a descrição do resultado e o exige para sua consumação; formal, o tipo penal traz a descrição do resultado, mas não o exige para a consumação e; de mera conduta, quanto o tipo penal não traz a descrição do resultado.

Ocorre que, sem resultado não há fato típico e sem fato típico não há que se falar em autoria de crime. Portanto, o resultado, quando esse for exigido, deve ser identificado para que se possa atribuir um ilícito penal a um sujeito ativo.

O nexo causal também é elemento do fato típico. O nexo causal se caracteriza pelo elo físico que se estabelece entre a conduta e o resultado. É necessário então que o resultado seja consequência lógica de uma conduta praticada pelo agente, que pretende cometer um ilícito penal. Para Nucci (2017, p. 401) o nexo causal:

[...] É o vínculo estabelecido entre a conduta do agente e o resultado por ele gerado, com relevância para formar o fato típico. Portanto, a relação de causalidade tem reflexos diretos, em nosso entender, na tipicidade. Causalidade significa sucessão de tempo. “Literalmente significa que o tempo se segue, que um tempo se segue a outro. Por conseguinte, Kant diz, por exemplo: “tempos diversos não são ao mesmo tempo, mas são um depois do outro.” O tempo “flui constantemente”. Sua constância e fluir. (gn)

Para o autor, se o resultado do crime não é consequência de sua conduta, ou seja, se a conduta não foi a causadora do resultado, não existe o nexo causal. Não existindo nexo causal, está afastado o fato típico e consequentemente não há crime.

O quarto e último elemento do fato típico é a tipicidade. A tipicidade é o enquadramento de uma conduta praticada no mundo real ao modelo descritivo na lei penal. É a correspondência entre a conduta e o tipo legal descrito como crime. Não há que se confundir tipicidade com adequação típica. Aquela é a simples adequação entre a conduta e o tipo legal descrito como crime, sendo que a

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 7, p.46281-46298 jul. 2020. ISSN 2525-8761 adequação típica vai além, exigindo também a adequação entre a conduta e o tipo legal descrito como crime, mas irá se investigar se houve ou não vontade.

No entendimento de Cunha (2017, p. 266), ao escrever sobre a tipicidade penal:

Para a doutrina moderna, entretanto, a tipicidade penal engloba tipicidade formal e material.

A tipicidade penal deixou de ser mera subsunção do fato à norma, abrigando juízo de valor, consistente na relevância da lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico tutelado. É

somente sob essa ótica que se passa a admitir o princípio da insignificância como hipótese de atipicidade material da conduta. (gn)

O autor, ao discorrer que a tipicidade penal deixou de ser mera subsunção do fato a norma, trata da tipicidade formal e, enquanto entende que é necessário abrigar um juízo de valor, trata da adequação típica entre a conduta e o tipo legal, trata da adequação típica, que leva em consideração o dolo ou culpa por parte do agente autor da conduta delituosa.

A antijuricidade ou a ilicitude integra o conceito de crime sob o aspecto formal ou analítico. A antijuricidade é a contradição entre a conduta e o ordenamento jurídico, consistindo na prática de uma ação ou omissão ilegal. Prevalece o entendimento que todo fato típico em princípio é ilícito, a não ser que ocorra a presença de alguma causa que lhe retire a ilicitude. Mais especificamente, o fato típico é um indício da ilicitude. Para Cunha (2017, p. 273):

A ilicitude, também denominada de antijuricidade, é o segundo substrato do conceito analítico de crime, devendo ser entendida como conduta típica não justificada, espelhando

uma relação de contrariedade entre o fato típico e o ordenamento jurídico como um

todo. (gn)

Independentemente do entendimento que se tenha sobre a ilicitude, ela sempre será tida como integrante do conceito analítico de crime, ou seja, sem ilicitude não há crime. O Código Penal indica as causas excludentes da ilicitude:

Art. 23 - Não há crime quando o agente pratica o fato: I - em estado de necessidade;

II - em legítima defesa;

III - em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.

