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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ FACULDADE DE DIREITO CURSO DE BACHARELADO EM DIREITO SÉRGIO BRUNO ARAÚJO REBOUÇAS

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CURSO DE BACHARELADO EM DIREITO

SÉRGIO BRUNO ARAÚJO REBOUÇAS

A RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA:

REFLEXÕES PARA A CONSTRUÇÃO DE UM SISTEMA

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SÉRGIO BRUNO ARAÚJO REBOUÇAS

A RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA:

REFLEXÕES PARA A CONSTRUÇÃO DE UM SISTEMA

Monografia apresentada e defendida na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, junto à banca examinadora constituída pelos Professores José Cândido Lustosa Bittencourt de Albuquerque, Samuel Arruda e Marcos de Holanda, como requisito para a obtenção do título de Bacharel em Direito, desenvolvida sob a orientação do ilustre Professor José Cândido Lustosa Bittencourt de Albuquerque, versando sobre a possibilidade dogmática e a aplicação prática de um sistema de responsabilidade penal das pessoas jurídicas.

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AGRADECIMENTOS

À minha mãe, sempre atenciosa e presente em todos os momentos da minha vida acadêmica.

Ao amigo Thiago Sousa Félix, cujo incentivo nas atividades acadêmicas me foi sempre muito importante e valioso.

Ao amigo João Raphael Gomes Marinho, com quem tenho sempre a oportunidade de travar tantas e tão frutíferas discussões jurídicas.

À amiga Tércia Montenegro Lemos, a quem devo grande parte do meu gosto pela escrita e pelo magistério.

Aos meus colegas de escritório Cândido Albuquerque, Rebecca Albuquerque, Paulo de Tarso Ramos, Ronald Aguiar, Paulo Hiram Studart, Daniel Maia, Raphael Chaves, Marcelo Souto Maior, Raquel Vasconcelos, André Cançado, Larissa Negreiros e Elizabeth, pelo constante crescimento intelectual, moral e profissional que engendramos juntos.

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RESUMO

Em face da nova feição da criminalidade econômica moderna, perpetrada sob a proteção de grandes complexos financeiros, vem-se reativando, com crescente força, a questão da responsabilidade penal da pessoa jurídica. Entende-se, nessa linha, ineficaz o sistema tradicional e insuficiente a mera repressão civil ou administrativa. Os tradicionais parâmetros da teoria do delito vão sendo paulatinamente reformulados e revistos, no que concerne à pessoa jurídica como sujeito ativo de delito, em atenção à nova realidade que se nos impõe. O quadro mencionado está a reclamar a revisão do antigo brocardo latino societas delinquere non potest (isto é, “as sociedades não podem delinqüir”), como forma

de se preservar a função, própria do Direito Penal, de proteção aos bens jurídicos essenciais à sociedade, porquanto os potentes agrupamentos econômicos têm se mostrado muito nocivos ao resguardo da ordem social, notadamente no que diz respeito aos delitos econômicos e contra o meio ambiente, e a prática evidencia a insuficiência da mera repressão penal individual. O sistema edificado em França pelo Código Penal de 1994 é o primeiro exemplo de aplicação do instituto em um país da tradição romano-germânica. No caso do Brasil, apesar das aspirações enunciadas na Constituição, não se logrou ainda implantar um sistema com uma legislação ordinária sólida e precisa.

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SUMÁRIO

1. Introdução...08

2. Evolução histórica do instituto e considerações iniciais...10

3. O Direito Penal e a função de proteção aos bens jurídicos mais importantes da vida social...16

4. Enfoque criminológico: a macro-criminalidade e o desenvolvimento do Direito Penal Econômico – reflexos na responsabilidade da pessoa jurídica...18

4.1A macro-delinqüência organizada e o Direito Penal Econômico...18

4.2Os reflexos na idéia da responsabilidade penal da pessoa jurídica...20

5. As soluções propostas para o combate à criminalidade econômica de grandes proporções...22

5.1O sistema da responsabilidade civil subsidiária ou cumulativa...23

5.2O sistema das medidas de segurança...24

5.3O sistema das sanções administrativas e a responsabilidade quase-penal da pessoa jurídica...25

5.4O sistema das medidas mistas...27

5.5O sistema da responsabilidade penal da pessoa jurídica...28

6. A possibilidade dogmática da responsabilidade penal da pessoa jurídica...31

6.1 A revisão dogmática do princípio societas delinquere non potest...31

6.2 A nova compreensão dos elementos estruturais do delito...33

6.2.1 A ação...34

6.2.2 A ilicitude...36

6.2.3 A culpabilidade...37

6.3 A teoria da pena aplicada à pessoa jurídica...39

6.4 Algumas reflexões acerca dos princípios de Direito Penal: pseudo-obstáculos dogmáticos...41

7. O sistema francês: o Código Penal de 1994 e a responsabilidade penal da pessoa moral...43

7.1Breve histórico do instituto no Direito Francês...43

7.2Os pressupostos e as condições da responsabilidade...44

7.2.1 As pessoas jurídicas imputáveis...45

7.2.2 As condições de aplicação – princípios...47

7.2.2.1O princípio da especialidade...48

7.2.2.2O princípio da pertinência do ato à pessoa jurídica...50

7.3A cumulação de responsabilidades...52

7.4Os efeitos da responsabilidade – as sanções penais aplicáveis à pessoa moral..53

7.4.1 As penas criminais e correcionais...54

7.4.2 As penas contravencionais...55

7.4.3 Outras observações referentes às penas...55

7.5Breves dados estatísticos da aplicação prática em França...55

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8.1A previsão constitucional...57

8.2A desastrada lei n. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998...59

8.3A rejeição doutrinária e a controvérsia jurisprudencial...61

9. Considerações finais...65

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1 INTRODUÇÃO

A responsabilidade penal da pessoa jurídica, que tem sua afirmação na Idade Média, é fenômeno jurídico de notável complexidade, tendo sido objeto de controvérsias doutrinárias que se avolumam em nosso tempo, ante a presença marcante e indisfarçável de uma nova forma de criminalidade, qual seja, a perpetrada sob o amparo e a proteção de grandes corporações econômicas. É a macro-criminalidade econômica, a criminalidade dos negócios, que desafia e abala os tradicionais conceitos do Direito Penal.

Nesse contexto, vários Estados introduziram em suas legislações a possibilidade de responsabilização criminal da pessoa jurídica, como é o caso da Inglaterra, da França, da Holanda, dos Estados Unidos da América do Norte, da Dinamarca e da Noruega. Outros Estados reagem de forma diversa à nova feição da criminalidade econômica, com a adoção de soluções alternativas, consistentes na imposição de medidas administrativas e sanções econômicas, sem que se possa falar em uma responsabilidade delitual da pessoa jurídica. É o caso da Espanha, da Alemanha e da Itália. A tendência atual na Europa, todavia, é a admissão da responsabilidade penal da pessoa jurídica. No Brasil, não parece estar sedimentado um debate à altura da complexidade do tema, sendo a legislação imprecisa e incompleta, e nossos doutos juspenalistas, orientados marcantemente pela doutrina espanhola, rejeitam a hipótese com vigor, sem embargo de a Constituição Federal de 1988 e a Lei n. 9.605/98 (Lei dos Crimes Ambientais) admitirem o fenômeno em análise.

A presente monografia destina-se precipuamente à reflexão, suscitando-se alguns dos vários aspectos que permeiam esse complexo tema, de forma a oferecer uma contribuição ao debate e à crítica, sem qualquer pretensão de tratamento exaustivo do assunto.

Iniciar-se-á pela indicação de dados históricos, abordando-se as origens e o desenvolvimento da idéia da responsabilidade penal da pessoa jurídica, com a exposição das principais teorias a respeito da natureza da pessoa jurídica e seus reflexos na admissão do fenômeno em tela.

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reformulação do sistema, inclusive para a alternativa da responsabilização penal de entes coletivos, em nome da preservação e do resguardo da efetividade dessa essencial função.

