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O PENSAMENTO FOUCAULTIANO E OS DISCURSOS DA EDUCAÇÃO: ALGUMAS PONDERAÇÕES

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Academic year: 2020

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O PENSAMENTO FOUCAULTIANO

E OS DISCURSOS DA EDUCAÇÃO:

ALGUMAS PONDERAÇÕES*

DANIELLA COUTO LÔBO**

* Recebido em: 09.05.2019. Aprovado em: 01.10.2019.

** Doutora em Educação. Graduada em Pedagogia pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás). Professora no curso de Pedagogia da PUC Goiás. E-mail: coutolobo@gmail.com.

DOI 10.18224/frag.v29i2.7358

DOSSIÊ

Resumo: o presente artigo busca discutir reflexões sobre as possíveis contribuições do pensamento

foucaultiano à educação. Dessa forma, primeiramente apresenta-se uma breve trajetória das pesquisas do filósofo que, com o tempo, passaram por mudanças, sendo reconhecidas em suas três fases: arqueologia, genealogia e ética. Busca-se também apresentar aspectos da fase genea-lógica, entendendo que é o momento em que o poder aparece em seus estudos. Neste contexto, a obra Vigiar e Punir (2013a) merece destaque. Foucault descreve vários arquivos sobre a história das penalidades e das instituições que perpetuaram práticas de punição, adestramento e controle. As instituições educativas enquanto espaço de formação também contribuíram para a constituição dos saberes de uma sociedade produtiva. A par dessas questões busca-se elucidar algumas aproximações dos estudos do filósofo aos discursos da educação que possuem um viés de liberdade na modernidade, mas que resultam na verdade em processos educativos que excluem, adestram e controlam.

Palavras-chave: Educação. Discursos. Controle. Adestramento. Verdade.

Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua "política geral" de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro.

(Foucault)

D

iscutir a relação entre os discursos da educação e a verdade é, de certa forma,

polêmico. Provavelmente encontraríamos vários autores da área da educação para analisar está temática. Como forma suscitar esse debate parte-se dos estudos de

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Michel Foucault, em especial, de sua fase genealógica, para refletir sobre os discursos da educação, as instituições educativas e as relações de poder.

FOUCAULT: UM HISTORIADOR DO PENSAMENTO

Entende-se que seja relevante e oportuno apresentar aqui, mesmo que brevemente, a trajetória intelectual do filósofo francês Michel Foucault1 (1926-1984). Conhecido nos

meios acadêmicos como historiador do pensamento, intelectual engajado, considerado por muitos estudiosos como polemista. A partir da década de 1960, dedicou-se aos estudos da constituição dos saberes modernos, à genealogia dos poderes e, na fase final de sua produ-ção, à ênfase em ética. Com o seu ingresso em 1970 no Collège de France, suas pesquisas se diversificaram e intensificaram-se em vários campos, bem como passaram por mudanças a partir de suas análises na perspectiva da arqueologia, genealogia e ética. Veiga-neto qualifica Michel Foucault como: “[...] aquele que melhor nos mostrou como as práticas e saberes vêm funcionando, nos últimos quatro séculos, para fabricar a Modernidade e o assim chamado

sujeito moderno” (VEIGA-NETO, 2004, p. 15).

Percebe-se que, no livro A história da Loucura (FOUCAULT, 2013b), o filósofo recorreu aos mais diferentes arquivos2 relacionados às ciências, artes e literatura com o

intuito de compreender como se deram as mudanças no tratamento da loucura. Quando de fato a loucura passa a ser vista como doença3? Essa é uma das questões presentes em seus

escritos, buscando compreender como esse ou aquele saber emergem, em que condições de possibilidades é possível identificar esse acontecimento4. Busca-se exemplificar, dessa forma,

que pesquisar não é apenas identificar fatos, arquivos e escritos. Na concepção do autor, é necessário remover as camadas e compreender a origem destes saberes e discursos, para de fato relacioná-los com a realidade e/ou a atualidade. Da mesma forma, suas investigações estruturaram a obra As Palavras e as Coisas (FOUCAULT, 2007), na qual o filósofo busca descrever a constituição dos campos dos saberes. Preocupando analisar em que condições para o aparecimento dos saberes empíricos como a biologia, a Economia política e a filosofia, por meio de uma Arqueologia das ciências humanas.

