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Guerra Justa e desterritorialização: os índios e as novas configurações espaciais na Capitania do Rio Grande (c. 1680-1720)

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GUERRA JUSTA E DESTERRITORIALIZAÇÃO: OS ÍNDIOS E AS NOVAS CONFIGURAÇÕES ESPACIAIS NA CAPITANIA DO RIO GRANDE (C. 1680-1720)

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – MESTRADO

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA E ESPAÇOS

LINHA DE PESQUISA: FORMAÇÃO, INSTITUCIONALIZAÇÃO E APROPRIAÇÃO DOS ESPAÇOS

GUERRA JUSTA E DESTERRITORIALIZAÇÃO: OS ÍNDIOS E AS NOVAS CONFIGURAÇÕES ESPACIAIS NA CAPITANIA DO RIO GRANDE (C. 1680-1720)

VICTOR ANDRÉ COSTA DA SILVA

NATAL/RN 2020

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VICTOR ANDRÉ COSTA DA SILVA

GUERRA JUSTA E DESTERRITORIALIZAÇÃO: OS ÍNDIOS E AS NOVAS CONFIGURAÇÕES ESPACIAIS NA CAPITANIA DO RIO GRANDE (C. 1680-1720)

Texto apresentado ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito para Defesa de Dissertação na Área de Concentração em História e Espaços, vinculado

à Linha de Pesquisa “Formação,

institucionalização e apropriação dos espaços”.

Orientador:

Prof. Dr. Lígio José de Oliveira Maia.

NATAL/RN 2020

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA

Silva, Victor André Costa da.

Guerra Justa e desterritorialização: os índios e as novas configurações espaciais na Capitania do Rio Grande (c. 1680-1720) / Victor André Costa da Silva. - Natal, 2020.

153f.: il. color.

Dissertação (mestrado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2020.

Orientador: Prof. Dr. Lígio José de Oliveira Maia.

1. Guerra justa - Dissertação. 2. Desterritorialização - Dissertação. 3. Desnaturalização - Dissertação. 4. Guerra dos Bárbaros - Dissertação. 5. Sertão do Açu - Dissertação. I. Maia, Lígio José de Oliveira. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 94(81)

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VICTOR ANDRÉ COSTA DA SILVA

GUERRA JUSTA E DESTERRITORIALIZAÇÃO: OS ÍNDIOS E AS NOVAS CONFIGURAÇÕES ESPACIAIS NA CAPITANIA DO RIO GRANDE (C. 1680-1720)

Exame de Defesa da Dissertação apresentado ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, na Área de Concentração em História e Espaços, vinculado à Linha de Pesquisa “Formação, institucionalização e apropriação dos espaços”, sob orientação do Prof. Dr. Lígio José de Oliveira Maia.

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________________________ Prof. Dr. Lígio José de Oliveira Maia (UFRN)

Orientador

_____________________________________________________________ Profa. Dra. Carmen Margarida Oliveira Alveal (UFRN)

Avaliadora interna

______________________________________________________________ Prof. Dr. Ricardo Pinto de Medeiros (UFPE)

Avaliador externo

_____________________________________________________________ Prof. Dr. Sebastião Leal Ferreira Vargas Netto (UFRN)

Avaliador suplente

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AGRADECIMENTOS

A construção deste trabalho é produto de uma soma de fatores externos a mim, os quais tive a sorte de ter como facilitadores durante a trajetória no mestrado: um alicerce familiar importante; amor e amizades fiéis; e Deus, com quem sempre me apeguei e confiei nos momentos mais difíceis e com quem posso compartilhar as alegrias e vitórias presentes. Por mais complicadas que fossem as adversidades da vida, eu sempre soube em quem confiar e que esses seriam os melhores que estariam ao meu lado. Na escrita da dissertação não foi diferente. Maria Lucia Costa da Hora, a qual faço questão de deixar registrado o nome completo neste trabalho, pois não teria conseguido chegar aqui sem essa que sempre foi, sem dúvidas, a minha maior incentivadora. Esta dissertação também é sua, “mainha”. Você que, mesmo nos capítulos tristes de sua história, soube acrescentar reviravoltas dignas de roteiros de novela. Uma mulher que é tão sonhadora quanto eu. Por isso, obrigado por sempre ter apostado nos meus sonhos também. Obrigado por ter investido nos meus estudos desde pequeno. Obrigado pelo seu amor de mãe que me acolheu em todos os momentos. Obrigado por todas as vezes que ao notar que eu estava desanimado, soube estender os braços em minha direção. Sou feliz e agradecido demais por te ter comigo, pois essa sorte é para poucos.

Meus avôs, in memorian, seu Cícero Luiz e Antônio Menino da Hora, e minhas avós, Maria do Socorro – mais conhecida como Amparo, e não é à toa – e Terezinha Rodrigues, foram fundamentais na minha formação pessoal e no desenvolvimento do meu caráter. Exemplos de hombridade e honestidade, força e determinação. Assim como meu pai, in memorian, que na sua curta trajetória de vida, conseguiu me dar exemplos importantes, dos quais levarei sempre comigo, dentre eles, o mais recente foi sua força de vontade em retomar os estudos e se formar em Educação Física, após seus 45 anos de idade, provando que sempre há tempo para conquistar o que se almeja. Essa mesma força de vontade reverberou sobre mim, quando já nos momentos finais dessa dissertação, tive que lidar com a dor de sua precoce partida. Por isso, a realização desse sonho é tanto minha, quanto sua.

Yuri Fernandes, parceiro que a vida me presenteou pouco antes de entrar no mestrado e pôde acompanhar todas as minhas inquietações, alegrias e até desânimos com relação à pesquisa. Fui agraciado com sua companhia pois dividir o fardo com alguém que torceu ao meu lado tornou o peso da produção desta dissertação um pouco mais leve. As preocupações se dissolviam por alguns instantes, o desestímulo se esbarrava no seu apoio constante e as incertezas pareciam pequenas quando eram compartilhadas contigo. Vale salientar que aprendi com Yuri a ter mais foco e organização nos meus horários de estudo, até nisso ele foi

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importante. Sou imensamente grato por você ter entrado na minha história nesse momento tão especial e por fazer parte dessa jornada.

Amigos mais chegados que irmãos também não poderiam deixar de serem citados aqui, Renata Paiva, por exemplo, sempre esteve ao meu lado dos melhores aos piores momentos da minha vida, sendo uma grande amiga e incentivadora. Janaina Galvíncio, que mesmo o destino a encaminhando para um pouco mais longe, continuo nutrindo o carinho de sempre. Laura Santos, minha amiga que sempre me apoiou e ofereceu suporte com as melhores palavras e ações. Taynara Martins também sempre soube ser não apenas amiga, mas ser abraço nos momentos mais importantes. Ana Cláudia, assim como Josielly Martins, que acompanharam meu crescimento desde a tenra infância e contribuíram diretamente na formação do meu caráter com ensinamentos válidos até hoje. E Josemar Martins, que entre desentendimentos e alegrias, conseguiu ser o irmão que nunca tive. Meu agradecimento a todos eles que estão ao meu lado há mais de uma década e se alegraram e, quando preciso, sofreram junto comigo. Acompanharam meu crescimento não só profissional e acadêmico – desde resultado do antigo vestibular para a graduação em História, em 2013, até a conquista na seleção do mestrado, em 2018 –, como também meu crescimento pessoal. Aqueles que surgiram na minha vida um pouco mais tarde, parecem que intensificaram a amizade ao ponto de compensarem o tempo perdido, Adriana Karla e Rebeca Suêz, por exemplo, foram os melhores presentes da graduação e estão comigo para o que der e vier desde 2013, ambas me conhecem inteiramente e são amigas verdadeiras em que posso confiar. Já Carlos Silva e Isaque Silva são amigos com os quais pude construir diversas histórias incríveis. Portanto, serei eternamente grato pela sorte de ter esses irmãos dados pela vida.