Deve-se entender que todo fato típico é ilícito, a não ser que o fato praticado possa ser alcançado por uma das excludentes de ilicitude do artigo 23, do Código Penal. Importante destacar que o Código Penal, no artigo 23, caput, menciona que as excludentes de ilicitude excluem o crime.

Por último, inclui-se no conceito do aspecto analítico de crime a culpabilidade. Como já mencionado, para alguns doutrinadores a culpabilidade é pressuposto de aplicação da pena. Porém, hoje prevalece que faz parte da estrutura do crime, dentro da noção tripartida (fato típico, antijurídico e culpável). É na estrutura da culpabilidade que se deixará de trabalhar com um sujeito em abstrato,

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 7, p.46281-46298 jul. 2020. ISSN 2525-8761 para valorar a ação do indivíduo em concreto, respeitando as peculiaridades pessoais e as circunstâncias em que agiu.

Sobre a culpabilidade discorre Junqueira (2012, p. 111),

Atualmente prevalece que a culpabilidade é estrutura relacionada à reprovabilidade, no sentido de censura sobre a conduta do sujeito que, livre para agir, poderia e deveria ter

agido de acordo com o direito: que poderia ter sido motivado pela norma e não afrontar o ordenamento. Percebe-se a grande importância da noção de livre arbítrio (o sujeito normalmente é livre para agir, e responde criminalmente se mal utiliza tal liberdade). (gn)

Ao analisar a culpabilidade deve ser levado em consideração se o fato praticado pelo agente era ou não reprovável e se determinado fato influenciava sua liberdade de optar entre o caminho do lícito e do ilícito. A estrutura da culpabilidade costuma ser sistematicamente dividida em: imputabilidade, potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa.

A imputabilidade consiste em se atribuir responsabilidade. Neste caso o juízo de imputabilidade verifica se o sujeito autor do ilícito penal é capaz ou incapaz de ser responsabilizado. A imputabilidade, segundo Capez (2013, pp. 332- 333),

É a capacidade de entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento. O agente deve ter condições físicas, psicológicas, morais e mentais de

saber que está realizando um ilícito penal. Mas não é só. Além dessa capacidade plena de entendimento, deve ter totais condições de controle de sua vontade. Em outras palavras, imputável é não apenas aquele que tem capacidade de intelecção sobre o significado de sua conduta, mas também de comando da própria vontade, de acordo com esse entendimento. (gn)

Neste sentido, a imputabilidade apresenta duas capacidades: um aspecto intelectivo, ou seja, entendimento da conduta e outro volitivo, que é a faculdade de controlar e comandar a própria vontade. Faltando uma dessas capacidades, o agente não será considerado responsável pelos seus atos.

O Código Penal expressamente menciona os casos em que se afasta a imputabilidade, a saber: a inimputabilidade prevista no artigo 26; a menoridade penal prevista no artigo 27 e a embriaguez completa por caso fortuito ou força maior, de acordo com o artigo 28, § 1º.

Já a potencial consciência da ilicitude, como integrante da culpabilidade, consiste em investigar se o sujeito, ao praticar o ilícito penal, tinha a possibilidade de saber que fazia algo errado ou injusto, de acordo com o meio social que o cerca, as tradições e costumes locais, sua formação cultural, seu nível intelectual, resistência emocional e psíquica entre outros fatores.

A exigibilidade de conduta diversa ocorre quando ao agente era exigível conduta diversa, diferente da que realizou. Consiste na expectativa social de um comportamento diferente daquele que foi adotado pelo agente. Para Capez (2013, p. 353) “somente haverá exigibilidade de conduta diversa

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 7, p.46281-46298 jul. 2020. ISSN 2525-8761 quando a coletividade podia esperar do sujeito que tivesse atuado de outra forma.”. Segundo o artigo 22, do Código Penal, excluem a exigibilidade de conduta diversa a coação moral irresistível e a obediência hierárquica.