No capítulo seguinte, desenvolver-se-á um enfoque criminológico, a respeito da realidade social que motivou o ressurgimento, nos tempos modernos, da idéia da responsabilidade penal da pessoa jurídica, para, no capítulo 05, proceder-se à exposição das soluções propostas no Direito Comparado como direções de combate à peculiar forma de criminalidade que exsurge da vida prática contemporânea.

Em seguida, serão apreciadas as possibilidades científicas do instituto em comento, analisando-se em que medida deverá ser feita a reformulação do sistema tradicional no que tange às estruturas do delito e à pena, edificando-se um outro com referência à realidade da pessoa jurídica, em atenção à sua natureza e peculiaridades.

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2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO INSTITUTO E CONSIDERAÇÕES

INICIAIS

A responsabilidade penal da pessoa jurídica não é um instituto jurídico de nosso tempo. Remonta à Idade Média, período em que se afirmou, mas tem suas raízes mais remotas no Direito Romano Imperial, quando exsurgiu a figura da pessoa jurídica, em sua estrutura característica. Em meio a infindos debates doutrinários, durante algum tempo tida como questão já superada, atualmente a idéia se põe com renovado vigor, em face do fenômeno da macro-criminalidade econômica moderna, não obstante a resistência ainda reinante em vários países, por razões dogmáticas integradas à teoria tradicional do delito e da pena, assentada marcantemente em bases individualistas.

No Direito Romano, não se chegou a conceber uma vontade coletiva da

universitas, a não ser no Direito Público. Na universitas, mera entidade corporativa –

que se estruturou como pessoa apenas no Império -, não há a identificação de uma

vontade do ente coletivo, distinta da de seus membros ou representantes, os quais agiam em nome e por conta própria1. Por essa razão, não se tem a possibilidade de responsabilização do ente coletivo, sem embargo de os romanistas sustentarem a capacidade delitiva das corporações já no Direito Romano, a partir da chamada actio de dolus malus, exercitável contra o município, quando os “coletores de impostos”

fizessem alguma cobrança indevida, enriquecendo ilicitamente a cidade2.

É de se referir, todavia, como contraponto, a oportuna lição do jurista francês Fabrice Belghoul, conforme a qual:

“les romains considéraient que le représentant agissait en vertu des pouvoirs que lui conférait la loi. Or la loi ne lui donnait pas le pouvoir de commettre

des dols. Donc lorsqu’il commetrait un dol, le représentant avait outrepassé ses pouvoirs et n’engageait pas la responsabilité de l’entité corporative”3.

A entidade corporativa em si, portanto, não podia cometer delitos. Advertimos, sem embargo, com o mesmo autor, que a questão a respeito da existência

1MIRANDA, Pontes de.

Tratado de direito privado - parte geral. Campinas: Bookseller, 2000, 2ª ed., t. I, p. 348.

2 BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 02, p. 07. 3BELGHOUL, Fabrice. L’extension de la responsabilité pénale des personnes morales. Orléans:

Mémoire du DEA de droit économique et des affaires d’Órléans, 2003. Disponível em village-justice.com.

Texto no vernáculo: “os romanos consideravam que o representante agia em virtude dos poderes que lhe conferia a lei. Ora, a lei não lhe dava o poder de cometer dolos. Portanto, quando cometia um dolo, o representante havia ultrapassado seus poderes, e não engajava a responsabilidade da entidade

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ou não da responsabilidade penal da pessoa jurídica no Direito Romano não é ponto pacífico, sendo objeto de diversas controvérsias entre os doutrinadores.

Nesse contexto, reafirmamos nossa posição de que apenas na Idade Média surge a capacidade - e a conseqüente responsabilidade - criminal da pessoa jurídica. Não há como negar, porém, que a distinção romanística entre a universitas e os singuli, ao

apontar para uma responsabilidade da corporação – sem no entanto conformá-la,

porquanto não distingue a vontade coletiva da individual -, constitua uma raiz remota da

responsabilidade da pessoa jurídica, que no período medievo seria engendrada com

plenitude4.

Foi, com efeito, no início da Idade Média que as chamadas corporações

principiaram a firmar-se com acentuada relevância econômica e política. Os glosadores medievais reputavam a figura da corporação entidade apta a delinqüir, fazendo-se

necessário, para tanto, uma ação decorrente de uma decisão coletiva dos membros. Tendo as corporações uma estrutura tal que se conforma à noção que atualmente se tem de pessoa jurídica, já se faz possível falar, nesse momento, na responsabilidade penal da pessoa jurídica, embora o conceito técnico desse instituto só se tenha desenvolvido em momento ulterior, ainda na Idade Média, com os estudos dos canonistas.

Os canonistas, diante da dificuldade prática de explicar a realidade da

organização eclesiástica, preconizaram uma nova concepção, consistente na atribuição

a Deus – e não aos membros da comunidade religiosa – da titularidade dos direitos eclesiásticos5.Tem-se, assim, o conceito de instituição eclesiástica, entendida como

sujeito de direito, inconfundível com a corporação. Identifica-se, a partir de então, um

conceito técnico- jurídico de pessoa jurídica. E esse conceito era orientado para uma

concepção da instituição eclesiástica como entidade fictícia – aproximando-se da idéia central da teoriadaficção de Savigny, que apareceria no século XIX.

Foi nesse contexto que aflorou o conhecido brocardo societas delinquere non potest (as sociedades não podem delinqüir)6, trazendo-se, concomitantemente ao

surgimento de um conceito técnico-jurídico de pessoa jurídica, a rejeição da capacidade e da responsabilidade criminal do ente coletivo. Não se tem, no entanto, uniformidade

4 BACIGALUPO, Silvina.

La responsabilidad penal de las personas jurídicas. Barcelona: Bosch, 1998, p. 44.

5 BITTENCOURT, Cezar Roberto. Op. cit., p. 08.

6 BACIGALUPO, Silvina. Op. cit, p. 49, onde se lê o seguinte: “...esta teoria dos canonistas também traz

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de posições entre os historiadores do direito. Deveras, se parece, de um lado, que o Papa Inocêncio IV tenha sido contra o sancionamento da Igreja, por se tratar, segundo dizia, de um ser ficto e sem alma, autores há que demonstram que o papa e os diferentes reis sancionavam as entidades corporativas (comunas, universitas etc.)7.

O certo é que a concepção da pessoa jurídica como ente fictício ou ficção jurídica favorece a idéia da irresponsabilidade da pessoa jurídica. Isso porque se a

pessoa jurídica é mera ficção criada pelo direito, a ação é na realidade praticada pelos membros que a compõem, sendo estes que devem, por conseguinte, responder pelos delitos a que derem causa. Os pós-glosadores, porém, aceitando o conceito da

universitas como pessoa ficta, admitiram a capacidade criminal desta. Em suma,

pode-se afirmar, com Silvina Bacigalupo, que “na Idade Média a responsabilidade das

corporações (pessoas jurídicas) surge como uma necessidade exclusivamente prática da

vida estatal e eclesiástica”8.

Na França, por exemplo, a responsabilidade penal da pessoa jurídica tornou-se princípio quando do advento da Ordonnance Criminelle de 1670, que assim dispunha: “le procès sera fait aux communautés des villes, bourgs et villages, corps et companies qui auront commis quelque rébellion, violence ou autre crime”9.As pessoas

jurídicas eram passíveis de ser condenadas à privação de um privilégio ou a uma multa em favor do rei, sem que uma pena aflitiva incidisse sobre os membros do grupo10.

Essa orientação foi aceita até ao final do século XVIII, quando emergiu o

Iluminismo e eclodiu a Revolução Francesa, estabelecendo-se o liberalismo

econômico, político e filosófico – como ideologia reinante. Reagia-se contra o autoritarismo do Antigo Regime e as antigas relações medievais, em nome da liberdade individual. As novas orientações filosóficas, políticas e econômicas conduziram à admissão unicamente da responsabilidade individual11. É de se ilustrar, nesse ponto, que a Revolução Francesa suprimiu, em 1792, todas as pessoas jurídicas. “ Il ne devait

7 BELGHOUL, Fabrice. Op. cit., p. 08. 8 BACIGALUPO, Silvina.

Op. cit.,p. 53.