Agradeço aos amigos da pós-graduação com quem pude dividir a caminhada até aqui e que quero continuar trilhando aventuras, na vida acadêmica e pessoal, pelos próximos anos, como Luana Ramalho, Eudymara Queiroz, Genilda Neiva, Emanoel Jardel e Danielle Bruna, minha “URSAL” foi essencial ao trazer leveza para cada dia da jornada do mestrado. Não poderia deixar de agradecer especialmente à minha amiga e colega de turma do mestrado, Ristephany Leite, por quem nutri um carinho especial desde 2015, ao dividir diversos sonhos e, principalmente, a sala da base de pesquisa “Formação dos Espaços Coloniais”. A sala 230 do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA) passou a ser uma extensão de nossas vidas acadêmicas, onde desenvolvi uma relação afetiva desde a construção do meu trabalho monográfico, finalizado em 2017, até a finalização desta dissertação. Deixo registrado meu especial agradecimento também a Marcos Arthur Viana, amigo da área de História, que sempre

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se mostrou generoso e solícito para ajudar durante a pesquisa, fosse com sugestões de documentos ou com discussões importantes.

Ao meu orientador, Lígio José de Oliveira Maia, deixo meu agradecimento especial por ter construído uma relação de cooperação desde a graduação, quando comecei a bolsa de Iniciação Científica sob sua orientação, em 2015, bem como a conclusão do meu trabalho monográfico. Hoje, vejo que a oportunidade de uma bolsa como essa foi essencial na minha formação acadêmica e profissional, pois através dela pude abrir meus horizontes para o desenvolvimento da pesquisa histórica e, com o auxílio de Lígio Maia, pude galgar passos cada vez mais largos em direção à tão sonhada dissertação. Junto ao professor, tive, ainda, a oportunidade de vivenciar a experiência do Estágio à Docência durante um semestre do mestrado que, sem dúvidas, foi um momento de rica aprendizagem e intenso estímulo de conhecimento, me motivando ainda mais a ter vontade de ensinar. Portanto, externo aqui minha gratidão ao professor Lígio Maia e a todos os momentos de orientação e aconselhamentos que ele dedicou a mim.

Cada professor e cada disciplina, no decorrer da graduação e da pós-graduação, me deram lições para além das discussões históricas. Devo ao corpo docente que me acompanhou até aqui os meus agradecimentos pelas contribuições pessoais e acadêmicas, pois se minha visão de mundo se ampliou e várias desconstruções sociais ocorreram em mim, foram também graças aos diálogos estabelecidos e os conhecimentos construídos em sala de aula. Carmen Margarida Oliveira Alveal e Helder Alexandre Medeiros de Macedo são exemplos, mais próximos e recentes, de contribuição nesta pesquisa. Agradeço a ambos por cada sugestão dirigida ao trabalho durante a qualificação, pois aprimoraram as discussões levantadas nesta pesquisa até mesmo antes da qualificação, como se deu nas aulas de Seminário de Linha de Pesquisa, ministradas pela professora Carmen Alveal, assim como no meu segundo Estágio à Docência junto a ela. Sendo assim, agradeço-lhes pela sua dedicação ao ofício de professores e historiadores, os quais executam com exímia maestria. Não poderia deixar de agradecer especialmente ao Professor Ricardo Pinto de Medeiros, da Universidade Federal de Pernambuco, que cedeu generosamente parte dos documentos que compuseram esta dissertação referente à Junta das Missões de Pernambuco. Sem eles a pesquisa, provavelmente, não teria tomado o rumo desejado.

Por fim, agradeço à CAPES, que mesmo nesses tempos mais incertos nas áreas de produção do conhecimento e pesquisa das Ciências, possibilitou a minha permanência durante o mestrado através da concessão da bolsa de incentivo e fomento à pesquisa. Sem essa bolsa, a conclusão do trabalho, possivelmente, não resultaria no que é hoje, por mais que despendesse

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um esforço demasiado. Através da bolsa, tive a chance de vivenciar um momento fundamental para minha formação como historiador, pois passei uma semana de pesquisa em alguns dos arquivos da cidade do Rio de Janeiro, como o Arquivo Nacional, a Biblioteca Nacional e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, nos quais pude encontrar alguns documentos que foram utilizados neste trabalho e outros que pretendo utilizar em pesquisas futuras. Ademais, agradeço a todos os profissionais dessas instituições pela presteza e bom atendimento, qualidades essenciais para ajudar aos pesquisadores.

Portanto, só felicidade e gratidão me acompanham ao final deste trajeto, apesar de todas as dores e perdas, deixo aqui meu muito obrigado a todos. E como disse Clarice Lispector em A Hora da Estrela: “enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever”.

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“Um lamento triste Sempre ecoou Desde que o índio guerreiro Foi pro cativeiro E de lá cantou” Canção das três raças – Clara Nunes

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RESUMO

Este trabalho se propõe a analisar a trajetória de utilização do aparato jurídico da Guerra Justa enquanto um meio que catalisou o processo de desterritorialização da Capitania do Rio Grande, em especial a área do Açu, nas décadas finais do século XVII e iniciais do século XVIII. Ao partir dos debates jurídicos e teológicos desde o século XV, pretende-se observar os desdobramentos dessas discussões na realidade prática dos colonizadores ao se defrontarem com grupos indígenas diversos, aos quais se propõe um processo de desnaturalização. Aqui, objetiva-se refletir historicamente de maneira mais específica sobre as discussões que tratam das guerras justas no Açu, atentando para essa parte da Guerra dos Bárbaros de modo que privilegie uma perspectiva voltada, apesar da restrição representada pelo caráter burocrático das fontes, para o protagonismo indígena. Desse modo, pode-se perceber a instrumentalização desse artificio jurídico não apenas na legislação indigenista, como também nas ações de autoridades e moradores que, amparados pelo argumento da guerra justa, puderam intensificar o alastramento de fronteiras institucionais e novas territorializações na América Portuguesa. Através da análise dos discursos produzidos pelas instituições e autoridades coloniais, como a Junta das Missões de Pernambuco, e o cruzamento de outras fontes, pôde-se perceber a proporção da incidência da justiça sobre as guerras contra os índios, entre 1680 e 1720 aproximadamente, no sertão do Açu, período compreendido como a Guerra dos Bárbaros. Os índios daquela espacialidade, portanto, tiveram de se reorganizar enquanto grupos, num novo contexto histórico expansionista e em novos espaços, haja vista as apropriações que tinham de seus territórios e as tentativas de desnaturalização.

Palavras-chave: Guerra justa. Desterritorialização. Desnaturalização. Guerra dos Bárbaros. Sertão do Açu.

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ABSTRACT

This research work proposes to analise the trajectory of use of legal apparatus of Just War while a way that increased the process of deterritorialization of Capitancy of Rio Grande, especially the area of Açu, in the late seventeenth century. When starting with the legal and theological debates since the fifteenth century, it is intended to observe the developments of these discussions in the pratical reality of colonizers when faced with several indigenous groups, to whom it proposes a denaturalization’s process. The aim of this work is reflect historically in the specific way about the discussions that deal of just wars in the Açu, paying attetion to this part of Guerra dos Bárbaros so that it privileges a perspective turning to indiginous protagonism, although of restriction represented by the bureaucratic character of the sources. Thereby, it can perceive a instrumentalization of this legal apparatus, just not in the indigenous legislation, as also in the actions of authorities and residentes who supported by the argument of just war, they could intesify the spread of institutional frontiers and new territorializations in the Portuguese America. Through of the discourse analysis produced by the colonial institutions and authorities, as Junta das Missões de Pernambuco, and the crossing of sources it could perceive the proportions of justice’s incidence about the wars against the indians, between 1680 and 1720, in the hinterland of Açu, period that comprised the Guerra dos Bárbaros. So, the indians that espaciality, had to reorganize while a group, in a new historical and expansionist context in the new spaces, in view of the apropriations that had with their territories and denaturalization attempts.

Keywords: Just War. Deterritorialization. Denaturalization. Guerra dos Bárbaros. Hinterland of Açu.