Assim, mais tarde, na década de 1970, em Vigiar e Punir (FOUCAULT, 2013a), quando encontra os escritos do jurista inglês Jeremy Bentham com a proposta de um proje-to arquitetônico para as prisões – Panopticon (1787),o filósofo buscar compreender de que forma os saberes ali envolvidos interferem na emergência e na permanência dos discursos das penalidades de forma estratégica.

Sobre o método em Foucault, Ternes (2017, p. 58) considera que seja

[...] impossível, nesse solo epistemológico movediço, permanecer o mesmo. [...] Costuma-se assinalar três momentos, ou fases na trajetória intelectual do filósofo: o da arqueologia, onde se tratava antes de tudo, das condições e possibilidades do pensamento; o da genealogia, em que se importa investigar a relação estreita entre verdade e poder; e, finalmente, já no ocaso de sua vida, o estudo das problemáticas éticas, quer na cultura greco-romana, quer no cristianismo. Divisão, sem dúvida, defensável. Descontinuidades, não somente de objeto, mas de procedimentos de investigação. Descontinuidades, também, polêmicas. Parecem por demais simples nesse esquema. A pergunta acerca da unidade do pensamento de Foucault é mais frequente do que se imagina.

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Aliado às ideias da citação anterior, apresenta-se o entendimento do filósofo ao longo de quase duas décadas, de que para conhecer é necessário escavar, duvidar das primei-ras impressões e investigar a natureza das verdades, dos discursos e das relações de poder que envolvem a existência humana. Não há, na filosofia foucaultiana, um método5 único e

defi-nido para estudar os fatos e a história. Suas investigações tematizam sobre o poder, a história, os saberes e outros objetos de pesquisa. Suas teorias se pautam na transitoriedade, dando ao estudioso a condição de duvidar de suas conclusões perante novos indícios.

Para ele, toda teoria é provisória, acidental, dependente de um estado de desenvolvimento da pesquisa que aceita seus limites, seu inacabado, sua parcialidade, formulando conceitos que clarificam os dados – organizando-os, explicitando suas interrelações, desenvolvendo implicações – mas que, em seguida, são revistos, reformulados, substituídos a partir de um novo material trabalhado (MACHADO, 1984, p. XI).

Fato que em algumas entrevistas o filosofo diz “não me exijam ser o mesmo por tanto tempo”. Isto nos leva a refletir sobre o caráter da verdade e dos discursos para ele. OS DISCURSOS, A VERDADE E AS INSTITUIÇÕES EDUCATIVAS

Nessa condição, uma das questões relevantes na filosofia foucaultiana é pensar e compreender a verdade e sua relação com o poder. Enfim, para ele, tanto a verdade como os discursos emitidos a partir dela são produzidos e obedecem a um regime de regras e jogos de poder que estão envolvidos nas práticas sociais e culturais. Afirma Candiotto (2013, p.19):

[...] ora, tem sido uma evidência significativa na filosofia moderna que o sujeito é fun-damento da verdade e fonte universal de significação. Foucault quer problematizar as evidências [...], ao mostrar que tanto os discursos de verdade quanto o que se entende por sujeitos, são produzidos, constituídos a partir da articulação entre os jogos de regras, mecanismos e estratégias do poder pertencentes às nossas práticas sociais e culturais.

Em Foucault, não há como pensar a natureza da verdade sem relacionar com o poder e suas diferentes formas de controle. Observemos um trecho no qual afirma que não há verdade sem um regime de poder.