9No idioma vernáculo: “o processo será feito em face das comunidades das cidades, burgos e aldeias,

corpos e companhias que tenham cometido qualquer rebelião, violência ou outro crime”.

10 BELGHOUL, Fabrice. Op. cit., p. 08. 11 BITTENCOURT, Cezar Roberto.

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exister aucun intermédiaire entre l’État et l’individu, seul l’État devait représenter le peuple”12, como afirma Belghoul13.

Trata-se, naturalmente, de uma peculiaridade do regime francês, que adquire, no entanto, elástica envergadura por ter a Revolução Francesa exercido destacada influência em vários países do mundo. Inglaterra e Estados Unidos da América do Norte, que viveram revoluções liberais semelhantes, têm, sem embargo, uma tradição diversa da francesa, uma vez que a mobilidade proporcionada por um sistema como o da common law possibilitou que o direito se amoldasse com maior

facilidade às exigências de ordem prática, e nesses países a responsabilidade penal da pessoa jurídica não causou (como não causa) tanta estranheza, diversamente do que ocorre nos direitos de tradição romano-germânica.

No século XIX, a discussão doutrinária a respeito da possibilidade de responsabilização criminal da pessoa jurídica se acirrou, em razão das diversas teorias acerca da natureza da pessoa moral que foram naquele século concebidas. Dentre as várias teorias que surgiram, é de se destacar aqui duas: a teoria da ficção, de Friedrich

von Savigny14, G. F. Puchta e B. Windscheid, e a teoria da realidade (ou teoria orgânica), de O. Von Gierke, E. Zitelmann, G. Beseler e F. Regelsberger. Até hoje

essas duas teorias têm essencial importância na admissão ou na inadmissão da capacidade e responsabilidade criminais da pessoa jurídica.

Examinem-se os reflexos das duas doutrinas na construção dogmática da responsabilidade penal dos entes coletivos.

Conforme a teoria de Savigny, somente o ser humano era verdadeiramente pessoa. O ente coletivo era uma ficção criada pela lei, com a finalidade de facilitar as relações jurídicas da entidade, possibilitando-lhe o exercício de direitos patrimoniais. A existência da pessoa jurídica, portanto, era meramente intelectual, e apenas por ficção era legalmente atribuída ao ente.

Em caminho diverso, a teoria de Gierke parte da idéia de que a pessoa jurídica é uma realidade fática (e não meramente espiritual), sendo composta, como a

12Não devia existir nenhum intermediário entre o Estado e o indivíduo; somente o Estado devia

representar o povo”.

13 BELGHOUL, Fabrice. Op. cit., p. 09.

14A Savigny se deve a divulgação da expressão “pessoa jurídica”, empregada originalmente por A. Heise,

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pessoa natural, por órgãos, que expressam a vontade do próprio ente. Nessa concepção, a pessoa jurídica tem existência e vontade distintas da de seus membros.

Admitida a teoria da ficção, resulta dificultosa a aceitação da responsabilidade penal da pessoa jurídica. Se a pessoa jurídica é mera ficção legal, quem realmente atua são seus membros e representantes, e esses é que devem ser

penalmente responsabilizados.

A teoria orgânica, diversamente, constitui sólido sustentáculo à capacidade de vontade e ação da pessoa jurídica, elementos primordiais à aceitação da responsabilidade criminal desta. A pessoa jurídica atua por seus órgãos, que são parte dela. A vontade expressa pelos órgãos é a vontade da própria pessoa jurídica. Os órgãos

presentam, ao invés de representar, na feliz construção de Pontes de Miranda15. Resulta

mais simplificada, dentro dessa linha teórica, a admissão da responsabilidade penal do ente jurídico, já que este é inconfundível com seus membros, tendo existência e vontade próprias. Embora outro ou outros atuem, se assim se faz em nome e por conta da pessoa jurídica, como expressão da vontade desta, há uma possibilidade de responsabilização penal da coletividade, independentemente da responsabilidade individual.

Nos tempos modernos, a admissão e a aplicação prática da responsabilidade penal da pessoa jurídica apareceram pela primeira vez na Inglaterra16. Sabe-se que o direito anglo-saxão, fundado marcantemente no costume e na jurisprudência, possui uma maior capacidade de adaptação às exigências da vida moderna e às mudanças operadas pelas flutuações do tempo. Foi o Direito Inglês que primeiro opôs exceções ao princípio da irresponsabilidade penal da pessoa jurídica (societas delinquere non potest). A jurisprudência reconheceu então a responsabilidade por omissão

(Birmingham, em 1842) e depois por ação (The Great North of England Ry, em 1846).

Num estágio mais avançado, a responsabilidade penal da pessoa jurídica foi reconhecida no Interpretation Act, de 1889. Por fim, como refere Belghoul, “c’est en 1943, grâce à la téorie de l’identification, que la jurisprudence a étendu la responsabilité pénale des personnes morales à la Common law”17.

Durante muito tempo reputou-se superada a doutrina que admite a responsabilidade penal da pessoa jurídica. Pode-se até afirmar que o posicionamento

15 MIRANDA, Pontes de. Op cit. 16 BELGHOUL. Fabrice. Op. cit., p. 10.

17Ibidem. No vernáculo: “Foi em 1943, graças à teoria da identificação, que a jurisprudência estendeu a

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dominante em nossos dias ainda é o que se inclina pela incapacidade e irresponsabilidade penal da pessoa jurídica, pelo menos se tivermos em conta apenas os ainda limitados avanços científicos que nesse campo se processaram, a par das exigências de ordem prática. E as razões não estão primordialmente na aceitação ou no prestígio da teoria da ficção, atualmente já superada. A fundamentação é conforme aos

parâmetros da teoria tradicional do delito e da pena, no modo em que se concebe a estrutura analítica do crime, bem assim a compreensão que se tem da natureza da sanção penal.

Com efeito, as concepções tradicionais do crime e da pena são referidas à pessoa humana, excluindo-se a possibilidade de imputação penal dos agrupamentos. A

ação e a culpabilidade somente podem dizer respeito ao indivíduo, que tem a

capacidade psíquica de exteriorizar sua vontade, assim como a de compreender o sentido da reprovação social decorrente da prática do injusto. Da mesma forma, a sanção penal, com sua natureza retributiva e preventiva, não teria aptidão para incidir sobre uma pessoa jurídica, ente a que faltam os atributos da compreensão da punição e da aptidão re-socializante daí decorrente.

Modernamente, todavia, vem se operando uma revisão dogmática no sentido de reformulação dos conceitos tradicionais para conciliar a responsabilidade penal com a natureza específica dos entes coletivos. Tal revisão, que procura resgatar um instituto aplicado, como se viu, em outros tempos, surge num novo contexto, a saber, o da criminalidade econômica de grandes proporções, que tem levado diversos Estados, mesmo os com tradição diversa da anglo-saxã, a procurarem soluções diferenciadas de combate, dada a inequívoca inaptidão do sistema anterior para lidar com formas potentes de atentado aos bens jurídicos, que avultam de maneira crescente, com amplitude transnacional.

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3 O DIREITO PENAL E A PROTEÇÃO AOS BENS JURÍDICOS

MAIS IMPORTANTES DA VIDA SOCIAL

O Direito Penal possui uma função essencialmente protetora dos bens jurídicos mais importantes da vida social. A lesão ou ameaça a esses bens protegidos é que justifica a responsabilidade penal do agente que a promove, com a correlata imposição da mais severa das sanções jurídicas.

Entende-se por bem jurídico o valor tutelado pelo direito. O crime é, num

sentido substancial, exatamente a lesão do bem jurídico. Conforme Welzel, “o bem

jurídico é um bem vital ou individual que, devido ao seu significado social, é

juridicamente protegido”18. Colacione-se, outrossim, a precisa definição de Francisco de

Assis Toledo: “bens jurídicos são valores ético-sociais que o direito seleciona, com o objetivo de assegurar a paz social, e coloca sob sua proteção para que não sejam

expostos a perigo de ataque ou a lesões efetivas”19.