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LISTA DE MAPAS

Mapa 1 – Limites aproximados da Capitania da Paraíba...77

Mapa 2 – Extensão territorial do conflito da Guerra dos Bárbaros...79

Mapa 3 – Primeiras frentes de conquista no sertão do Rio Grande (final do século XVII)...97

Mapa 4 – Trajeto de perseguição contra os índios Janduís...102

Mapa 5 – Recorte do mapa etno-histórico de Curt Nimuendaju (1944) referente à Capitania do Rio Grande (1944)...112

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LISTA DE IMAGENS

Imagem 1 – Ilustrações dos retratos de Bartolomeu de Las Casas e Juan-Ginés de Sepúlveda...51 Imagem 2 – Argumento pela causa das proposições sugeridas pelo Bispo Dom Frei Bartolomeu de Las Casas...56

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LISTA DE QUADROS/TABELA/GRÁFICO

Quadro 1 – Juntas das Missões nas possessões ultramarinas...81 Gráfico 1 – Termos da Junta das Missões de Pernambuco analisados...132

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AHU Arquivo Histórico Ultramarino BNL Biblioteca Nacional de Lisboa

DHBN Documentos Históricos da Biblioteca Nacional IHGB Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro

IHGRN Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte LCPSCN Livro de Cartas e Provisões do Senado da Câmara de Natal

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ___________________________________________________________17

2 DEBATES TEÓRICOS E JURÍDICOS EM TORNO DA GUERRA JUSTA _______37 2.1 – Breve histórico da guerra justa ____________________________________________38

2.2 – Valladolid: ponto de encontro e desencontro entre Bartolomeu de Las Casas e Juan-Ginés Sepúlveda sobre a guerra justa _________________________________________________49

2.3 – A guerra justa na legislação indigenista ______________________________________58

3 GUERRAS (IN)JUSTAS DA BAHIA AO SERTÃO DO

AÇU_____________________________________________________________________72 3.1 – Histórias conectadas entre as realidades das Capitanias do Norte e a guerra justa ____ 73

3.2 – A Guerra Justa no contexto da Guerra dos Bárbaros ___________________________ 84

3.3 – Simultâneos e sobrepostos processos de territorialização e desterritorialização no sertão do Açu __________________________________________________________________ 100

4 DESNATURALIZAÇÃO INDÍGENA E APROPRIAÇÃO DO TERRITÓRIO EM MEIO ÀS GUERRAS_____________________________________________________ 115 4.1 – Territórios sociais indígenas_____________________________________________ 116 4.2 – Deslocamentos indígenas em tempos de guerra ______________________________ 121

4.3 – Desnaturalização dos índios da Capitania do Rio Grande_______________________ 133

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS_____________________________________________ 141 FONTES _______________________________________________________________ 144 REFERÊNCIAS_________________________________________________________ 149

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INTRODUÇÃO

A guerra justa foi um artifício jurídico muito utilizado, ao longo da história, como um meio de eliminar aquele considerado inimigo e como uma das principais justificativas para a tomada de territórios pois permitia a destruição desse e, consequentemente, a conquista de seu espaço. Inicialmente, o conceito da guerra justa foi empregado nos conflitos entre cristãos e mouros, no período das Cruzadas (1095-1492), quando ordens militares marcharam da Europa Ocidental para a Terra Santa e para a cidade de Jerusalém com o intuito de conquistá-las1. O empreendimento de uma guerra justa carregava consigo não apenas o caráter bélico da guerra armada, mas também o simbolismo religioso ao se encarar essa ação como um movimento de captura e destruição daqueles que não eram adeptos da fé católica2.

Nesse contexto, a Igreja mostrou-se como um reduto de ideólogos e estudiosos que se dedicaram a tratar da temática da guerra justa e de temas que a tangenciavam, como o ideal do guerreiro cristão e das Cavalarias, dando legitimidade para a incidência da guerra3. Aponta-se que a teorização desse conceito contou com autores e abordagens diversas no decorrer do tempo e sua criação foi atribuída a Agostinho de Hipona (354-430), mais conhecido como Santo Agostinho. Porém, estudos recentes apontam Agostinho como um herdeiro de uma tradição cristã, que estava em formação há séculos, na qual a temática da guerra encontrava-se em constante discussão e polêmica. Fato que aponta isso é que ele nunca teria escrito um tratado sistemático ou discussão específica sobre a guerra, apenas abordado sobre o tema em diversos textos quando necessário. No entanto, os ensinamentos agostinianos são peças fundamentais para a compreensão da origem do pensamento cristão sobre a guerra, pois deixavam clara a questão da ética da guerra e da tortura, uma vez que, baseada em um mandamento de Deus, poderia tornar-se um ato louvável. Isso ocorreria ao conceber-se a guerra atrelada à sua ideia de justa autoridade, da qual o monarca já estaria imbuído pela própria lei da natureza. Ao agir não por sua vontade pessoal, mas contra determinada nação pagã a serviço da religião, estaria o rei cumprindo um mandamento divino4.

1 FONTES, João Luís Inglês. Cruzada e expansão: a bula Sane Charissimus. Lusitania Sacra, 1995. p. 403-420. 2 MACEDO, José Rivair. Mouros e cristãos: a ritualização da conquista no velho e no Novo Mundo. Bulletin du

centre d’études médiévales d’Auxerre, 2008. p. 1-12.

3 COSTA, Ricardo da; SANTOS, Armando Alexandre dos. O pensamento de Santo Tomás de Aquino (1225-1274)

sobre a vida militar, a guerra justa e as ordens militares de cavalaria. In: Mirabilia 10. Jan-jun/ 2010. p. 145-157.

4 Foram nos textos Contra Faustum (398 a.C.) e o livro XIX de Cidade de Deus que Santo Agostinho tratou

inicialmente da questão da guerra justa, porém, não era seu objetivo principal. No primeiro, era sua intenção responder a Fausto, um maniqueu, que questionou a legitimidade da Igreja com críticas ao Antigo Testamento. Já no segundo, ele não dedicou um espaço restrito à discussão da temática da guerra justa, aparece apenas no livro

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Segundo o Dicionário de nomes, termos e conceitos históricos, a expressão “guerra justa” diz respeito ao conceito oriundo da Igreja por conta das dificuldades encontradas pela teologia cristã, durante a Idade Média, cuja primeira teorização adveio de Santo Agostinho (354-430), bispo da cidade de Hipona, “que, não obstante a condenar a belicosidade, via-se obrigada a apoiá-la e mesmo a patrociná-la”5, como foi no caso das Cruzadas. Essa conceituação sofreu diversas reformulações ao longo do tempo e de vários teólogos, porém, foi na Espanha que ela tomou uma forma definitiva. A guerra justa poderia ser de caráter defensivo ou ofensivo, porém, em ambos os casos, deveriam obedecer às prerrogativas estabelecidas – que serão detalhadas a seguir – para a incitação dela.

Os debates acerca da matéria da guerra não cessaram e as teorias receberam revisões e atualizações durante os anos que se seguiram. Os ensinamentos de Agostinho foram revisitados e apoiados por nomes como Tomás de Aquino (1225-1274) e, em seguida, o francisco Álvaro Pais6 (c. 1270-1352). Ambos acreditavam que o papa detinha jurisdição sobre as coisas espirituais e temporais, além de que seria ele o responsável por concedê-la ao imperador e demais príncipes, ideia refutada séculos depois por Francisco de Vitória, Suárez, Molina e mais autores das Escolas Peninsulares7. A essa altura, o conceito da guerra justa encontrava-se bem delimitado. Segundo Georg Thomas, teria sido Álvaro Pais o responsável por definir o conceito de guerra justa, em Portugal, no século XIV, fundamentando-se no direito de guerra medieval8.

Influenciados por essa onda de discussões, no período da Modernidade, percebe-se que a incidência da guerra justa no caso dos portugueses e espanhóis não representou um fato isolado, mas se fez presente constantemente como uma alternativa viável de estabelecer os seus impérios ao minar possíveis obstáculos representados pelas povoações locais de África e Américas. Não obstante, essa temática permeava os grupos de discussões e gerava distintas

XIX sobre o summum bonum, cujo objetivo era mostrar que a finalidade de se alcançar toda filosofia e prática humana na “cidade terrena” é fadada ao fracasso. Cf.: SOUSA, Rodrigo Franklin de. A legitimação da guerra no discurso ético e político de Santo Agostinho. Ciências da Religião – História e Sociedade, São Paulo. v. 9, n. 1, 2011. p. 194-196.

5 AZEVEDO, Antonio Carlos do Amaral. Dicionário de nomes, termos e conceitos históricos. 3. ed. Rio de

Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 225.