O importante, creio, é que a verdade não existe fora do poder ou sem poder (não é − não obstante um mito, de que seria necessário esclarecer a história e as funções − a recom-pensa dos espíritos livres, o filho das longas solidões, o privilégio daqueles que souberam se libertar). A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder (FOUCAULT, 1984, p. 12).

Então, na perspectiva do filósofo, o que seria o poder? Na concepção de Machado (1984, X), com base nos estudos de Foucault:

O poder não é algo natural, uma coisa; é uma prática social e, como tal, constituída historicamente. Esta razão, no entanto, não é suficiente, pois, na realidade, deixa sempre

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aberta a possibilidade de se procurar reduzir a multiplicidade e a dispersão das práticas de poder através de teoria global que subordine a variedade e a descontinuidade a um conceito universal.

Ao longo da história, as sociedades desenvolveram diferentes formas de controle e punição. Foucault explicita, no curso de 1972-1973, A sociedade punitiva6 (2015), que, para

conhecer uma sociedade, é preciso interrogar não como se constituem os rituais de seus mor-tos, mas sim como ela pune seus membros, com quais métodos, regimentos e estatutos. As práticas punitivas foram e são pensadas nas e para as instituições7, como forma de atuarem na

organização da sociedade e, assim, manter a sociedade sob permanente controle.

Um exemplo clássico está na obra Vigiar e Punir (FOUCAULT, 2013a) que nos ajudará a pensar como as práticas punitivas foram se modificando ao longo do tempo. Sobre o suplício de Damiens, ocorrido em 1757, Foucault descreve8 as etapas da sentença aplicada

ao corpo, reduzindo-o, ao final, às cinzas. O suplício perdurou na França até o ano de 1831. Com a intensificação dos protestos contra tal tipo de punição, os teóricos do direito e os ju-ristas concluem que era preciso pensar outras formas de pena, nas quais não houvesse contato com o corpo. Num interstício de duzentos anos os códigos penais foram constituídos com o intuito de se estabelecer a gradação das penas: para cada crime, uma pena.

A “humanização” das penalidades passa a adotar a reclusão punitiva. Esse tipo de punição é herdeira da reclusão adotada nos monastérios e nas lettre-de-cachet. “A prisão, que vai se tornar a grande punição do século XIX, tem sua origem precisamente nesta prática para-jurídica da lettre-de-cachet, utilização do poder real pelo controle espontâneo dos gru-pos” (FOUCAULT, 2005, p. 98).

Ao pesquisar a história das penalidades, Foucault busca compreender “como se pôde formar, no século XIX, um certo saber do homem, da individualidade, do indivíduo normal ou anormal, dentro ou fora de regra, saber este que, na verdade, nasceu das práticas sociais do controle e da vigilância” (FOUCAULT, 2005, p. 08).

Em Vigiar e Punir (2013a) é analisado também como, a partir do século VII, a arte de controlar os corpos passa a vigorar e, assim, também as mentalidades passam a ser descritas em manuais. “Houve, na Idade Clássica, uma descoberta do corpo como objeto e alvo do poder” (FOUCAULT, 2013a, p. 132). Entretanto, esses investimentos sobre o corpo não são novos, apenas modificaram-se.

São apresentados testemunhos de como os soldados passam a ser fabricados e trei-nados, demonstrando que o quartel e outras instituições também passam a constituir saberes com a finalidade de treinar movimentos, docilizar corpos e aumentar suas habilidades, no-meadas então como disciplinas, e tornadas instrumentos de dominação9. Constitui-se uma

política de coerções na qual há o controle minucioso do tempo, de seus gestos e de seus com-portamentos. Nos colégios, investiu-se também na formação de um homem disciplinado, como percebido nos arquivos de Jean-Baptiste de La Salle, no Tratado sobre as obrigações dos irmãos das escolas cristãs. Existe neste arquivo estudado por Foucault a descrição minuciosa da arte de educar em que, para cada sinal ou gesto, treinava-se uma reação e uma resposta a fim de se elevar ao máximo o controle dos comportamentos e dos horários. Este controle rigoroso era acompanhado por um monitor que estaria atento ao desempenho dos alunos.