Por tudo que até aqui foi mencionado, pode-se afirmar que o Código Penal brasileiro foi idealizado levando em consideração que o autor do crime seja uma pessoa, um ser humano que pensa, que está de posse de suas faculdades mentais, que sabe distinguir entre o certo e o errado, que tem conhecimento das leis. Enfim, só pode responder por um crime, quem sabe o que está fazendo, exercendo plenamente sua vontade.

3 PÓS-HUMANO

A Ciência vem avançando e busca desenvolver seres que mudam o aspecto humano ou que nada tem a ver com o ser humano. Seres que foram desenvolvidos pelos humanos, mas que, muitas vezes, podem se distanciar do seu criador.

Essa construção social partiu da convergência da sociedade em um sentido mais complexo com as tecnologias no âmbito digital, das telecomunicações e na mudança de como administramos a informação, criando toda uma nova forma de interação. Sobre o pensamento pós-humanista, afirma Rüdiger (2008, p. 4):

Oriundo do final dos anos 1980, o movimento pós-humanista nasceu no contexto de expansão do capitalismo high-tech, de formação embrionária da cibercultura e de instalação cotidiana do pensamento cibernético, com uma atitude acentuadamente libertária e anárquica pró-empresarial. Embora movimento futurista e utópico, seus partidários assumiram desde o princípio uma postura baseada na recusa de dogmas.

Como se observa o pensamento pós-humano decorre do avanço tecnológico, cuja origem está na cibercultura e no pensamento cibernético. Sobre a velocidade do avanço tecnológico, Kaku (2001, p. 18) “afirma que o conhecimento é duplicado a cada dez anos, estipulando uma nova forma de viver”. Assim, o rápido crescimento da tecnologia criou um ambiente propício para desenvolver o pensamento pós-humanista.

Michel Focault já tratava sobre o pensamento pós-humano, porém se referia a ele como biopolítica da espécie humana. Para Focault (1996, p.196) “depois da anatomia política do corpo humano instaurado por volta de 1700, em finais do século vai aparecendo algo que já não é isso, mas algo que eu chamaria de uma biopolítica da espécie humana”. Para o autor, está se formando um poder, cuja origem está no saber, técnicas e dispositivos que intervém em nossa realidade biológica.

Segundo Lúcia Santaella, o termo pós-humano é empregado tanto para se referir ao fato da nossa visão, daquilo que se constitui o ser humano, que está passando por profundas transformações,

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 7, p.46281-46298 jul. 2020. ISSN 2525-8761 quanto para apontar para a convergência geral dos organismos com as tecnologias, até o ponto de se tornarem indistinguíveis (Santaella, 2010, p. 192).

Para Carvalho, (2007, p. 3):

O pós-humano, de uma maneira geral, pode ser definido como um ser híbrido, uma união de dois elementos – o humano e o tecnológico – que faz com que o homem ultrapasse

suas limitações físicas ou mentais expandindo suas próprias capacidades utilizando-se de artifícios e recursos tecnológicos. (gn)

Desta forma, no entendimento da expressão pós-humano se compreende tanto o ser humano transformado, quanto as invenções criadas pelo ser humano, mas que nada tem a ver com o mesmo, pois tratam de seres completamente diferentes do homem. Dentro dessa concepção, do pensamento pós-humano em razão do desenvolvimento tecnológico, temas como clonagem, tecnologia ciborgue, programas de computadores, vírus de computador e robôs tem grande destaque.

Tema que tem gerado grande controvérsia entre os cientistas é a clonagem. Na clonagem, um ser vivo é criado de forma assexuada, tendo origem em outro ser vivo, através de técnicas da Biotecnologia. Já foram clonados vários animais e pelo que se sabe ainda não ocorreu a clonagem de um ser humano, o que não significa que isto não ocorrerá.