O Direito Penal, assim, através da definição típica dos fatos delituosos, seleciona as situações de perigo e as formas de agressão dos bens jurídicos, com o escopo de proteção desses bens, de modo geral (prevenção geral) ou específico

(prevenção especial).

Nesse sentido, a noção de bem jurídico está no centro do problema penal,

sendo o crime a lesão ou a ameaça de lesão ao valor ético-social penalmente tutelado, mais que a mera violação de um dever jurídico. A esse respeito, é salutar a lição de Giuseppe Bettiol:

“...na discussão à volta da noção do crime, isto é, para saber se ela deve ser

constituída pela lesão de um bem jurídico ou pela violação de um dever, deve dar-se prevalência à lesão do bem jurídico, porque a noção de dever não pode ter uma autonomia funcional própria. O dever só se especifica em contacto com os interesses protegidos e são estes que lhe transmitem a relevância (...) A subjetivação do crime, se tende a excluir a relevância do bem jurídico, não pode constituir um progresso, e deve, por conseguinte, ser

decididamente repudiada...”20

O bem jurídico penalmente tutelado é apenas aquele de maior relevância social, a justificar a proteção diferenciada. Observe-se que o Direito Penal somente deve

18 WELZEL, Hans.

Das deutsche stafrecht. Berlin: Walter de Gruyter, 1969, p. 04, apud ASSIS TOLEDO, Francisco de. Princípios básicos de direito penal. São Paulo: Saraiva, 1991, 4ª ed, p. 16.

19Ibidem.

20 BETTIOL, Giuseppe. Direito penal parte geral. Tradução: Fernando de Miranda. Coimbra: Coimbra

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intervir quando os outros ramos do direito não forem suficientes para garantir a proteção de determinado bem, sendo este o significado do princípio da intervenção mínima e do caráter fragmentário e limitado do Direito Penal. Assim sendo, o bem jurídico merecedor da tutela penal é aquele que está a exigir proteção especial, diferenciada, em razão de as normas extrapenais se revelarem ineficazes na função de garantia.

Essa questão é aqui levantada tendo em vista a crescente força das grandes corporações na ofensa a elevados bens jurídicos da vida social, o que torna, indiscutivelmente, a vontade coletiva objeto de relevância penal. A admissão, a partir daí, a responsabilidade penal da pessoa jurídica não é imediata, mas é um importante ponto de partida. O Direito Penal não pode ficar alheio à ofensa aos mais importantes bens jurídicos, uma vez que as normas extrapenais têm-se revelado ineficazes na proteção desses bens. O bem jurídico econômico surge, nesse contexto, como um importante fator a exigir a tomada de diversas medidas por parte da política criminal, dentre as quais se tem preconizado a responsabilidade penal da pessoa jurídica.

A respeito dos novos contornos da chamada macro-criminalidade econômica contemporânea, que tem as pessoas jurídicas como seus principais

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4 ENFOQUE CRIMINOLÓGICO: A MACRO-CRIMINALIDADE E

O DESENVOLVIMENTO DO DIREITO PENAL ECONÔMICO -

REFLEXOS NA RESPONSABILIDADE DA PESSOA JURÍDICA

4.1 A macro-delinqüência organizada e o Direito Penal Econômico

A importância e a presença de grandes corporações na economia global é, na vida moderna, fator rico em conseqüências. No âmbito do Direito Penal, o fenômeno representa um grande e diferenciado desafio à política criminal, com a peculiaridade de que as dificuldades mais agudas não se acham apenas no plano prático, mas também em todo um monumento teórico construído e solidificado ao longo de várias gerações de estudiosos do Direito Penal. Mas a ciência não pode jamais ficar estanque, eis que a realidade nos impõe uma resposta à altura do problema, mesmo que essa resposta implique a construção de um novo sistema.

Já nos anos 1960, o genial Roberto Lyra, antecipando-se a todos, definia

macro-criminalidade econômica como um conjunto de formas de delinqüência muito

aperfeiçoadas, de enorme danosidade social, que se mostravam cada vez mais acessíveis à evidência científica, embora apenas raramente aparecessem tipificadas na lei penal, e no hipotético caso em que aparecessem, as autoridades não queriam ou não podiam alcançá-las21.

A apreciação do ilustre penalista brasileiro preserva sua notável atualidade e adquire especiais contornos em nossos dias, em que a presença da pessoa jurídica, com seu imenso potencial econômico e sua peculiar carga criminógena, ainda escapa ao âmbito da resposta penal a formas atentatórias de bens jurídicos essenciais.

Conforme o norte-americano Severin, citado por Raúl Cervini, a macro ou extracriminalidadeeconômica contemporânea configura a expressão emergente de uma

nova forma de desvio estrutural, vinculada ao exercício abusivo dos mecanismos ou recursos superiores da economia, fundamentalmente os conhecidos como mecanismos econômicos abertos, a saber: os mecanismos do equilíbrio da economia nacional com o mundo exterior (mecanismo dos câmbios); os de transformação do capital em renda, e

21 LYRA, Roberto.

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de renda em capital (mecanismos financeiros); e finalmente os de equilíbrio entre produção e consumo (manejo das commodities, abusos ao consumidor etc.)22.

É notório que a macro-delinqüência econômica de grandes proporções expressa-se com quase exclusividade em corporações, mormente as de abrangência multinacional. Daí o Direito Penal ter em vista a pessoa jurídica como objeto da repressão criminal, seja com a própria responsabilização penal do ente, seja com a proposição de medidas alternativas, de caráter não penal.

Como ensina Raúl Cervini, “los macrodelitos económicos de mayor gravedad suelen presentarse como conductas criminales transnacionales”23. Estamos,

portanto, diante um problema global, em que a criminalidade econômica organizada deixa à plena vista a inoperância das normas tradicionais. “Esta transnacionalización es,

sin duda, el aspecto más importante, la nota más saliente de la criminalidad organizada contemporánea, ante la cual los Estados aislados pueden verse reducidos a una virtual

impotencia”24.

Assim sendo, a integração entre os vários Estados é outra medida que parece estar no âmbito das apreciações, em conjunto com a consideração das peculiaridades desse novo delinqüente, de acentuado potencial criminógeno, que é a pessoa jurídica. O certo é que ainda há uma impunidade reinante nesse campo, à qual não pode ficar alheia a política criminal contemporânea.

É relevante salientar que, no âmbito da criminalidade econômica, a não existência dos criminosos tradicionais, no perfil assinalado por Lombroso em sua clássica obra (O homem delinqüente), constitui freqüentemente um fator de

arrefecimento dos ânimos sociais em face dos autores de delitos econômicos. Isso prejudica inevitavelmente a repressão penal da criminalidade econômica. Os criminosos não são mais apenas aqueles seres estigmatizados como tal (autores geralmente de homicídios, latrocínios, estelionatos etc.), mas os seres de colarinho branco, especialmente os dirigentes e representantes de grandes aglomerações econômicas, e as próprias empresas de grande envergadura, delinqüentes estes que, apesar da nocividade

22 SEVERIN, Louis W. Recent Developments in Relation to Economic Crimes. Austin: Ladelt Ed., 1991,

p. 42 e ss., apud CERVINI, Raúl. Macrocriminalidad económica – Apuntes para una aproximación metodológica. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 11, p. 50-79, jul./set., 1995.

23 CERVINI, Raúl. Macrocriminalidad económica apuntes para una aproximación metodológica.

Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 11, p. 50-79, jul./set., 1995.

24

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que representam, estão normalmente fora do sentimento de repulsa social reinante contra os delinqüentes tradicionais.

Outros fatores contribuem para a ineficácia do sistema atual relativamente à criminalidade econômica. Basta notar que nosso sistema tradicional foi concebido tendo em vista os interesses econômicos de pequenas classes dominantes, e não os interesses superiores da vida social. Assim sendo, a repressão penal tradicional recai inevitavelmente sobre as classes subalternas, com a imunidade de grandes protagonistas de criminalidade nos meios empresariais. Elementos como esse operam o que Luiz

Flávio Gomes chama de “ineficácia e deslegitimação do atual sistema frente à macro

-delinqüência econômica”25.