6 Pensador galego e bispo de Silves (1334-1352), nascido em 1270, em San Juan del Salnés, Cambados, na

Província de Pontevedra, pertencente à arquidiocese de Santiago de Compostela (Cf: JANEIRO, 1977 apud SOUZA, 2004). Obteve o grau de doutor em Direito Civil e Canônico, sob a tutela do canonista Guido de Baysio (1250-1313).

7 CALAFATE, Pedro. A Escola Ibérica da Paz nas universidades de Coimbra e Évora (século XVI).

Teocomunicação, Porto Alegre, v. 44, n. 1, jan.-abr. 2014, p. 86.

8 THOMAS, Georg. Política indigenista dos portugueses no Brasil: 1500-1640. Tradução do Pe. Jesus Hortal.

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ideias que enriqueciam o debate sobre a legitimidade e a justiça da guerra. Fruto desses debates, portanto, foi a criação da Escola de Salamanca por Francisco de Vitória (1483-1546) em parceria com Domingo de Soto (1494-1560), na Espanha9.

Os espanhóis contaram com um forte movimento teológico no século XVI que objetivava uma renovação da Teologia e que motivou a criação de um grupo de três gerações de teólogos, catedráticos e professores da Faculdade de Teologia de Salamanca. O grupo contribuiu e inovou com seu estilo próprio ao pensar as problemáticas sociais de seu tempo e as fontes positivas da teologia de modo histórico-crítico próprio do Humanismo renascentista à luz dos elementos tradicionais da ciência teológica da Grande Escolástica Medieval, atribuindo a Francisco de Vitória o papel de artífice principal desse movimento de renovação10. Dentre as questões sociais que estavam no seio das discussões da Escola de Salamanca, destaca-se o debate acerca da guerra justa, assim como do domínio de povos indígenas e conquista de novas terras. O conceito de dominium exposto por Vitória, por exemplo, amalgama tanto a ideia do divino quanto a ideia do natural e racional, pois para ele havia uma relação imbricada entre a dominação e o estabelecimento de um poder, no qual a conquista de determinado espaço já garantiria o usufruto desse11.

Destarte, em se tratando da América portuguesa, deve-se levar em consideração que as Leis que permitiam a guerra justa sob os povos indígenas sofreram diversas reformulações. Ora o rei concedia tal permissão, ora a negava, haja vista os excessos cometidos pelos colonizadores e moradores ao se valerem desse aparato jurídico. Dessa maneira, as leis representam um processo volitivo da criação do Direito pois, para a organização de uma sociedade, exige-se a delimitação de certas regras que estabeleçam uma ordem, podendo serem elas regras religiosas, éticas, de cortesia e/ou jurídicas. Porém, o que se percebe como elemento diferenciador das regras jurídicas reside na questão da coação aos destinatários delas, tendo em vista muitas vezes partirem de instituições hierarquicamente superiores. Sobre as normas jurídicas recaem pelo menos três ordens de problemas, que são: quanto à sua justiça; à sua validade; e à sua eficácia. O aspecto da justiça, recorrentemente abordado aqui ao se observar os documentos produzidos pelos ideólogos da guerra justa ou mesmo os documentos que tratam

9 Cf.: PLANS, Juan Belda. La Escuela de Salamanca. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2000. 10 PLANS, Juan Belda. La Escuela de Salamanca. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2000, p. 157. 11 RODRIGUES, Erick Matheus Bezerra Mendonça. Espaços criados, espaços conquistados: relações de

domínio da Espanha imperial com os espaços das Indias Occidentales no século XVI). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal-RN, 2019. p. 9.

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da guerra justa nos sertões do Rio Grande, está circunscrito entre a norma ideal e a norma real, entre o que deveria existir e o que de fato existe na realidade prática12.

Através da execução da guerra, os colonos puderam fazer cativos os índios e explorar terras e minerais. Em 1565, uma decisão da Mesa da Consciência e Ordens13 permitia apenas o direito de fazer um índio cativo mediante a guerra justa e “seu status sócio-jurídico era semelhante ao de um escravo negro: sua pessoa era propriedade de outrem”14. Para além da questão do trabalho indígena, havia outra forte motivação para o empreendimento da guerra que estava centrada na oportunidade de que os moradores e colonizadores tinham de tomar as terras pertencentes aos grupos indígenas e utilizá-las em proveito próprio. Sobre isso, Tyego da Silva atribui o estabelecimento de núcleos populacionais nas principais ribeiras da capitania do Rio Grande, principalmente aos “‘homens de armas’ que, por meio da guerra justa, adquiriram mão de obra indígena e ainda concessões de sesmarias para fixarem-se naquelas localidades”15. Esse movimento de ampliação do território apoiado nas conquistas movidas pelas guerras configura um novo processo de territorialização de um dado espaço por parte dos colonizadores. Sobre a noção de território atrelado a suas perdas para uns e conquistas para outros, deve-se ter em mente que esse conceito pode ser apreendido de diferentes maneiras, seja pelo viés econômico, político, cultural ou natural. Aqui, o território da Capitania do Rio Grande, em meados do final do século XVII e início do XVIII, é considerado intrinsecamente ligado às relações sociais ou culturais, entendendo-as também como consequentes relações territoriais, principalmente ao partir-se da premissa de que os grupos indígenas desenvolviam uma aproximação profícua com o território para além de sua utilização no sentido de produção material. Portanto, durante o processo de conquista, alguns povos sofreram com o fenômeno da

desterritorialização no qual determinados grupos, como é o caso dos indígenas, foram alijados

12 SILVA, Nuno J. Espinosa Gomes da. História do direito português: fontes de direito. Lisboa: Fundação

Calouste Gulbenkian, 2006, p. 21-23.

13 A Mesa da Consciência e Ordens foi criada por D. João III em 1532 e atuou até 1833, surgiu com o intuito de

organizar e solucionar as matérias que tocassem a "obrigação de sua consciência", um dos mecanismos para a centralização do poder do rei. Com o tempo, suas atribuições foram sendo acrescidas e dizia respeito não apenas à administração espiritual, mas também temporal das mesmas ordens, sendo assim designada como da Consciência e Ordens. Cf.: Cruz, Maria. 1993. A Mesa da Consciência e Ordens, o Padroado e as Perspectivas da Missionação. In Vol. 3 of Actas do Congresso Internacional de História, Missionação Portuguesa e Encontro de Culturas. Braga: Faculdade de Teologia, 1993, p. 627-647.

14 LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índios do Rio Grande do Norte sob o diretório

pombalino no século XVIII. Rio de Janeiro: PUBLIT, 2015, p. 56.

15 SILVA, Tyego Franklim da. A ribeira da discórdia: terras, homens e relações de poder na territorialização do

Assú colonial (1680-1720). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal-RN, 2015. p. 71.

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do acesso ao território, no sentido elementar da terra, ao vivenciar “‘experiências múltiplas’ imprevisíveis em busca da simples sobrevivência física cotidiana”16.

Rogério Haesbaert, em seus estudos sobre o território e suas diferentes dimensões, destaca a necessidade de, ao se analisar determinado território, não o encarar como um espaço neutro, ideia similar à de Paul Little que acredita no espaço como mas como lócus de constante disputa de poder17. Para Haesbaert, deve-se observar esse espaço seja sob uma perspectiva de

terra (territorium), onde predomina o uso dela para fins econômicos, seja sob a ideia de terror/aterrorizar (terreo/ territor), na qual há a imposição do medo e do terror dos atores

hegemônicos aos atores hegemonizados, servindo de recurso para os primeiros e de abrigo para os últimos. Quando se detém ao conceito da desterritorialização, o geógrafo o coloca como uma das faces da moeda da territorialização, enquanto a outra face é a reterritorialização. Desse modo, os movimentos sociais ou individuais de desterritorialização são seguidos de novos processos de reterritorialização, pois sempre haverá alguma forma de territorialidade18.