Sobre a clonagem discorre Graham (2002, p. 2) “o aumento de sofisticação em técnicas biomédicas com reprodução assistida e clonagem rudimentar são prontas indicações de como cientistas estão hoje rotineiramente aptos a intervir nos chamados ‘processos naturais’ com ajuda de tecnologias”.

A controvérsia sobre a clonagem revela o que está em jogo na invocação da natureza humana, e, portanto, no anúncio da era pós-humana da história do homem. Este ser clonado que tem forma humana seria mesmo humano? Será que teria o mesmo grau de desenvolvimento do ser que lhe deu vida? Será que teria o mesmo grau de entendimento da sua origem? São perguntas para as quais a ciência, por hora, não tem respostas.

Outra tecnologia que poderá mudar as leis da vida é a engenharia ciborgue. Os cyborgs, são seres que combinam em um mesmo corpo partes orgânicas e inorgânicas. Segundo Carvalho (2007, p. 3), o ciborgue “trata-se de um ser metade homem metade máquina, aperfeiçoado, com capacidades físicas e mentais que um humano ‘normal’ não possui. Seria uma fusão do orgânico com o cibernético, máquinas que simulam ou até ultrapassam as capacidades humanas”.

Estamos todos de certo modo, muito próximos de nos tornarmos verdadeiros cyborgs, de ter características que são inseparáveis do nosso corpo, características que podem alterar nossas capacidades, desejos, personalidade e identidade. Os sapiens estão sendo transformados em cyborgs.

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 7, p.46281-46298 jul. 2020. ISSN 2525-8761 A mais nova geração de aparelhos auditivos é às vezes chamada de orelha biônica. Segundo Harari (2017, p. 416):

O dispositivo consiste de um implante que capta o som por meio de um microfone localizado na parte externa da orelha. O implante filtra o som, identifica vozes humanas e as traz em sinais elétricos que são enviados diretamente ao nervo auditivo central e de lá para o cérebro.

Outros casos em que a tecnologia cyborg também é empregada é a Retina Implant. Uma empresa alemã, financiada pelo governo está desenvolvendo uma prótese de retina que pode permitir que pessoas cegas adquiram uma visão parcial. De acordo com Harari (2017, p. 416):

Envolve a implantação de um microchip dentro do olho do paciente. As fotocélulas

absorvem a luz que incide sobre o olho e a transforma em energia elétrica, que estimula as células nervosas intactas na retina. Os impulsos nervosos dessas células estimulam o cérebro, onde são traduzidos em visão. No momento a tecnologia permite que os pacientes se orientem no espaço, identifiquem letras e inclusive reconheçam rostos. (gn)

É evidente que tais tecnologias ainda podem melhorar muito, mas com certeza farão parte do nosso futuro e isso é definitivo, não há como retroceder. Essas tecnologias podem trazer profundas modificações e benefícios ao corpo humano, mas as consequências ainda são desconhecidas.

Cabe destacar que existem projetos que estão sendo desenvolvidos na tentativa de conceber uma interface direta e de mão dupla entre o cérebro humano e o computador. Isso permitirá que computadores leiam os sinais elétricos de um cérebro humano, transmitindo simultaneamente sinais que o cérebro possa ler.

Se tais interfaces forem usadas para associar diretamente um cérebro com a internet, ou associar diretamente vários cérebros uns com os outros, poderá ser criado uma espécie de rede intercerebral. Assim, o cyborg poderá acessar as memórias de outro cyborg. Se isso acontecer, tal cyborg não seria humano, será tão fundamentalmente outro tipo de ser, o qual não podemos sequer compreender as implicações políticas, psicológicas ou filosóficas.

Ainda, é possível a criação de seres completamente inorgânicos, causando mais mudanças drásticas na lei da vida. Os exemplos mais óbvios são os programas de computador e vírus de computador que podem sofrer evolução independente.