Tem-se desenvolvido, em atenção aos diversos problemas que essa feição da criminalidade suscita, um segmento especial do Direito Penal, a saber, o Direito Penal Econômico ou dos Negócios, o Droit Pénal des Affaires francês, o Diritto Penale della Impresa italiano, ou o Wirtschaftsstrafrecht alemão.

Esse ramo tem como objeto um bem jurídico autônomo, qual seja, o bem

jurídico econômico. Busca-se um âmbito que abranja as infrações delitivas relacionadas ao mundo da economia. Embora ainda com alguma imprecisão conceitual, o desenvolvimento do Direito Penal Econômico trabalha com uma realidade criminológica diferenciada, e tem, como um de seus principais temas e metas de investigação, o combate, também diferenciado, às novas formas de criminalidade econômica, tendo em conta inclusive a natureza peculiar dos novos protagonistas. A pesquisa relacionada à capacidade e à responsabilidade penal da pessoa jurídica insere-se, portanto, nesse campo de investigação científica26.

4.2 Os reflexos na idéia da responsabilidade penal da pessoa jurídica

Nesse contexto, a responsabilidade penal da pessoa jurídica parece, definitivamente, um aspecto a ser considerado nesse novo quadro de criminalidade.

25 FLÁVIO GOMES, Luiz. Sobre a impunidade da macro-delinqüência econômica desde a perspectiva

criminológica da teoria da aprendizagem. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 11, p. 166-174, jul./set., 1995.

26A respeito do tema, vide os artigos MUÑOZ CONDE, Francisco.

(21)

Certamente não é o único, mas as condições de ordem prática o apontam como o fator mais relevante na discussão acerca dos grandes motores da economia e da criminalidade contemporânea.

Com efeito, as pessoas jurídicas de grande potencial financeiro surgem como violentos agentes de criminalidade, funcionam freqüentemente como escudos à prática de delitos (dificultando a identificação dos autores físicos) e promovem com espantosa facilidade atentados aos superiores interesses sociais (relacionados, por exemplo, ao meio ambiente, ao consumo e ao sistema financeiro nacional). A ausência de um sistema diferenciado de responsabilidade dos entes coletivos afigura-se-nos, por conseguinte, algo impensável.

No que se refere especificamente ao princípio tradicional da irresponsabilidade da pessoa jurídica, assim se pronuncia o ilustre penalista brasileiro Luiz Flávio Gomes:

“A complexidade da vida moderna, a internacionalização da economia e o

poder cada vez maior das empresas aconselham, sem dúvida, renunciar ao clássico princípio societas delinquere non potest, é dizer, as pessoas jurídicas devem ser sancionadas penalmente sempre que o fato delitivo for executado dentro da esfera de operações ou negócios da sociedade, se tem alguma relação com as atividades, se utilizaram meios ou recursos da empresa e, sobretudo, se o fato proporcionou algum proveito ou benefício econômico ou

de outro tipo à empresa ou se ela foi utilizada para encobrir o fato punível”27.

É com essa ordem de idéias que se trabalha nesta oportunidade, em busca da afirmação da possibilidade de edificação de um novo sistema, atento às exigências da realidade contemporânea, assim como aos limites do Direito Penal e da natureza da pessoa jurídica.

Não é demais transcrever aqui a oportuna e lúcida lição do penalista italiano Franco Bricola, a respeito do princípio societas delinquere non potest:

“...referido princípio não tem um valor ontológico, senão que é simplesmente

expressão da força das leis do poder econômico... Nesse sentido, a admissão da responsabilidade criminal das pessoas jurídicas surge como uma desejável e elementar medida político-econômico-social”28.

A responsabilidade penal da pessoa jurídica, contudo, não foi a única solução proposta à inoperância do sistema tradicional, tendo sido pensadas medidas alternativas de combate, principalmente em atenção a empecilhos de ordem dogmática. Tratemos das diversas soluções adotadas no Direito Comparado.

27 FLÁVIO GOMES, Luiz. Op. cit. 28

(22)

5 AS SOLUÇÕES PROPOSTAS PARA O COMBATE À

CRIMINALIDADE ECONÔMICA DE GRANDES PROPORÇÕES

O surgimento dessa feição da criminalidade econômica tem imposto novos desafios à política criminal. Em um mundo globalizado de bases assentadas no mercado de consumo em franca expansão, as pessoas jurídicas tornam-se cada vez mais as protagonistas e os motores da economia, com importância e presença significativamente marcantes. Por outro lado, a envergadura econômica dos grandes agrupamentos vem se refletindo numa potencialidade lesiva sem precedentes.

Assim sendo, o sistema de responsabilização penal apenas das pessoas que atuam em nome e por conta da pessoa coletiva, reservando-se a esta a mera responsabilidade civil, afigura-se cada vez mais inapto à realização das finalidades de resguardo de essenciais bens jurídicos e da ordem social. Por essa razão, avultam em diversos Estados propostas e alternativas, mais ou menos eficazes, mais ou menos amadurecidas, como medidas de combate às novas formas de criminalidade.

Observe-se, a princípio, que a pessoa jurídica sempre significou socialmente uma entidade propícia à prática delituosa por parte daqueles que dela fazem parte. Como ensina Klaus Tiedemann, “la agrupación crea un ambiente, un clima que facilita

y incita a los autores físicos (o materiales) a cometer delitos en beneficio de la

agrupación”29. A afirmação não deve ser vista com espanto, tampouco como um

exagero. É o ônus que exsurge dos benefícios que a atuação social das agrupações proporciona. Não se há de negar que um homem encontre numa entidade coletiva, mormente quando esta tenha robusto potencial econômico, um ambiente de proteção ou de ocultação de práticas ilícitas. A pessoa jurídica funciona, assim, como um escudo, e a identificação do autor ou dos autores físicos da conduta, tendo-se ainda em conta que o crime muitas vezes resulta de uma tomada de decisão grupal, resulta dificultosa.

É sugestivo que a idéia da capacidade e da responsabilidade criminal das pessoas jurídicas venha a ganhar destacado relevo em nossos dias. Os esforços empreendidos para a revisão da dogmática tradicional e os experimentos práticos de novos sistemas têm suas raízes num momento em que essa carga criminógena da pessoa jurídica, como ambiente propício à prática de delitos, atingiu proporções assustadoras

29TIEDEMANN, Klaus. Responsabilidad penal de personas jurídicas y empresas en el derecho

(23)

em face do poderio econômico-financeiro que as agrupações vieram a atingir, fugindo então ao controle do Estado, e isso não apenas no âmbito penal. A política criminal tem esse desafio muito presente, e as soluções tradicionais mostram-se crescentemente ineficazes.

A admissão da responsabilidade penal da pessoa jurídica esbarra, contudo, em fortes obstáculos dogmáticos em alguns países, mormente os apegados à tradição romano-germânica. Com efeito, fora de uma tradição fundada essencialmente no costume e na jurisprudência como a anglo-saxã, em que a sensibilidade às exigências de ordem prática é realmente mais apurada, sendo o apego dogmático menos rígido, a resposta ao moderno problema da macro-criminalidade ainda se faz com alguma hostilidade à idéia da capacidade penal de entes coletivos, sendo que a proposição de outros sistemas que não tumultuem a dogmática constitui, em muitos casos, solução preferível.

Expendidas essas considerações, teçamos alguns comentários acerca dos modelos propostos para o combate ao grande problema da política criminal de nosso tempo. São eles: o sistema da responsabilidade civil, subsidiária ou solidária, da pessoa jurídica pelos delitos cometidos por seus membros; o sistema das medidas de segurança; o sistema das sanções administrativas; o sistema das medidas mistas, de caráter penal, administrativo ou civil; e, finalmente, o sistema da responsabilidade penal da pessoa jurídica.