Segundo Foucault, as escolas tornam-se máquinas de ensinar quando passam a con-trolar o tempo, os gestos e os comportamentos em suas minúcias, “uma caligrafia, por

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exem-plo, supõe uma ginástica – uma rotina cujo rigoroso código abrange o corpo por inteiro, da ponta do pé à extremidade do indicador” (FOUCAULT, 2013a, p. 147).

Esta maquinaria para vigiar, adestrar e esquadrinhar o corpo pelo poder objetivava torná-lo mais produtivo e útil. É possível perceber esse modelo de vigilância e controle por meio do panoptismo. Em 1973, Foucault profere uma conferência no Brasil, em que apre-senta as marcas do panoptismo na sociedade moderna. Interessante notar que Foucault, ao encontrar-se com a obra de Jeremy Bentham10, depara-se com “uma sociedade programada,

no fundo, por Bentham, uma sociedade panóptica, sociedade onde reina o panoptismo” (FOUCAULT, 2005, p. 103). A sociedade panóptica aliada aos instrumentos do olhar hie-rárquico, da sanção normalizadora e do exame criam as condições para pleno exercício do poder disciplinar11.

Destaca-se, aqui, a função do exame na sociedade disciplinar. Vê-se que diferentes formas de exame ainda vigoram na atualidade com objetivos próximos das práticas da Idade Clássica. Afirma-se ainda que o exame possui a finalidade de qualificar, classificar, comparar, vigiar e punir, e, tradicionalmente, segue um ritual que está imbricado de relações de poder e saber. As instituições educativas têm todo um protocolo com registros individuais do desem-penho dos alunos relacionados às práticas de ensino. Esses saberes não são novos nas escolas cristãs, 1.716, queria que houvesse avaliações classificatórias todos os dias.

As instituições educativas não querem apenas avaliar o conteúdo aprendido, “[...] não basta provar. O aprendiz moderno entra num processo contínuo nunca acabado de

exa-me”. O saber, com a função de normalizar, retira do homem a oportunidade de viver as

uto-pias. Atenta Foucault sobre “[...] as crescentes normatizações das sociedades contemporâneas, a partir dos saberes emergentes na virada do século XIX” (TERNES, 2007, p. 63). Numa so-ciedade disciplinar retira-se a possibilidade de oposição, de diferença. Deseja-se a docilização dos corpos e da alma, bem como a conformação dos sujeitos para que se adequem ao modo de produção capitalista.

As disciplinas entram em crise12e, na concepção do autor, passa a vigorar na

socie-dade moderna a biopolítica em que não mais se controla os corpos em sua individualisocie-dade, mas, no próprio controle das populações. Por meio do biopoder, outras formas de controle e vigilância vão sendo constituídas e, sem desconsiderar as disciplinas, entende-se que houve uma mutação nas formas e rituais de controle e dominação da sociedade. Foucault caracteriza a biopolítica como:

[...] a maneira pela qual, a partir do século XVIII, se buscou racionalizar os problemas colocados para a prática governamental pelos fenômenos próprios de um conjunto de viventes enquanto população: saúde, higiene, natalidade, longevidade, raça (CASTRO, 2009, p. 61).

O biopoder se desenvolveu na virada para o século XX, época marcada por guerras e significativas evoluções científicas, que levaram o filósofo a identificar um paradoxo: por um lado, nunca um período valorizou tanto a vida – por meio de vacinas, medicamentos, pesquisas; mas, por outro, põe em prática uma metodologia de extermínio de populações em guerras, conflitos e mesmo na violência urbana. Uma espécie de controle populacional em que, para se deixar viver, tem que matar. Acrescenta ainda que o“biopoder, sem a me-nor dúvida, foi elemento indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, que só pôde ser

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garantido à custa da inserção controlada dos corpos no aparelho de produção e por meio de um ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos” (FOUCAULT, 2015a, p. 91).