Haesbaert acredita que antes de definir-se como e onde ocorreu a desterritorialização, é preciso destacar exatamente o tipo de território que se pretende analisar, haja vista o conceito de território ser amalgamado em diferentes orientações, podendo ser pelo viés simbólico e cultural, material e econômico ou pelo poder político19. Aqui, ao tratar do território referente aos índios, tem-se em mente o emaranhado das relações sociais como resultante de uma carga simbólica e cultural a qual demarca o espaço de convívio dos grupos indígenas. Seguindo essa linha de pensamento, portanto, caminha-se na direção do que propõe o antropólogo João Pacheco de Oliveira ao pensar a noção de territorialização, definida como um processo de reorganização social. Nesse sentido, o processo acarreta alterações diretas no espaço envolvido, das quais Pacheco de Oliveira elencou: 1) surgimento de uma nova unidade sociocultural através de uma identidade étnica diferenciadora; 2) elaboração de mecanismos políticos especializados; 3) atribuição do controle social sobre os recursos ambientais a outro grupo; 4)

16 COSTA, Rogério Haesbaert da. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade.

6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011. p. 175.

17 Cf.: LITTLE, Paul E. Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil: por uma antropologia da territorialidade.

In: Anuário Antropológico/2002-2003. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2004. p. 251-290.

18 Cf.: COSTA, Rogério Haesbaert da. Da desterritorialização à multiterritorialidade. In: Anais do X Encontro de

Geógrafos da América Latina. São Paulo, Universidade de São Paulo, março de 2005, p. 6774-6792. Disponível em: <http://observatoriogeograficoamericalatina.org.mx/egal10/Teoriaymetodo/Conceptuales/19.pdf>. Acesso em 10 de julho de 2019.

19 Cf.: COSTA, Rogério Haesbaert da. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à

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remodelação da cultura e da relação com o passado20. O antropólogo compreende o conceito de territorialização como “uma intervenção da esfera política que associa [...] um conjunto de indivíduos e grupos a limites geográficos bem determinados”21, intervenção da qual muitas vezes ocorreu de maneira arbitrária.

Desse modo, ao evidenciar os principais focos de desterritorrialização da capitania do Rio Grande através da execução da guerra justa no período da Guerra dos Bárbaros, pretende-se elucidar os possíveis rumos tomados pelos índios no pretende-sentido de criarem uma nova territorialização vinculada à sua carga cultural e identitária. Nesse sentido, a presente dissertação visa tratar das novas configurações espaciais da Capitania do Rio Grande, envolvendo os grupos indígenas através da incidência da guerra justa no período da Guerra do Açu (c. 1680-1720). Pretende-se, portanto, responder ao problema da reorganização do espaço, principalmente dos sertões, pela perspectiva dos índios ao mapear os principais focos de guerra justa e consequentes pontos de refúgio. Tem-se como ponto de partida as relações sociais dos índios com o seu território ao sofrer diversos processos de desterritorialização, seguidos de novas territorializações com suas vivências próprias do espaço, de acordo com sua cultura e do seu tempo. Portanto, diante dos processos de disputas territoriais da capitania, visa-se evidenciar as trajetórias tomadas por grupos indígenas que sofreram com o processo de desterritorialização de seu espaço e se viram na necessidade de territorializar outro. Como Haesbaert bem explicita, “cada grupo cultural e cada período histórico funda sua própria forma de vivenciar ‘integralmente o espaço’”22. Essa forma integral de experiência dos povos indígenas do Rio Grande, por exemplo, pode ser evidenciada através de sua conduta

territorial23, conceito proposto pelo antropólogo Paul Little ao observar as ações e usos empregados pelos grupos em seus territórios sociais.

Ruy Moreira, ao tratar do sistema de produção agrícola na América portuguesa, montado em função do modo de produção, o colonial agroexportador, pontua a mão de obra escrava como essencial para a estruturação e crescimento da empresa agroexportadora. Pois “sendo a terra um fator de produção abundante e a mão de obra um fator escasso, reside no controle deste último a base do prestígio e do poder da grande empresa, garantindo-lhe a fruição

20 OLIVEIRA. João Pacheco de. Uma etnologia dos “índios misturados”? Situação colonial, territorialização e

fluxos culturais. Mana –Estudos de Antropologia Social, v. 4, n. 1, Rio de Janeiro, 1998. p. 55.

21 OLIVEIRA, Op. Cit., p. 56.

22 COSTA, Rogério Haesbaert da. O Mito da Desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade.

6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011. p. 67.

23 Cf.: LITTLE, Paul E. Territórios sociais e povos tradicionais no brasil: por uma antropologia da territorialidade.

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exclusiva dos benefícios, oriundos dos centros de decisão da colônia”24 (grifo meu). Dessa maneira, pode-se entender a terra – distinta do território – enquanto meio de prestígio e poder social no período colonial, representando motivação suficiente de interesse para o avanço de embates cujo objetivo era a posse e domínio das regiões até então pertencentes aos índios.

A Guerra do Açu, composta por diversas guerras justas, representa um momento claro de interesse dos colonos nas terras dos índios bem como na tentativa de aumento do número de escravos indígenas. Tal conflito tem sua data de início marcada por volta de 1687 e de término em 1720, tendo ocorrido na Ribeira do Açu, localizada na Capitania do Rio Grande, e fez parte de uma série de embates contra indígenas de diferentes etnias, entre elas pode-se citar os Janduís, Caboré, Capela, Panicuassus – essas são as nações de índios que aparece com maior recorrência nas fontes. Esse episódio marcou a história colonial na América Portuguesa e é comumente associado a um dos casos da Guerra dos Bárbaros, evento que compreendeu não apenas a Guerra do Açu, mas se estendeu desde as Guerras do Recôncavo (1651-1679)25.

A área correspondente ao Açu era repleta de campos que podiam servir para criação de gado, como ocorreu no período de mais intensa colonização por volta do final da década de 1670 e início de 1680. Quando vaqueiros instalaram currais, aquele local era habitado inicialmente pelos tapuias26. Segundo Gregório Varela de Berredo Pereira, autor do “Breve compêndio”27 (1690), o Açu era um lugar de difícil acesso “por estar de distância de trezentas léguas pelo sertão adentro, em parte com morros de areais e em outras de penedia mui agreste”28. Foi nesse cenário que os índios presenciaram o avanço e as investidas de colonizadores e moradores, tendo que responder aos ataques e gerando conflitos ainda mais sangrentos.

No processo de colonização da capitania do Rio Grande, é possível identificar o litoral como uma zona de difusão, conceito que Antônio Carlos Robert de Moraes usou ao

24 MOREIRA, Ruy. Formação espacial brasileira: uma contribuição crítica à geografia do Brasil. Rio de Janeiro:

Consequência, 2012. p. 33.

25 PUNTONI, Pedro. A guerra dos Bárbaros: povos indígenas e a colonização do sertão nordeste do Brasil,

1650-1720. São Paulo: Hucitec/Edusp, 2002. p. 13.

26 Tapuia foi uma categoria colonial atribuída a determinados grupos indígenas em oposição aos tupis. Os tapuias

seriam os considerados inimigos e “de língua travada”. Cf.: POMPA, Cristina. Religião como tradução: missionários, tupi e tapuia no Brasil colonial. Bauru-SP: EDUSC, 2003. p. 221-223.

27 Gregório Varela de Berredo Pereira, morador de Pernambuco, nomeado Capitão de Infantaria no Brasil em 1690,

escreveu sobre o curto período de governo de Antônio Luís Gonçalvez da Câmara Coutinho. Neste relato, ao tratar os esforços e feitos políticos do governador de Pernambuco e suas anexas, Gregório termina por descrever informações importantes sobre a capitania do Rio Grande, como detalhes dos sertões do Açu.

28 PEREIRA, Gregório Varela de Berredo. Breve compêndio do que vai obrando neste governo de Pernambuco o

senhor Antonio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho. Recife, 1690. In: MELLO, José Antônio Gonçalvez de. Pernambuco ao tempo do governo de Câmara Coutinho (1689-1690). Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco. Vol. LI. Recife: CEPE, 1979. p. 264.

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la como um centro de assentamento cuja serventia era de base para o alastramento da conquista da área pretendida. Como possibilidade de expandir territorialmente, os sertões do Açu representaram o que Moraes convencionou chamar de fundos territoriais, que seriam os estoques de espaços para futuras apropriações29. O estabelecimento dos colonizadores, tanto na zona de difusão quanto nos fundos territoriais, configura a região colonial, esse conjunto territorial sobre o domínio e a jurisdição da Coroa Portuguesa.