5.1 O sistema da responsabilidade civil subsidiária ou cumulativa

Trata-se do sistema tradicional, que tem se mostrado crescentemente ineficaz no combate às novas formas de criminalidade. Estados como a Suíça, a Itália e a Bélgica, que rejeitam de lege lata a responsabilidade penal da pessoa jurídica, assentam

(24)

O sistema em comento baseia-se precipuamente na imposição de multas em

face dos dirigentes da pessoa jurídica. Na lição de Klaus Tiedemann, “el fundamento

teórico de esta responsabilidad civil se encuentra formado por la idea de que la multa constituye, a partir del momento en que ella adquiere fuerza de cosa juzgada, un crédito

de Derecho Civil” 30. Tal fundamento é rechaçado em vários países tendo em vista o

caráter pessoal e retributivo da multa.

Afora essa questão teórica – que poderia ser superada – o que se tem como preponderante é que o sistema da responsabilidade civil afigura-se atualmente um modelo realmente débil no combate à criminalidade. A mera reparação do dano não é deveras uma resposta eficaz no tolhimento da prática delituosa, tendo sido firmada, cada vez mais, a convicção da necessidade da imposição de medidas efetivamente punitivas, aptas a assegurar a realização da finalidade de prevenção social, reconheça-se ou não a essas medidas a natureza de sanção penal.

5.2 O sistema das medidas de segurança

As medidas de segurança, na espécie, são aplicadas, a partir da prática de um delito, no âmbito das atividades da pessoa jurídica, que represente a periculosidade social desta. A imposição de medidas, como o confisco e o fechamento do estabelecimento, a partir da constatação da periculosidade da pessoa jurídica, constitui o critério base do sistema em questão, e coincide com a idéia geral que se tem a respeito das medidas de segurança (como prevenção social de um agente socialmente perigoso).

Como refere Klaus Tiedemann31, as medidas de confiscação e de fechamento do estabelecimento foram já recomendadas no Congresso da Associação Internacional de Direito Penal celebrado na cidade de Bucarest, em 1929, tendo as discussões da política criminal na Alemanha do pós-guerra seguido na mesma direção. Quanto à confiscação, deve ser entendida como a perda não só dos instrumentos utilizados para o crime e do proveito econômico obtido, mas também de certa percentagem da cifra de negócios ou de parte do patrimônio da empresa, como forma de assegurar o efetivo efeito preventivo da medida, uma vez que, na aguda observação do mesmo penalista, “si

el autor sólo arriesga perder su ganancia ilícita o el producto del delito cometido, no corre prácticamente ningún riesgo y queda entonces impune”. Em alguns países,

30 TIEDEMANN, Klaus. Op. cit., p. 25. 31

(25)

se a admitir o chamado confisco geral, na hipótese do crime organizado, como é o caso

das federal sentencing guidelines admitidas nos Estados Unidos da América do Norte

desde 1991.

O sistema de medidas de segurança, não obstante mais eficaz que o da responsabilidade civil, não parece conter, de uma forma ampla, o efeito intimidante apto de efetivar a função preventiva que constitui o motor do combate à grande criminalidade. Isso porque tais medidas são essencialmente limitadas, não se prestando com amplitude a combater as nuanças da vida negocial. Observe-se que muitas vezes há confusão entre medidas de segurança e penas, mas o efeito prático da aplicação de umas como das outras em certas situações não varia. Algumas das medidas de segurança são

consideradas verdadeiras penas, e não vai ser por serem chamadas de “medidas de segurança” que perderão a força repressiva e preventiva inerente à pena criminal.

O âmbito de aplicação da pena criminal é realmente mais amplo do que o da medida de segurança, sendo fator relevante a ser considerado o de se a envergadura da criminalidade de nosso tempo está a exigir uma resposta mais generalizada e de maior efeito repressivo e preventivo, que autorize a preferência por um sistema de efetiva responsabilidade penal dos entes coletivos, e não por um sistema baseado no Direito Administrativo, com a imposição de medidas mais limitadas, que quando adquirem maior força já passam para o âmbito da pena criminal. Mais uma vez, é de se pôr em evidência a necessidade de efetiva punição.

5.3 O sistema das sanções administrativas e a responsabilidade quase-penal da pessoa jurídica

Trata-se um modelo baseado na imposição de sanções administrativas, pronunciadas e executadas pelas autoridades administrativas. O sistema nasceu e se desenvolveu sob a influência da jurisprudência constitucional alemã e francesa, surgindo também no Canadá e na Espanha, e permite a punição das pessoas jurídicas com sanções de nítido caráter intimidatório, não possuindo, porém, a natureza específica da pena criminal. Fala-se em sanções administrativas penais, ou de sanções penais lato sensu.

(26)

estranha a esses atributos, referidos exclusivamente à pessoa humana, tem-se por pertinente a mera imposição de sanções administrativas aos agrupamentos, reservando-se a pena criminal, com suas feições específicas, apenas ao homem.

É dizer, as sanções administrativas, conquanto possuam caráter repressivo e preventivo, não se confundem com a sanção penal por não conterem uma reprovação ética ou moral, que somente se faria possível em se tratando da pessoa humana. O Tribunal de Justiça da Comunidade Européia (art. 15.4 do regulamento 17/62 sobre a competência), as sanções introduzidas na Itália em alguns setores e as já mencionadas sanções administrativas constantes das leis sociais belgas refletem exatamente essa idéia, considerando o efeito preventivo das medidas em comento sem, contudo, reconhecer-lhes caráter penal.

No sistema francês, sem embargo do modelo das Autoritées Administratives Independantes (A.A.I.), que apontam para a aplicação do sistema que ora se estuda, não

se tem duvidado da necessidade da responsabilização penal da pessoa jurídica nos casos mais graves.

Parece-nos essencial salientar ainda – como uma observação que tem especiais contornos no meio brasileiro – que a Justiça Criminal e todo o sistema implantado para o seu funcionamento são mais eficazes, no que diz respeito aos meios de investigação e de persecução, assim como de execução da pena, dentre outros aspectos, do que as autoridades administrativas. Assim sendo, quer se considere que a sanção tem caráter administrativo ou penal, a competência do Poder Judiciário para tratar de um problema essencialmente penal parece mais própria e eficaz no combate à criminalidade.

A esse respeito, é sugestivo apontar, uma vez mais, o exemplo francês, que, possuindo um operante sistema de sanções administrativas, não descurou das exigências práticas de um sistema mais ousado, que suplantou os desconfortos dogmáticos em nome da experimentação de uma alternativa de combate à força da macro-criminalidade econômica.

Transcreva-se, por derradeiro, a oportuna e aguda lição de Rosário Susana Lopez Wong, em excelente artigo sobre o assunto:

“En efecto, si tenemos en cuenta que el procedimiento administrativo debe

(27)

no es posible adoptar medidas cautelares contra la persona jurídica en tanto y en cuanto no termine el proceso en sede penal, ocasionando con ello que la entidad corporativa prosiga en sus funciones con todo lo que esta situación conlleva y en tal supuesto, la sanción administrativa que posteriormente recayera en la persona jurídica, - obviamente por lo tardío e inoportuno de su imposición – carecería de valor y eficacia.

Al margen no parece razonable que el procedimiento administrativo propiamente, pueda hacer frente con idoneidad y debido a sus características y deficiencias, a la criminalidad organizada que despliegan algunas empresas

y que en diversos casos, llegan al ámbito de lo transnacional”32

5.4 O sistema das medidas mistas

O sistema de medidas mistas envolve a aplicação de sanções penais, administrativas e civis, como a dissolução da empresa e a colocação sob curatela.

A corporation probation (posta à prova) norte-americana, que permite a

intervenção no funcionamento da empresa, com a imposição de diversas condições, é um exemplo de aplicação prática do sistema misto, eis que representa a sanção mais típica do modelo.

A dissolução da empresa, que seria a ultima ratio por representar o fim da

pessoa jurídica, tem, no sistema em estudo, rara aplicação. A colocação sob curatela é, então, medida mais corrente, tendo sido aplicada em França antes da reforma de 1994 e proposta por recentes movimentos de política criminal em Alemanha.