As mudanças apresentadas pelo filósofo a partir de quando o biopoder passa a vigo-rar não descartam aspectos figurados nas disciplinas e é nessa perspectiva que as instituições, neste caso, as educativas, cooperam com a divulgação de discursos e com a continuidade dos processos de controle e vigilância na modernidade.

Os Discursos da Educação: liberdade ou adestramento?

Os discursos da educação na modernidade guardam uma aproximação com a Idade Clássica, sendo até possível afirmar que foram reeditados. Na verdade, o que se percebe são novos instrumentos de vigilância e controle que se impõem num crescente com o desen-volvimento de tecnologias, tais como as câmeras que registram e divulgam em tempo real o cotidiano das pessoas. Um estado de práticas que se manifesta também nas escolas infantis, quando as professoras dizem aos alunos de estágio, futuros professores, para que não se preo-cupem que logo as crianças se acostumam com as rotinas e horários.

Outros exemplos são passiveis de ser observados na sutileza das mais variadas for-mas de controle recriadas pela modernidade, baseadas nas práticas educativas do século XVI. Entende-se que essas práticas da disciplina escolar encontram forças no tecido social, o que reforça o poder disciplinar. A educação escolar é representada por instituições que perpetuam discursos como verdade, tendo como base o lastro epistemológico constituído ao longo dos séculos. Os conteúdos disponibilizados nos livros didáticos não estão endereçados a todos. Sabemos que há um discurso corrente nas propagandas, no qual a educação é um direito de todos. Vê-se claramente que a gradação dos conteúdos, a escolha dos mesmos, no lugar de incluir, excluem e controlam.

Existem hoje inúmeras formas do exercício do poder disciplinar nas instituições, com uma certa ritualização das avaliações, bem como nos exames estandartizados como o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), para se ter acesso ao ensino superior, o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (ENADE), que avalia os alunos dos cursos de gra-duação, e a Prova Brasil, que avalia o desempenho dos alunos do Ensino Fundamental por meio do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb).

Outro discurso propagado atualmente é que as instituições educativas13não têm

conseguido controlar a disciplina e docilizar os corpos como antes e, em boa parte dos casos, não têm conseguido também atender aos índices impostos pelo Saeb. Como reflexo disso, a sociedade civil, no exercício do poder disciplinar tem demonstrado interesse pela ampliação das escolas militares como uma solução para essas questões. Sabe-se que a história da socieda-de mosocieda-derna possui, como exposto em Vigiar e Punir (FOUCAULT, 2013a), uma constante invenção de mecanismos e práticas de controle, normalização e vigilância que interferem na constituição das subjetividades dos sujeitos.

Como explicita Foucault, os sistemas de ensino estão impregnados de rituais que foram se constituindo em saberes para atender às demandas dos sistemas produtivos.

[...] o que é afinal um sistema de ensino senão uma ritualização da palavra; senão uma qualificação e uma fixação dos papéis para os sujeitos que falam; senão a constituição

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de um grupo doutrinário ao menos difuso; senão uma distribuição e uma apropriação do discurso com seus poderes e seus saberes? Que é uma “escritura” (a dos escritores) senão um sistema semelhante de sujeição, que toma formas um pouco diferentes, mas cujos grandes planos são análogos? Não constituiriam o sistema judiciário, o sistema institucional da medicina, eles também, sob certos aspectos, ao menos, tais sistemas de sujeição do discurso? (FOUCAULT, 2013c, p. 42).