No entanto, a pretensão de aqui se estudar a relação dos índios com o seu território, nos momentos de guerra justa, logo colide com as dificuldades encontradas por meio da análise do discurso de fontes de cunho burocrático produzidas pelas autoridades coloniais. Entendendo que uma nova territorialização dos sertões30 do Rio Grande, motivada pela desterritorialização dos índios durante as guerras, acarretou transformações substanciais nos elementos e nos atores políticos e sociais daquela área, torna-se dificultoso perceber as movimentações dos grupos indígenas mediante os relatos lacunares dos agentes detentores dos meios de escrita e registro no período colonial. Tendo em vista essas limitações, representada também pela intenção de determinados colonos em documentar ou não certos detalhes à sua época, exige-se um esforço no sentido de captar as ações dos índios nos meandros da documentação.

Exemplo desse esforço e de certo olhar sensível que se deve ter às fontes para tratar dos deslocamentos dos índios, em tempos de guerras, pode ser evidenciado ao encontrar um caso de transferências de presos da etnia Janduí e Caboré, em uma guerra até então indefinida se justa ou injusta. Através de uma portaria que foi remetida ao provedor da Fazenda Real, em 27 de fevereiro de 1713, sobre a assistência no sustento de uma índia, Dona Catherina31, que estava presa em Olinda, pôde-se apreender que dessa guerra ocorrida no Rio Grande foram feitos muitos índios cativos e achou-se mais prudente os remeterem para o forte de Santa Cruz

29 Cf.: MORAES, Antônio Carlos Robert de. Território e história no Brasil. 2 ed. São Paulo: Annablume, 2005. 30 Na definição de Raphael Bluteau, lexicólogo português, em seu Vocabulário portuguez e latino (1717-1721), o

sertão é considerado como o interior, o coração das terras, que se opõe ao marítimo. Sobre o conceito de sertão, Janaina Amado disserta que desde o século XIV já era utilizado em Portugal, podendo ser grafado tanto iniciando com a letra “s” quanto com a letra “c”, e dizia respeito às partes mais distantes de Lisboa. A partir do século XV é que novos significados foram atribuídos ao termo, fazendo referência aos espaços vastos e interiores localizados nas possessões recém conquistadas, onde muito pouco se sabia sobre eles. Ao longo do século XVIII, continuou sendo utilizado pela Coroa portuguesa, contudo, como sinônimo de um espaço desconhecido e misterioso a ser desbravado. Já no Brasil, apenas no século seguinte foi que se inseriu na língua falada. Cf.: AMADO, Janaína; FIGUEIREDO, Luiz Carlos. O Brasil no Império português. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Coleção Descobrindo o Brasil, 2001.

31 “Dona” é uma expressão de distinção social utilizada no período colonial, a qual atribui certa diferenciação

hierárquica, assim como o termo “dom”. No entanto, a respeito de Dona Catherina, ainda não se pode afirmar mais sobre quem ela teria sido ou o que levou à utilização dessa expressão, por ausência de documentos até o momento. No entanto, em ocasião mais oportuna a frente, esse caso será retomado e melhor tratado, especificamente no tópico 4.2, que trata sobre os deslocamentos indígenas no contexto das guerras justas.

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de Itamaracá, em Pernambuco, para lá colaborarem com o trabalho proveniente da fortificação32.

Nessa ocasião, vale ressaltar que mesmo com a indeterminação sobre a matéria da guerra, se seria justa ou injusta, diversos índios foram aprisionados. Não achando suficiente, foram retirados de seu espaço de convívio social e deslocados para um novo território a cerca de 266 km de distância da atual cidade do Natal, a fortaleza de Itamaracá. Esse processo de desterritorialização é evidenciado e justificado no documento pelo temor que se tinha de uma reorganização do grupo para preparação de um motim contra os brancos em consequência do conflito.

Na historiografia nacional e local, o índio guerreiro que estava fadado ao fracasso – morte ou escravidão – ou à assimilação colonial foi apresentado recorrentemente. Muitos dos estudiosos reproduziam de maneira acrítica os discursos presentes nos documentos produzidos pelas autoridades coloniais, em sua maioria carregados de adjetivos e termos que caracterizavam negativamente a imagem do índio, como “bárbaros” – marcando fortemente a própria historiografia que cunhou esse conflito com o termo “Guerra dos Bárbaros” –, além de “gentio”, “rebelde” ou “revoltoso”. Essas atribuições contribuíram e contribuem para estigmatizar sobre eles a imagem do índio insolente e que por isso merecia as investidas violentas da Coroa.

Um dos problemas evidenciados que influenciou na perenidade desse estigma foi o fato de que a historiografia clássica, tanto no âmbito nacional quanto local, ao tratar dos índios muitas das vezes se encarregou de reproduzir os discursos dos documentos sem a devida problematização. Vale salientar que a produção historiográfica se transforma ao longo do tempo, assim, deve-se ser situada no tempo e no espaço a qual foi construída. Isto posto, ao deparar-se com essa historiografia, é necessário levar em consideração, além da formação do historiador, o seu interesse e preocupação, tanto social quanto pessoal, à época da escrita.

Em se tratando da produção historiográfica local, Câmara Cascudo foi o exemplo de um dos maiores expoentes da história do Rio Grande do Norte no século XX. Ao iniciar o seu capítulo sobre a fundação da cidade de Natal, lança na primeira sentença a seguinte assertiva: “o forte construído ficava isolado no seu arrecife cercado pelo mar assim como a guarnição estava circundada pela indiada furiosa”33. Cascudo concluiu essa ideia afirmando que a

32 Portaria que foi ao provedor da Fazenda Real para assistir à tapuia Dona Catherina com o seu sustento. Biblioteca

Nacional de Lisboa (BNL), Coleção Pombalina (PBA), códice 115, fl. 127.

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conquista dos índios seria consolidada pela espada e pela catequese, alegando que “mosquetes, canhões, lanças, espadas e pelouros nada fariam”34. São afirmações veementes e com ausência de problematizações como essas que corroboraram com a manutenção de um ideário do índio insolente, que apenas seria capaz de conhecer a obediência por meio da força das armas e da missionação. Em contrapartida, ao apresentar figuras como Antônio Vaz Gondim, então capitão-mor do Rio Grande, de 1654 a 1663 e de 1673 a 1677, Cascudo o classificou como “o enfermeiro da terra e da gente”35, tendo em vista a necessidade de recuperação da Capitania diante dos estragos ocasionados pelos índios. Da mesma maneira, Câmara Cascudo exaltou as atitudes dos capitães-mores Agostinho César de Andrade e Bernardo Vieira de Melo, os quais lidaram diretamente com os mais intensos embates com os índios durante o período da Guerra dos Bárbaros, a qual o autor denominou de “Guerra dos Cariris”36. Já ao tratar do início do conflito, ele faz menção aos ataques que os índios faziam às residências e currais de gado, no sertão de Açu, destruindo toda coisa viva, e sobre o destino final deles o resume ao seu desaparecimento.

Ao não relativizar as ações dos índios, Cascudo terminou por ter uma visão reducionista da história, e em específico do envolvimento deles nas guerras, mesmo que em algum momento tenha ressaltado a utilização da guerra justa, por parte dos colonos, como uma manobra para se ludibriar as Leis de liberdade dos índios e conquistar mão de obra escrava37. Assim, seu pensamento alinhou-se com o de muitos historiadores da época. Vicente de Lemos foi um deles pois este, ao dedicar seus esforços na construção de dois volumes de livros sobre os capitães-mores e governadores do Rio Grande do Norte, teceu uma narrativa que privilegiava a exaltação das iniciativas dessas personalidades em detrimento da problematização de suas atitudes. Em relação aos índios, nesse período conturbado da história, Lemos os cita recorrentemente nas suas análises dos perfis dos capitães-mores como aqueles a serem vencidos ou submetidos à obediência.