É de se referir, nessa linha, a public interest director (imposição de um

administrador à pessoa jurídica), conhecida por penalistas austríacos e alemães modernos, a já mencionada corporation probation aplicada nos Estados Unidos e a comunity service australiana. Todas essas medidas, ao menos no caso alemão, são a

projeção do anseio de se evitar os transtornos dogmáticos advindos da admissão da responsabilidade penal da pessoa jurídica e de, por outro lado, destacar-se a imposição de medidas estruturais e curativas, ao invés da mera punição.

O modelo, sem embargo das vantagens que apresenta, esbarra em robustos empecilhos de ordem prática, consistentes na dificuldade de se encontrar pessoas aptas

32 LOPEZ WONG, Rosario Susana. Acerca de la responsabilidad de las personas jurídicas.

(28)

para administrar e vigiar grandes empresas. É sugestivo, a esse respeito, apontar o exemplo do Direito Francês, em que a medida, típica do sistema em tela, da colocação sob séquestre, aplicada anteriormente à reforma de 1994, não teve importância prática,

exatamente em razão da falta de pessoas qualificadas ao exercício da administração e da vigilância das empresas. Na lição de Tiedemann,

“Las sanciones ‘mixtas’ no ofrecen pues más que una solución a lo sumo particular al problema. Así que, el ‘community service’ se limita en principio

a los delitos contra el medio ambiente donde por otra parte puede ser también difícil para una persona ajena determinar lo que una empresa puede hacer

para restablecer el estado del medio ambiente dañado” 33.

5.5 O sistema da responsabilidade penal da pessoa jurídica

A plena responsabilização criminal da pessoa jurídica é conhecida e aplicada atualmente nos Direitos inglês, escocês, irlandês, holandês, norueguês, norte-americano, canadense, australiano, e ainda no francês e no japonês.

No caso da França, o modelo é emblemático por se tratar de um direito da tradição romanística, mais hostil, conforme visto, à idéia da responsabilidade penal das agrupações. O sistema do Código Penal Francês de 1º de março de 1994 (a respeito do qual discorreremos mais adiante) introduz a responsabilidade penal da pessoa jurídica, limitada aos casos previstos em lei ou em regulamento. O Código Penal Português de 1982 utiliza-se dessa mesma técnica legislativa.

Outros Estados europeus admitem a responsabilidade penal da pessoa jurídica apenas a título de exceção, como é o caso do Luxemburgo (em matéria fiscal) e da Dinamarca, embora nesse último país a abundância de leis especiais reguladoras de certas matérias (meio ambiente e produção agrícola, por exemplo) torne o fenômeno quase a regra.

A Holanda admite a responsabilidade penal da pessoa jurídica desde 1976 (art. 51 do Código Penal, inserido por uma lei de 23 de julho de 1976). A Dinamarca a admite desde 1991, assim como a Noruega. A Finlândia, desde 1995; a Estônia, desde 1998; e a Bélgica, desde 199934.

33 TIEDEMANN, Klaus. Op. cit., p. 24. 34 BELGHOUL, Fabrice.

(29)

Pode-se dizer que a aplicação do instituto em tela é a tendência na Comunidade Européia. Com efeito, o Comitê dos Ministros do Conselho da Europa, através da recomendação n° R (88) – 18, exprime-se nos seguintes termos: “concernant

la responsabilité des entreprises personnes morales pour les infractions commises dans

l’excercice de leurs activités”35. A recomendação, mesmo sem ter efeito vinculante,

representa um incentivo à admissão da responsabilidade por parte do legislador de cada Estado europeu.

Existem outros textos no mesmo sentido. Refira-se, a propósito, o segundo protocolo da Convenção relativa à proteção dos interesses financeiros das Comunidades Européias, em cujo art. 3º se vislumbra a responsabilidade penal da pessoa jurídica, embora o art. 4-1 do mesmo diploma aponte para uma responsabilidade não penal, por exemplo, de ordem administrativa36.

Identificam-se, na análise do Direito Comparado europeu, duas categorias de sistemas que admitem a responsabilidade penal da pessoa jurídica: o dos Estados que admitem uma responsabilidade direta da pessoa jurídica, como é o caso da Bélgica e

dos Países-Baixos; e o dos Estados que consagram uma responsabilidade indireta da pessoa jurídica, como ocorre na Inglaterra e na França.

O sistema da responsabilidade direta funda-se na chamada teoria da responsabilidade funcional, desenvolvida nos Países-Baixos. Segundo essa concepção,

a pessoa moral é responsabilizada em razão das funções que ela exerce. Na espécie, a responsabilidade é direta, porquanto não exige a comissão do crime por um órgão ou um representante da pessoa jurídica para que esta seja penalmente responsabilizada.

Diversamente, no sistema da responsabilidade indireta, a responsabilização da pessoa moral opera-se quando um órgão ou um representante do ente comete a infração em nome e por conta deste. A responsabilidade é, então, reflexa, operando-se pelo intermédio de um órgão ou representante da pessoa jurídica.

No Direito Inglês, representativo dessa segunda tendência, a responsabilidade da pessoa jurídica é automática pelas strict liability (por fato pessoal) e

pelas vicarious liability (por fato de outrem), as quais pertencem à categoria da

responsabilidade penal objetiva. No que diz respeito à responsabilidade subjetiva, a

35“A respeito da responsabilidade das empresas pessoas morais pelas infrações cometidas no exercício de

suas atividades”.

36 BELGHOUL, Fabrice.

(30)

jurisprudência desenvolveu a teoria da identificação, segundo a qual o comportamento

dos dirigentes da pessoa jurídica pode ser assimilado ao comportamento da própria entidade. No mesmo sentido, o Direito Finlandês37. Conforme a imagem de Lord Justice Denning, o agente superior (órgão e outros) é considerado o “cérebro” e o “alter ego” do

ente, de forma que a sua atuação identifica-se com a da própria pessoa jurídica38. É esse o cerne da teoria da identificação.

A situação é semelhante no Direito Australiano, no qual, entretanto, há uma primazia da chamada primary responsability da agrupação. No Canadá, a identification doctrine aplica-se apenas aos true crimes (verdadeiros crimes), sendo mais vasta a

responsabilidade da pessoa jurídica no que diz respeito às strict liability (regulatory) offenses.

Não se pode deixar de citar o sistema do Japão, em que a responsabilidade da pessoa jurídica já alcança larga aplicação, tendo sofrido marcante influência do Direito dos Estados Unidos da América do Norte. No modelo japonês, assim como no norte-americano, a justificação da responsabilidade penal da pessoa jurídica se dá sem a admissão da responsabilidade sem culpa, diversamente do que ocorre, como visto, no Direito Inglês.

37Ibidem.

38 TIEDEMANN, Klaus.

(31)

6 A POSSIBILIDADE DOGMÁTICA DA RESPONSABILIDADE

PENAL DA PESSOA JURÍDICA

6.1 A revisão dogmática do princípio societas delinquere non potest

Não obstante as aludidas condições práticas peculiares aos tempos modernos, muitos Estados ainda preservam o princípio da irresponsabilidade penal da pessoa jurídica. As razões, conforme já tivemos ocasião de afirmar, prendem-se sobretudo a contingências de ordem dogmática.

Com efeito, a compreensão que se tem da natureza e das funções do Direito Penal importa significativamente na admissão ou na rejeição da idéia da capacidade e da responsabilidade criminal dos entes coletivos. Nesse sentido, as iniciativas de edificação de sistemas diferenciados para a responsabilização penal da pessoa jurídica esbarram em concepções tradicionais, referidas à pessoa física, a respeito do delito e da pena. O Direito Penal, incidindo essencialmente sobre o homem, atingindo-lhe o âmbito moral, através da pena, não poderia estender seus limites a entidades despidas de qualquer atributo moral. Do mesmo modo, concebida a ação como um processo psíquico e voluntário, avultariam dificuldades ontológicas de se reconhecer a capacidade de ação a um ente coletivo.