Muitos programadores tentam criar um programa capaz de aprender e evoluir de maneira totalmente independente de seu criador. Neste caso o programador seria um primeiro motor, mas sua criação estaria livre para evoluir em direções que seu criador nem qualquer outro humano jamais poderiam ter imaginado. Para Harari (2017. p. 419):

Um protótipo de tal programa já existe e chama-se vírus de computador. Conforme se espalha pela internet, o vírus se replica milhões de vezes, o tempo todo sendo perseguido por programas de antivírus predatórios e competindo com outros vírus por um lugar no

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 7, p.46281-46298 jul. 2020. ISSN 2525-8761 ciberespaço. Um dia, quando o vírus se replica, um erro ocorre, uma mutação computadorizada. Talvez o engenheiro humano programou o vírus para, ocasionalmente, cometer erros aleatórios de replicação. Talvez a mutação se deva a um erro aleatório. Se, por acidente o vírus modificado for melhor para escapar de programas anti-vírus sem perder sua capacidade de invadir outros computadores, vai se espalhar pelo ciberespaço. Nesse caso, os mutantes irão sobreviver e se reproduzir. Com o passar do tempo, o ciberespaço estará cheio de novos vírus que ninguém produziu e que passam por uma evolução inorgânica.

Assim, está criada uma outra forma de vida, totalmente independente e que não teve origem no padrão humano, uma forma de vida que possa por si só, se desenvolver e se reproduzir, podendo chegar a situações que fogem ao controle humano.

Para Harari, (2017, p. 420):

Suponha que você pudesse fazer um backup do seu cérebro para um HD portátil e então rodá-lo em seu computador. Seu nootebook seria capaz de pensar e sentir como um sapiens? Se sim, ele seria você ou outra pessoa? E se os programas de computador pudessem criar uma mente totalmente nova, mas digital, composta de códigos de computador, completa, com um senso de eu, consciência e memória? Se você rodasse o programa em seu computador, este seria uma pessoa? Se você o deletasse, poderia ser acusado de assassinato?

Neste sentido, Dominique Lecourt cita o caso em que o cineasta Hans Moravec, em seu Mind Children: The Future of Robot and Human Intelligence, reproduz um ser humano fazendo download da sua mente em um computador, como se fosse uma lipossucção craniana (Lecourt, 2005, p. 63). Apesar de ser ficção, a possibilidade do conteúdo do pensamento humano poder ser transferido sem problemas para um novo suporte é um tema que tem sido constantemente explorado pelos cientistas. Como se pode observar, as coisas não são tão simples, muitas perguntas estão sem respostas, muitas dúvidas, muitas incertezas do porvir. Contudo, o homem não pode ficar alheio a tais situações e deve se preparar da melhor forma para enfrentar o futuro. Talvez, logo tenhamos respostas para estas perguntas, mas por hora devemos estar preparados para que surpresas não aconteçam, as quais devem ser mais fáceis de entender e controlar.

Atualmente, o projeto Cérebro Humano, fundado em 2005 procura recriar o cérebro humano dentro de um computador, com circuitos eletrônicos no computador emulando redes neurais no cérebro. Se bem sucedido, isso significaria que depois de 4 (quatro) bilhões de anos circulando pelo mundo dos componentes orgânicos, a vida de repente irromperá na vastidão do reino inorgânico, pronta para assumir formas que jamais sonhamos.

O mundo atual, já é um mundo em que a cultura está se libertando da Biologia. Nossa capacidade de manipular não só o que está na nossa volta, mas acima de tudo o mundo dentro de nossos corpos e mentes está se desenvolvendo a toda velocidade.

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 7, p.46281-46298 jul. 2020. ISSN 2525-8761 Os estudiosos do Direito precisam repensar questões de privacidade e identidade; os governos precisam repensar questões de saúde e igualdade. Todos devem aprender a lidar com os enigmas da bioengenharia, dos cyborgs e da vida inorgânica.

Isto é algo que a maioria dos sapiens considera extremamente desconcertante, que preferem não acreditar em tais coisas, mas será inevitável e devemos estar preparados. Não gostamos de considerar a possibilidade de que, no futuro, seres com emoções e identidades como as nossas já não existam, e que nosso lugar seja tomado por formas de vida estranhas, cujas capacidades ofuscam as nossas.