No segundo volume de seu livro, Vicente de Lemos debruçou-se sobre as cartas patentes dos capitães-mores do Rio Grande, entre 1701 e 1822, e dentre todos os citados não há

34 Idem.

35 CASCUDO, Op. Cit., p. 77.

36 Câmara Cascudo denomina a Guerra dos Bárbaros como Guerra dos Cariris pois, segundo sua visão, os cariris

teriam sido as maiores vítimas nos conflitos. Eles correspondiam aos povos Paiacu, Icó, Caratiú, Pega, Caicó, Panati, Janduí, etc, que atacaram desde o Jaguaribe até o sertão da Paraíba. Na definição de Cascudo, cariris eram os índios de cabeça chata e silenciosos pois o significado de cariri era “calado” e “taciturno”. Cf.: CASCUDO, Luís da Câmara. História da cidade do Natal. 4 ed. Natal: EDUFRN, 2010. p. 79.

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um sequer que não faça menção à relação deles com os índios, com exceção de Sebastião Nunes Collares (1705-1708), do qual se comenta apenas sobre doações de sesmarias na ribeira de Mossoró38. Contudo, em todas as outras citações referentes aos índios, eles são colocados como um problema que os capitães tinham de enfrentar. André Nogueira da Costa, por exemplo, governou entre 1708 e 1711 e, ao lidar com a busca de soluções para se resolver o que fazer com os “silvícolas”, a dúvida pairava entre a catequese e “a espoliação, cativeiro, o massacre”39. Porém, ao consultar o Senado da Câmara de Natal, decidiu-se pela continuidade da guerra contra os índios. Em consequência disso, no período de vigência do seu sucessor, Salvador Alvares da Silva (1711-1715), “houve nas ribeiras do Açu nova revolta dos Cariris no início de 1712, que avançara contra o arraial tudo depredando e matando”40. Assim como Cascudo, Vicente de Lemos influenciou sobremaneira as produções historiográficas sobre o Rio Grande do Norte, incorrendo ao risco da manutenção do estigma do índio rebelde que destruía tudo em derredor ao não se propor a problematizar certas entrelinhas da história, e, apenas, reproduzir o discurso oriundo das fontes.

Outro nome emblemático da historiografia norte-rio-grandense é o de Tavares de Lyra. Em 1918, ele publicou o primeiro volume de seu trabalho, intitulado “Notas Históricas sobre o Rio Grande do Norte”, enquanto a obra “História do Rio Grande do Norte” foi publicada em 1921. Nessa última, o historiador propôs-se a discutir temas importantes que envolveram o Rio Grande do Norte desde a conquista da Capitania até os fatos ocorridos no início do século XX. Em um de seus capítulos, nomeado “Início do povoamento dos sertões e revolta dos índios”, Lyra inicialmente traçou as trajetórias dos capitães-mores, relatando as dificuldades e as conquistas na gestão deles na Capitania após a expulsão dos holandeses. Ao tratar da Guerra no Açu, ele ressalta que a incitação de guerras que os colonos faziam com o pretexto de apresar índios para mão de obra escravizada seria motivo para justificar o levante dos índios, no entanto, reitera a imagem do índio bárbaro ao comentar que:

Veio um dia em que desapareceu essa fingida paz que existia; os índios levantaram-se em massas poderosas, assaltaram os moradores, destruíram as plantações, assolaram as casas, e por tal forma que a 2 de dezembro de 1687, a Câmara, ponderando que estavam os índios senhores do Açu e a república em perigo, e ‘vendo o pouco fervor com que se havia o capitão-mor Pascoal

38 Cf.: LEMOS, Vicente de; MEDEIROS, Tarcísio. Capitães-mores e governadores do Rio Grande do Norte.

Vol. 2. Natal: Edição do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, 1980. p. 27.

39 Idem, p. 29. 40 Idem, p. 31.

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[Gonçalves] acordou na vereação deste dia irem todos os senadores com as pessoas que os quisessem acompanhar bater os índios levantados41.

Tavares de Lyra, discorrendo sobre os índios envolvidos no conflito, aderiu à dicotomia Potiguares contra Tapuias, em que os primeiros teriam se aliado aos portugueses enquanto os outros foram contrários a eles, dentre os quais, as etnias que predominaram teriam sido as de Janduís e de Caracarás42. Portanto, ele não se detém a identificar os grupos étnicos que foram vulgarmente categorizados como tapuias, especificando apenas dois povos diferentes. Porém, diferentemente de Cascudo, em “História da Cidade do Natal”, Lyra inseriu na discussão sobre a guerra o interesse dos colonos não apenas na mão de obra indígena mas também na exploração da terra43.

Como cada estudo é produto do seu tempo e espaço específicos, os autores, com seus objetivos próprios, trataram de temas referentes ao Rio Grande do Norte à sua maneira. Outra referência importante que, assim como as anteriores, se dedicou a discutir a história do seu estado no século XX foi Rocha Pombo. Esse autor apresentou fatos desde antes da conquista lusitana e, para o período da chegada dos portugueses, já naturalizou o uso da terminologia “bárbaros” ao referir-se aos índios. Tratando da tentativa de fixação de colonos no Rio Grande, ele comenta que “os bárbaros, porém, não os deixaram tranquillos, depredando-lhes as roças e incendiando-lhes os engenhos”44. Já a respeito do período da Guerra do Açu, Pombo dissertou que os “bárbaros” interceptaram o meio entre o Ceará e o Rio Grande, especificamente na ribeira do Açu, e se utilizando dos relatos de Pedro Carrilho de Andrade45, mesmo trecho que Tavares de Lyra usou, ele reafirmou a destruição de toda coisa viva naquela área por parte dos índios46.

Não obstante, na contramão dessas ideias, houve um crescimento vertiginoso de trabalhos que privilegiaram o viés da História Antropológica sobre os índios desde a década de

41 LYRA, A. Tavares de. História do Rio Grande do Norte. 3.ed. Natal: EDUFRN – Editora da UFRN, 2008, p.

141-142.

42 LYRA, Op. Cit., p. 143.

43 Cf.: LYRA, A. Tavares de. História do Rio Grande do Norte. 3.ed. Natal: EDUFRN – Editora da UFRN,

2008, p. 159.

44 POMBO, Rocha. História do estado do Rio Grande do Norte. Natal: EDUFRN, 2018, p. 30.

45 Pedro Carrilho de Andrade foi tenente da Fortaleza da Capitania do Rio Grande, assim como Capitão do Terço

de Paulistas na Campanha do Açu, e, por essa relação direta com os índios envolvidos na Guerra do Açu, ele elaborou relatos carregados de juízo de valor, que a despeito disso permitem dar uma noção sobre detalhes importantes dos grupos indígenas em sua “Memória sobre os Índios no Brasil”, por exemplo.

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197047. Porém, essas iniciativas não esgotaram as possibilidades de pesquisa que se dedicam a tratar o passado dos índios com um olhar diferenciado daquele construído pela historiografia até meados do século XX. Aqui, através da temática da Guerra Justa, tem-se o intuito de ampliar as discussões que atentem para os índios da Capitania do Rio Grande, não os associando a papéis secundários48.

No âmbito da historiografia local, no que se tratou dos revisionistas e de uma leva de historiadores compromissados com o estudo mais direcionado aos índios do Rio Grande, destaca-se nomes como Olavo de Medeiros Filho. Esse, embora tenha, inicialmente, se proposto a analisar a genealogia das famílias brancas nos livros Velhas famílias do Seridó e Velhos

inventários do Seridó, lançados respectivamente em 1981 e 1983, tratou de ampliar sua análise

nos anos seguintes. Foi em 1984 que Medeiros Filho lançou Índios do Açu e Seridó, no qual abordou, exclusivamente, aspectos dos índios dessas regiões até então pouco explorados, como suas relações amorosas, questões de saúde, costumes, religiosidades e trabalho49. Além disso, no mesmo livro, versou sobre o contexto da Guerra dos Bárbaros, ao qual se refere como Levante dos Tapuias, através de temas como a colonização do Rio Açu por meio das concessões de sesmarias e os consequentes embates entre índios e moradores. No entanto, por vezes, ainda terminava por não problematizar o aspecto feroz dos índios, categorizando-os como bárbaros.