As instituições disciplinares como a escola desenvolveram dispositivos de coerção e controle para normalizar os atos, os desempenhos e os comportamentos. A escola torna-se uma maquinaria de ensinar e busca em suas práticas cotidianas a efetivação dos seus objeti-vos. As escolas militares, por exemplo, possuem rituais semelhantes às instituições de forças armadas, como o Exército. Isto é exposto por Santos (2016, p. 46) em sua pesquisa sobre a expansão dos colégios militares em Goiás:

Essas características os aproximam do colégio militar (CM) do Exército Brasileiro. Há diversas semelhanças entre os dois tipos de colégios: o uso da farda; a composição em fileiras em vários momentos (diariamente ao entrar nas salas, para prestar honras aos símbolos patrióticos); a formação de tropas escolares; a continência às autoridades e cargos superiores; as patentes que dividem os alunos.

Os rituais do Exército reproduzidos pela escola são parte da proposta de ampliação da militarização das escolas. Sua própria gestão conta com membros das instituições militares e isto, sem sombra de dúvida, guarda em si a necessária potencialidade para fabricar corpos dóceis e controlar almas. O poder disciplinar “encarregou-se de operar as individualizações disciplinares, engendrando novas subjetividades e, com isso, cumpriu um papel decisivo na constituição da sociedade moderna” (VEIGA-NETO, 2004, p. 84).

As instituições educativas divulgam discursos científicos que estão aliados à práti-cas de docilização dos corpos e são potencializados pela sociedade moderna que as encarre-gou de educar e instruir os agentes. Dessa forma, cria-se as condições de possibilidades para o assujeitamento e a normalização14em que se oferecem poucas possibilidades de oposição

e diferença.

Os discursos científicos como um regime de verdade das ciências do homem não podem ser entendidos por si só, mas pelas relações de poder contidas no tecido social. “Não há verdade neutra e essencial liberta do poder, não existe” (CANDIOTO, 2013, p. 66). Sabe-se que para cada exercício de poder há um contrapoder que agentes sociais revidam.

Foucault, nos últimos de sua vida dedicou-se à genealogia da ética, à constituição da subjetividade da verdade e à transformação. As subjetividades são vistas por ele como gov-erno, não somente no sentido do governo estatal, mas também na perspectiva do biopoder, que passa a governar a população no sentido moral, enfim, governar as almas. Os governados são sempre pessoas, indivíduos, coletividades entendendo-os como parte das cidades. Como explica Foucault (2008, p. 163, grifos do autor):

‘Governar’ pode querer dizer ‘conduzir alguém’, seja no sentido propriamente espiritual do governo das almas – sentido então plenamente clássico, que vai durar e subsistir por muito tempo -, seja de uma maneira ligeiramente defasada em relação a isso, ‘governar’

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pode querer dizer ‘impor um regime’, impor um regime a um doente: o médico governa o doente, ou doente que se impõe certo número de cuidados se governa.

Ao pesquisar vários arquivos ao longo de suas pesquisas, Foucault arregimentou uma história da verdade não tendo como obrigação a escritura idêntica dos fatos do passado. Ao trazer esses fatos, o filósofo movimenta o presente e o transforma. Entende-se que seja uma escolha histórica dos fatos por ele pesquisados. De forma geral, seus arquivos estavam esquecidos e é possível perceber na genealogia das penalidades, por assim dizer, que as ins-tituições, as relações de poder, o controle do corpo e da alma passam a ser vistos como um campo que produz saber para o exercício de poder.

Busca-se aqui as palavras de Candioto (2013, p. 165) para ilustrar a noção de sub-jetividade da verdade nas escrituras: “Jamais um livro é escrito a partir de um pensamento já formado: o gesto, as iniciativas de escrevê-lo visam o exercício do pensamento movente”.

Neste sentido, nos estudos de Foucault existe uma riqueza de possibilidades na transitoriedade das suas verdades, no entendimento da finitude do homem, nas relações de saber e nos instrumentos de poder. É certo que suas produções promoveram e promovem ainda hoje, mesmo após 30 anos de sua morte, a problematização dos devaneios e desalen-tos em que a sociedade está envolvida. Estudar Foucault e exercitar suas ideias no campo da educação parece um projeto audacioso, questionador e polêmico. Parte-se do entendimento de que nunca se deve aceitar as verdades em sua superficialidade, possibilitando questionar os discursos da educação e as práticas de vigilância e controle que estão diluídas no cotidiano escolar. Não espera-se, ao analisar os discursos da educação, obter respostas ou ter soluções rápidas e superficiais, mas problematizar o caminho das instituições educativas e suas práticas: suas vicissitudes e os riscos que as ameaçam.