O que devemos levar a sério é a ideia de que a próxima etapa da história incluirá não só transformações tecnológicas e organizacionais como também transformações sociais na consciência e na identidade humana. Essas podem ser transformações tão fundamentais que colocarão em dúvida o próprio termo humano.

É mesmo ingênuo imaginar que podemos simplesmente frear os projetos científicos que estão transformando o Homo sapiens em um tipo diferente de ser, pois esses projetos estão diretamente unidos à busca até pela imortalidade. Além da imortalidade, com esses avanços tecnológicos também se busca a cura de doenças e outras tantas necessidades do ser humano.

A robótica é outro ramo da ciência que cresce a passos largos. Para Lecourt (2005, p. 56), “a robótica alcançará seus objetivos de maneira que uma máquina se deslocará livremente, totalmente dotado das capacidades intelectuais”. Os robôs terão suas atividades desenvolvidas independentemente da participação humana.

Cientistas afirmam que trinta ou quarenta anos a partir dos anos 2000 serão suficientes para anular a distância entre a máquina e o cérebro humano. Desta forma, os robôs terão herdado a nossa inteligência e poderão, além disso, aumentar suas capacidades de um modo literalmente prodigioso. Esse aumento de capacidades, por si só, decorre da chamada inteligência artificial, em que a máquina pode se reprogramar aumentando sua forma de pensar e realizar tarefas.

A pós-humanidade, gera uma nova era da humanidade, na qual os robôs terão herdado a nossa inteligência e poderão, além disso, aumentar suas capacidades de um modo literalmente prodigioso. Mas, devemos perquirir se o ser humano está preparado para essa nova realidade, se as estruturas atuais criadas pelo ser humano poderão controlar o que virá em termos de desenvolvimento científico. A questão que se propõe agora não é mais de criar uma máquina para qual se poderá transferir o conteúdo da inteligência humana, mais audaciosamente, será de criar as condições artificiais em que formas vivas virtuais poderão emergir. Deve-se buscar o controle de tais invenções, sob pena do ser humano ser vítima de sua própria criação.

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 7, p.46281-46298 jul. 2020. ISSN 2525-8761 Alguns cientistas, chamados de tecnoprofetas, se alarmam, porque, quando for criado o primeiro robô inteligente será preciso dar apenas um pequeno passo para se criar uma espécie completa: robôs capazes de fabricar cópias elaboradas deles próprios. Diante da potência temível destas novas tecnologias, devemos nos questionar sobre os melhores meios de coexistir com elas.

Assim, o pós-humano se apresenta de forma que não podemos evitar. Diante desta circunstância o que podemos fazer é influenciar a direção que se está tomando. Mas, considerando que possivelmente, logo seremos capazes de manipular inclusive nossos desejos, devemos ter em mente o que queremos para nós e se estamos preparados para essa nova onda tecnológica que se aproxima, inclusive sob aspectos jurídicos.

4 RESPONSABILIDADE PENAL NO PÓS-HUMANO

O objeto do Direito Penal somente pode dirigir os seus comandos legais, mandando ou proibindo que se faça alguma coisa (proibindo que se realize determinada ação), ao homem, pois somente este é capaz de executar ações com consciência do fim. Assim, lastreia-se o Direito Penal na voluntariedade da conduta humana, na capacidade do homem para um querer final.

Deste modo, o âmbito da normatividade jurídico-penal limita-se às atividades finais humanas voluntárias. Disso resulta a exclusão do âmbito de aplicação do Direito Penal de seres como os animais, que não tem consciência do fim de seu agir, fazendo-o por instinto, bem como dos movimentos corporais causais humanos, como os reflexos, não domináveis pelo homem, coação física irresistível ou por força irresistível da natureza.