A teoria tradicional do delito e da pena afasta-se deveras da pessoa jurídica, porquanto foi construída tendo como referência a pessoa natural. É preciso notar-se que a pessoa natural e a pessoa jurídica são sujeitos de direito essencialmente distintos, guardando cada qual suas peculiaridades, sendo que um sistema construído para um será de difícil aplicação para o outro. Se racionarmos com uma compreensão teórica edificada com referência à pessoa natural, será difícil, ao menos no âmbito penal, fundar-se uma responsabilidade penal da pessoa jurídica sob os mesmos pressupostos e condições de aplicação. É interessante observar-se que até mesmo no Direito Civil as disciplinas são distintas, para uma e para outra categoria. No caso do Direito Penal, e consoante as particularidades desse ramo do conhecimento jurídico, a questão adquire dimensões bem mais complicadas.

(32)

âmbito social de forma a atingir de forma tão lesiva os bens jurídicos. É preciso que não se esqueça a finalidade primordial do Direito Penal, que é exatamente a proteção aos bens jurídicos mais importantes da vida social. No momento em que a pessoa jurídica adquiriu proporções tais que sua potencialidade lesiva se tornou destacadamente dilatada, o Direito Penal não pode ficar indiferente a esse quadro.

Assentamos, assim, nossa firme posição no sentido da possibilidade da responsabilização penal da pessoa jurídica, desde que, é claro, se construa um sistema (um sistema legal, no caso dos países da tradição romano-germânica) apto a realizar essa aspiração. Não duvidamos que o instituto da responsabilidade penal da pessoa jurídica ainda está muito pouco desenvolvido. Isso não quer dizer, todavia, que ele não seja possível. Efetivamente, de lege data ele é possível, ainda que contenha

imperfeições de caráter mais amplo. Ora, se até o sistema da responsabilidade individual as tem! O certo é que todo sistema contém falhas, no que concerne, por exemplo, à aplicabilidade prática. A questão é de se essas falhas são de tal monta de modo a inviabilizar a realização do próprio sistema.

Parece-nos que um sistema da responsabilidade penal da pessoa jurídica esbarra em muitas dificuldades de aplicação prática, e sua fundamentação teórica ainda está muito atrás do desenvolvimento dogmático alcançado pelo sistema tradicional. Mas já tem condições razoáveis de se efetivar, e o prova o sucesso adquirido em vários países, especialmente a França. Essa via ou perspectiva de sucesso prático deve, segundo pensamos, estimular o desenvolvimento dogmático, de forma a aperfeiçoar o sistema, como se faz, por exemplo, em França, onde já se pensa numa extensão da responsabilidade penal da pessoa jurídica, de forma da dilatar o âmbito de aplicação do instituto39. A Alemanha, que a respeito do tema tem sido bem mais resistente, também avança nos estudos dogmáticos.

Afigura-se-nos, nessa esteira, que a admissão da capacidade e da responsabilidade penal da pessoa jurídica no campo científico depende da construção de um novo sistema dogmático e legal, referido especificamente à pessoa moral, uma vez que as categorias tradicionais nem sempre se mostram alinhadas às peculiaridades dos entes coletivos.

39 A esse respeito, a excelente monografia do Professor Fabrice Belghoul, citada em várias oportunidades

(33)

Zugaldía Espinar já afirmou que “si la dogmática penal no sirve para cubrir

las necessidades de la política criminal, tanto peor para la dogmática”40. A dogmática

penal tem então que considerar as exigências da política criminal. Sempre foi assim, e não há de ser diferente desta vez. As pessoas jurídicas, agentes extremamente criminógenos no mundo moderno, merecem um sistema próprio, com novas concepções acerca do delito e da pena, como forma de se abrir mais uma via, que ainda tem muitos caminhos obscuros (como os tem, embora em menor grau, o sistema tradicional), no combate à criminalidade, qualquer que seja a forma em que esta se expresse.

Não nos cabe aqui dizer qual é exatamente esse novo sistema, firmar com precisão suas bases. Muito dele quem vai dizer é a própria aplicação prática, como ocorre no Direito Francês, em que a experimentação concreta precedeu os estudos científicos, os quais já avançam em promissora expansão. Realmente, os franceses tiveram em vista a máxima, acima transcrita, de Zugaldía, ao experimentar um sistema sem que houvesse ainda solidificado um assentamento científico. Os resultados são promissores; parece-nos que não há subsídios para afirmar o contrário.

O certo é que o princípio societas delinquere non potest vai cada vez mais

se arrefecendo em vista não só mais apenas das exigências da política criminal, mas dos próprios estudos e pesquisas científicas em torno do tema, que vão delineando aos poucos o novo sistema, a nova compreensão de que aqui se fala. Se persiste uma certa insistência no sentido de que os ordenamentos que admitem a responsabilidade penal da pessoa jurídica não consagram mais que uma responsabilidade diferenciada, mas de caráter não penal, que importa? O que se tem de concreto é que as exigências práticas estão estimulando novos sistemas e soluções inovadoras, e qualquer que seja a denominação que a eles se dê, o efeito prático não varia.

6.2. A nova compreensão dos elementos estruturais do delito

As categorias estruturais do delito ação e culpabilidade, da forma como são

tradicionalmente concebidas, não são deveras favoráveis à idéia da capacidade e da responsabilidade penal da pessoa jurídica. A ação é ato de vontade, podendo ser dolosa

ou culposa, considerando-se inadmissível que tais elementos volitivos possam ser atribuídos a entes coletivos. No mesmo caminho, a culpabilidade normativa, entendida

como juízo de reprovação ou censura incidente sobre o indivíduo, não poderia jamais

40

(34)

ser dirigida a uma pessoa jurídica, que não tem a capacidade de entender o sentido da reprovação social. Muito menos a tradicional concepção da culpabilidade psicológica.

Analisemos algumas alternativas, em cada elemento estrutural.

6.2.1A ação

Do ponto de vista da teoria tradicional do delito, é impossível imaginar-se responsabilidade penal diversa da individual. É esse, inclusive, o pensamento dominante na doutrina brasileira, assim como na latino-americana, de um modo geral. Veja-se como se pronunciam, a respeito da questão, os ilustres penalistas Eugênio Raul Zaffaroni e José Henrique Piarangelli:

“não se pode falar de uma vontade em sentido psicológico no ato da pessoa

jurídica, o que exclui qualquer possibilidade de admitir a existência de uma conduta humana. A pessoa jurídica não pode ser autora de delito, porque não tem capacidade de conduta no seu sentido ôntico-ontológico”41.

No mesmo sentido é a posição dos eminentes Cezar Roberto Bittencourt e René Ariel Dotti, para citar somente alguns. Observe-se o que diz o último autor citado:

“o conceito de ação como ‘atividade conscientemente dirigida a um fim’ vem

sendo tranqüilamente aceito pelo doutrina brasileira, o que implica no poder de decisão pessoal entre fazer e não fazer alguma coisa, ou seja, num atributo inerente às pessoas naturais”42.

É essa a concepção dominante em vários doutrinadores, segundo os quais a imputação da ação à pessoa jurídica resta impossível em virtude de o Direito Penal não castigar mais que as ações próprias de cada pessoa humana componente da entidade, tomadas individualmente (é o caso de Bago Fernández, Barbero, Engisch, dentre outros). A doutrina hispânica, que exerce grande influência sobre a brasileira, e que tem fortes raízes na doutrina alemã, vai no mesmo caminho, conforme se pode notar, por exemplo, no seguinte posicionamento de Francisco Muñoz Conde e Mercedes García-Arán:

“Desde el punto de vista penal, la capacidad de acción, de culpabilidad y de

pena exige la presencia de una volontad, entendida como una faculdad psíquica de la persona individual, que no existe en la persona jurídica...43

41PIARANGELI, José Henrique e ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de direito penal brasileiro

parte geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, 3ª ed., p. 410.

42 DOTTI, René Ariel.

A incapacidade criminal da pessoa jurídica (uma perspectiva do direito brasileiro). Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 11, p. 184-207, jul./set., 1995.

43 GARCÍA ARÁN, Mercedes y MUÑOZ CONDE, Francisco. Derecho Penal parte general. Valencia:

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