Já sobre a historiografia produzida a respeito da temática da guerra justa na capitania do Rio Grande, tem-se observado um crescimento vertiginoso nos estudos, majoritariamente acadêmicos, que privilegiam de alguma maneira a perspectiva da História Indígena, acompanhando o crescimento que houvera no âmbito da historiografia nacional. Maria Idalina Pires, por exemplo, representou os passos iniciais rumo a essa valorização da história pela ótica dos índios do Rio Grande ao discutir acerca da Guerra dos Bárbaros. Para ela, “o termo ‘Guerra

47 Importantes nomes da historiografia local e nacional como John Monteiro, Maria Regina Celestino de Almeida

e João Pacheco de Oliveira, por exemplo, dedicaram-se a tratar da História do período colonial por um viés que atenuasse as lacunas referentes aos índios, abordando-os através de um sentido antropológico, em que o conceito de cultura é entendido por meio de “todos os produtos materiais, espirituais e comportamentais da vida humana, bem como as dimensões simbólicas da vida social” (ALMEIDA, 2010, p. 21), abandonando a ideia de uma cultura fixa e imutável para assim valorizar a trajetória histórica de cada povo.

48 Para Maria Regina Celestino de Almeida, desde o começo da História do Brasil por Francisco Adolfo Varnhagen

(1854) até momentos bem avançados do século XX, os índios “pareciam estar no Brasil à disposição dos europeus, que se serviam deles conforme seus interesses” (ALMEIDA, 2010, p. 13). Por isso, essa vertente da história antropológica visa, sempre que possível, dar maior visibilidade aos índios como maneira de dirimir a marginalização histórica deles. Cf.: ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. O lugar dos índios na história: dos bastidores ao palco. In: ALMEIDA, Maria Regina Celestino. Os índios na História do Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2010. p. 13-28.

49MEDEIROS FILHO, Olavo de. Velhas famílias do Seridó. Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal, 1981;

MEDEIROS FILHO, Olavo de. Velhos inventários do Seridó. Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal, 1983; MEDEIROS FILHO, Olavo de. Índios do Açu e Seridó. Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal, 1984.

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dos Bárbaros’ não apenas exprimiu a noção de valentia que estes índios resistiam às incursões portuguesas, mas transmitiu a ideia de que sua ‘primitividade’ [...] justificava seu extermínio50”. Na tentativa de dirimir as lacunas historiográficas sobre os índios, Soraya Geronazzo também trabalhou com a Guerra dos Bárbaros, no entanto, dedicou-se a especificar as etnias indígenas envolvidas nesse contexto, não as tratando de maneira generalizada, além de atentar para as experiências desenvolvidas por eles nos conflitos no que tangia às estratégias e uso de armas, por exemplo51.

Seguindo essa linha de análise, Helder Alexandre Medeiros de Macedo deteve-se em partes de suas pesquisas a apresentar indivíduos, eventos e ações indígenas, até então obscurecidos na história, que envolviam o sertão do Rio Grande, colocando-os em vários meios sociais desde os laços de convívio familiar até a guerra e consequente escravidão52. Júlio César de Alencar, mais recentemente, realizou seu trabalho de dissertação analisando a Guerra dos Bárbaros através dos documentos produzidos pelo Senado da Câmara da cidade do Natal. No trabalho de Alencar, apesar de não se apresentar diretamente o conceito de desterritorialização do sertão, é possível observar exemplos dessa ação a partir de seu estudo das fontes dos camarários ao evidenciar a busca para “garantir o acesso aos espaços liberados para a colonização na capitania do Rio Grande, alegando terem descoberto as terras que requeriam e/ou terem combatido indígenas, contribuindo para o povoamento desses espaços53”. Em se tratando das guerras no Rio Grande, Fátima Martins Lopes, ao discorrer sobre a participação dos índios em tropas coloniais, apresenta que era uma possibilidade de se continuar exercendo a prática guerreira do ponto de vista dos indígenas tanto Tupis quanto demais etnias54.

Ricardo Pinto de Medeiros, em sua tese de doutorado, realizou sua pesquisa principalmente através dos relatos dos cronistas, identificando e localizando, na escala espacial, grande parte dos povos indígenas do sertão nordestino que foram contatados e adquiriram

50 PIRES, Maria Idalina. Guerra dos Bárbaros: resistência indígena e conflito no Nordeste colonial. Recife:

Fundap/CEP, 1990, p. 28-29.

51 Cf.: ARAUJO, Soraya Geronazzo. O muro do demônio: a economia e cultura na Guerra dos Bárbaros no

nordeste colonial do Brasil – séculos XVII e XVIII. 2007. 122f. Dissertação (Mestrado em História Social). Centro de Humanidades. Universidade Federal do Pará, 2007.

52 Cf.: MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Populações indígenas no sertão do Rio Grande do Norte. Natal:

Ed. UFRN, 2011.

53 ALENCAR, Júlio César Vieira de. Para que enfim se colonizem estes sertões: a Câmara de Natal e a Guerra

dos Bárbaros (1681-1722). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal-RN, 2017. p. 169.

54 Cf.: LOPES, Fátima Martins. Os indígenas aldeados na Capitania do Rio Grande na primeira metade do século

XVIII: Terra e trabalho. In: MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de; SANTOS, Rosenilson da Silva (orgs.). Capitania do Rio Grande: histórias e colonização na América Portuguesa. João Pessoa: Ideia; Natal: Edufrn, 2013. p. 73-90.

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visibilidade não apenas no Rio Grande, mas nas demais capitanias envolvidas na Guerra dos Bárbaros55. Já Lígio José de Oliveira Maia, ao discutir a relação dos indígenas nas Serras de Ibiapaba, no Ceará, desde quando essa era aldeia até o momento em que se tornou vila de índios, reservou um espaço para tratar da força marcial desses povos que chegaram a ser considerados “o braço forte da capitania”, tendo em vista sua destreza bélica em favor da Coroa portuguesa nos tempos de guerra56.

Apesar de esses trabalhos recentes apontarem para uma participação mais efetiva dos grupos indígenas nas guerras, ainda há lacunas a serem aprofundadas e mitigadas, principalmente no que tange ao estudo da guerra justa como, por exemplo, a análise em específico dos discursos produzidos pelas autoridades coloniais, atentando para a ressignificação desse aparato jurídico na prática e a introdução de elementos que fossem capazes de viabilizar a desterritorialização, seguida da dominação, do sertão do Rio Grande. Questões importantes que já foram trabalhadas, porém, não se esgotaram, como as agências indígenas, as resistências, as novas possibilidades de territorialização dos grupos indígenas alijados de suas terras, entre outras abordagens nesse sentido que foram tratadas aqui.

A relação aqui estabelecida com o objeto de pesquisa e as próprias fontes foi sendo construída ainda ao longo da graduação, quando sob a orientação do Professor Doutor Lígio José de Oliveira Maia foi possível iniciar uma bolsa de Iniciação Científica voltada para a pesquisa referente aos indígenas da Capitania do Rio Grande através da análise do fundo documental do Arquivo Histórico Ultramarino no ano de 2015. Tal iniciativa resultou, em 2017, na Monografia de Conclusão de Curso intitulada “História indígena e do indigenismo na documentação avulsa do Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa concernente ao Rio Grande do Norte (AHU-RN) – Século XVIII”. Foi por meio do estudo e análise desses documentos que se começou a construir um acervo próprio que pudesse dar conta das narrativas das guerras envolvendo os índios do Rio Grande.

Logo, uma das motivações para construção desta pesquisa baseia-se na tentativa da reconstrução de parte da história dos índios, além do interesse em contribuir com a produção historiográfica concernente ao Rio Grande do Norte que, paulatinamente, vem tendo suas lacunas preenchidas através das recentes pesquisas, principalmente aquelas vinculadas ao

55 Cf.: MEDEIROS, Ricardo Pinto. O descobrimento dos outros: povos indígenas do sertão nordestino no período

colonial. 2000. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de Pernambuco, Programa de Pós-graduação em História, Recife, 2000. p. 114-149.

56 Cf.: MAIA, Lígio José de Oliveira. Serras de Ibiapaba, de aldeia à vila de índios: Vassalagem e identidade

no Ceará Colonial–Século XVIII. 2010. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense, Programa de Pós-graduação em História, Niterói, 2010. p. 200-220.

Referências

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