Ocorre que, com o desenvolvimento da ciência e pelas notícias que se tem até o momento, há muita incerteza sobre até onde o homem poderá chegar com o desenvolvimento de suas descobertas, quais serão as consequências das descobertas feitas pelo homem e se tais descobertas terão qual grau de entendimento ou desenvolvimento.

O que dizer da tecnologia cyborg, ser humano que possui parte de seu corpo substituído por estruturas inorgânicas. Se essas estruturas forem responsáveis pela mudança de comportamento da pessoa, se estas estruturas venham a interferir na voluntariedade e consciência da pessoa, como aplicar as regras do direito penal a tais pessoas?

Os robôs desenvolvidos no Japão estão cada vez mais avançados, andam falam e executam tarefas que até então seriam realizadas exclusivamente pelo homem. No caso de um destes robôs cometer um crime no Brasil, a quem seria imputada tal conduta? Ao proprietário, ao fabricante da máquina, ou a conduta seria atípica? Pela atual legislação, não seria possível imputar esta conduta ao seu proprietário, salvo se este utiliza a máquina como instrumento do crime. Ainda não seria possível

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 7, p.46281-46298 jul. 2020. ISSN 2525-8761 imputar a responsabilidade ao fabricante da máquina, pois pessoas jurídicas, em regra, não cometem crime, segundo a legislação pátria.

A inteligência artificial também é uma realidade que se apresenta a todos nós. De todas as invenções que o homem já fez, esta pode ser a mais extraordinária e, também, a mais perigosa. Máquinas dotadas de inteligência artificial podem ser criadas inicialmente pelos homens, mas com o avanço da tecnologia, o objetivo é que se repliquem sozinhos, sem a participação ou interferência do homem, e a evolução desta reprodução autônoma figura-se ainda como uma incógnita.

Se esse ser dotado de inteligência artificial, que depois de se replicar autonomamente e se transformar em uma máquina diferente da que foi criada pelo homem vir a praticar um crime, a quem responsabilizar? Pela legislação vigente tal fato seria atípico.

São esses questionamentos que se colocam na atualidade, onde seres tecnológicos possam cometer ilícitos penais, sem que a legislação vigente, mais especificamente o Código Penal, esteja em condições de regular tais condutas. Transformações profundas na legislação penal devem ser feitas para alcançar os sujeitos ativos de tais condutas.

Como menciona Nucci (2017, p. 277-278):

O avanço tecnológico, a mudança de comportamento dos integrantes da sociedade, as novas formas de convivência e tanto outros instrumentos modernos passam a influenciar diretamente no campo penal. Se em 1940, época de edição do Código Penal, nem existia a rede mundial de computadores, os comportamentos humanos eram bem diversos e a convivência era mais pessoal. [...] É evidente que os tipos penais, para se adaptarem aos novos tempos, sofrem desgaste natural, por vezes impossível de ser resolvido. [...] Não se pode editar lei penal emergencial, para atender determinada situação grave, sem um breve estudo a respeito do impacto que ela poderá causar em outros institutos.

Como se pode observar, o Direito Penal brasileiro não está preparado para estas novas tecnologias e também não está apto a responsabilizar por crime os sujeitos ativos das novas invenções que estão disponíveis para a sociedade. O Código Penal brasileiro foi elaborado em 1940, em uma época que estas tecnologias só eram realidades presentes em filmes de ficção científica, estando muito distante da nossa realidade e do que ainda está por vir.

Não se trata da simples alteração do Código Penal pelo legislador como rotineiramente acontece, mas na mudança estrutural da teoria do crime, uma nova forma de conceber o Direito Penal. Uma mudança drástica que necessita ser discutida pelos estudiosos do Direito. Como ensina Nucci (2017, p. 278), “as reformas para tornar próximos conceitos material e formal de crime são indispensáveis, mas necessitam ser responsáveis”.