FOUCAULTIAN THOUGHT AND THE DISCOURSES OF EDUCATION: SOME CONSIDERATIONS

Abstract: the present article aims to discuss the possible contributions of Foucauldian thought to

education. Thus, first a brief history of the philosopher's research is presented, which, over time, underwent changes, being recognized in its three phases: archeology, genealogy and ethics. As-pects of the genealogical phase will also be presented, understanding that it is the moment when power appears in their studies. In this context, the book Discipline and Punish (2013a) deserves attention. Foucault describes several archives on the history of penalties and institutions that per-petuated the practice of punishment, training, and control. Educational institutions as a space for training also contributed to the constitution of knowledge of a productive society. In addition to these points, there is an attempt to elucidate some approaches of the philosopher's studies to the dis-courses of education that have a bias of freedom in modernity, but that actually govern educational processes that exclude, train and control.

Keywords: Education. Speeches. Control. Training. Truth.

Notas

1 Ingressou no Collége de France em abril de 1970. Na instituição ocupou a cadeira intitulada da história do pensamento filosófico. No final de 1970 apresentou a aula inaugural. Ministrou vários cursos em que não haviam estudantes, mas sim ouvintes. Os cursos aconteciam de janeiro a março às quartas-feiras, com carga

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horária de no máximo 12 horas. A cada ano renovava o conteúdo do curso de acordo com as pesquisas do ano anterior. Os cursos tinham frequência livre, sem inscrição e/ou certificação. Com o aperfeiçoamento dos gravadores de fitas cassete foi possível registrar e conservar as gravações dos cursos e alguns seminários que deram origem a boa parte de suas publicações. Nestes cursos o filósofo sentia falta da interação com os estudantes, tentou vários formatos e, nas últimas edições, destinava um bom tempo para responder às perguntas dos estudantes e pesquisadores.

2 “O arquivo é, [...] o sistema das condições históricas de possibilidades dos enunciados discursivos, não são nem a mera transcrição do pensamento em discurso, nem apenas o jogo das circunstâncias. Os enunciados como acontecimentos possuem uma regularidade que lhes é própria, que rege sua formação e suas transformações” (CASTRO, 2009, p. 43).

3 Na Idade Clássica, a loucura desaparece e passa ser vista como doença e é recolhida nos hospitais gerais da Europa.

4 Segundo Castro, “Foucault se serve do conceito de acontecimento para caracterizar a modalidade de análise histórica da arqueologia e também sua concepção geral da atividade histórica. A arqueologia é uma descrição dos acontecimentos discursivos. A tarefa da filosofia consiste em diagnosticar o que acontece, a atualidade” (CASTRO, 2009, p. 24).

5 “Na entrevista chamada “A Poeira e a Nuvem” Foucault (2006), em resposta às críticas de J. Léonard, oferece ferramentas e alguns cuidados “metodológicos”, debatendo e defendendo que não basta, para uma pesquisa, somente delimitar o objeto, o tempo em que se situará e os limites de abrangência da análise. Seria mais razoável perguntar: quais os documentos necessários para fazer aparecer a racionalidade do objeto que se subscreve? Onde, no tempo, interessa a análise: nos acontecimentos precedentes de sua emergência ou nos que se segue? Tiveram esses acontecimentos posteriores quais efeitos na organização, nas regras e no dispositivo analisados? Foucault (2006) delimita que é preciso: fazer um tratamento exaustivo de todo material; repartição cronológica do exame; escolha do material em função dos dados do problema; focalização da análise sobre elementos suscetíveis de resolvê-lo; estabelecimento das relações que permitem essa solução; fixar os pontos de ancoragem de uma estratégia; determinar por que tal estratégia e tais instrumentos táticos foram escolhidos em função de outros” (STASSUN; ASSMANN, 2010, p. 78).