Por esta razão, é imprescindível repensar o Direito Penal brasileiro, para que sejam atualizadas as suas estruturas postas, de forma a se adequarem à nova realidade e, desta forma, suas medidas

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 7, p.46281-46298 jul. 2020. ISSN 2525-8761 penais alcançarem condutas criminosas praticadas por “seres” que não são humanos. Isso tudo denota tempo e estudos complexos, não uma simples alteração da legislação penal.

5 CONCLUSÃO

O Código Penal brasileiro foi promulgado em 1940, numa época em que predominavam as relações pessoais. O Direito Penal foi idealizado para punir condutas humanas, pois se entendia que só os seres humanos eram capazes de praticar crimes. Tal entendimento decorre de que só podem praticar crimes os autores de condutas que tenham vontade e podem agir de acordo com essa vontade, podendo entender o caráter ilícito de seu comportamento.

A teoria geral do crime, então, foi concebida e estruturada com características em que a conduta depende da vontade, oriunda de ação ou omissão humana. O autor da conduta humana, que pode configurar crime, tem que ser imputável, tem que ter consciência da ilicitude e que se exige conduta adversa, para que se possa punir o sujeito ativo de um suposto crime.

Contudo, o desenvolvimento tecnológico, utilizado muitas vezes com o pretexto de melhorar a vida das pessoas, tem criado seres tecnológicos, as vezes unindo elementos inorgânicos ao corpo humano, as vezes criando seres totalmente inorgânicos, que nada tem a ver com os seres humanos. Esses seres podem ser controlados pela vontade humana ou podem ter vida própria, tendo vontade própria.

A essa nova tecnologia que se apresenta, a ciência denomina de pós-humano, pois serão criados novos seres tecnológicos que ultrapassam as características humanas, estabelecendo um novo estágio da vida humana. Seres como clones, apesar de esses serem proibidos no Brasil, ciborgues, programas de computadores e robôs são e serão cada vez mais uma constante presentes em nossas vidas.

O pós-humano, pode ser entendido como a criação de seres tecnológicos que buscam utilizar um enorme potencial das novas tecnologias para conseguir resultados que o ser humano por si só não consegue alcançar. Assim, podemos ter um ser híbrido, humano e tecnológico ou um ser totalmente tecnológico, que nada tema ver com o ser humano.

Com o avanço e a evolução da sociedade, principalmente das novas tecnologias, devemos estar preparados para lidar com esses novos seres. Devemos estar preparados para receber essas novidades, principalmente nos aspectos jurídicos que tais inovações podem repercutir. Nesse aspecto, o Direito Penal brasileiro deve se adaptar a essas novas invenções para alcançar situações que hoje caracterizam-se como fatos atípicos, levando a impunidade, o que seria prejudicial para a sociedade. Não se sabe até que ponto essas tecnologias podem influenciar no comportamento humano no caso de conjugação do humano com a tecnologia ou como serão esses novos seres que nada tem a ver

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 7, p.46281-46298 jul. 2020. ISSN 2525-8761 com o ser humano, como no caso de um robô. Mas não devemos esperar para só agir depois que tais seres, presentes no meio da sociedade, pratiquem um ilícito penal, para então tomar providências.

Não se trata de apenas alterar o Código Penal brasileiro através de uma nova lei que revoga ou altera seus dispositivos, mas de alterar toda a estrutura da legislação penal. Essa mudança estrutural da legislação penal demanda tempo e é complexa, contudo deve ser feita, visto que a criação de novos seres tecnológicos é uma certeza e não tem como retroceder.

Por tudo o que foi mencionado é imprescindível repensar o Direito Penal brasileiro, para que a legislação penal, como a ultima ratio, possa responsabilizar condutas praticadas por tais seres tecnológicos de alguma forma. É necessário que se impute, de alguma forma, responsabilidades penais quando a conduta for de um ser tecnológico.

Portanto, é fundamental se antecipar em relação às novas tecnologias, ao que está acontecendo e ao que está para acontecer, possibilitando rever nossa legislação, principalmente a legislação penal brasileira que se mostra ultrapassada nesse sentido.

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