6 Foucault justifica o título do curso exemplificando com base nos estudos de Tristes trópicos, de Lévi-Strauss, a existência de quatro táticas de punição criadas pela sociedade que sucintamente constituem-se em: exclusão da sociedade em que o transgressor vivia, compensação por meio do pagamento e/ ou cumprimento de obrigações, marcar o corpo do transgressor e encarcera-lo, que é a tática utilizada a partir da virada do século XVIII até os dias atuais (FOUCAULT, 2015).

7 Em Vigiar e Punir (2013) são apresentadas algumas instituições que possuem regimentos próprios que são instâncias de controle da sociedade: escolas, hospitais, asilos, quartéis, igrejas e a prisão.

8 Foucault pesquisou os arquivos da Gazette d’Amsterdam - Jornal publicado em Amsterdam entre os séculos XVII e XVIII que trazia relatos das ordens do rei (FOUCAULT, 2013).

9 Nos séculos XVII e XVIII tem-se a constituição de processos minuciosos de coerção sobre o corpo. “O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe” (FOUCAULT, 2013, p. 133).

10 Foucault encontrou as cartas do jurista inglês Jeremy Bentham com proposta de um projeto arquitetônico para as prisões – Panopticon (1787). A estrutura do Panóptico seria “[...] O edifício é circular. Os apartamentos dos prisioneiros ocupam a circunferência. Você pode chamá-los, se quiser, de celas. Essas celas são separadas entre si e os prisioneiros, dessa forma, impedidos de qualquer comunicação entre eles, por partições, na forma de raios que saem da circunferência em direção ao centro, estendendo-se por tantos pés quantos forem necessários para se obter uma cela maior” (BENTHAN, 2008, p. 22).

11 A sociedade no pleno exercício do poder disciplinar dota-se de dispositivos de controle utilizando várias técnicas para a organização e ordenamento dos espaços, exigindo o cercamento espacial desses sujeitos. Um desses exemplos é o internato. O modelo de internato surge, com o tempo, como um modelo de educação frequente e eficaz ao ponto de se tornar obrigatório. Outras instituições também adotam o modelo do internato, como quartéis e fábricas. [...] Assim, a disciplina individualiza os corpos através de uma localização que os distribui e os faz circular numa rede de relações (PORTOCARRERO, 2009, p. 198).

12 Segundo Foucault, as disciplinas entram em crise porque nesses “[...] últimos anos, a sociedade mudou e os indivíduos também: eles são cada vez mais diversos, diferentes e independentes. Há cada vez mais categorias

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de pessoas não submetidas às disciplinas, de tal forma que somos obrigados a pensar em uma sociedade sem disciplina. A classe dirigente continua impregnada da antiga técnica. Mas é evidente que devemos nos separ, no futuro, da sociedade de disciplina de hoje” (FOUCAULT, 2012, p. 263).

13 Nestas instituições foram atestados ao rendimento insatisfatório dos alunos, indisciplina e foram identificados o uso de entorpecentes em seu interior.

14 De acordo com Castro (2009, p. 309) o “[...] conceito de normalização refere-se a esse processo de regulação da vida dos indivíduos e das populações. Nesse sentido, nossas sociedades são sociedades de normalização. A sociedade da normalização é uma sociedade onde se cruzam, segundo uma articulação ortogonal, a norma da disciplina e a norma da regulação”.

Referências

BENTHAM, Jeremy; TADEU, Tomaz (org.). O panóptico: Jeremy Bentham. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault: um percurso pelos seus temas, conceitos e autores. Tradução: Ingrid Muller Xavier. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

CANDIOTTO, Cesar. Foucault e a crítica da verdade. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica; Curitiba: Champagnat, 2013.

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Referências

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